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TURISMO RELIGIOSO NO BRASIL E O CASO DA REVITALIZAÇÃO DO MORRO DO CRUZEIRO EM MURICI-AL 1
RELIGIOUS TOURISM IN BRAZIL AND THE CASE OF THE REVITALIZATION OF MORRO DO CRUZEIRO IN MURICI-AL
TURISMO RELIGIOSO NO BRASIL E O CASO DA REVITALIZAÇÃO DO MORRO DO CRUZEIRO EM MURICI-AL 1
Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 19, núm. 27, pp. 115-131, 2017
Universidade Estadual de Campinas
Resumo: Aproveitando o fluxo crescente de turistas à procura do turismo religioso, o governo brasileiro tem investido em políticas descentralizadas de intervenção nos destinos. Seguindo as novas recomendações, norteadas pelo Plano Nacional de Turismo, o estado de Alagoas busca introduzir o Programa de Municipalização e Regionalização do Turismo para a organização, revitalização e dinamização dos destinos situados nos interiores, explorando elementos históricoculturais de seu povo para prolongar a estadia do turista e desobstruir a capital Maceió. Nesse sentido, localiza-se a cidade de Murici, interior do estado, que vê os primeiros passos para a revitalização do seu mais tradicional evento religioso: a subida do morro do Cruzeiro, na semana santa, atraindo uma multidão de fiéis. Este trabalho tem como propósito evidenciar parte do amplo contexto do turismo religioso no Brasil, bem como a proposta de transformação estrutural do morro do Cruzeiro, refletindo sobre suas implicações no seio da comunidade muriciense e identificando como o município se insere na recente orientação turística do estado.
Palavras-chave: Turismo religioso, Revitalização, Morro do Cruzeiro, Murici - AL.
Abstract: Taking advantage of the growing flow of tourists in search of religious tourism, the Brazilian government has invested in decentralized policies to intervene in destinations. Following the new recommendations, guided by the National Plan of Tourism, the state of Alagoas seeks to introduce the Program of Municipalization and Regionalization of Tourism for the organization, revitalization and dynamization of destinations located in the interiors, exploring historical and cultural elements of its people to prolong the tourist stay and uncover the capital Maceió. In this sense, the city of Murici, interior of the state, is located, which sees the first steps towards the revitalization of its most traditional religious event: the ascent of the Morro do Cruzeiro in the holy week, attracting a multitude of faithful. This work aims to highlight the broad context of religious tourism in Brazil, as well as the proposed structural transformation of the Morro do Cruzeiro, reflecting on its implications in the heart of the Murici community and identifying how the municipality is inserted in the recent tourist orientation of the state.
Key-words: Religious tourism, revitalization, morro do Cruzeiro, Murici - AL.
Introdução
Levando em consideração os dados divulgados pelo Departamento de Estudos e Pesquisas do Ministério do Turismo brasileiro no início de 2015, o ano de 2014 foi responsável por um aumento exponencial de turistas à procura de circuitos religiosos. Cerca de 17,7 milhões de brasileiros viajaram pelo país motivados pela fé ou pela curiosidade em experienciar tais espaços. Por volta de 10 milhões de turistas fizeram viagens sem pernoitar nos destinos (excursionistas), enquanto 7,7 milhões permaneceram ao menos uma noite no local. Dentre os destinos mais acessados pelos peregrinos estão as tradicionais cidades barrocas mineiras e baianas, como Ouro Preto, Mariana, Congonhas do Campo e Salvador. O destaque do segmento é resultado dos recentes investimentos de revitalização infraestrutural e melhorias de mobilidade aos locais de visitação. Por sua vez, o estado de Alagoas, desde 2013, busca dilatar o fluxo de turistas em, ao menos, 20%. Com base em recentes orientações, as ações, em sua maioria, são voltadas aos interiores na tentativa de estabelecer uma desobstrução do destino Maceió, localizado na região Metropolitana, ampliando não apenas o fluxo, mas o tempo de estadia dos visitantes com a diversificação da oferta.
Primeiro dos 26 estados brasileiros a apresentar um plano de desenvolvimento do turismo alinhado ao Ministério do Turismo (MTur) em 2013 2, Alagoas planeja cumprir as diretrizes estipuladas no Plano de Regionalização do Turismo do ministério, investindo e preparando as regiões com vocação ao turismo histórico, como exemplo dos Caminhos do São Francisco e da região dos Quilombos, esta última recriando a história dos Quilombos dos Palmares. Tendo em vista tais objetivos, foram investidos, nos últimos anos, mais de R$ 9 milhões para a promoção do turismo no estado e na melhoria da infraestrutura de diversas cidades, como Piaçabuçu, Pão de Açúcar, Penedo, Piranhas e Delmiro Gouveia, onde se inserem também históricas e plurais práticas religiosas.
Precisamente nesse sentido que este esforço científico pretende seguir, esboçando três grandes frentes de análise, que constantemente se renovam a partir do progresso desta pesquisa, a saber: a) a fundamentação da construção preliminar de um panorama geral que identifique os principais circuitos religiosos no Brasil, destacando dados de investimentos, visitações e abordando teóricos responsáveis por compreender tais processos, identificando a busca por uma diversificação dos destinos turísticos a partir da implantação do Programa de Regionalização do Turismo, sendo esse um extenso e indispensável caminho que seguiremos aqui; b) construção de um panorama preliminar do circuito religioso no estado de Alagoas e seus aspectos iniciais de regionalização, através do cruzamento com os dados do panorama "a", identificar o estágio atual dos processos em torno dos rituais empreendidos no Morro do Cruzeiro — objetivo último ¬de nosso estudo —, destaque local nas semanas santas da cidade de Murici, interior de Alagoas, distanciado 50 km da capital e, finalmente; c) o atual processo de revitalização do Morro do Cruzeiro na cidade de Murici e sua provável conexão com as novas orientações governamentais de administração e diversificação turística para as regiões.
Apenas na observação dos dois primeiros quadros mais gerais, absorvidos com auxílio da metodologia de apuração documental em torno dos circuitos, teóricos especializados e dos planos de orientação turística nacional e local e, comparativamente, utilizando o campo muriciense como recorte final, é possível tomar fôlego para perseguir respostas sobre questões fundamentais, dentre as quais a primeira possui importância central e norteará o trabalho em questão: 1) como o processo de revitalização do tradicional Morro do Cruzeiro em Murici se insere na iniciativa despertada pelas etapas do Programa de Municipalização e Regionalização do Turismo?; 2) em que medida as transformações de infraestrutura e inclusão da subida do morro no calendário turístico-religioso do estado altera a dinâmica da cidade e dos fiéis?; 3) a revitalização do morro é suficiente para considerar o município como local de turismo religioso, sendo capaz de criar uma nova demanda de visitação e consumo?; 4) quais os benefícios dos investimentos em revitalização para essa realidade? É no bojo dessa discussão sobre circuitos religiosos integrados com os planos políticoadministrativos de desenvolvimento turístico regional que o presente artigo se propõe ao objetivo de contribuir para observações, mesmo que ainda iniciais, sobre quais bases se assenta o processo de revitalização do Morro do Cruzeiro, tradicional entre os fiéis de Murici e cidades alagoanas circunvizinhas. E mais: propõe identificar em que medida esse município está alocado na política nacional de diversificação dos destinos turísticos.
Religião para a diversificação turística
A criação do Ministério do Turismo no dia 1º de janeiro de 2003, por meio da Medida Provisória nº 103, convertida posteriormente na Lei 10.683 de 28 de maio de 2003, foi o gatilho desse complexo e multifacetado processo. Antes da criação de uma unidade ministerial própria, no plano federal, as políticas de fomento ao turismo estavam sob a alçada do Ministério do Esporte e Turismo. Com a criação do Ministério do Turismo (MTur), a EMBRATUR (Empresa Brasileira de Turismo) passou a ocupar um papel mais específico no planejamento, atuando com maior vigor e sistematização nos serviços turísticos, inicialmente na apuração dos dados sobre serviços prestados e, posteriormente a esse levantamento, no melhoramento deles. Assim, todo um novo arranjo foi montado, a partir de grandes investimentos com base na acentuada facilitação de captação de recursos. Com os planos urbanístico-turísticos e o melhoramento do litoral, por exemplo, empreendimentos foram financiados para incremento de seus negócios, vicejando novos mecanismos de oferta dos bens de fruição, prazer e bem estar. Mas, apesar dos significativos avanços e de certa profissionalização no manejo do turismo nacional, faltava ainda ao Brasil enfrentar o problema da diversificação dos destinos turísticos, tema que se fez mais presente a partir da implantação do Programa de Regionalização do Turismo, onde as últimas diretrizes válidas datam de 2013 até 2016.
O turismo religioso, desta forma, poderia figurar como uma importante saída para a diversificação e, sobretudo, desobstrução de destinos comumente visitados, ampliando a distribuição de turistas, bem como seu tempo de estadia nas regiões. Segundo dados informados pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), em 2002, o segmento religioso no Brasil se apresenta como uma contundente oportunidade de negócio, mas ainda pouco inserida nas articulações turísticas público-privadas, exceto nos grandes centros onde a prática de visitação se tornou costumeira. Com a criação do Ministério do Turismo e as novas orientações para captação de recursos, a política nacional passou a considerar tais destinos como escape para atividades turísticas que precisam ser renovadas. Melo (2000 apud SILVEIRA, 2007) buscou justificar a lógica de crescimento com base nas estatísticas divulgadas pela FIPE, indicando que havia cerca de 15 milhões de brasileiros interessados em destinos religiosos — antes mesmo da criação de um ministério específico capaz de organizar o turismo de maneira mais contundente — e cerca de 60 milhões de interessados em todo o mundo, se levadas em consideração apenas as religiões cristãs. A maioria dos temas religiosos observados nesses destinos é popular, como procissões, festas (católicas ou não).
Após a criação do Ministério do Turismo e implantação de políticas descentralizadas de desenvolvimento dos destinos no país, maior controle territorial passou a ser estimulado, abarcando 344 cidades em condições de atender o viajante em busca da prática religiosa. Desse número, 117 cidades possuem um calendário fixo de eventos relacionados à fé, predominantemente católicos. Segundo informou ainda o Ministério em dados divulgados no final de 2013, o segmento movimenta cerca de R$ 15 bilhões por ano no país. Como investimento ao melhoramento da recepção turística, cinco cidades foram contempladas com incentivos para prosseguir atuando, contabilizando recursos de R$ 601 mil. São elas: Nova Trento (Santa Catarina), Aparecida (São Paulo), Trindade (Goiás), Santa Cruz (Rio Grande do Norte) e Bragança (Pará). Os três destinos que mais receberam recursos no período são: Aparecida, Trindade e Santa Cruz.
Aparecida do Norte é um dos principais destinos do turismo religioso no Brasil, situado no interior de São Paulo, e um dos mais imponentes exemplos da prosperidade do segmento. É onde está localizado o Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, um dos maiores templos católicos do mundo, comportando uma imagem da santa de 29 centímetros, principal atração do local. Só em 2012, o santuário foi visitado por 11 milhões de romeiros. Em suas dependências, que somam 23.220 m 2, uma megaestrutura foi montada para lidar com diversas situações, suprindo as necessidades dos visitantes, como: 22 lojas na praça de alimentação (14.300 m 2); 330 lojas de comércio varejista nas quatro asas (7.200 m 2); 36 quiosques: bomboniere, lanches e lojinhas; 01 farmácia; 01 fraldário; 200 sanitários; 44 bebedouros; aquário; parque de diversões e terminais bancários 3. Do montante de investimento anteriormente especificado, a cidade recebeu R$143 mil.
Outro exemplo é Trindade, destino conhecido pela Festa do Divino Pai Eterno, atraindo cerca de 1,5 milhão de pessoas por ano, e que recebeu R$ 135 mil em investimentos diretos do Ministério do Turismo no período. Por fim, Santa Cruz, que recebeu R$ 112,6 mil desses recursos.
A cidade, localizada no agreste do Rio Grande do Norte, abriga a maior estátua de Santa Rita de Cássia na América Latina, com 56 metros de altura. O Complexo Turístico Religioso Alto de Santa Rita de Cássia, no topo do Monte Carmelo, atrai multidões todos os anos.
Outros destinos consolidados no Brasil também recebem acompanhamento e divulgação específica do Ministério do Turismo, como: a romaria à Nova Trento (Nova Trento, SC), que recebeu R$ 100 mil dos investimentos previstos em 2013, onde se localiza o Santuário da Madre Paulina, considerada a primeira santa brasileira, movimentando em torno de 20 mil peregrinos por mês; Círio de Nazaré (Belém, PA), que recebe cerca de 1,5 milhão de pessoas em outubro, tornando-se uma das maiores festas religiosas do mundo; romaria à Juazeiro (Juazeiro do Norte, CE), responsável por receber algo em torno de 2 milhões de devotos de Padre Cícero por ano ( Ministério do Turismo, 2015).
A larga movimentação turística do segmento é resultado de um processo iniciado entre 1980 e 1990, décadas em que a modernização industrial e a urbanização se aceleraram em torno das capitais e das cidades de médio porte. Carvalho (1999 apud SILVEIRA, 2007) referiu-se à sociedade brasileira como um grande campo plurivocal, multidiverso em termos religiosos, abarcando as mais variadas manifestações: Catolicismo; Protestantismo; tradições afro-brasileiras, tais como Candomblé, Umbanda e Xangô; Nova Era; Teologia da Libertação; práticas xamânicas, dentre outras. Ao longo desses anos, a variedade de palcos e rituais, atrelados ao incessante projeto de marketing para divulgação desses espaços e construção de calendários fixos despertou o interesse dos visitantes, que passaram a organizar excursões cada vez mais robustas para presenciar expressões religiosas que se transmutaram em dinâmicos espetáculos, transmitidos, inclusive, em TV aberta.
A Pastoral do Turismo
Após a década de 1990, as mudanças no mercado turístico brasileiro se complexificaram, tornando-se pujantes, movimentando muitos interesses e investimentos, dinâmicas que atingiram diretamente também o segmento religioso, fazendo de seus rituais espetáculos cada vez mais povoados por peregrinos e curiosos. Com o vigor no fluxo de visitantes em igrejas, monumentos e eventos religiosos, bem como a considerável intensificação na divulgação dos festejos como identidades das regiões, agentes turísticos passaram a mediar o processo, algo que se tornou ainda mais organizado a partir do estabelecimento do Ministério do Turismo em 2003. Logo:
Sob o termo turismo religioso, agentes religiosos, empresariais, públicos e acadêmicos constituem uma ação articulada no sentido de extrair de práticas seculares de fé, como as peregrinações, caminhos santos e promessas, uma oportunidade de negócio e, nos discursos mais otimistas, desenvolvimento socioeconômico de uma determinada região ( SILVEIRA, 2007, p. 39).
Vale destacar que, com o alargamento das relações e interesses com o segmento do turismo religioso, diversas instituições passaram por reformulações para captação de recursos e atendimento de qualidade dos turistas. Com o progresso de novas estruturas organizacionais, não apenas órgãos governamentais impuseram diretrizes para efetivar o segmento no calendário nacional, mas a própria igreja criou, no Brasil, a Pastoral do Turismo, atuante na Europa desde a década de 1960, reivindicando papel decisivo no arranjo que se fazia corpulento. Ao citar a Conferência Mundial de Roma de 1960, Silveira (2007) aponta que o turismo religioso é definido como capaz de movimentar peregrinos em viagens pelos mistérios da fé ou da devoção a algum santo, sendo, na prática, viagens organizadas para locais de cunho sagrado, eventos de evangelização, festas religiosas realizadas periodicamente e espetáculos religiosos.
Em sua plataforma on-line oficial, a Pastoral do Turismo do Brasil indica diversas ações que possuem um norte comum: evangelizar as pessoas envolvidas com a prática do turismo, entre turistas e agentes que elaboram o processo. A proposta, além de organizacional que tende receber melhor o visitante, também prevê uma orientação espiritual para que a mobilidade não seja apenas casual, mas periódica e contida de significado religioso. Portanto, a Pastoral indica que o turista ou peregrino, ao regressar à sua comunidade de origem, busque se inserir nas ações locais, atuando com base nas diretrizes da pastoral. Evangelizado e evangelizando.
A iniciativa é uma clara estratégia de equilibrar as relações com o negócio do turismo, buscando com que as atividades não sejam resumidas ao fim último de consumir um serviço. Além de estimular a evangelização, fazendo com que o visitante casual se torne participante assíduo, também intervém junto ao ritual, ou seja, evangelizado, o visitante incorpora as normas básicas da expressividade religiosa, participando, contribuindo e não deturpando os espaços. A discussão no Brasil sobre as categorias "fé" e "negócio" é recente; assim como a Pastoral do Turismo, já tradicional na Europa, um ministério específico para cuidar dessas relações de mercado também surgiu tardiamente e levou secretarias em todo o país a se abrirem para uma nova orientação política, como o caso do estado de Alagoas
O turismo religioso em Alagoas e o processo de regionalização
Dentre todos os esforços para compreender a origem e desenvolvimento do elemento turístico na plural Alagoas, vale destaque o trabalho de Francisco Henrique Moreno Brandão 4, por sua singularidade histórica e contribuição ímpar quando ainda não tínhamos sequer um arranjo profissional no segmento. Professor, jornalista, romancista, poeta e historiador de Pão de Açúcar, Brandão (2013) confeccionou a obra " Vade-mecuum do turista em Alagoas", lançando-a em 1937, sob grande contribuição do Instituto de História de Alagoas, traçando um detalhado plano geográfico, político e educacional da capital e cidades do interior. Ali, identificou que, desde os anos 30, Alagoas dava brechas para despertar uma economia baseada no turismo, justificada na cultura de seu povo, seu intrigante projeto arquitetônico, belezas naturais, muitas ainda virgens, dentre outros.
Em seu livro, um dos raros registros de sua época, Brandão (2013) explora uma reflexão apaixonada e poética sobre as condições de seu contexto e os prováveis caminhos a serem trilhados para o desenvolvimento de uma economia turística autossustentável do estado, que passou a urbanizar-se vagarosamente ao longo dos anos de 1800. Logo, para ser efetivamente importante fonte econômica para a região, Brandão (2013), já na década de 30, indicava que o turismo não deveria apenas se concentrar no segmento praieiro da capital, seu sol e mar, mas também demandaria investimentos específicos voltados ao interior alagoano, suas cachoeiras, riachos, rios, grutas, lagos e serras, cenários incorporados pela cultura e religiosidade de rituais tradicionais, passados de geração para geração. Existe, portanto, toda uma historicidade cultural que emana do interior alagoano retratada na obra deste autor que, já em sua época, merecia atenção, investimentos e valorização para expansão do turismo étnico, culinário, ecológico e de aventura.
Ajudada por essa circunstancia feliz que notamos, dotada de excellente clima, favorecida por uma natureza opulenta, rica de especies vegetaes, tendo uma fauna copiosa e um subsolo que ainda ha de nos maravilhar pelas magnificencias que encerra, Alagôas começou no tirocinio de seu desenvolvimento historico sob os mais felizes auspicios ( BRANDÃO, 2013, p. 22).
Brandão (2013) revisitou os dados, expôs os números sobre a economia, administração e povoados alagoanos, mas também possuía um lado a ser destacado: o do poeta, apaixonado pelos causos do estado. Relata que, onde não há pesquisas, há povo, com suas lendas que criam cenários que perduram pelos caminhos da história e necessitam de atenção turística.
Como vimos, tardiamente, assim como toda a organização nacional para o turismo, o estado de Alagoas passou a valorizar os aspectos que remontam certa "pureza" do interior, após enfrentar dificuldades com a alta demanda de turistas para as praias, que vem superlotando hotéis, pousadas e as principais estradas de acesso. E não só isso. Explica-nos Coriolano e Almeida (2007) que, até meados do século XX, a região costeira do Nordeste não era observada enquanto espaço urbano para o turismo. O local era voltado apenas para atividades portuárias e de pesca artesanal, além de ocupações residenciais e atividades socialmente marginalizadas, tais como a boemia, o artesanato e cultura popular. A mudança desse quadro veio com a valorização do exótico, da busca pelos elementos "puros" da cultura dos povos e da natureza, através da implantação de projetos financiados pelas agências multilaterais de crédito, a partir da década de 1980, fazendo do local um amplo espaço para o lazer. Desde as transformações significativas, a população litorânea foi obrigada a disputar o espaço, agora construído e urbanizado para o turismo. O período passou a ser marcado por intenso atrito entre os grupos interessados no ganho financeiro e os grupos marginalizados por não atenderem aos interesses dos turistas e do mercado, configurando um processo severo de luta, mediante relações de poder para redefinição de áreas e territórios, mesmos conflitos que são observados nas áreas de maior apelo comercial de Alagoas, materializados através de periódicos protestos por melhores condições de moradia da população carente, oportunidades de emprego e distribuição igualitária dos investimentos.
Obviamente, as praias continuam sendo o destaque do estado, como a região Metropolitana que inclui a capital Maceió, e duas regiões que priorizam as belezas naturais, como litoral norte, a região Lagoas e Mares do Sul e a região Costa dos Corais, que possui a segunda maior barreira de corais do mundo. Tais elementos ainda são comercializados nas grandes feiras, eventos e reuniões de negócios, firmando parcerias e montando pacotes para o turista nacional e internacional. Mas o interior, a partir da iniciativa da regionalização, passou a figurar como oportunidade de investimento, por seu amplo valor histórico, que representaria um turismo de maior qualidade, dotado de significado. Nesse sentido, o turismo religioso vem sendo uma das prioridades administrativas do governo de Alagoas, através da Secretaria de Estado do Turismo (Setur). No entanto, apesar de o Estado oferecer infraestrutura para a instalação de empreendimentos e isenção fiscal, não é exigida nenhuma contrapartida substancial dos empreendimentos, exceto pela geração de empregos, que nem sempre é direcionada à comunidade que recebe o negócio ( CORIOLANO; ALMEIDA, 2007), o que se configura em problema severo para os moradores. Levando o projeto turístico para pequenas comunidades, o governo possui a oportunidade de envolver a população, desde que exista uma constante resistência contra a descaracterização das paisagens e com prioridade para a valorização e potencialização da cultura local.
A Cidade de Maria, um dos exemplos mais importantes em Alagoas, é considerado o maior teatro ao ar livre do mundo, construído ainda em 2006 no povoado de Folha Miúda, localizado no município de Craíbas, no Agreste alagoano. Quatro vezes maior do que Nova Jerusalém, no interior do estado de Pernambuco, é encenado o espetáculo da Paixão de Cristo durante a semana santa. O complexo teatral da cidade, que passou a ser desenvolvido apenas em 2013, possui 30 hectares com 300 mil m 2, 12 palcos elevados, com capacidade para mais de 20 mil pessoas. Também há estacionamento para ônibus e local para 1500 automóveis. E, como todo grande projeto turístico que se preze, após a semana santa, a Cidade de Maria se transforma em museu para visitação e também espaço para realização de atividade culturais, shows de louvores e retiro espiritual. Do projeto do complexo, ainda consta a construção de um hotel para acomodar os visitantes. No entanto, sendo poucos os exemplos marcantes de palcos religiosos que despertam interesse turístico, o estado alagoano busca fortalecer os investimentos e ampliar o leque de opções aos turistas, entendendo que se trata de um segmento em expansão.
Nesse contexto, encontra-se a cidade de Murici. Reconhecidamente um importante polo da natureza, possuindo biodiversidade marcante, o município busca aproveitar a fertilidade de investimentos ao turismo para dilatar sua oferta, explorando sua história e importantes práticas religiosas, esforço aqui apresentado a partir das mudanças estruturais previstas no Morro do Cruzeiro. Resta-nos perseguir explicações em torno das questões que norteiam o interesse deste artigo, buscando compreender as vicissitudes do projeto de revitalização.
A cidade de Murici e a revitalização do Morro Santo do Cruzeiro
A cidade de Murici localiza-se na Zona da Mata alagoana, cerca de 50 km da capital Maceió a partir da BR 104, sua principal rodovia. Tornou-se cidade pela lei estadual nº 15 de 16 de março de 1892. Economicamente, o município trava o desafio de fazer emergir seu polo industrial, mas não tem sido um desenvolvimento brando. Os níveis educacionais e, portanto, profissionais da população impedem a distribuição mais acentuada dos poucos postos de trabalho disponíveis no mercado. Visto tais dificuldades, há um razoável crescimento do setor de serviços nos últimos anos, mas a agricultura e a cana-de-açúcar seguem como as principais fontes de renda da maior parte da população, que é de 28.335 habitantes. Desse número, segundo dados do IBGE, 16.563 pessoas são alfabetizadas. Tomando os dados de 2010, o índice de Desenvolvimento Humano do município é de 0,527. Do total populacional, segundo informa o Cadastro Central de Empresas do IBGE, apenas 2.435 pessoas eram assalariadas no segmento em 2013, somando pouco mais de R$31 mil reais em salários e outras remunerações.
Murici é mais um dos exemplos de município alagoano que busca impulsionar sua economia através do turismo e, dessa forma, o segmento religioso tem sido observado. Ao todo são 22.637 pessoas que especificam fazer parte de alguma religião, sendo 19.292 católicas apostólicas romanas, 3.340 evangélicas e 5 espíritas, de acordo com os dados do censo do IBGE. Esse último dado, referente aos espíritas, chama atenção e causa estranheza pela disparidade em relação aos outros segmentos religiosos, o que reafirma a centralidade católica na cidade e sua robusta peregrinação.
As peregrinações católicas anuais ao Morro do Cruzeiro para acompanhar a Santa Missa, segundo um dos raros relatos históricos documentados e disponíveis na cidade sobre o período, de responsabilidade do Padre Jimmy Xerri, é uma tradição que ocorre há mais de 129 anos. De acordo com seu livro Dois séculos de história, a primeira procissão naquela região foi realizada ainda no século XVIII, quando a cidade começou a superar uma intensa epidemia de varíola. Como forma de agradecimento, o então vigário paroquial do município, Padre José Roberto, fez a promessa de colocar uma cruz de madeira no ponto mais alto da cidade, pedindo para que a caminhada até a cruz, símbolo da recuperação da população, fosse feita todos os anos para manter as proteções. Ainda hoje, uma multidão de fiéis (locais e visitantes) caminham 2,5 km de um trajeto de barro difícil e uma subida volumosa e íngreme para, na sexta-feira da Paixão de Cristo, depositar aos pés da cruz seus objetos pessoais, velas e fitas em pagamento às graças alcançadas ao longo do ano. O trajeto começa a se iluminar ainda de madrugada, em torno das 4 horas, quando as velas acesas se movem em harmonia seguidas pelo carro de som da cidade, que entoa cânticos e orações católicas ininterruptamente até a chegada na enorme cruz iluminada (antes de madeira, hoje de concreto) no morro de vista privilegiada para toda a parte urbana da cidade.
No início do trajeto ao morro, as pessoas se amontoam numa subida difícil e, em dias chuvosos, enlamaçada. Não há reclamações em demasia, pois aparentemente todas as dificuldades fazem parte do trajeto e da necessária prova de fé. Já no topo, disputam cada espaço para acompanhar o restante da santa missa e fazer seus pedidos e agradecimentos. O projeto de revitalização do Morro Santo do Cruzeiro, um dos seus principais pontos religiosos (assim como as igrejas de Nossa Senhora das Graças e Santa Tereza também o são, suntuosas arquiteturas coloniais), propõe, por sua vez, não apenas uma ousada remodelação do local, buscando conforto ao turista nos momentos que revivem as estações da via-sacra até o alto da cruz, mas também uma periodicidade de visitação que permita movimentar o comércio local. Duas imponentes imagens sacras constituirão o santuário, inspiradas nas representações que compõem os mais variados pontos do turismo religioso no Brasil, buscando refletir o cuidado e a organização do espaço: uma imagem de Cristo, com 12 metros de altura e a de Nossa Senhora, com 6 metros (confeccionadas em alumínio fundido), servindo para contemplação corriqueira, não apenas na semana santa. As novas imagens, aliadas à nova cruz de concreto, dão lugar ao antigo cartão-postal do morro, a tradicional cruz de madeira, que iluminava as noites muricienses há décadas e que foi deteriorada pela ação do tempo. Seus restos estão sob responsabilidade da igreja católica e da prefeitura do município, armazenada em local desconhecido até o desenvolvimento dessa pesquisa.
No site Portal dos Convênios do Governo Federal, a proposta de revitalização do espaço, enviada e cadastrada no dia 21 de novembro de 2012, está listada como número 46790, submetida pela Prefeitura Municipal de Murici, e aponta a implantação da praça no alto do Cruzeiro como seu objetivo central para captação de recursos e recebimento de mais grupos de turistas. No que tange ao processo da obra, indicada no portal como aprovada, a previsão foi de início em 28 de dezembro de 2012 e conclusão em 31 de janeiro de 2016 5. Os valores globais são de R$1.343.112,24, com repasse da União de R$1.316.250,00 e contrapartida de R$26.892,24. A iniciativa está vinculada ao Programa de Apoio a Projetos de Infraestrutura Turística.
Seguindo a lógica que permeia os meios de turistificação, a Prefeitura Municipal de Murici apresenta, na justificativa da proposta, os aspectos destacáveis do município para a realização da revitalização, dentre eles: região de fácil acesso, que possui a BR 104 como sua principal rodovia; proximidade com a capital Maceió; qualidade do solo e abundância em água; área de biodiversidade a partir da Mata Atlântica do Nordeste, com cavernas, cachoeiras e espécies endêmicas de pássaros, protegida por lei federal, de nome "Estação Ecológica de Murici"; tradições religiosas com festividades diversas; pico da Serra do Morro do Cruzeiro como vista privilegiada da cidade e entorno, dentre outros.
Territórios considerados propícios ao investimento turístico em decorrência de características físicas favoráveis, tais como a existência de praias, cachoeiras, rios, clima, vegetação e elementos culturais tradicionais e exóticos, provocam o interesse imediato dos empreendedores para instalação da planta turística como, por exemplo, infraestrutura hoteleira, revitalização e ampliação de pontos tradicionais visitados que, assim, cumprem o objetivo de atrair e atender a nova demanda ( ISSA; DENCKER, 2006), como se espera no caso muriciense. Nesse contexto, também vale apontar, ainda tomando emprestadas algumas das considerações de Issa e Dencker (2006), que, de acordo com a literatura técnica disponível em torno do planejamento e desenvolvimento turístico, tanto nacional quanto internacional, representa grande potencial para a geração de empregos, sejam diretos, sejam indiretos, podendo contribuir para incrementar a geração de renda e receitas das localidades envolvidas com a atividade, incentivando a fixação da população residente, criando maior demanda e ampliando as perspectivas de trabalho.
Dessa maneira, é possível afirmar que o projeto de revitalização do Morro Santo do Cruzeiro na cidade de Murici se insere nas novas orientações governamentais de disseminar cada vez mais a oferta turística, mesmo este aspecto não estando discriminado no escopo do projeto, o que revela uma resposta coerente para a primeira questão que norteia este esforço reflexivo. O estado de Alagoas adere ao Programa de Regionalização do Turismo, tornando-se ainda mais presente na realidade de sua Secretaria de Estado do Turismo a partir de 2013 com a confecção do Plano Estratégico de Desenvolvimento do Turismo, seguindo abertamente as recomendações do Ministério e seu Plano Nacional de Turismo, que prevê, dentre outras coisas, incentivo para que o brasileiro viaje mais pelo próprio país, disseminando ofertas, melhorando a competitividade do turismo brasileiro e aumentando a qualidade infraestrutural e profissional dos espaços voltados ao lazer. Assim, levando em consideração o atual momento do turismo nacional — e alagoano — e percebendo a oportunidade de dinamizar a oferta local na incessante perseguição de fontes econômicas que contribuam ao desenvolvimento da região, os agentes públicos de Murici, na figura de seu prefeito 6, se puseram a incluir o município dentro daquilo que se entende como ampliação das bases turísticas do interior do estado, aproveitando a já consolidada visibilidade da subida ao Morro do Cruzeiro — fonte de matérias de cunho regional e nacional — para criação de uma rota de turismo religioso que, mesmo antes de qualquer organização mais específica, já atraía fiéis de todas as localizações circunvizinhas.
Entretanto, essas transformações no seio da comunidade evidenciam bem mais que uma oportunidade de ganho econômico. Dinâmicas de exclusão da população local também surgem com os novos formatos administrativos do turismo, muito por conta da falta de preparo profissional para ingressar nos postos de trabalho disponíveis e nas tomadas de decisão coletiva, além da descaracterização dos rituais tradicionais dos espaços de interesse em função dos objetivos mercadológicos, a partir de uma lógica que considera o turista como consumidor prioritário e de papel fundamental para a prosperidade dos projetos.
Nessa perspectiva, percebe-se que, em localidades identificadas como de vocação turística, muitas vezes as condições estruturais objetivas existentes que determinam suas características físicas, econômicas e culturais, entram em contradição com as demandas do desenvolvimento do turismo. Nem sempre a implementação do desenvolvimento do turismo atua de forma a integrar todos os residentes da comunidade, ou pelo menos grande parte deles, incorporando-os ao novo processo produtivo ( ISSA; DENCKER, 2006, p. 4).
Quando se é o caso da implantação de serviços que seguem padrões de profissionalização é comum que haja importação de recursos humanos, sob a argumentação de que a mão de obra local não consegue atender aos níveis de preparo exigidos pela nova demanda. Na realidade da cidade de Murici, ainda não há espaço para tratar de empregos vinculados ao turismo dentro da proposta de revitalização do Morro do Cruzeiro, pois não existem — até o momento da pesquisa — dados que corroborem a criação de postos de serviços para atendimento do turista; o projeto prevê apenas uma reformulação estrutural do topo do morro, com a construção das estátuas e uma praça para circulação de fiéis e curiosos. Embora, sabemos, existam outras maneiras desses processos afastarem o sujeito local da sua realidade cotidiana. Como bem argumenta Issa e Dencker (2006), em determinadas localidades a turistificação possui uma perversa dinâmica de apropriação do espaço, especialmente quando a população local deixa de sentir-se parte daquilo que cultivou. Portanto, o residente assume o papel do estranho em seu próprio território, o que gera conflitos na luta pelo poder, podendo refletir no comportamento com o turista. Um arranjo social similar já foi presenciado no município de Murici, com o tradicional bloco carnavalesco Tudo Azul 7, que atrai mais de 60 mil foliões por ano, como veremos logo em seguida.
No âmbito dessa discussão, chegamos ao embate de mais duas questões que se agregam ao interesse deste artigo, as quais são: em que medida as transformações infraestruturais do espaço de visitação religiosa em Murici podem alterar a dinâmica da cidade e dos fiéis?; a revitalização do Morro do Cruzeiro é suficientemente capaz de fazer da cidade de Murici um território inserido e apto ao turismo religioso? As questões não são simples, sobretudo a segunda, mas a elaboração de respostas que as esclareçam pode ser organizada em uma única explicação, já que se retroalimentam.
Ao trabalhar com o impacto do turismo religioso no Brasil e no mundo, Silveira (2007) levantou algumas preocupações conceituais que precisam ser enfrentadas. Segundo o autor, apesar do Brasil ser terreno fértil para a mistura das mais variadas raças e crenças, é necessário identificar o que seria "turista" e o que seria "peregrino". Será que ambos possuem o mesmo lugar dentro do ritual religioso em que estão inseridos? Seria correto afirmar que todos que se direcionam ao templo fazem turismo religioso? A religiosidade localiza elementos relacionados ao sério, ao íntimo, ao interior, enquanto que o turismo se remete ao ser, viver, a uma experiência lúdica de divertimento, leveza, ao exterior, ao observar os espetáculos e consumi-los previamente nos pacotes que são oferecidos pelas empresas organizadoras. O turismo religioso surgiu por volta de 1960 e, até os dias atuais, essa preocupação apresentada por Silveira (2007) segue figurando nos debates em torno da organização desses espaços. Não se trata de delimitar espaços imutáveis para cada tipo de participante do espetáculo, mas garantir por meio de planejamento que eles, seja qual for seu interesse nos eventos, tenham experiências sem restrições. É necessário garantir a liberdade de "atuação" dos turistas e fiéis (ou fiéis turistas) para combater o esvaziamento simbólico dos rituaisespetáculos. Não por acaso, a Pastoral do Turismo brasileiro surgiu para mediar tais conflitos na busca pela evangelização de qualquer que seja seu público.
O que nos falta dizer é que essa discussão se faz imprescindível para esboçarmos respostas em torno das duas questões anteriormente reapresentadas sobre a realidade da cidade de Murici e a transformação estrutural da sua mais importante expressão religiosa. Segundo destaca Silveira (2007), os turistas são consumidores, a grande maioria não tem compromisso específico com os rituais do espetáculo, apenas observam na esperança do deslumbre. Consomem artesanatos e outros produtos, exigem bons restaurantes e fazem circular a economia local, nacional e internacional. Turistas também exigem hotéis e pousadas de qualidade, além de mobilidade frequente, acesso às tecnologias e postos de emergência. Seguindo estas exigências do turista, do mercado, Silveira (2007) cita três exemplos robustos de santuários católicos: Lourdes (França), Fátima (Portugal) e Guadalupe (México). Ao todo, por ano, visitam esses santuários cerca de 23 milhões de pessoas, o que gera 11,5 bilhões de reais, sendo Lourdes o segundo maior centro hoteleiro da França.
Muito distante desta realidade, a semana santa de Murici se propõe ao importante passo de iniciar melhorias estruturais em uma tradição consolidada na região, mas para se firmar no calendário do turismo religioso é fundamental que outras mudanças sejam realizadas para que todos os envolvidos sejam contemplados, tais como: a) transporte: apesar de indicado como local de fácil acesso e próxima de Maceió, Murici conta apenas com transportes privados (lotações) de quantidade limitada para as cidades circunvizinhas; b) hospedagem: um dos principais empecilhos para recebimento de turistas, a área urbana de Murici conta apenas com um hotel capaz de oferecer relativo conforto — durante o carnaval, em que alguns blocos tradicionais desfilam na cidade, a prefeitura media negociações com os próprios moradores, que alugam seus quartos; c) postos de informação: não basta visitar o local, o turista busca informações históricas sobre o espetáculo que presencia, uma oportunidade disponível para posto de trabalho que sequer chegou a figurar no escopo do projeto de revitalização; d) melhoria do trajeto: 2,5 km de caminhada, muito barro, subida íngreme, o que pode gerar problemas de segurança.
Portanto, apesar de indicado como uma reformulação estrutural capaz de incluir o município na rota do turismo religioso, as mudanças, mesmo que importantes do ponto de vista do espetáculo e da atração de turistas, não garantem inicialmente o cumprimento das normas previstas pelo estado de Alagoas para diversificação da oferta turística e prolongamento dos visitantes disseminados pelos interiores. O local oferece poucas opções para hospedagem e também limitadas opções para refeições, bem como transporte, sendo prematuro falar em turismo religioso. Coriolano e Almeida (2007) explicam que esta é uma condição presente em diversos locais do Nordeste. Paralelo ao desenvolvimento de setores importantes da economia, questões básicas ligadas à saúde, saneamento, educação, emprego e renda são constantes na vida da população ( CORIOLANO; ALMEIDA, 2007). Sem as condições adequadas de estadia e mobilidade, a realidade do ritual na semana santa pode se alterar drasticamente. Vejamos o exemplo do carnaval na cidade.
O bloco carnavalesco de rua Tudo Azul é o mais tradicional do município. Sua criação data de 1944, iniciado com desfiles entre poucos moradores da cidade, acompanhados de bandas de frevo. Aos poucos, a prática do "mela-mela" foi sendo inserida em seu formato, até que na década de 90, o então prefeito Remi Calheiros (PMDB-AL), temendo pela segurança de seus foliões, inseriu a tinta em pó azul como a única permitida durante os desfiles, impedindo o uso de substâncias nocivas. A curiosidade em torno do bloco e seu ritual exótico atraiu foliões de diversas localidades ao longo dos anos, especialmente pela falta de opções em se brincar o carnaval em Alagoas, estado que optou por receber os turistas em busca de descanso, oferecendo apenas prévias carnavalescas. As bandas de frevo que desfilavam nas pacatas ruas do município foram substituídas por trios elétricos financiados pelo poder público e atrações renomadas local e nacionalmente, e o bloco, antes limitado a um pequeno grupo, alargou-se consideravelmente para receber mais de 60 mil foliões por ano.
Excetuando-se o planejamento do estado de Alagoas para acompanhamento policial nos eventos de grande porte, não houve uma estratégia específica antecipada de organizar o recebimento dos turistas-foliões interessados nos desfiles. A cidade de pouco mais de 28 mil habitantes tornou-se expectadora de seu próprio evento, vendo seu cenário ser inundado por foliões de todos os lugares do estado e também fora dele. Sem estrutura adequada, problemas no transporte passaram a ser constantemente identificados, consumo de álcool exacerbado, violência e um óbito por arma de fogo, no ano de 2012. Atualmente o bloco luta para diminuir o número de participantes, contratando atrações de menor impacto. O exemplo dá margens para compreender que a falta de um planejamento turístico específico pode causar sérios transtornos ao poder público, ao turista que se desloca, bem como aos moradores, alterando de maneira drástica a vida no município nos dias que seguem os eventos.
Com base nas condições observadas, além das dificuldades já citadas anteriormente, um importante esquema de segurança precisa ser empreendido, visto que o trânsito de pessoas ao Morro do Cruzeiro, que já é considerável, pode ficar ainda mais intenso e, como destacado, não se trata de um trajeto de fácil acesso. No topo do morro, por exemplo, outras situações também devem ser lembradas, como os períodos chuvosos e a fragilidade do solo lateral que corre frequentemente o risco de ceder.
Por fim, chegamos à quarta e última questão apresentada na introdução deste esforço reflexivo: quais os benefícios dos investimentos em revitalização para essa realidade? Após serem indicadas algumas dificuldades, também é possível enxergar benefícios ao desenvolvimento da região, se tomarmos com parâmetro outros exemplos que apresentaram certo avanço. A completa revitalização do Morro Santo do Cruzeiro em Murici pode influenciar positivamente ao surgimento de um mercado consumidor, já que, atrelado ao projeto, também consta a criação futura de refeitórios e outros estabelecimentos comerciais, similares aos negócios especializados no comércio de artigos da fé, localizados no entorno do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro. Além disso, o panorama abre espaço para que um processo similar seja investido em outros pontos, influenciando na criação de novos locais turísticos, fazendo uso de territórios não mais utilizados para moradia por conta da desapropriação forçada, resultado das grandes enchentes que atingiram parcela da cidade. A organização e profissionalização das atividades resulta na criação de postos de serviço e aumento do consumo variado, o que pode compreender num aquecimento da economia local e fortalecimento da prática religiosa, assegurando permanentemente sua entrada para o calendário de eventos estaduais.
Considerações finais
Coriolano e Almeida (2007) são categóricos: o turismo para a região só pode ser entendido como coadjuvante de um amplo plano de desenvolvimento econômico que prevê transformações em outras bases, e não vetor-chave. Mas também destacam que sua importância não pode ser reduzida, podendo ensejar empregos diretos e indiretos — embora boa parte temporários —, oferecendo oportunidades aos locais periféricos e políticas alternativas, abrindo-se para médios e pequenos empreendedores, uma facilidade dificilmente observável no setor industrial, pouco maleável. O turismo, quando planejado corretamente, absorve uma infinidade de serviços, podendo concorrer empresas de pequeno e médio porte, atuantes nos mais variados tipos de serviços, que surgem através da criatividade dos habitantes locais, como exemplo da venda de variedade e suvenires ( CORIOLANO; ALMEIDA, 2007).
Por fim, é necessário reiterar que é prematuro apontar as transformações estruturais no Morro do Cruzeiro em Murici como geradora de empregos e oportunidades para a população local ou, de outro lado, sugerir uma grave alteração no desenvolvimento do ritual. Mas toda organização turística, por mais inicial que seja, desencadeia uma série de novos arranjos sociais, desterritorializando e reterritorializando em favor de uma lógica de consumo, produzindo novas configurações de uso do espaço. Um fenômeno que requer máxima atenção do poder público por sua complexa roupagem. É importante que as ações dos gestores públicos da cidade de Murici estejam em confluência com a lógica de desenvolvimento do turismo no estado de Alagoas que, por sua vez, busca estar em harmonia com as políticas nacionais disseminadas pelo Ministério do Turismo. O primeiro passo, nesse sentido, foi dado. Entretanto, os autores aqui trabalhados também alertam para uma realidade histórica recorrente: as regiões litorâneas são originalmente ocupadas por indígenas, pescadores e comunidades tradicionais, e estes sofreram o forte impacto do processo lento e massacrante da expropriação das terras para dar lugar aos resorts, cadeias hoteleiras, restaurantes e outros equipamentos turísticos, processo similar nas ocupações que trabalham o turismo histórico. Portanto, mesmo buscando se adequar ao plano nacional, Murici necessita de planejamento específico para assegurar a expansão de seu evento, garantindo condições para a realização do ritual tradicional.
Referências
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Notas