Resumo: Muito se tem escrito sobre a secularização, mas poucas têm sido as investigações profundas sobre as suas camadas internas e sobre as alternativas mais sólidas e sistemáticas que lhe seguiram. No nosso ver, isto refletiu-se em dificuldades de compreensão interpretativa e de aprofundamento teórico-analítico que são necessárias e possíveis de ultrapassar. Para cumprir tal desiderato, escolhemos um desenho de investigação que engloba as estratégias da descrição densa e do método comparativo e dividimos o trabalho em duas partes essenciais. Em primeiro lugar, analisamos os principais substratos da secularização, nomeadamente a diferenciação funcional, a racionalização a societalização, a segurança existencial e a diversidade, igualitarismo e individualismo. Em segundo lugar, introduzimos aquela que, para o estado da arte, é a principal e mais desafiante alternativa às teorias da secularização - a economia religiosa -, examinando-a à luz dos seus pressupostos fundamentais. No final do trabalho, para efeitos de maior sistematização, oferecemos um quadro de análise com a comparação dos principais axiomas das duas teorias.
Palavras-chave: Teorias da secularização, camadas internas, teoria da economia religiosa, método comparativo.
Abstract: Much has been written about secularization, but there have been few profound researches on its internal layers and on the most solid and systematic alternatives that followed. In our view, this has had two consequences: constraints of interpretative understanding and of analyticaltheoretical deepening that must and can be overcome. To achieve this goal, we have chosen a research design that encompasses the strategy of thick description as well as the comparative method and we divided the paper in two basic parts. First, we analyse the main substrates of secularization, namely functional differentiation, rationalization, societalization, existential security and diversity, egalitarianism and individualism. Secondly, we introduce the main and most challenging alternative to secularization theories, according to the state of the art - the religious economy -, examining it in the light of secularization’s central assumptions. At the end of the paper, for a more systematic exam, we provide a table analysis comparing the main axioms of both theories.
Keywords: Theories of secularization, internal layers, religious market model, comparative method.
Article
TEORIAS DA SECULARIZAÇÃO E O MODELO DA ECONOMIA RELIGIOSA: UMA ANÁLISE COMPARATIVA
SECULARIZATION THEORIES AND THE ECONOMY MODEL RELIGIOUS: A COMPARATIVE ANALYSIS
Não obstante o debate sobre a secularização, tal o conhecemos, esteja presente e seja prolífero nas ciências sociais, sobretudo, desde a década de 1960; a maioria dos cientistas sociais continua a declarar dificuldades ao trabalhar com este conceito.
Beckford (2003, p. 32) chegou ao ponto de afirmar que a secularização é um caso paradigmático de um conceito essencialmente contestado que é, simultaneamente, central para o debate acadêmico e inerentemente problemático. No nosso entender, é precisamente neste campo que se encontra a noção de secularização. O estado da arte testemunha a nosso favor. Glasner (1977) e Stark (1999, p. 250) dizem que ela é um mito sociológico e uma profecia falhada; Finke e Stark (1988, p. 42; 2000, p. 199) declaram que ela é uma falácia histórica; Fichter (1981, p. 23) e Hadden (1987, p. 595) asseveram que ela é uma doutrina, uma ideologia ou um dogma inquebrável da teoria sociológica; para Gorski (2000, p. 139-140) e Tschannen (1991) ela não é uma teoria, mas uma família de teorias ou um paradigma; Lechner (1991, p. 1106) acusa-a de ser uma tese etnocêntrica do Ocidente, enquanto Asad (2003, p. 1) afirma que ela representa uma narrativa determinista inaceitável. Por fim, para Casanova (1994, p. 12), a noção de secularização é tão multidimensional e ironicamente reversível nas suas conotações contraditórias que é praticamente inoperacional cientificamente1.
Chegados a este ponto, será apenas normal perguntar o que é a teoria(s) da secularização? Será possível (re)operacionalizá-la ao nível científico? Se sim, como? É precisamente aqui, na resposta à última interrogação, que o nosso trabalho pretende situar-se. Muito se escreveu sobre a ideia de uma secularização unívoca; porém, poucos são os investigadores que procuram entender os seus substratos e, menos ainda, são aqueles que trabalham a secularização concomitantemente com as alternativas, mais sólidas e sistemáticas, que lhe seguiram. Mesmo nos casos em que isto sucedeu (Gorski, 2000; Voas, 2008; Stolz, 2010; Pollack, 2011; Roberts e Yamane, 2012; Pickel e Sammet, 2012), os esforços acadêmicos foram, essencialmente, descritivos, não problematizando suficientemente o objeto de estudo, nem estabelecendo comparações de forma sistemática e, frequentemente, limitando-se a observações genéricas sobre as proposições de alguns dos principais teóricos da secularização e de suas alternativas2.
Não negamos o contributo relevante destes trabalhos, em especial, em matéria de sistematização descritiva e analítica; contudo, consideramos que, neste campo, é necessário e possível dar um passo em frente.
Visto que o nosso trabalho pretende examinar a ideia de secularização através das suas camadas internas, consideramos útil a aplicação do desenho de investigação da descrição densa (Geertz, 1973, p. 3-10). Ou seja, um tipo de explicação inteligível sobre os eventos sociopolíticos, as instituições e os processos que estimulam a secularização. Para cumprir tal desiderato, pensamos, tal como Collier (1993, p. 105 e 109) ou Smelser (2013 [1976], p. 2-3), que o método comparativo é uma ferramenta fundamental. Isto, porque aumenta o nosso poder descritivo, através da distinção entre similaridades e contrastes dos casos de estudo, e facilita o aprofundamento teórico-analítico e outras formas de compreensão interpretativa. Assim sendo, chamamos à colação a teoria do mercado religioso que é, atualmente, segundo vários autores (Voas, 2008, p. 26; Pickel, 2009, p. 91; Pollack e Pickel, 2009, p. 147; Pickel, 2012, p. 12), o modelo explicativo mais desafiante ou a alternativa mais relevante à secularização3. Este modelo, também conhecido por economia religiosa, corresponde a um esforço de formação de uma nova teoria geral, caracterizada por explicações sobre a mudança religiosa através do lado da oferta (supply-side) ou por meio duma perspetiva de escolha racional, propondo uma alternativa à família tradicional das teorias da secularização.
Posto isto, estabelecemos um plano de trabalho baseado em cinco etapas essenciais. Em primeiro lugar, abordamos algumas questões conceptuais e históricas que subjazem ao advento da tese da secularização. Após esta etapa inaugural, entramos na análise dos seus substratos, examinando as suas múltiplas camadas internas. Depois, procuramos entender a teoria da economia religiosa, através das suas motivações históricas e acadêmicas e da sua estrutura teórica interna. A partir deste ponto, estamos preparados para entrar nas questões mais controvertidas do mercado religioso, sendo capazes de examinar as suas atualizações e extensões teóricas mais recentes. A perspectiva comparativa encontra-se presente desde a entrada no modelo da economia religiosa; porém, na conclusão do trabalho, para efeitos de sistematização, propomos uma tabela comparativa dos principais axiomas das duas teorias.
A questão sobre qual o momento fundamental para o estabelecimento de um estudo sistemático do fenômeno religioso nas sociedades modernas - o segundo período na nossa opinião4 -, parece consensual dentro da literatura sobre a secularização.
Com efeito, a maioria dos autores menciona o período pós II Grande Guerra (pós-1945) e os inícios da década de 1960 como momentos inaugurais para a teoria da secularização no campo da sociologia das religiões. Casanova (1994, p. 19), por exemplo, afirma que é neste período que se podem encontrar as suas primeiras tentativas de desenvolver formulações empíricas e sistemáticas. Na opinião de Hellemans (1998, p. 67-68), isto deveu-se à publicação de três livros: Religion in Secular Society (1966), The Invisible Religion (1967) e The Sacred Canopy (1967). Mas, não apenas destes, segundo afirma Demerath (2007, p. 59), porquanto a academia das ciências sociais da época produziu uma “super safra” de publicações sobre a secularização. O desenvolvimento teórico fez com que a tese da secularização fosse integrada, durante os anos 1960, na teoria da modernização, tornando-se num dos seus axiomas centrais (Gorski, 2003, p. 111). Para Hadden (1987, p. 594), na época, a tese da secularização parecia autoevidente; enquanto Gorski (2003, p. 111) insiste que todos pareciam concordar com a ideia de que a influência pública da religião estava a diminuir. A ideia de secularização ganhou relevo nos circuitos acadêmicos alemão, francês, inglês e norte-americano nesses anos, de acordo com Bremmer (2008, p. 434437). A referência geográfica é simbólica, visto que, segundo Stark (1999, p. 251), a teoria da secularização “exprimia totalmente o estado de espírito desses tempos”.
Mas, o que significa a expressão teoria da secularização? Em primeiro lugar, importa notar que não existe uma única teoria da secularização. A frase designa, essencialmente, um conjunto de ideias que se refere à relação entre modernização e religião. Contudo, a sua multidimensionalidade pode conduzir a disputas e contradições acadêmicas sobre o seu significado que, por consequência, podem gerar incompreensões epistemológicas que, derradeiramente, tornam o seu sentido inoperacional cientificamente.
De modo a contornar tais dificuldades, propomos, à entrada do estudo das teorias da secularização, a aplicação duma análise em camadas múltiplas. Através dela conseguimos criar conceitos sistematizados que agrupam as suas principais correntes científicas, esperando, por meio deste refinamento metodológico, lograr uma maior clareza conceptual.
Em termos muito gerais, as teorias da secularização afirmam que o processo de modernização e os seus subprocessos, transformadores da totalidade da estrutura social, não podem decorrer sem consequências para as tradições e instituições religiosas. Ou seja, as propriedades estruturais da modernização, tais como a racionalização, a diferenciação funcional ou a socialização (Vergesellschaftung) colocam problemas à religião, pelo menos no seu sentido tradicional, e reduzem ou, no limite, extinguem a sua relevância social.
Vários autores consideram que, dentro deste marco teórico, o nível de análise mais importante ou, no mínimo, o mais evidente da secularização é o macrossocial5 (Tschannen, 1992, p. 61; Finke e Stark, 2000, p. 59; Pollack, 2011, p. 8; Roberts e Yamane, 2012, p. 341). Eles alegam que, de todas as dimensões analíticas da secularização, a macro é aquela que de fato ocorre em todas as sociedades ocidentais e que conduz a formas reais de mudança na religião institucionalizada. No nosso ver, é sobretudo dentro desta dimensão que devemos entender os substratos da secularização.
Diferenciação funcional
O núcleo central desta dimensão macrossocial é representado por uma teoria de diferenciação funcional de inspiração durkheimiana (Durkheim, 1984 [1893]). Ela diz respeito ao processo pelo qual o Estado e a política reduzem os sistemas religiosos tradicionais a um subsistema social, entre outros, fazendo-os perder a sua proeminência e relevância em sociedades modernas funcionalmente diferenciadas. Isto é, com o crescimento da autonomia, especialização, competição e tensão entre as diferentes forças sociais, as autoridades religiosas institucionalizadas perdem o controlo sobre determinadas funções sociais, tais como: a política, economia, educação, família, saúde ou assistência social.
Como nos explica Hellemans (1998, p. 75), no estado da arte, o fenômeno da diferenciação per se não é discutível. A questão principal não é tanto o acontecimento dos processos de diferenciação, mas as consequências que tiveram para o lugar da religião na sociedade moderna. Seguindo o modelo de Gorski (2000, p. 139-142), a partir da década de 1960, conseguimos detetar três posições básicas e não estanques: declínio, privatização e transformação.
A tese do declínio é uma das mais visíveis nos argumentos dos autores. Para Wilson (1969, p. xiv), por meio deste processo de diferenciação ou autonomização, a sociedade deixa de necessitar das funções latentes da religião e, consequentemente, as instituições e as ações religiosas perdem a sua relevância social. Com o processo da diferenciação, o fenómeno religioso, em geral, mas as autoridades e organizações religiosas em particular vêem a sua relevância social ser circunscrita, diminuída ou até desintegrada (Martin, 1978, p. 3; Dobbelaere, 1981, p. 14 e 31; Luhmann, 1995, p. 191). A proposição da privatização é, sobretudo, avançada por Luckmann (1967). Para o autor a diferenciação funcional deriva duma ação política deliberada de desenvolvimento de esferas institucionais especializadas (ibid., p. 39-40 e 101). A redução do espaço de ação e influência das instituições religiosas transforma a religião numa realidade crescentemente subjetiva e privada (Ibid., p. 85-86). Outros autores partilham deste argumento. Em Berger (1990 [1967], p. 107) o fenômeno da diferenciação não provoca apenas mudanças sócio-estruturais na religião; pelo contrário, a religião passa a manifestar-se mais fortemente como retórica pública e virtude privada (Ibid., p. 134). Também Luhmann (1995, p. 218-221) considera que a criação e especialização de subsistemas sociais seculares podem estimular a individualização das escolhas dos indivíduos.
Por fim, analisamos a ideia de transformação. Parsons, com a sua obra Structure and process in modern societies (1960), foi um dos primeiros a escrever sobre o processo de diferenciação e sobre as suas consequências para a religião. Tal como Luckmann, ele acredita que, à medida que as sociedades se complexificam e diferenciam funcionalmente, a influência institucional das igrejas ocidentais se confina gradualmente à esfera privada. Contudo, por oposição a Luckmann, Parsons acredita que a manutenção dos valores cristãos se mantém sadia nestas sociedades. Com efeito, ele afirma que estes valores haviam passado por um processo de generalização, formando o núcleo sagrado do sistema social e das suas partes constituintes. Assim, enquanto o sagrado havia ficado mais fragmentado, não tinha, porém, ficado menos público (Parsons, 1977). Tal como Parsons, Berger (1990 [1967], p. 133) acredita que a religião tradicional continua a ter impacto público; porquanto, segundo Casanova (1994, p. 21), em condições de diferenciação estrutural, a religião passa a poder especializar-se exclusivamente nas suas próprias funções religiosas, logrando trabalhar em novos modelos de relação com os indivíduos e os Estados modernos; por exemplo, através do desenvolvimento duma religião civil (Bellah, 1975, p. 3 e 168).
Segundo Willaime (2006, p. 763), a diferenciação constitui uma das consequências da racionalização e ambas são apontadas como fatores-chave da modernização que explicam a diminuição do significado macrossocial da religião.
Em traços gerais, a tese da racionalização, de inspiração weberiana (Weber, 2003 [1904-1905]), diz que a Reforma Protestante, o Iluminismo e a Industrialização desenvolveram uma perspetiva racional do mundo - baseada em padrões empíricos de prova, conhecimento científico dos fenómenos naturais e domínio tecnológico do universo - que fez crescer uma cosmovisão racional que, por sua vez, enfraqueceu as fundações da crença no sobrenatural. A especialização de áreas de conhecimento, tais como a política, educação, engenharia, tecnologia, matemática ou a medicina, criaram um sentimento de controlo lógico do ser humano sobre a natureza que dispensa as interpretações bíblicas ou metafísicas do mundo. A religião e os seus ensinamentos passam a ser apenas mais uma fonte de conhecimento, entre outras, das sociedades modernas, tal como sucede na tese da diferenciação.
A visão racionalista do mundo e o seu impacto na religião não ficam cristalizados em Weber. Muitos dos mais relevantes sociólogos avançam, ainda mais, com o argumento racionalista a partir das décadas de 1960 e 1970, integrando-o nas teorias da secularização.
Na linha de Weber (2003 [1904-1905], p. 105), Berger (1990 [1967], p. 105125) assevera que a racionalização é um processo iniciado pelo judaísmo e pelo cristianismo (sobretudo o protestante). Não obstante as suas origens religiosas, Berger (ibid., p. 43) pensa que a proliferação de justificações racionais e científicas reduz a credibilidade das explicações religiosas do mundo. Pelo fato de representar o prérequisito central de qualquer sociedade moderna industrializada, o processo de racionalização é, em Berger (ibid., p. 132-133), a variável decisiva da secularização. Para o autor, as razões para esta secularização de tipo macrossocial são: a especialização das organizações sociais e dos seus recursos humanos científicos e tecnológicos e a sua racionalização estrutural psicológica; o potencial secularizante abrangente da racionalidade capitalista industrial; o estabelecimento, ao nível estrutural, duma burocracia estatal altamente racional e, ao nível ideológico, a manutenção de legitimações adequadas para aparato burocrático (Ibid., p. 131).
Tal como Berger, Wilson (1976) segue a linha weberiana e estabelece uma forte relação entre seculariação e racionalização. Para o autor, a racionalidade deriva dos avanços tecnológicos e científicos, sendo determinada por uma relação eficiente entre meios e fins, na qual qualquer pessoa pode desempenhar a sua função técnica de forma autónoma. É aquilo a que Luckmann (1967, p. 96) chama de anonimato dos papéis especializados, determinados por instituições funcionalmente racionais; ou ainda aquilo que Martin (1978, p. 83) denomina de relações impessoais e mecânicas, onde os laços íntimos de comunidade horizontal são quebrados. Assim sendo, o que predomina são as orientações racionais e empíricas do mundo, por oposição às orientações mágicas e religiosas (Wilson, 1976, p. 11). O controlo é técnico e burocrático e não moral e religioso (Ibid., p. 20). Grosso modo, a racionalização reduz a frequência com que as pessoas e os Estados se dirigem e buscam direção na religião, especialmente em matéria educativa (Wilson, 1969, p. 63-64) e em questões de família e natalidade, mas, também, na procura de determinados objetivos sociais (Wilson, 1982, p. 44).
Vários outros autores, da época, mas não apenas, partilham desta ideia. Tal como sucede em Berger e Wilson, em Martin ou Stark e Finke o processo de racionalização não se circunscreve apenas às esferas política e económica. Para os autores, a ciência e a consciência tecnológica são as principais perspetivas seculares autónomas do mundo que promovem um sentimento de controlo e manipulação dos ambientes social e natural. Com efeito, elas são quem mais carrega consequências fatais para a religião (Finke e Stark, 2000, p. 61), quem mais a torna obsoleta e implausível e quem mais restringe o papel da contingência e reduz a influência das suas propriedades metafísicas (Martin, 1969, p. 116).
Outro elemento clássico das teorias da secularização, apontado comummente pelo estado da arte, é a passagem de um sistema de base comunitária para outro de base social, ou seja, a societalização (Vergesellschaftung).
Dentro destas teorias, a versão original da societalização é a de Tönnies (2002 [1887], p. 33-44), explicando que a transição da comunidade para a sociedade reflete a perda do domínio das instituições religiosas sobre o indivíduo. Esta tese foi, de forma implícita ou explícita, ecoada na literatura, designadamente por Wilson e HervieuLéger.
O argumento de Wilson (1976, p. 265-266) é que a secularização corresponde ao declínio da comunidade, ou seja, ela é concomitante com societalização. Ao elaborar a sua tese, o autor explica que tradicionalmente a religião se celebrava e legitimava na vida local (comunitária). Contudo, com a passagem da comunidade a sociedade e com a sua organização, agora, à escala nacional, a plausibilidade global dos sistemas moral e religioso diminui, a religião enfraquece-se e distancia-se (Wilson, 1982, p. 153). Com efeito, Wilson (1976, p. 246) associa a societalização à modernização e aos seus inerentes processos de industrialização e racionalização. Para ele, a societalização refere-se ao facto de as formas de comunidade, sobre as quais a religião exercia anteriormente um controlo social significativo, tenderem a dissolver-se no processo de modernização, sendo substituídas por organizações e relações pessoais mais amplas e impessoais.
Também em Hervieu-Léger (1999, p. 203; 2000, p. 132-136) o processo de societalização traz consequências para a religião. Segundo a sua tese, com a transição de um sistema de base comunitário para outro de base societal, os indivíduos deixam de encontrar as suas ligações sociais num lugar permanente, algo que reduz a possibilidade de controlo social e o sentimento de partilha de uma consciência coletiva (religiosa) institucionalizada num território específico. Para a autora, isto é um reflexo da erosão da civilização paroquial, i.e., a passagem de uma sociedade rural (que moldou a cristandade cristã) para uma industrial que tende a causar problemas à cultura religiosa.
Aos três argumentos clássicos das teorias da secularização, indicados como elementos justificativos do decréscimo da relevância macrossocial da religião, decidimos juntar o axioma da segurança existencial de Norris e Inglehart (2004). Esta adenda afigura-se coerente, porquanto a sua tese parte de dois pressupostos básicos da secularização: a transição de sociedade agrária para industrial (societalização) e o desenvolvimento duma sociedade industrial para outra pós-industrial (racionalização) (ibid., p. 35-36). Segundo os próprios autores, a sua teoria é uma atualização da versão clássica da secularização, baseando-se nos axiomas da segurança e das tradições culturais. Contudo, para efeitos do nosso estudo, o foco estará no primeiro6.
A sua premissa básica diz que existe uma relação muito próxima entre o processo de modernização, ou seja, os índices de desenvolvimento econômico, político e cultural e os valores de segurança existencial7. Segundo Norris e Inglehart, a modernização reduz as ameaças de sobrevivência que são comuns em sociedades em desenvolvimento, em particular entre os estratos mais pobres, e, consequentemente, este sentimento de segurança diminui a necessidade de se recorrer ao amparo que a religião oferece (ibid., p. 53).
De acordo com alguns autores (Pickel e Sammet, 2012, p. 9), o seu argumento reproduz, em certa medida, as conceções marxistas que declaram que os sentimentos de vulnerabilidade dos indivíduos, em face de ameaças existenciais, são um fator-chave para direcionar a religiosidade. De fato, em Norris e Inglehart, índices elevados de segurança existencial tendem a diminuir a ansiedade e promovem sentimentos de bemestar psicológico (ibid., p. 19). Através do reforço destas sensações de confiança, os processos de modernização societal, desenvolvimento humano e igualdade socioeconômica trazem consequências significativas para a religiosidade. As condições de crescente segurança que normalmente acompanham a transição das sociedades agrícolas para industriais (momento mais dramático de mudança) e depois para pósindustriais (processo de mutação menos pronunciado), tendem a reduzir a saliência da religião na vida das pessoas. Ou seja, os indivíduos pendem a tornar-se menos obedientes a líderes religiosos tradicionais e a colocar menos importância em práticas religiosas convencionais. Para os autores, estes efeitos operam tanto ao nível societal como individual; porém, consideram que o primeiro é mais importante (ibid., p. 18).
Diversidade, igualitarismo e individualismo
Steve Bruce é, para alguns autores (Gorski e Altinordu, 2008, p. 59), um dos principais representantes da tradição neo-ortodoxa da secularização. A sua posição (Bruce, 2002, p. 8-29; 2011, p. 27-56) quanto aos efeitos dos processos da modernização sobre a religião é abrangente e complexa (dividida em três eixos principais e com mais de vinte pontos interrelacionados entre si) e engloba a totalidade dos pressupostos clássicos supramencionados. De modo a tornar a nossa análise operacional, observaremos com maior atenção o eixo central, aquele que deriva diretamente da ética protestante, do capitalismo industrial e do crescimento económico, pois é o que aparenta ter mais implicações ao nível macrossocial para a religião. No entanto, também consideraremos os dois outros eixos, nomeadamente através das lentes do individualismo e do racionalismo, procurando entender a forma como comunicam com a tese central.
Em linhas gerais, o argumento principal de Bruce (2002, p. 30; 2006, p. 37) diz que a secularização, ou melhor, o declínio ou a marginalização da autoridade das crenças religiosas, deriva da combinação de três fatores: individualismo, diversidade e igualitarismo. Bruce, tal como sucede em Norris e Inglehart, inspira-se em Marx, em especial na sua teoria da formação de classes. À medida que as funções sociais se tornam progressivamente diferenciadas e as comunidades se tornam gradualmente societalizadas, as pessoas dividem e afastam-se umas das outras. Bruce (2006, p. 37) vai beber ao conceito bergeriano de pluralização das cosmovisões individuais, justificando que a diferenciação estrutural foi acompanhada por uma diferenciação social (Bruce, 2002, p. 9; Bruce, 2011, p. 34). Assim, com a proliferação de novos papéis sociais e com a crescente mobilidade, os pressupostos morais e metafísicos comunitários tradicionais fragmentam-se e, por consequência, a comunidade transforma-se numa variedade de grupos heterogêneos que competem entre si.
Este fenômeno gera, segundo Bruce (2002, p. 4; 2011, p. 27), uma situação de profunda diversidade social e cultural que, desembocando num pluralismo religioso, apresenta dois resultados concomitantes fundamentais. O primeiro é o princípio do igualitarismo. Para o autor, é com o tema da diversidade nas sociedades industriais que faz sentido falar de igualdade (Bruce, 2002, p. 11; Bruce, 2006, p. 37). Segundo o argumento, uma das consequências fortuitas da Reforma protestante foi a reafirmação do que estava implícito desde os inícios do cristianismo: todas as pessoas são iguais aos olhos de Deus. A igualdade perante Deus evoluiu para uma equidade entre humanos, desdobrou-se numa igualdade diante da lei e culminou numa equidade de direitos individuais (Bruce, 2002, p. 11). A questão do individualismo ganha pertinência, precisamente aqui, em articulação com o igualitarismo, por causa das dinâmicas autónomas que cada um desenvolveu e dos seus resultados indiretos produzidos pela Reforma (Bruce, 2011, p. 31-33); em especial, a promoção dum espírito individualista (semelhante ao do fenómeno da societalização) e duma dissidência religiosa (no sentido tradicional), além do crescimento das seitas e do voluntarismo da associação religiosa.
Segundo Bruce, é exatamente através do igualitarismo e do individualismo que a Reforma estabelece as bases da democracia liberal. Os seus argumentos religiosos promoveram um individualismo, igualitarismo e uma diversidade que, por seu turno, se associaram às crescentes diferenciações sociais e estruturais que levaram, enfim, os governos a seguir na direção das democracias liberais seculares (Bruce, 2011, p. 39). Ou seja, o estabelecimento deste sistema plural e igualitário forçou a secularização do Estado - a sua separação das igrejas (Bruce, 2002, p. 16-17). Este é o segundo resultado da diversidade: o estabelecimento de Estados seculares e da democracia liberal. Face ao crescente pluralismo religioso, os Estados que reconhecem a igualdade legal dos indivíduos são forçados a retirar o seu apoio a organizações religiosas específicas e a secularizar as suas instituições centrais. Eles tornam-se progressivamente neutros, em termos religiosos, e as religiões institucionalizadas são abandonadas ou neutralizadas (Bruce 2002, p. 21; Bruce, 2011, p. 49).
A estes dois resultados fundamentais, consideramos que se devam ainda acrescentar o crescimento da ciência e da tecnologia e o desenvolvimento da consciência tecnológica; em suma, a racionalização. Em Bruce (2002, p. 26-28; 2006, p. 37; 2011, p. 43-37), a ciência e a tecnologia não apenas aumentam o nosso conhecimento e o sentimento de controlo do mundo em que vivemos, como também mudam o nosso modo de pensar. Em particular, afetam o imaginário naturalista e, através da sua racionalidade subjacente e da sua autossugestão de valorização humana, as pessoas tornam-se menos suscetíveis de aceitar a noção de uma força divina externa.
Resumidamente, em Bruce (2002, p. 30; 2011, p. 45 e 49), a diversidade, o individualismo, o igualitarismo, a democracia liberal e a ciência e tecnologia, entre outros, contribuem para um sentimento geral de autorrelevância e liberdade de crença que transforma a religião tradicional (autoritária e dogmática) menos atraente para as sensibilidades modernas. O autor conclui então que, face aos avanços dos processos da modernização, a religião sai enfraquecida, perdendo a sua plausibilidade social (Bruce 2002, p. 29-36).
Com a teoria do mercado religioso dá-se uma inversão total em alguns dos pressupostos clássicos da secularização (Voas, 2008, p. 25; Pickel, 2009, p. 92; Pollack e Pickel, 2009, p. 146; Pollack, 2011, p. 4-5; Pickel e Sammet, 2012, p. 10). Desde logo, destacamos a ideia de que religião e modernidade são compatíveis. Melhor dizendo, a região é estimulada pelos próprios processos de modernização e pluralização, assim como pela individualização que os acompanha. Assim sendo, o pluralismo não constrange a religiosidade, pelo contrário, estimula-a; a separação Estado-Igreja não limita a capacidade das igrejas e comunidades religiosas em reter membros, antes aumenta-a; a urbanização e o êxodo rural não enfraquecem a vitalidade religiosa, pelo contrário, fortalecem-na. Dadas estas premissas, não admira que Pollack, Müller e Pickel (2012, p. 7) afirmem que as teorias da secularização fiquem “viradas de fora para dentro”.
Mas, como se estrutura internamente uma teoria que desafia tão fortemente os postulados da secularização? Segundo Finke e Stark (1988, p. 42), a teoria da economia religiosa deve ser entendida como as economias comerciais; na medida em que corresponde a um mercado de consumidores atuais e potenciais, a um conjunto de firmas que os deseja servir e a linhas de bens religiosos por si oferecidos (Stark e Iannaccone, 1994, p. 232). Desde logo, existem aqui três conceitos que sobressaem e que importa explicar. O primeiro, bens religiosos, é o conjunto de respostas às profundas questões filosóficas que envolvem a vida e que têm, na sua base, alguma referência a uma força supernatural. O segundo, as firmas religiosas (i.e., uma igreja ou confissão), diz respeito às empresas sociais cujo principal propósito é a produção e oferta de bens religiosos a um qualquer conjunto de indivíduos. Por fim, o terceiro, a economia religiosa é a arena social na qual as firmas religiosas competem por membros e recursos.
Estas formulações teóricas surgem e desenvolvem-se nos EUA, entre as décadas de 1980 e 1990 - em especial, através dos trabalhos dos norte-americanos Laurence Iannaccone, Rodney Stark, Roger Finke, Stephen Warner e William Bainbridge -, para tentar explicar a contínua vitalidade da religião no país; ou seja, a verificação da manutenção dos elevados níveis de filiação a igrejas e de prática religiosa8. Em traços gerais, os autores observaram um aumento gradual destes índices religiosos nos EUA, sobretudo, a partir da separação Estado-Igreja(s)9 (disestablishment), associando-os positivamente ao pluralismo religioso e negativamente à regulação religiosa. Segundo o argumento geral, quanto maior o número de igrejas e comunidades religiosas em livre competição por fiéis e quanto menor a interferência estatal (por exemplo, através de subsídios ou doutros benefícios a uma igreja particular), maior será o nível de participação religiosa.
Posto isto, perguntamos: - Como pode este modelo teórico apresentar conclusões diametralmente opostas às da secularização, analisando o mesmo fenômeno social? A resposta reside, em particular, na forma como os seus teóricos entendem, substancialmente, a religião e na perspectiva científica e sociológica a partir da qual olham para ela.
Para eles, tal como para os teóricos da individualização, a religiosidade individual é concebida como uma constante antropológica, inerente à natureza humana (Pickel, 2009, p. 92). O seu axioma fundamental é que a procura da religião nas sociedades é estável e imutável (Voas, 2008, p. 26; Pollack, 2011, p. 6 e 12; Pickel e Sammet, 2012, p. 10-11). O lado da demanda, i.e., a necessidade de bens religiosos pelos indivíduos, mantém-se constante. Por este motivo, os teóricos do mercado focam a sua análise, sobretudo, na dimensão da oferta (a mobilização de recursos pelas firmas religiosas). A religião deixa de ser entendida como uma variável dependente, ou seja, como algo que os processos sociais modernos podem afetar de maneira adversa; para ser encarada como variável independente - uma força política, económica, social e cultural capaz de se organizar a si mesma, através de recursos próprios - que não dependente da procura dos consumidores, mas, apenas, da sua capacidade de satisfação da permanente demanda religiosa (Pollack e Pickel, 2009, p. 146; Pollack, Müller e Pickel, 2012, p. 7).
Além disso, no modelo do mercado a explicação da mobilização religiosa não é feita através duma perspetiva macrossociológica, como sucede no caso da teoria da secularização. Pelo contrário, as dinâmicas religiosas e a vitalidade da economia dão-se por meio dos esforços dos provedores religiosos, ao nível institucional. Por este motivo, a abordagem do mercado religioso parece justificar mais, mas não exclusivamente10, a mobilização da religião a um nível meso (Dobbelaere, 2002, p. 13 e 165) ou organizacional (Chaves, 1994, p. 766-767). A aplicação implícita desta dimensão ajuda os teóricos a realçar a complexificação da esfera religiosa, a sua adaptação às condições modernas e, consequentemente, a sua afirmação como elemento independente e determinante na economia religiosa. Deste modo, de acordo com Pollack (2011, p. 5), a esfera macro forma, no máximo, o pano de fundo para analisar o grau de mobilização religiosa a um nível secundário. Ainda segundo o autor, por conta da constância da religião, a dimensão micro (típica das teorias da individualização) que analisa os interesses, as necessidades e os desejos dos indivíduos também deve ser relativamente relevada.
A última característica geral desta teoria que consideramos, neste ponto, ser importante destacar é a sua relativa consistência interna. Não obstante persistam, como Warner detectou (1993, p. 1055), algumas diferenças quanto à estratégia analítica empregue e/ou aos seus corolários empíricos, entre os teóricos da economia religiosa; julgamos que, comparativamente às teorias da secularização, este modelo é o que mais se aproxima duma teoria unívoca. Ou seja, é o que mais se afasta da imagem de paradigma, entendido enquanto um conjunto de ideias, mais ou menos, dispersas sobre os efeitos do pluralismo na religião. Por esta razão, contrariamente ao que sucedeu com a secularização, iremos tratá-lo univocamente, apesar de estarmos cientes da sua imperfeita univocidade.
Nos inícios da década de 1990, Iannaccone (1991, p. 156-157) escreve que a monografia The Wealth of Nations de Adam Smith foi o marco fundador da teoria da economia das instituições religiosas. Desde então que a opinião de que Smith foi o primeiro a usar um modelo de mercado religioso explícito, para explorar a ação ou o efeito recíproco que as organizações religiosas têm entre si, vem ecoando na literatura (Iannaccone, Finke e Stark, 1997, p. 350-351; Finke e Stark, 2000, p. 36; Finke e Stark, 2005, p. 9).
No fundo, o que Smith (1776, p. 432-434) faz é uma crítica à religião estabelecida, ou seja, aos monopólios religiosos. O autor assevera, grosso modo, que o autointeresse motiva tanto o clero (teachers of the doctrine) como os produtores seculares e que as forças do mercado livre, nomeadamente a dependência de contribuições voluntárias dos indivíduos, constrangem tanto as igrejas como as firmas arreligiosas. Além disso, Smith alega que os benefícios da competição, os encargos do monopólio e os riscos da regulação estatal afetam a religião tanto como qualquer outro setor da economia.
Segundo o estado da arte, as considerações do mercado religioso feitas por Smith são basilares, porquanto mostram a importância da estrutura de mercado (Iannaccone, 1991, p. 156-157), para a compreensão da mudança e variação religiosa nas sociedades, e, sobretudo, porque rompem com o paradigma antigo de que o pluralismo e a competição têm efeitos negativos na religião (Finke e Stark, 2000, p. 36; Finke e Stark, 2005, p. 8-9).
Outro marco fundacional da teoria do mercado religioso foi, a contrario, Peter Berger. De acordo com Finke e Stark (1988, p. 42), este é um dos poucos cientistas sociais que aplica um modelo de mercado explícito às organizações religiosas. Para Berger (1990 [1967], p. 138), as sociedades hodiernas vivem num contexto de pluralismo tão intenso que a atividade religiosa “é dominada pela lógica da economia de mercado”. O seu argumento é que o pluralismo força as religiões a competir e que esta competição condu-las a uma situação de mercado. Na mesma linha que Stark e Iannaccone (1994), Berger (1990 [1967], p. 138), observando a realidade norteamericana, conclui que as instituições religiosas tornaram-se em agências de marketing e as suas tradições em bens de consumo.
No entanto, esta é, segundo o autor, apenas uma de duas consequências do pluralismo. Para Berger (1990 [1967], p. 151), a pluralização das ideias e tradições religiosas enfraquece as estruturas de plausibilidade da religião (instituições ou dogmas) e, naturalmente, fá-la perder o seu estatuto inquestionável (taken-for-granted). Ao promover a concorrência entre os grupos religiosos, o pluralismo abre espaço para o questionamento, a crítica e para a eventual describilização da religião. Com isto, o equilíbrio secular do dossel sagrado é abalado e a vitalidade religiosa tende a diminuir ao longo do tempo (ibid., p. 127-154). Por estes motivos Berger considera, contrariamente a Smith, que as condições religiosas monopolistas são mais favoráveis à retenção de ideias e atitudes sagradas, nomeadamente, porque são apoiadas e confirmadas socialmente por estruturas de plausibilidade consideradas inquestionáveis.
Segundo Warner (1993, p. 1053), Berger ainda representa um paradigma antigo muito centrado na experiência europeia e numa ideia de fragmentação da igreja ocidental que, após a Reforma, conduziu a um caminho de desenvolvimento religioso descendente (Gorski, 2000, p. 140). Não obstante concordem com Berger sobre o facto de o pluralismo compelir as religiões a competir por membros (Finke e Stark, 1988, p. 42), os proponentes da economia religiosa têm uma perspetiva diferente quanto aos efeitos do pluralismo. Ao se centrarem na experiência norte-americana e na premissa de que a Idade Média - tendo sido mais um período de superstição popular do que um verdadeiro dossel sagrado - representa um momento de viragem positivo para o desenvolvimento da religiosidade ocidental (Gorski, 2000, p. 143-148), estes teóricos vêem o fenómeno religioso em crescendo (Pickel e Müller, 2009, p. 9).
Para se entender melhor esta teoria, devemos analisá-la à luz de alguns dos seus primeiros e principais textos, mormente os de Stark e Bainbridge (1985), Finke e Stark (1988) e Iannaccone (1991). Em todos eles podem-se identificar quatro conceitos centrais que desafiam o antigo paradigma: pluralismo, desmonopolização, desregulação (disestablishment) e especialização. O seu argumento diz que nenhuma organização religiosa consegue oferecer, de forma exclusiva, uma gama de serviços que responda a todas as necessidades do mercado. Por causa da diferenciação subjacente das preferências dos consumidores e da consequente segmentação do mercado, as economias religiosas nunca podem ser totalmente monopolizadas (Finke e Stark, 1988, p. 42). O estado natural da economia religiosa é, então, o pluralismo (Stark e
Bainbridge, 1985, p. 108). Assim sendo, na medida em o mercado se aproximar desta condição (livre, desregulada ou sem uma igreja monopolista), vários organismos religiosos podem operar livremente, cada um especializando-se em diferentes segmentos da economia. Este elevado nível de especialização permite às igrejas e comunidades religiosas responder a uma parte muito mais significativa da população.
As situações de monopólio religioso são criticadas por serem não competitivas, ineficazes ou “incuriosas” e, segundo Iannaccone (1991, p. 159), por retirarem elevados ganhos da produção de bens religiosos subconsumíveis. Pelo contrário, em economias religiosas livres, as igrejas e comunidades religiosas procuram maximizar os seus esforços, de modo a atrair ou reter membros. Isto sucede, porque, de acordo com Finke e Stark (1988, p. 42-43), aquelas que não conseguem competir pela filiação ou manutenção de fiéis desaparecem. Deste modo, quanto maior for o pluralismo, maior será a mobilização e o compromisso religioso da população; melhor dizendo, quanto mais especializadas e agressivas (no sentido comercial) forem as religiões, maiores probabilidades terão de ativar religiosamente qualquer indivíduo.
O desenvolvimento e aprofundamento do modelo do mercado religioso mostram, para Stark e Iannaccone (1994, p. 249) e Stark e Finke (2003, p. 96), a mudança intelectual no estudo científico social da religião. Como vimos, esta teoria promove a inversão de algumas das mais respeitadas posições teóricas do passado, nomeadamente daquelas associadas à secularização. Estas transformações, importadas pela economia religiosa, foram tão acentuadas e abrangentes que Warner (1993, p. 1044) identificou-as como uma mudança de paradigma em progresso. De acordo com
Andrew Greeley, o novo paradigma descortinado por Warner tem sido, desde então, “incrivelmente concretizado” (Finke e Stark, 2000, p. 27).
Prova disto é a multiplicação de textos sobre o tópico, desde a década de 1990 (Gorski, 2003, p. 113; Pickel, 2009, p. 7 e 9). Algumas das principais e mais recentes obras sobre a economia religiosa corroboram, aprofundam e atualizam as proposições desta teoria. Vejamos:
Os termos económicos têm paralelo com certos elementos do subsistema religioso (Finke e Stark, 2000, p. 35; Finke e Stark, 2005, p. 9-10).
Os monopólios religiosos são incapazes de mobilizar o compromisso e o apoio das pessoas (Stark e Iannaccone, 1994, p. 233; Stark e Finke, 2003, p. 101; Finke e Stark, 2005, p. 10).
A desregulação do mercado religioso é sinónima de pluralismo (Stark e Iannaccone, 1994, p. 232-233; Stark e Finke, 2003, p. 100; Finke e Stark, 2005, p. 9; Finke, 2010, p. 247).
a)Menos custos de arranque para as novas igrejas e comunidades religiosas. Possibilidade de criarem novas congregações sem a perseguição estatal.
O pluralismo da economia conduz à especialização das firmas religiosas (Stark e Iannaccone, 1994, p. 232-233; Finke e Stark, 2005, p. 11).
a)Este é o estado de natureza da economia religiosa (Stark e Iannaccone, 1994, p. 233).
Os maiores índices de especialização conduzem a uma maior competição entre fornecedores religiosos eficientes (Stark e Iannaccone, 1994, p. 233 e 241; Stark e Finke, 2003, p. 103; Finke e Stark, 2005, p. 11; Finke, 2010, p. 247).
Na medida em que a economia religiosa for competitiva e plural, os níveis gerais de participação religiosa tenderão a ser mais altos (Stark e Iannaccone, 1994, p. 233; Stark e Finke, 2003, p. 102).
Como corolário disto tudo, desenvolve-se um novo voluntarismo, típico da experiência norte-americana, fomentado por novos movimentos religiosos (sectários), de adesão não compulsiva, que se focam em setores sociais alienados, normalmente, pelas igrejas tradicionais (Warner, 1993, p. 1074; Finke e Stark, 2005, p. 4-5; Finke, 2010, p. 247).
a)Nestas condições os indivíduos, autoconscientes, tendem a usar a razão para, dentro dos seus limites intelectuais, maximizarem os benefícios das suas escolhas religiosas e minimizarem os seus custos (Warner, 1993, p. 1080; Iannaccone, 1997, p. 26-28; Finke e Stark, 2000, p. 36-41)11.
A Europa, nomeadamente a ocidental, é um caso excecional por conta da sua (in)variação religiosa (negativa)12; enquanto os EUA, mas não só, têm um mercado religioso dinâmico e florescente (Stark e Finke, 2003, p. 108; Finke e Stark, 2005, p. 10; Finke, 2010, p. 238- 239 e 246)13.
Estas proposições da economia religiosa continuam a ter um forte impacto nas investigações sobre religião, nomeadamente na perspectiva da sua influência política. Neste campo, destacamos os trabalhos de Gorski (2003), Gill (2008), Fox (2008; 2015) e Stolz (2010), essencialmente, porque, tal como no modelo do mercado religioso, demonstram a vitalidade das ideias religiosas e das igrejas e comunidades espirituais. Contudo, pela sua proximidade ao tópico central e pela sua intersecção, analisamos apenas as teses de Gill e Fox14.
O primeiro, ao estudar as origens da liberdade religiosa, encontra similaridades entre as leis que controlam a religião e a atividade econômica. Com efeito, Gill (2008, p. 27 e 42-43), assumindo a sua proximidade com a escola da teoria racional, encara o mercado religioso exatamente da mesma forma que os teóricos da economia religiosa. Todavia, esta aproximação dá-se por meio do próprio conceito de liberdade religiosa - o grau de regulação que um governo exerce sobre a economia religiosa (Gill, 2008, p. 43). A (des)regulação depende, principalmente, das estruturas de interesse e incentivo, ou seja, dos custos de oportunidade (políticos) de uma determinada sociedade. Por exemplo, segundo Gill (2008, p. 52 e 232), devemos esperar pela desregulação do mercado religioso, i.e., por uma situação de não monopólio, quando as restrições à liberdade religiosa tiverem um custo de oportunidade elevado e vice-versa. A vitalidade e o poder de negociação social das organizações religiosas estão, portanto, dependentes dos interesses dos atores políticos; mas, também, do próprio peso institucional, político ou social das igrejas e comunidades religiosas (Gill, 2008, p. 53-54). A contribuição de Gill é importante, porque, relativamente às teorias do novo paradigma, permite compreender quais os motivos que justificam a (des)regulação do mercado religioso.
Outro autor marcante neste campo é Fox (2008; 2015) e os seus trabalhos sobre o envolvimento estatal na religião (GIR - Government Involvement in Religion). A sua investigação, influenciada pelas teorias da economia religiosa (Fox, p. 2008, p. 1-3 e 610; 2015, p. 17) e pelas dinâmicas entre religião e política de Gill (Fox, 2015, p. 3; 31; 36 e 107), descobre - através da análise das restrições, regulações ou legislações governamentais oficiais e das discriminações em matéria religiosa - que houve um aumento sistemático do GIR mundial entre 1990 e 2008. Segundo Fox (2008, p. 362), isto tanto pode significar um reforço do apoio à religião, como um controlo ou restrição. Por um lado, não contraria necessariamente a asserção de Gill sobre o aumento da liberdade religiosa, mas fragiliza o seu argumento geral de que os Estados evoluem para situações de liberdade religiosa e, por consequência, de economias religiosas desreguladas. Por outro lado, similarmente à teoria do mercado religioso, este resultado não representa necessariamente um declínio da influência da religião. Pelo contrário, isto demonstra a sua capacidade para evoluir e compensar a sua falta noutro ambiente (Fox, 2008, p. 362-363). Quando a influência da religião diminui numa determinada esfera, ela torna-se relevante noutra. Tal como nas conceções da economia do mercado, em Fox (2008, p. 28 e 363), a natureza e representações desta relevância podem mudar com o tempo, mas a sua importância mantém-se constante. Assim sendo, o aumento do GIR prova que “alguns aspetos da economia religiosa se mantêm forte e influentes” (Ibid., p. 363).
Em suma, as teses de Gill e Fox são úteis, porquanto nos ajudam a entender a influência que a teoria da economia religiosa tem sobre os percursos de investigação contemporânea. Todavia, elas não podem ser catalogadas enquanto modelos de mercado religioso stricto sensu. Como explica Fox (2008, p. 8; 2015, p. 3), as suas principais proposições, relativamente às intersecções entre religião e política, são apenas um aspeto dum conceito mais amplo, complexo e multifacetado da economia religiosa.
Nesta etapa derradeira do nosso trabalho, não pretendemos reexaminar os argumentos das teorias em análise. A nossa intenção é outra. De modo a aumentar os ganhos epistemológicos, consideramos ser mais útil sistematizar as suas principais diferenças.
Assim sendo, inspirando-nos nos modelos de análise de Warner (1993, p. 1052), Voas (2008, p. 26), Woodhead (2009, p. 116) e Pickel e Sammet (2012, p. 11) organizamos uma tabela de análise com a comparação esquemática entre as duas teorias.
A observação da tabela 1 ajuda-nos a compreender melhor a explanação das duas teorias. De um lado, as teorias da secularização dizem que existe um contraste fundamental entre religião e modernização que conduz a um declínio na relevância social da primeira. Ela perde a sua centralidade social no que respeita a interpretação do mundo. De outro lado, a teoria da economia religiosa assevera que existe uma constante procura social por bens religiosos, mas que a vitalidade da religião depende dos produtos oferecidos pelas firmas religiosas no mercado. Ou seja, a oferta no mercado religioso determina a força da religião. Nas teorias da secularização a relevância social e pessoal da religião irá sempre variar ao longo do tempo e do espaço. No modelo do mercado religioso a necessidade de religião é constante e imutável. Assim sendo, na primeira, as mutações que ocorrem ao nível societal, sucedem ao nível individual; i.e., a modernização enfraquece a religião.
Os bens e os serviços seculares competem com os religiosos. As pessoas deixam de recorrer à religião, porque os benefícios esperados são demasiadamente baixos e os custos de oportunidade no seu envolvimento são elevados. A redução na procura por bens e serviços religiosos são, habitualmente, permanentes. Dificilmente as sociedades hodiernas se reconvertem a uma religiosidade ativa. Por seu turno, a teoria da economia religiosa concorda que a modernização reduz a relevância institucional da religião, mas não a procura individual por produtos religiosos. Segundo este modelo teórico, se o consumo religioso é fraco, isto deve-se a falhas do mercado (sobrerregulação ou competição insuficiente) ou à baixa qualidade da força de vendas religiosa. Por este motivo, as desacelerações religiosas são apenas parte de um ciclo de declínio e renascimento dirigido, largamente, pela oferta da economia religiosa.
Não obstante reconheçamos que ainda existe muito por fazer, relativamente ao estudo de um conceito essencialmente contestado como o de secularização; consideramos que a aplicação do método comparativo e a sistematização analítica beneficiam os cientistas sociais que se debruçam sobre assuntos religiosos. O confronto sistemático das teorias da secularização e do mercado religioso não só nos ajudou a explorar padrões de similaridade e diferença; mas, sobretudo, a explicar, tão ostensivamente quanto possível, como é possível que dois modelos teóricos, com objetos de estudo análogos, possam ter conduzido à inferência de resultados tão diferentes quanto à (in)variação ou à (falta de) vitalidade religiosa nas sociedades hodiernas.