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PARA AQUÉM DO BEM E DO MAL: PENTECOSTALISMO E CRIMINALIDADE

TOWARDS GOOD AND EVIL: PENTECOSTALISM AND CRIMINALITY

Amílcar Cardoso Vilaça de Freitas
Universidade Federal de Pelotas, Brasil

PARA AQUÉM DO BEM E DO MAL: PENTECOSTALISMO E CRIMINALIDADE

Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 19, núm. 27, pp. 32-46, 2017

Universidade Estadual de Campinas

Resumo: Nesse artigo pretendemos discutir a relação entre religiosidade e rótulo criminal, buscando entender como a religiosidade pode servir para atenuar o processo de sujeição criminal, especialmente enquanto olhar sobre si. Especificamente para as religiões cristãs de matriz pentecostais, a exterioridade do bem (concentrado na figura de Deus) e do mal (concentrado na figura do diabo), pode permitir que o indivíduo se coloque alheio a essa discussão. Dessa forma, pode produzir uma narrativa que impeça que se pense de si mesmo como alguém intrinsecamente “mau”. O aporte empírico é constituído de 40 entrevistas semiestruturadas com adolescentes em conflito com a lei internados na Região Metropolitana de Vitória, ES.

Palavras-chave: Religiosidade, criminalidade, sujeição criminal, adolescência em conflito com a lei.

Abstract: In this article we shall discuss the relations between religiosity and criminal labelling, in na attempt to comprehend how religiosity might serve to mitigate the process of criminal subjection, especially as a regard of his own self. Specifically for the christian religions of the pentecostal branch, the exteriority of good (concentrated at the figure of God) and of evil (conventrated in the figure of the devil), might allow the individual to put himself as external to this discussion. Hence, he might produce narratives that will keep him from thinking of himself as intrinsecally “bad”. The empirical data comes form 40 semistrutured interviews with juvenile delinquentes institutionalized in centers at the Vitória metropolitan area.

Key-words: Religiosity, criminality, criminal subjection, juvenile delinquency.

Introdução

Traficantes, supostamente evangélicos, são acusados de destruir um terreiro de uma religião de matriz africana (Soares, 2013). A notícia causa espanto por dois motivos: primeiro pela intolerância religiosa, mas em segundo lugar pela forte convicção religiosa de supostos criminosos. Como seria possível ser tido socialmente como criminoso e, ao mesmo tempo, ser um religioso fervoroso? As denominações pentecostais geralmente são reconhecidas pelo efeito de reverterem carreiras ( Becker, 2008) criminosas, gerando “ex-bandidos” ( Teixeira, 2011). Como é possível que alguém dessa matriz religiosa seja marcado como um “bandido”?

Remetemos os achados empíricos de nossa pesquisa em unidades socioeducativas para análise das questões ligadas à religiosidade e rotulação criminal. Durante um período de dezoito meses convivemos com adolescentes em conflito com a lei em unidades socioeducativas do Espírito Santo, jovens que tinham entre 17 e 21 anos. Foram realizadas 40 entrevistas semiestruturadas com adolescentes internados, nas quais se abordaram inúmeros temas, como sua relação com a família, com a comunidade de origem, seu cotidiano nas unidades, suas relações com as quadrilhas de tráfico de drogas e também sua religiosidade, entre outros temas.

A rotina de adolescentes em conflito com a lei internados é cercada por instituições disciplinares ( Foucault, 1987). A unidade socioeducativa é bastante marcada nesse sentido: existem regras de convivência, uma jornada pedagógica a ser cumprida, uma série de privilégios ou concessões (como a participação em atividades externas ou em oficinas dentro das unidades) que podem ser oferecidas ou retiradas com base no comportamento do interno.

Para que esse sistema funcione, existe um corpo de funcionários que avalia cada atitude desses jovens, constrói metas para eles e ajuda no seu desenvolvimento. Nisso, busca-se que eles possam estar preparados para ocupar postos de trabalho ou bancos escolares novamente quando eles saírem da unidade. Mas é talvez no discurso e no pensamento religioso desses adolescentes que a busca por essa disciplina possa ser pensada com maior profundidade, como argumentaremos posteriormente.

Causa grande impressão a forma como o repertório discursivo das igrejas pentecostais 1 é dominado pelos adolescentes, que conheciam o vocabulário dessas denominações evangélicas e sabiam de cor várias canções gospel. Alguns eram até visitados por pastores e outros ministravam cultos dentro das unidades. Mesmo aqueles que pareciam fortemente engajados em carreiras criminais e não pretendiam desistir delas recitavam versículos da Bíblia com facilidade e respeitavam figuras de pastores.

Christina Vital da Cunha (2008) demonstra a partir de um estudo etnográfico em favelas da zona norte do Rio de Janeiro que a importância das religiões de matrizes africanas vem decaindo, enquanto a força das denominações pentecostais vem aumentando. Isso permite pensar o que a autoria chama de uma nova “Religião Média Brasileira”. Desse modo,

a utilização de uma “gramática pentecostal” vem se difundindo em meio aos traficantes afetados pelo crescimento pentecostal nas favelas, pela identidade evangélica de vários dos seus familiares e/ou da sua própria. A influência da passagem pelas prisões e o forte contato com missionários evangélicos nessas condições são ainda fator a gerar tal empatia entre os traficantes e o discurso/gramática evangélico. ( VITAL DA CUNHA, 2008, p. 42)

Não é possível dizer, contudo, que tudo isso não ocorria sem de fato alguma dose de contradição: a religião proíbe fortemente as práticas incrimináveis e não é possível “estar no crime” e “ficar na bênção” simultaneamente. Ainda assim, mesmo que não abandonasse as práticas incrimináveis a maioria dos adolescentes com quem tive contato incorporou a crença nos preceitos do mundo espiritual cristão na sua vertente pentecostal.

Acreditamos que, por algumas de suas características, o discurso oriundo das denominações pentecostais seja atraente àqueles que estão rotulados como criminosos no Brasil, uma vez que ele permitirá dar vazão a conflitos internos que esses indivíduos vivenciam e permite também possibilidades socialmente aceitas de superação desse rótulo. Não se pretende dizer que a religião atraia criminosos; mas que ela permite uma narrativa que possibilita a compreensão da situação de envolvimento com criminalidade e que indica a sua superação 2.

Argumentamos que, a partir de ferramentas discursivas dessas matrizes religiosas, aqueles que são tidos como criminosos podem suavizar as acusações de serem “maus” que pesam sobre si, atribuindo-as a divindades. Em outros termos, o “mal” não está em si, mas no “diabo” - da mesma forma que o “bem” se coloca em Deus - e o indivíduo se coloca abaixo dessas forças, como discutiremos posteriormente.

Portanto, focaremos nesse artigo na vazão de conflito interno que poderá permitir tentativas de escapar da sujeição criminal, nos termos de Michel Misse (1999, 2010). Num primeiro momento, discutiremos o conceito de sujeição criminal e como esse processo pode ser vivenciado por esses jovens. Posteriormente, apresentaremos alguns elementos da matriz pentecostal, especialmente da forma como nossos interlocutores a apreendiam e como eles poderiam utilizá-la para mitigar os efeitos da sujeição.

1. Escapar à sujeição criminal

Michel Misse (1999, 2010) elabora conceitos teóricos com base na teoria rotulacionista aplicáveis à realidade brasileira. Assim, ele apresenta o conceito de sujeição criminal, ligando práticas criminais e identidades sociais:

Defino sujeição criminal como um processo social que incide sobre a identidade pública e muitas vezes íntima de um indivíduo. Para que haja sujeição criminal, é preciso que certos tipos de curso de ação, representados não apenas como desviantes, divergentes, problemáticos ou ilegais, mas interpretados principalmente como criminais, inclusive pelo agente, se reiterem na expectativa social a propósito desse agente; que esses tipos de curso de ação condensem significações de ruptura com representações de normas sociais de validez abrangente e, principalmente, rompam ou ameacem romper com um « núcleo forte » emocional dos agentes sociais, sobre o qual se concentram as representações sociais da normalidade, do crime e da violência. Em oposição ao « não fiz por mal » do negligente e do « fui levado a isso » do neutralizador, ele pode chegar, no limite, a assumir publicamente sua identidade como « mau ». ( MISSE, 1999, p. 213)

Segundo Misse, a sujeição criminal ocorre quando tipos sociais representados como “bandidos” são reproduzidos, num processo através do qual identidades são constituídas para habitar o que seria considerado um mundo à parte, o “mundo do crime”.

Para o agente que vive essa experiência, a sujeição será antes uma trajetória de vida ou uma experiência, que ele dificilmente vive como uma identidade deteriorada. É justamente através da positivação dessa experiência pelo agente, que a sujeição criminal pode se tornar uma identidade social. Assim, “a passagem da trajetória para a identidade conclui o processo da sujeição criminal e, a meu ver, constitui a chave para a compreensão de sua reprodução social” (Misse, op. cit., p. 72). Nesse processo, o indivíduo que pratica atos incrimináveis recebe pressão para que sua identidade seja progressivamente associada com a falta de normas e com um mundo diferenciado da sociabilidade normal, que incluiriam também a prática recorrente de atividades incrimináveis.

É interessante notar que Misse separa processos de sujeição criminal de processos de criminação e incriminação. Criminação seria o ato de uma atividade ser classificada como crime e incriminação seria quando um indivíduo é tido como praticante de uma atividade tida como crime.

A sujeição criminal está por outro lado, no processo de identificação de alguém como “bandido”. Incriminação, portanto, trata do que se fez; sujeição criminal, do que se é. Nesse sentido, surge um sujeito que se identifica com essa condição. No limite, ele é mau, ou, ao menos, traz o mal consigo. A partir de então, esse sujeito pode se movimentar numa realidade social.

Segundo Misse, a sujeição não está disponível igualmente para todos os indivíduos da sociedade, o que permite visualizar como os preconceitos de classe, de origem étnica e de faixa etária interferem na rotulação de alguém como criminoso. Misse apresenta, portanto, que a sujeição criminal não atua da mesma forma sobre todos os indivíduos, mas que existem uma série de suspeitos preferenciais, especialmente entre os homens jovens, entre os mais pobres e os mais pretos.

Como o rótulo se constitui na interação, abandoná-lo não é uma tarefa simples, pois envolve um processo de demonstração para os outros de que a identidade de criminoso fora abandonada. Especificamente no Brasil, esse rótulo tem um peso enorme, tornando sua superação uma árdua tarefa de demonstração de recuperação. Segundo Misse, “o rótulo ‘bandido’ é de tal modo reificado no indivíduo que restam poucos espaços para negociar ou abandonar a identidade pública estigmatizada.” ( Misse, 2010, p. 23)

Trabalhando sobre o conceito de sujeição criminal de Misse, César Pinheiro Teixeira (2013), separa a sujeição criminal em dois aspectos: o olhar sobre outros e o olhar sobre si. Um aspecto é como os indivíduos são percebidos pelos outros e outro é como eles percebem a si mesmos. Assim, a sujeição criminal enquanto olhar sobre si permite que o sujeito articule diferentes aspectos da sua personalidade, meça a sua percepção da sujeição criminal enquanto olhar sobre o outro - no caso, sobre ele - e a dinâmica das interações sociais com indivíduos que também participam do processo de sujeição criminal e com aqueles que não participam. Isso permite com mais facilidade pensar como os indivíduos podem articular outros aspectos de sua personalidade ou de sua biografia com o rótulo de “bandido”. Além disso, permite ver como o indivíduo pode pensar e planejar sua ação ou as vantagens que advêm da presença do rótulo.

No modelo analítico que proponho, é justamente a “essência” que é operada pelos atores, como um dispositivo para a agência. (...) interessa saber como os atores operam na vida social a partir dessa “subjetividade-como-essência”, como eles constroem/desconstroem/reconstroem as fronteiras entre “crime” e “sociedade” a partir dela - por isso falo em “subjetividade”, com as aspas, quando a ela me refiro no meu modelo. Na gramática da “subjetividade”, a “essência” e a “essencialização” (de si e dos outros), sua prática correlata, são pensadas como dispositivos para a agência. ( TEIXEIRA, 2013, p. 246-7)

Ainda assim, o sujeito age a partir de sua condição como bandido - ou de sua negação a essa condição. Então ele se move socialmente sempre tendo isso em consideração. Ainda que a sujeição criminal enquanto olhar de si, elaborada por Teixeira, permita diferenciar agir como bandido e se sentir bandido, dando vazão a algumas contradições internas do sujeito, ele não pode se livrar do pensamento sobre ser bandido e, em última instância, praticar o mal ou ser mau. Até esse ponto, o mal está nele, ou está com ele.

O pentecostalismo pode permitir pensar que o mal age através dele, como demonstraremos a seguir. Esse é um ganho considerável em possibilidades na constituição da própria identidade, que pode, de alguma maneira, gerar narrativas sobre a própria trajetória que não se alicerçam na sujeição criminal. Ou seja, o indivíduo pode descolar aspectos de sua subjetividade do rótulo de “bandido”.

2. A religião como explicação

Entro na biblioteca de uma unidade socioeducativa em que fazia pesquisa em uma tarde e me encontro com um grupo de adolescentes que cumpria ali parte de sua jornada pedagógica, como era chamado o conjunto de atividades que eles cumpriam ao longo do dia. Eu conversava com os adolescentes sobre as aulas do dia, quando adentra a sala outro interno. Os jovens que já estavam na sala se alvoroçam e dizem: “Chegou o cara que não acredita em dinossauros”.

Eu conhecia o adolescente (Interlocutor 01 3) e decido perguntar por que ele não acreditava em dinossauros; ele me responde que ninguém estava lá, logo, ninguém os viu. Eu argumento que encontraram os ossos, mas ele insiste em dizer que ninguém viu. Outro adolescente decide perguntar se ele acredita que o homem foi à lua; o adolescente insiste em sua lógica de pensar e pergunta se alguém viu. Nesse caso, eu pude dizer que sim e que havia inclusive um vídeo. Aproveito a conversa para perguntar se ele acredita em Deus e no diabo. Ele me responde: “É claro.

Do contrário como que ‘cê explica tanta coisa ruim que acontece?” Foi interessante compreender como esse adolescente conseguia por ordem ao mundo; dinossauros são seres que existiram há muitos anos, anteriormente ao ser humano, e que não fazem parte da sua realidade. Da mesma forma, a lua, a tantos milhares de quilômetros também parece de pouca importância, bem como todo o avanço científico que levou à construção de uma nave que pudesse ir até lá, ou mesmo que pudesse ir a qualquer lugar distante da Terra.

Como assinala Alfred Schutz (1979), os indivíduos tendem a dar mais atenção ao pequeno núcleo de elementos que precisam ser conhecidos porque se articulam com os propósitos que eles entendem como relevantes. Nesse sentido, Deus e o diabo se aproximam mais desse núcleo e as lógicas de ação desses entes sobrenaturais povoam o estoque de conhecimento desse adolescente mais do que descobertas científicas sobre a lua e sobre os dinossauros.

Deus e o diabo, contudo, são seres que ele acredita que têm interferência direta na sua vida.

Deus era o responsável pelas coisas que acontecem de bom e o diabo, pelas ruins. Paulo Siepierski aponta que no pentecostalismo, “o batismo no Espírito Santo é o revestimento de poder para vencer os entraves [...]. Esses entraves são as ações de Satanás e seus anjos e, portanto, devem ser perseguidos e amarrados. Sem os espíritos do mal para atrapalhar, os fiéis podem viver com saúde e prosperidade.” (1997, p. 52)

Em todo o tempo que eu estive em unidades socioeducativas, inúmeras referências foram feitas à religiosidade. A maioria absoluta dos adolescentes internados com quem conversei afirma que tiveram participação em Igrejas evangélicas em algum momento da vida, muitos apresentam que suas mães ou outros membros das famílias eram evangélicos. Muito raramente se encontrou adolescentes católicos e as referências às religiões de matrizes africanas eram escassas e geralmente associadas com a figura do diabo. A religiosidade de quase todos adolescentes entrevistados estava associada a denominações pentecostais 4.

César Pinheiro Teixeira, em A Construção Social do Ex-bandido (2011), aponta que a associação de Deus com o bem e do diabo com o mal e de ambas as divindades como bastante ativas na vida das pessoas é uma característica da lógica de pensamento pentecostal. Segundo esse autor,

[…] para os pentecostais, embora o “bandido” seja considerado alguém “usado” pelo Demônio, esta não é uma exclusividade sua. Qualquer pessoa pode ser “usada” pelo Diabo. Da mesma forma, por influência do mal, as pessoas se divorciam, tornam-se alcoólatras, dependentes químicos, etc. A perspectiva pentecostal sobre o criminoso não necessariamente o essencializa como alguém intrinsecamente “maligno”: o indivíduo não é o Diabo, mas é usado por ele. Porém, há sempre a possibilidade de “passar para o lado do Senhor”. Os traficantes de drogas são alvos constantes do proselitismo pentecostal. Para os pentecostais, há sempre a possibilidade de mudança para o “bandido”, uma vez que ele “aceite Jesus em sua vida”. ( TEIXEIRA, 2011, p. 88).

Acreditamos que essa visão perpassa a construção da religiosidade da maioria dos adolescentes com quem conversei. Deus é um ente ativo, que oferece oportunidades de manter-se vivo, de trabalhar, de criar filhos e de estar com a família. Ao mesmo tempo, o diabo é uma figura que oferece o prazer imediato, porém autodestrutivo. A batalha entre essas forças pode ser vivenciada tanto internamente quanto identificada com elementos externos do mundo social, uma vez que:

a perspectiva teológica e doutrinária dos evangélicos pentecostais que compreende o “mundo” (categoria que expressa a oposição entre o “Bem” e o “Mal”, entre o “Céu” e a “Terra”, entre o “mundo” da morte do espírito e a “vida plena na Igreja com o Senhor”) como o lugar da guerra, que fala do inimigo, do chamamento ao “exército do Senhor”, que ritualmente lança mão de arroubos emocionais e de um linguajar bélico, se comunica muito com o próprio ethos dos moradores, de forma geral, e com os “bandidos”. ( VITAL DA CUNHA, 2008, p. 26)

Muitos de nossos entrevistados se referiram ao período de internação como um “livramento de Deus”, pois acreditavam que se estivessem soltos provavelmente estivessem mortos. Nessa conjuntura, servia como consolo para a privação da liberdade o fato de que, talvez, Deus tenha optado por privá-los de liberdade para mantê-los vivos, mesmo que eles tenham feito “a obra do diabo”, cometendo crimes e dando vazão a seus desejos de prazer imediatos. Como ente misericordioso, Deus pode oferecer oportunidade mesmo àqueles que cometem erros.

Um adolescente que recebeu uma progressão de medida e ia para a Casa Marista (uma unidade de semi-internação), elabora da seguinte maneira a situação:

Tomei de novo de seis a três 5, peguei outra internação e ganhei uma semiliberdade. Ganhei uma casa Marista, estou esperando minha vaga, vou ter mais uma oportunidade, eles me deram... Mas acho que tem a ver com Deus, não tem? Deus está me dando outra oportunidade para eu voltar, porque eu sozinho, eu não consigo, às vezes eu penso em mudar, mas não decido, estou em cima do muro, ‘tô pensando se pulo pro lado de lá ou se eu volto, é difícil decidir, pra entrar é fácil, mas pra sair é difícil, eu tenho um pensamento de mudar, eu fico nervoso e falo que vou mandar tudo pro alto, vou matar e roubar mesmo e foda-se, e é isso aí. (Interlocutor 02)

Pode-se ver que o destino do indivíduo não está totalmente atrelado aos desígnios de Deus: Deus oferece oportunidades, mas cabe ao indivíduo agir sobre elas. Existe uma noção de livrearbítrio e de controle na lógica religiosa apresentada por esses entrevistados. Logo, cabe ao indivíduo decidir ao lado de quais forças espirituais ele vai se colocar.

Ainda assim, não se sabe quando e como Deus vai agir e Deus pode oferecer oportunidade mesmo àqueles que cometeram erros, que foram “usados pelo diabo” ( Teixeira, 2011, p. 88). Segundo a crença da maioria dos interlocutores, Ele pode salvar da morte através de uma internação, mas também diretamente em um tiroteio; pode impedir também que um tiro leve à paralisia ou à perda de membros. Alguns dos adolescentes que entrevistei haviam sido baleados em diversas partes do corpo. Um deles me contou que:

Aí fiquei internado no hospital, aí eu saí e falei assim, falei com Deus, “ó Deus, dependendo de mim eu não quero voltar pra essa vida não, quero que o Senhor me ajude aí, em nome de Jesus.” [...] sofri pra caramba, no hospital achei que eu não ia andar. O médico falou assim: “é rapaz, não sei se você vai andar não”. Chorei, sofri muito, mas Deus me abençoou minha vida e falou assim: “não, ele vai andar e tudo o que tirou dentro dele vai se reconstruir”. (Interlocutor 03)

Portanto, Deus era o símbolo da bondade. Poucos associaram a figura de Deus com temor ou com castigo. Deus é sempre visto como o ser que permite continuar vivo, andando e saudável, apesar de se ter aproveitado mal as oportunidades que Ele ofereceu. Mesmo durante a “vida no crime”, a figura de Deus não deve, por conseguinte, ser menosprezada. Um adolescente recitou o Salmo 40, que começa pregando a espera com paciência na presença do Senhor, apesar de ele não fazer menção a querer “mudar de vida” (abandonar a carreira criminal) ou de “aceitar Jesus” (engajar-se ativamente numa Igreja pentecostal).

Ainda assim, a visão sobre a religiosidade que eles apresentam não muda: mesmo que não consigam, ou não queiram abandonar suas carreiras criminais, a maioria dos adolescentes mostrou crer na construção espiritual cristã dentro do arcabouço da interpretação pentecostal. Isso indica que não apenas Deus é um ente ativo para esses jovens, mas que também o diabo age da mesma maneira. Dessa forma, os objetivos do diabo seriam opostos:

Eu penso em sair daqui e mudar de vida, mas o diabo é sujo. O diabo é sujo. Você vai sair, você vai ficar um tempo dentro de casa, porque você ainda tá no ritmo da cadeia. Agora, quando você sair pra rua, ai, ai... Mas eu penso em mudar. Eu penso em mudar. Mas nós vai ver, se eu vou conseguir ou não. Porque mudar não é da noite pro dia não. Ainda mais quando você acostuma a pegar dinheiro grande na sua mão. ’Cê vai trabalhar pra ganhar setecentos reais num mês? Você tirava setecentos e oitenta... num dia você pegava mais de setecentos. Duas horas. Assalto, você chegava na lotérica, você tomava, é seu. Foi embora, é seu. Tentar mudar, né? Não prometo não. (Interlocutor 01)

Segundo esse tipo de construção, ao mesmo tempo em que Deus oferece oportunidades de continuar vivo, de sair da unidade socioeducativa ou de trabalhar, o diabo oferece oportunidade de dinheiro fácil, de praticar assaltos ou de crescer na hierarquia local do tráfico. Alguns dos adolescentes ouvidos, quando relacionaram esse tipo de oportunidades ao discurso religioso chamaram-nas de “bandejas”, que seriam o oferecimento do “inimigo” para “desviar da bênção”. Apesar de ter penetrado bastante na religião média - ou seja, na forma de ver o mundo espiritual, mesmo para os mais leigos - a lógica de pensamento pentecostal não tende a permitir que existam membros “não-praticantes”. Estará assim “convertido, mas não santificado” ( Vital da Cunha, 2008, p. 34) e seu esforço enquanto membro da congregação estará muito aquém do desejado por seu pastor. Dentro da noção de livre-arbítrio proposta, o indivíduo deve decidir se vai deixar Deus ou o diabo fazer sua obra em sua vida. Nesse sentido, “aceitar Jesus” é um preceito moral inegociável, que exige uma mudança de atitude.

É interessante na construção espiritual pentecostal que o indivíduo não é visto como intrinsecamente “mau”, como já apontara Teixeira. Da mesma forma, não é intrinsecamente “bom”: “bom” é Deus e “mau” é o diabo. Cabe ao indivíduo deixar ou Deus ou o diabo fazer a obra na sua vida. A presença na Igreja, aliada com a fé em Deus e a valorização das instituições da ordem (como a família e o trabalho), permite que Deus faça a obra dele; por outro lado, se o indivíduo aceita as “bandejas do inimigo”, valoriza uma vida de prazeres hedonísticos, ele faz “o que o diabo gosta”. “Aceitar Jesus”, contudo, não pode ser um ato meramente formal. Inclui necessariamente a presença na Igreja e o abandono da “vida no crime”. Alguns adolescentes tentam iniciar o processo ainda dentro da unidade socioeducativa:

Mas aqui dentro aqui foi a primeira vez que eu aceitei, não tem? Aí nós faz um culto na moradia mesmo, não tem? Tem um rapaz que ele foi batizado pelas águas, não tem? Aí prega, canta, aí sempre de manhã quando nós acorda, nós vamos pro refeitório, toma nossa café, faz uma roda e nós une, ora, depois nós canta uns cantos de louvor, lê a palavra do Senhor, depois nós vamos em roda de novo e encerra, não tem? Todo dia é assim, aqui dentro nossa rotina, fi. (Interlocutor 04)

Além dos cultos e orações que os próprios adolescentes ministram, nas unidades a presença de pastores era permitida e recorrente. Apesar de haver um extenso repertório discursivo dentro dos cultos pentecostais para separar a relação entre a pessoa e a maldade - apontando a maldade no diabo e a pessoa como seu agente - isso não anula o processo de sujeição criminal que identifica a maldade nos sujeitos ( Misse, 1999), ao menos não a sujeição enquanto olhar sobre o outro ( Teixeira, 2013). Em outras palavras, as pessoas que convivem com ele podem continuar acreditando que ele “não passa de um bandido”, atrelando sua identidade com práticas incrimináveis.

Portanto, os que afirmam que “aceitaram Jesus” vão ter de viver com a desconfiança de colegas de internação e de funcionários do sistema socioeducativo, que podem desconfiar da seriedade dos investimentos religiosos dos recém-convertidos suspeitando que seja somente uma espécie de atuação, apenas no intuito de conseguir relatórios mais positivos por parte de agentes socioeducativos ou de técnicos de referência. Além disso, muitos podem afirmar, como um dos depoimentos anteriores mostrou, que manter-se “na bênção” enquanto privado de liberdade é mais fácil, porque as “bandejas” em oferta dentro das unidades são muito menos sedutoras dos que aquelas que podem ser oferecidas “na pista”.

Ah, eles ficam xingando, fica... esses dias o pastor veio aí, aí me revelou. Aí eu comecei a chorar. Aí o pastor perguntou quem que queria aceitar Jesus, aí eu fui lá na frente, aceitei. Aí os moleque fica falando: “só aceita Jesus porque tá preso, depois que sai na rua faz um monte de besteira de novo”. Aí o pastor chamou, me chamou num canto e falou: “tem essas provocações mesmo, você tem que ficar tranquilo, porque o inimigo fica tentando fazer você pecar mesmo”. Eu fico tranquilo, eles sempre tenta deixar eu nervoso, fico até nervoso na hora, mas aí eu penso que que o pastor falou, o que a juíza também falou, aí eu fico tranquilo. Eu cheguei aqui, eu ficava fumando maconha com uns meninos lá que tinha, ficava agitado, aí eu parei pra pensar, parei de fumar (não fumo mais), troquei de alojamento, porque eu ficava num alojamento só de marreco, os moleque lá gostava de ficar gritando à toa, ficar batendo chapão. Eu saí do alojamento deles e troquei de alojamento. Lá é tranquilo, lá os moleque é responsa. (Interlocutor 04)

De toda forma, a chance de se pensar de maneira descolada de uma figura maldosa é em si um ganho. Abre-se assim um enorme leque de possibilidades para esses adolescentes, que os afasta da sujeição, ainda que nem sempre se ganhe credibilidade por parte daqueles que convivem com ele.

Os enormes desafios no período de internação se tornarão ainda maiores com a reconquista da liberdade. Nesse momento, para aqueles que pretendem manter o status religioso recémadquirido, será necessária uma série de atitudes que comprovarão a firmeza de seu comprometimento religioso. Nesse caso, muitos pretendem se engajar em diferentes Igrejas, apoiando-se em figuras de pastores próximos, como veremos a seguir.

3. Trajetórias religiosas

Os pastores são intermediários aceitos entre Deus e as demais pessoas, sendo considerados pessoas que têm a proteção divina e que podem fazer inclusive premonições baseados em seu contato direto com Deus. Muitos foram os casos em que adolescentes contaram histórias de que pastores adivinharam o que eles estavam pensando ou o que iria acontecer. Um deles (Interlocutor 05) disse que após o dia em que ele estava bastante tentado a desobedecer às regras, um pastor o chamou no canto e disse que a voz que ele estava ouvindo em sua cabeça era a voz do diabo.

Christina Vital da Cunha aponta também que as denominações de matriz pentecostais tendem a formar redes de solidariedade, nas quais os pastores são peças centrais e possuem grande autoridade:

as redes evangélicas atuam como circuitos de trocas envolvendo dinheiro, comida, utensílios, informações, recomendações de trabalho etc. Em campo, elas articulam as dimensões de uma rede social, espiritual e familiar. As ações conjuntas empreendidas por essas redes muitas vezes, como observei na etnografia, têm como objetivo “enraizar” o fiel na igreja e/ou “ganhar novas almas para o Senhor”. Motivados pela máxima “ide e pregai” e pela intensa disputa no interior do campo evangélico local estendem, sustento, os benefícios de integração à “rede de irmãos” a um sem número de “simpatizantes” que dela se aproxima. A dimensão espiritual/religiosa parece ser, enfim, a base sobre a qual se erguem a identidade da rede, o poder e o sentido das ajudas, assim como, muitas vezes, a própria força moral dos seus integrantes. ( VITAL DA CUNHA, 2008, p. 29)

Por sua relação divina, esses sacerdotes deveriam ser respeitados em todos os momentos. Alguns indicaram que pastores poderiam inclusive ir até as “bocas” e que deveriam ser ouvidos:

Interlocutor 06: Não, eu não ia na igreja não. O pastor ia na boca me revelar. E lá onde ficava, tinha três encruzilhada e um beco assim. A igreja era do lado do beco, o pastor lá na igreja dele, acabava o culto e ia lá no beco me revelar, direto eu era revelado.

Entrevistador: Ele te falava o quê?

Interlocutor 06: Falava que eu ia, que alguém ia me chamar pra ir pra tal e tal lugar, ia me ligar e se eu fosse, um caixão ia tá me esperando. Tinha uma sorveteria na frente do beco, e se eu fosse, ia trazer um caixão de lá e eu ia tomar um tiro lá no beco, jogando fliperama, lá na sorveteria... E não pegou em mim as bala. Tinha duas portas assim e o fliperama no meio, aí eu abaixei as duas, não tem?, pra mim jogar. Abaixei as duas, e fiquei jogando, aí os cara passou de moto, fi, dando tiro, “pá, pá, pá, pá, pá”. Pegou e furou as parada assim, e aquele negócio onde bota os salgados, quebrou aquilo ali, furou tudo. E eu não dei ouvido, se tivesse dado ouvido pro cara, botado na mente e não tivesse esquecido eu não ia pra lá, mas eu fui pra lá e quase morri.

Outros adolescentes contaram histórias semelhantes de dias em que foram atacados ou baleados. Um deles (Interlocutor 04) conta com bastante remorso que inclusive destratou o “crente” que veio “revelá-lo”. Ele não chegou a externar diretamente insatisfação com o rapaz que o convidava para ir para a Igreja, entregando um panfleto com uma mensagem bíblica e dizendo que Deus naquele momento estava lhe dando um “livramento”.

Ele respondeu que preferia ficar onde estava, usando drogas e se divertindo. Então deu as costas e disse para quem estava próximo que o “crente” era muito chato, em voz alta, de forma que ele acredita que o “crente” havia escutado. Segundo esse interlocutor, até quem estava se divertindo com ele na boca o recriminou. Ele teria reafirmado que o “crente” era realmente muito chato. Mais tarde naquela noite, ele foi alvejado com uma saraivada de tiros, no mesmo local onde havia ignorado os apelos do “crente”.

Por outro lado, o pastor ou outros “crentes” eram das poucas pessoas que permitiam aos jovens engajados em carreiras criminais se pensarem como mais do que apenas “bandidos”. Na dinâmica do engajamento espiritual das denominações pentecostais, era possível que ele se pensasse como um agente que não está completamente articulado com o mal.

Desse modo, é um dos poucos locais onde seus conflitos internos podem ganhar expressão. A alegoria da luta entre Deus e o diabo permite, à sua maneira, que esses adolescentes pensassem suas dificuldades disciplinares. Outras instituições, como a escola, o mercado de trabalho e mesmo a unidade socioeducativa, partem da disciplina ( Foucault, 1987) como pressuposto, de certa maneira quase indiscutível. Na Igreja, entretanto, a indisciplina é fruto da tentação do diabo e pode, assim, ser combatida.

Mas, em todo caso, uma mudança de atitude é esperada para o engajamento completo nas redes da Igreja, tanto espiritual como de solidariedade. Um adolescente (Interlocutor 07) disse que ele foi alvejado dentro da Igreja. Segundo ele, isso teria causado um grande desconforto dentro de sua congregação, uma vez que os demais fiéis pensaram que se ele ainda estava sofrendo ataques seria porque ele não teria abandonado as práticas incrimináveis. Ele foi então acusado de “estar se escondendo atrás da Bíblia”.

Embora alguns digam que sempre frequentaram a Igreja, mesmo com o engajamento no “mundo do crime”, problemas desse tipo tendem a acontecer. Não obstante, como visitas esporádicas eram permitidas para a maioria dos pastores, a possibilidade de reconciliação com a Igreja estava sempre presente. O adolescente que fora alvejado dentro de sua Igreja, contudo, preferiu não mais voltar; segundo ele, “não adiantava falhar também na presença [de Deus]”.

Por outro lado, a lógica pentecostal, especialmente quando desenvolvida dentro das Igrejas, vai apresentar um projeto de docilização ( Foucault, 1987). Para adolescentes que estavam bastante acostumados com o extravasamento dos desejos de prazer que a “vida no crime” proporciona, as experiências dentro das Igrejas se mostravam difíceis, justamente porque os adequavam a um mundo de poucas diversões. Um adolescente que tinha vários parentes pertencentes a uma congregação pentecostal, contou que ele tinha sido incluído também nesse grupo. Porém não conseguiu permanecer na Igreja:

Então uma coisa nessa vida que eu sempre temi muito é Deus, ‘tava incluído, interessei, mas infelizmente não consegui. Mas ‘tô nessa aí, se Deus quiser, porque igual falei, a carne fala mais alto, né, véi? Porra, comia mulher desembolado, pô, ‘tô amarrado, vou parar, vou casar...? Pô, na igreja só pode comer mulher depois do casamento, pra você chegar a casar com uma mulher, fi, é complicado, tenho dezoito anos, vou casar? Tenho nem onde morar, moro de favor na casa do meu primo, é foda, véi. Aí se tiver vontade de comer uma perereca, vou ficar na vontade, não pode... Era fácil, só ligar: “e aí onde você tá?” Que nem as novinha lá que já perde pra mim já, aí tem essa mulher aí que fala que é minha namorada, só chamar que ela vem... Aí eu gostava de fumar maconha, na igreja e fumando maconha não dá certo. Você tem que escolher uma das duas, aí pensava: “Pô, já fiz errado em comer mulher, por que que não posso fumar maconha?” Aí fodi tudo, entendeu? Tudo errado na parada. (Interlocutor 08)

A rotina da Igreja proibia a maconha, o álcool e as demais drogas, proibia o sexo extraconjugal e proibia as práticas incrimináveis. Logo, se articula bastante com a rotina de vida dada ao “trabalhador”, disciplinada e com poucas oportunidades de diversão. Nesse sentido, a rotina da vida pentecostal poderia oferecer conforto e apoio espiritual, poderia até fornecer algum contato dentro da rede de solidariedade da congregação que facilitasse a busca por um emprego, mas não ofereceria muito mais além. Seria preciso, portanto, adequar-se ao mercado formal de emprego e confiar nas futuras bênçãos da obra de Deus na vida.

Era possível que alguns deles se engajassem também em vidas religiosas, atingissem protagonismo dentro das Igrejas e mesmo chegassem a pleitear a carreira de pastor. O caso de Luciano (Interlocutor 09) demonstra bem essa situação. Luciano disse que “aceitou Jesus” em uma unidade socioeducativa, mas que antes de sua primeira apreensão já vinha havia algum tempo tentando se comunicar com Deus. Segundo sua narrativa, ele parou um dia “na pista”, quando ocupava um posto de gerente do “movimento” de seu bairro, com a arma na cintura, se ajoelhou e decidiu orar:

“Ó, Deus, o bagulho tá doido. E eu não sei nem conversar com o Senhor, meu pai. Tem misericórdia da minha vida. Faz sua obra. Não sei o quê. Pã e pá”, igual, né, aquelas gíria. Depois que eu comecei a ter um palavreado mais de servo, né? Por causa de que as palavra que a gente fala aqui é tipo língua chula, aquelas língua do mundão mesmo, de “o bagulho tá doido”, “o negócio é sério”, “se pã”, “se pá”, eu acho que isso não faz parte de mim, isso não é pra mim, fi. Eu sei que não é, mas eu não tenho força pra mudar, fi.

Nessa unidade, Luciano foi liberado após quarenta e cinco dias. Entrementes, nesse período, durante a visita de um pastor, ele disse que “queria conhecer esse Deus aí.” Nessa temporada, ele praticou uma mudança completa em suas atitudes: Luciano passou a usar roupas sociais e sapato, passou a frequentar diariamente a casa do pastor e a Igreja. O pastor disse que ele tinha boas chances de mudar, por ser um rapaz comunicativo e que demonstrava interesse na “palavra” (ensinamentos da bíblia). Segundo Luciano, ele passou três anos na Igreja, até que “se desviou” novamente.

Mediante essa relação com a Igreja, Luciano podia recitar uma boa quantidade de passagens bíblicas, além de saber usar a entonação e o linguajar que pastores usam quando pregam. Ele foi pregador em sua Igreja e, segundo ele, “Deus me usava legal”, porque ele era um pregador enérgico, ou como qualifica, “nervoso”:

Já começava a pregar, a falar, minha voz daquele jeito, começava a falar uns versículo. Era triste, fi. Já as pessoa olhavam assim pra mim... ahn. Já falava já que eu era traficante, do crime, roubava, matava, destruía. Mas como Deus sempre insistiu, maravilhoso, que morreu pelos meus pecados, que morreu pelas minhas falhas. Comecei a ver quem eu era, não tinha mais jeito pra mim, só era morte. Mas Deus, é Deus valioso, Deus trouxe mais um homem um valoroso, vasto na presença dele [voz de pregador]. Começava a pregar, fi. Quando eu bolava o negócio já ficava estreito, fi.

Era engraçado porque algumas vezes Luciano usava sua entonação de pregador com os colegas de internação, quando tinha desejo de relembrar alguma história de seus tempos de Igreja ou apenas como um tipo de brincadeira com os colegas. Ele dizia, contudo, que não poderia mais voltar a ser um pregador.

Quando pregava, Luciano não usava o linguajar comum da “vida no crime”: ele não usava os vocativos “fi” ou “viado”, também não usava termos como “bagulho” ou “desembolado”; ele usava o que ele chamou de “palavreado mais de servo”. Mas quando voltava a falar normalmente reincorporava os termos rapidamente.

Quando perguntei a Luciano porque ele abandonou a Igreja, ele me disse que a carne era fraca e que ele não conseguiu se conter. Segundo ele, a bíblia manda orar e vigiar: ele teria orado, mas teria se esquecido de vigiar. Ainda assim, mesmo sem imaginar novamente uma carreira religiosa para si, Luciano pretendia uma “mudança de vida” através de sua fé:

Eu quero ter uma família aqui, fi. Um trabalho honesto. Pro cidadão olhar pra mim assim: “é, aquele ali que eu pensei que não ia ter mais jeito, que ia ser só a morte, Deus tá fazendo a obra na vida dele.” Várias tentativas, os cara já tentaram me matar, fi. Tentaram me matar duas vezes. Eu ‘tô no livramento.

O testemunho de Luciano mostra que o caminho entre as formas de disciplina e as formas de revolta, as trajetórias entre docilidade e indocilidade não são tão separadas quanto se pode pensar inicialmente. Da mesma forma que Luciano e outros entraram e saíram da Igreja, alguns seguirão carreiras criminais sem jamais perderem a fé, como também apontou Vital da Cunha (2008).

Considerações finais

As buscas por “recuperação”, ou por “mudança de vida”, ou seja, abandono de carreiras desviantes ( Becker, 2008), são uma preocupação constante das unidades socioeducativas, que avaliam constantemente os adolescentes em conflito com a lei internados, buscando sujeitá-los à docilidade ( Foucault, 1987). Contudo, atualmente, a disciplina, o corpo útil e submisso, passa progressivamente a ser encarada como uma necessidade a priori.

Numa sociedade de controle ( Deleuze 1992), cabe ao indivíduo apresentar a motivação para alcançar a utilidade mediante demandas que estão em constante transformação. Por seu turno, a submissão não deve estar mais em jogo: progressivamente, num mercado de trabalho progressivamente excludente, a vontade de se engajar deve partir do indivíduo. ( Zarifian, 2002). Nesse aspecto, a religiosidade pode ser bastante útil a esses jovens. A Igreja é um dos poucos locais em que o seu desvio, sua insubmissão e sua indocilidade podem ser debatidos. O discurso religioso permite que ele se coloque fora do foco do desvio - uma vez que o “mal” não está nele, mas no diabo - e que, a partir daí pense seus atos de insubmissão. Permite que ele pense em que momento e por quais motivações ele decidiu ceder a tentações. Ao mesmo tempo, não exime o agente de culpa, mas o coloca diante de uma escolha.

César Pinheiro Teixeira (2011) argumenta que o rótulo de bandido é de tal forma forte no Brasil que dificilmente alguém simplesmente deixa de sê-lo, sem apresentar algum tipo de marca.

Logo, será eternamente um “ex-bandido”. O processo de sujeição criminal ( Misse, 1999, 2010) é de tal maneira forte que muitas pessoas jamais acreditaram numa possibilidade de “recuperação”, mantendo o “ex-bandido” sob eterna desconfiança. A religiosidade é uma ferramenta forte de legitimidade social para o “ex-bandido”, embora não seja tão forte quanto à entrada no mercado de trabalho ( Melo, 2013).

Mas para aquele que ainda está engajado em uma carreira criminal, a religiosidade pode ser um ponto interessante para a construção da própria narrativa. Ela vai permitir pensar sobre os conflitos internos entre a busca por prazer imediato e por correção moral, vai permitir se socorrer à proteção espiritual divina, mesmo sem ter abandonado “aquilo que o diabo gosta” e vai permitir vislumbrar possibilidades de desengajamento da “vida no crime” pela conversão religiosa. Nesse sentido, adotar o arcabouço religioso pentecostal, ainda que largamente contraditório com a prática reiterada de crimes, pode ser interessante ao indivíduo em meio a uma carreira criminal, talvez apresentando algumas vantagens à possibilidade de se entregar completamente à sujeição criminal e ter de pensar toda sua identidade social a partir da condição de “bandido”. Dessa forma, podemos ver a possibilidade de termos “traficantes evangélicos”, que podem inclusive usar repertórios de violência típicos do “mundo do crime”, sobre outras religiões, que eles associam à figura do diabo, especialmente às de matrizes africanas.

Referências

BECKER, H. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

MELO, N. J. A. “ Suspeitei desde o princípio”: a construção da identidade entre os internos da FUNASE-PE. 2013. Tese (doutorado em sociologia e antropologia) - PPGSA/IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 2013.

MISSE, M. Malandros, marginais e vagabundos: acumulação social da violência no Rio de Janeiro. 1999 Tese (doutorado em sociologia) - IUPERJ, Rio de Janeiro, 2013.

_________. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido”. In: Lua Nova. N. 79. São Paulo, 2010 pp. 15-38.

SIEPIERSKI, P. D. Pós-Pentecostalismo e Política no Brasil. In: Estudos Teológicos, v. 37, n. 1, 1997. pp. 47-61.

SOARES, R. Crime e preconceito: mães e filhos de santo são expulsos de favelas por traficantes evangélicos. In: Extra [site]. Disponível em: http://extra.globo.com/casos-de-policia/crimepreconceito-maes-filhos-de-santo-sao-expulsos-de-favelas-por-traficantes-evangelicos9868829.html#ixzz4ZL4pqOtI Acesso em 21 de fevereiro de 2017.

TEIXEIRA, C. P. A construção social do ex-bandido: um estudo sobre sujeição criminal e pentecostalismo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.

____________. A teia do bandido: Um estudo sociológico sobre bandidos, policiais, evangélicos e agentes sociais. 2013. Tese (doutorado em sociologia e antropologia) - PPGSA/IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 2013.

VITAL DA CUNHA, C. “Traficantes evangélicos”: novas formas de experimentação do sagrado em favelas cariocas. In: PLURAL, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.15, pp.23-46, 2008.

ZARIFIAN, P. Engajamento subjetivo, disciplina e controle. In: Novos Estudos CEBRAP, São Paulo. n. 64. pp. 23-31. novembro, 2002.

Notas

1 Não serão separadas aqui as diferentes ondas do pentecostalismo. A versão que os entrevistados apresentam, pela forma como se coloca a guerra espiritual, se aproxima mais da terceira onda, conhecida como neopentecostal ( Mariano, 2005) ou até mesmo como pós-pentecostal ( Siepierski, 1997). Nosso foco, contudo, está nas interpretações que esses interlocutores dão a essas construções religiosas, mais do que nos movimentos teológicos que as criaram.
2 Também não se pretende dizer que essas denominações religiosas são exclusivamente atraentes a esse grupo de pessoas, nem mais atraente a esse grupo do que a outros. Igualmente, não pretendemos dizer que essas denominações tolerariam de qualquer forma práticas criminosas. O que buscamos entender, contudo, é como pessoas rotuladas como criminosas se utilizam dessas construções religiosas para darem vazão aos próprios conflitos internos.
3 Há impeditivos legais e éticos em revelar os nomes de meus interlocutores. Optamos, portanto, pela numeração e, num único caso, por um nome falso, como se verificará posteriormente. A numeração dos interlocutores ora apresentada foi feita especificamente para esse artigo.
4 Cada uma das denominações associadas com o pentecostalismo apresenta suas próprias nuances. Sabemos, portanto, que está se fazendo aqui uma generalização. Contudo, nossos interlocutores não faziam diferenças entre elas, o que nos permite a generalização.
5 Um adolescente responsabilizado por um crime considerado grave, ou reincidente em infrações mais leves, pode ficar internado por um período de seis meses a três anos, podendo ser liberado a qualquer momento após os seis meses, mediante uma decisão judicial, na maioria das vezes baseada nos relatórios avaliativos feitos pelas equipes técnicas multidisciplinares das unidades socioeducativas.
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