Resumo: Este trabalho busca compreender como os católicos de um município goiano, anualmente, reatualizam litúrgica e ritualmente as dores de Maria na Festa de Passos, e na mesma proporção entender o seu papel nessas manifestações religiosas populares. Para tanto, foi feita uma pesquisa de observação participante do evento religioso e uma análise dos dados coletados com base na discussão de Eliade em O Sagrado e o Profano (1992).
Palavras-chave: Reatualização, Tempo mítico, Dores de Maria, Pirenópolis.
Abstract: This work seeks to understand the reason why Catholics in a Goian municipality annually refurbish liturgical and ritualistically the pains of Mary in the Feast of Steps, and in the same proportion to understand their role in these popular religious manifestations. In order to do so, a participant observation survey of the religious event was conducted and an analysis of the data collected based on Eliade's discussion in The Sacred and the Profane (1992)
Keywords: Update, Mythical time, Pains of Mary, Pirenópolis.
Article
AS DORES DE MARIA REATUALIZADAS NA FESTA DE PASSOS, EM PIRENÓPOLIS - GOIÁS
MARY'S PAINS REACTUALIZED AT THE FESTA DE PASSOS, IN PIRENÓPOLIS - GOIÁS
A Festa de Nosso Senhor dos Passos, ou simplesmente Festa de Passos, como doravante a chamaremos, é uma manifestação religiosa católica comum a muitas cidades brasileiras e realizada anualmente nas duas últimas semanas da Quaresma ou na transição da Semana das Dores para a Semana Santa, tendo como figuras centrais Nosso Senhor dos Passos e Nossa Senhora das Dores, representados, na maioria das vezes em imagens barrocas centenárias.
Trazida ao Brasil pelos portugueses durante a colonização, pode ser visualizada, nesse recorte temporal, como um dos possíveis elos de conexão entre eles, exilados nestes ermos, e Portugal. Nessa ocasião, além de ter sido uma demonstração pública de fé, devoção e gratidão ao sagrado, era também um movimento de manutenção e reafirmação da própria identidade portuguesa.
A Festa de Passos faz memória do padecimento de Jesus no caminho para o Calvário e das dores que transpassam o coração de Maria, sua mãe, ao acompanhá-lo durante seu suplício. Reatualiza um tempo mítico 1 e prepara os católicos, a partir de uma experiência de consternação e contrição, para as celebrações da Semana Santa e a Páscoa do Senhor, ápice das celebrações católicas (ao menos canonicamente). Considerando o forte apego do católico goiano à “Mãe de Deus”, nos propusemos, a partir desta pesquisa, compreender como suas dores são reatualizadas nesta festa, o destaque dado a sua figura e suas dores e o próprio “significado religioso da repetição dos gestos divinos” ( ELIADE, 1992, p. 58).
Este artigo é um relatório parcial do projeto de pesquisa “As opas vermelhas: a Venerável Irmandade do Santíssimo Sacramento de Pirenópolis” 2, uma pesquisa qualitativa interpretativista que objetiva analisar, inventariar e sistematizar as manifestações religiosas católicas pirenopolinas promovidas, mantidas ou participadas pela Irmandade do Santíssimo Sacramento, doravante ISS. Para tanto, foi feita uma pesquisa de campo com observação participante de fenômeno social, no caso a Festa de Passos, entre os dias 06 e 11 de abril de 2017, em Pirenópolis - Goiás, considerando seu caráter tradicional, cultural e religioso para a comunidade que a promove e a considerável participação da ISS em sua organização e realização.
A Festa de Passos, enquanto manifestação cultural religiosa, está diretamente relacionada à comunidade e aos agentes que a mantêm. Comum a diversos lugares, não necessariamente terá a mesma formatação e estruturação de gestos rituais em todos eles. Sobre eles haverá influência de fatores ou preferências locais. A seguir, para uma melhor compreensão de nosso escopo de pesquisa, apresentamos o lugar da festa e o grupo institucional mantenedor.
O Arraial das Minas de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte foi insertado às margens do tênue e sereno rio das Almas, em meio a algumas serras e baixadas das antigas terras dos Guayazes - futura capitania de Goiás -, por volta de 1727, em consequência do processo de desbravamento do sertão goiano por bandeirantes.
Seu marco inicial se deu tendenciosamente a partir da incrustação de um cruzeiro no solo “recém-descoberto” pelo homem branco, europeu (ou no mínimo europeizado) e católico. Ali, às margens do rio das Almas foi rezada a primeira missa em um domingo, 07 de outubro, conforme se acredita na comunidade pirenopolina. O arraial, como tantos outros aglomerados urbanos brasileiros, surgiu à sombra da Santa Cruz e às bênçãos do Deus dos cristãos.
Neste gesto de sacralizar a terra com a inserção do cruzeiro e a partir dele reproduzir os costumes europeus, principalmente portugueses, de culto e veneração aos santos e o exercício do catolicismo, mostra-nos o quanto era necessário aos descendentes dos portugueses (ou os que se julgavam como tais) reafirmarem a suposta identidade que seria capaz de incorporá-los ao reino português e à unidade da Igreja de Roma. Podemos afirmar, portanto, que manter essas práticas, como tantas outras manifestações religiosas, era uma maneira do “europeu” evitar que sua identidade transmutasse e se contaminasse pela cultura e os costumes dos negros da terra, o que inevitavelmente aconteceu.
Nesta luta por expandir o catolicismo e o domínio de El-Rey, desbravar o Brasil, converter almas para o Cristo, ampliar a fé e o ouro dos bolsos e cofres de tantos interessados, com as bênçãos do Rei e da Igreja, diversos homens saíram pelos sertões brasileiros motivados por uma utópica ideia de riqueza e enobrecimento. A partir dessa ação de expansão, comandada por bandeirantes, surgiram diversos arraiais na nomeada terra dos Guayazes. Onde se parava para procurar ouro e se encontrava, ali se erguia um cruzeiro, e um possível arraial.
Para Oliveira (2013, p. 221):
O lugar, inicialmente denominado de Nossa Senhora do Rosário, foi fundado em 1727 por mineradores portugueses que, depois das escaramuças da Guerra dos Emboabas, evitaram os paulistas do arraial de Santana (primeiro nome de Vila Boa). Por estar localizado estrategicamente no caminho para São Paulo e Rio de Janeiro, o pequeno arraial destacou-se, não apenas na mineração, mas também no comércio.
Assim, logo após a “criação da Irmandade do Santíssimo Sacramento, começava, em 1728, a construção da Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário, em torno da qual iriam se concentrar, por séculos, os principais eventos religiosos e festivos da cidade” ( UNES; CAVALCANTE, 2008, p. 40).
Já em março de 1732 a referida Capela, hoje Matriz, foi considerada filial da Matriz de Sant’Ana, atual Cidade de Goiás, conforme se vê no primeiro termo do Livro de Batismos ( JAYME, 1971). Com paredes em taipa de pilão com mais de 10 metros de altura e 1,5 metros de espessura e com seus 50 metros de comprimento por 24 de largura, garantiu por séculos o título de maior igreja de Goiás, além de ser, claro, uma verdadeira fortaleza em caso de ataques de indígenas, embora estes nunca tenham acontecido e a partir do século XVIII o edifício tenha começado a presenciar a conversão de muitos indígenas, como em 15 de setembro de 1775, quando aconteceu o batismo de 34 indígenas da nação Xacriabás, conforme notas do livro de batismo do período.
Ao lado da Matriz ( figura 01), surgiram as primeiras casas e para ela convergiram as primeiras ruas. Paralela a sua construção, foram surgindo diversas confrarias e chegando algumas ordens religiosas que passaram a determinar a ordem social e, consequentemente, a construção de mais igrejas, como a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, erguida em 1743 pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos; a Nossa Senhora da Boa Morte da Lapa, em 1757, pela Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte da Lapa dos Pretos Livres, e outras relacionadas à afinidade e devoção das pessoas a determinado santo, como as igrejas de Nossa Senhora do Carmo e Nosso Senhor do Bonfim, ambas de 1750, além da capela São Francisco das Chagas pelos Esmolares da Terra Santa em 1731; Santa Bárbara, 1803 (no morro de mesmo nome); Sant`Ana do Rio do Peixe por volta de 1760 (no povoado da Capela do Rio do Peixe) e Santo Antônio construída em 1734 no povoado de mesmo nome.
Desse modo, é inegável a forte presença das confrarias, ordens e irmandades na religiosidade popular católica de Pirenópolis, desde seu início. Religiosidade essa, aqui tratada e qualificada como popular, por conta de seu caráter leigo, desvinculado, em partes, do rígido sistema institucional litúrgico e canônico do catolicismo oficial, ainda tridentino e clericalista, e atribuída à ação do homo religiosus, de qual fala Eliade (1992). Para Fogelman (2015, p. 12, tradução nossa), essa mesma “religiosidade popular pode ser entendida como formas expandidas socialmente, na qual participam, sobretudo os setores subalternos”, o que claramente se aplica à colocação que aqui damos a essa categoria, pois, não só no caso de Pirenópolis, mas a nível de Brasil, os setores subalternos se encarregaram de manter e fomentar as tradições católicas no tempo em que o número reduzido de padres, as raras dioceses, os poucos bispos e as extensas paróquias, cujas sedes eram distantes das capelas filiais, comprometiam a manutenção do catolicismo oficial.
É essa religiosidade popular, repassada de geração em geração, como uma herança simbólica, religiosa e afetiva, que motiva e mantém vivas as manifestações religiosas pirenopolinas, como: a festa de Nossa Senhora do Rosário (padroeira), Divino Espírito Santo (que em 2017 completa 199 anos), Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, comemorada junto à Festa do Divino, São Benedito, inúmeras procissões, folias, etc., em especial a Festa de Passos.
A partir de 1890, Meia Ponte tornou-se Pirenópolis, e hoje é um dos mais acorridos centros turísticos do Estado de Goiás, o que se deve dentre vários fatores à
Construção de Brasília nas suas proximidades. A cidade foi interligada por rodovias modernas a Brasília e às principais cidades goianas próximas. [...] A partir dos anos 1980, membros de comunidades alternativas escolheram Pirenópolis como local de moradia. Enfim, nas duas últimas décadas do século XX, a afluência de novas pessoas, trazendo novas ideias, novos comportamentos e muito dinheiro coloca Pirenópolis - ainda pequenina - entre as cidades de maior destaque cultural de Goiás. ( OLIVEIRA, 2013, p. 222).
Destaque esse que se respalda no centro histórico preservado, na ecologia e suas belezas, como as cachoeiras, as áreas de cerrado, as serras - principalmente os Picos dos Pireneus - e o patrimônio cultural imaterial significativo, aglutinador de um acervo considerável de manifestações culturais e populares, como as cavalhadas, as inúmeras folias, os cantos em latim cantados nas procissões e missas, os dizeres, saberes e ofícios, as inúmeras festas religiosas.
As primeiras irmandades religiosas brasileiras foram trazidas pelos portugueses e tiveram sua origem ainda na Idade Média, com as confrarias e as Irmandades de Misericórdia. Essas ditas Irmandades de Misericórdia eram compostas pela elite do medievo e visavam fazer práticas de caridade para atenuar, temporalmente, a fome ou a pobreza dos miseráveis. Posteriormente, com o crescente aumento do número de pobres, mendigos e famintos, as Irmandades se reconfiguraram e adquiriram uma nova roupagem, pois perceberam que não conseguiriam manter a mesma conjuntura de trabalho. Passaram, então, a ser uma confraria ou organização religiosa composta por pessoas com ideais e afinidades semelhantes no culto de um mesmo orago. Tendo como base,
[...] a solidariedade e a sociabilidade, criando uma matriz de autoajuda e assistência que se desdobraria, assumindo características próprias de acordo com o contexto histórico das regiões em que cada uma delas se fixou. ( PONTES, 2008, p.07)
Nesse contexto, diversas Irmandades, Ordens Terceiras e Confrarias Religiosas assumiram o papel delineador da ordem social no ocidente cristão e no caso da capitania de Goyaz, nos séculos XVIII à XIX, ditavam a regra, o modo de ser e viver e as relações sociais entre as pessoas. Não é à toa que existiam irmandades de homens, de negros, de brancos, de sapateiros, alfaiates, etc. Dentre as principais Irmandades, a do Santíssimo Sacramento era a que se destacava mais, pois tinha como incumbência zelar pela guarda do Santíssimo. Tornava-se a Irmandade das elites, responsável pela construção e manutenção das igrejas matrizes, único local onde poderiam ser erigidas.
Moraes (2014), em sua pesquisa pioneira acerca das irmandades em Goiás, entre os séculos XVIII e XIX, pontua que as irmandades (Santíssimo Sacramento, São Benedito, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, São Miguel e Almas, Nossa Senhora da Boa Morte, Nossa Senhora da Lapa e outras) eram instituições bem organizadas, compostas por pessoas de diversas esferas da sociedade que tinham algumas afinidades, principalmente em relação ao culto a determinado orago, e, por isso, devido o status de “irmãos” que possuíam, gozavam de prestígio e poder na sociedade goiana. Exemplificando, cita a grande contribuição da Irmandade de São Miguel e Almas para o desenvolvimento do arraial de Bonfim (atualmente Silvânia) e da própria Irmandade do Santíssimo Sacramento para a freguesia de Pirenópolis ( figura 02), entre outras.
A proibição da entrada de ordens religiosas em regiões auríferas objetivava controlar o contrabando e reservar para a Coroa todos os benefícios advindos da extração do ouro, diamantes e demais pedras preciosas. Assim, enquanto o clero regular 3 era afastado das fontes de riquezas, o diocesano se projetava nas freguesias goianas como os defensores de El Rey. Se até os sacerdotes eram controlados, quem dirá os leigos. A partir do mesmo período, as confrarias ficaram subordinadas à jurisdição eclesiástica e temporal. Os Compromissos (estatuto), mistos, eram aprovados pelas autoridades civis e religiosas. Às vezes enviados a Lisboa, recebiam aprovação da Mesa de Consciência e Ordens, criada em 1532, para controlar e fiscalizar as anuidades cobradas, os bens e os livros internos, a ereção e a construção de templos, como a Matriz de Nossa Senhora do Rosário construída pela Irmandade do Santíssimo em Pirenópolis.
A Irmandade do Santíssimo Sacramento, da Freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Meya Ponte, foi instituída em 1728 por Dom Frei Antônio de Guadalupe OFM, Bispo de São Sebastião do Rio de Janeiro. Segundo o que se afirma na cidade, ela deu origem às primeiras práticas católicas do arraial e, no mesmo ano de sua criação, iniciou a construção da matriz para sediá-la. Concentrando riqueza e poder, ditou as normas religiosas pirenopolinas até o final do século XX. Dela fizeram parte grandes vultos da história goiana, conforme documentos de seu arquivo, um dos maiores subsídios para pesquisas acerca do catolicismo goiano, cujos registros se dão a partir de 1757.
Devido a sua representatividade, em 29 de fevereiro de 1896, Dom Duarte Silveira, Bispo de Goiás, expediu uma provisão designando-a fabriqueira da Igreja Matriz e da Paróquia, oficializando o que já tinha sido feito na prática.
Nos dias atuais, a Irmandade continua atuante e influente nas atividades da paróquia, sobretudo na Festa do Divino, sendo uma das responsáveis pelo pedido de seu registro como patrimônio cultural imaterial nacional, sorteando mais de 170 imperadores em suas 199 edições. Logo, é um motivo de orgulho e alegria para os pirenopolinos católicos.
A Quaresma é um tempo litúrgico celebrado anualmente pela Igreja Católica, entre a Quarta-feira de Cinzas e o Sábado Santo ou Sábado de Aleluia. Sua demarcação temporal exclui do cômputo total de quarenta dias de penitência todos os domingos do período, pois a Igreja não os considera como dias de caráter penitencial. Durante sua realização, os católicos dedicam-se à meditação dos últimos momentos de vida de Jesus Cristo, de sua Paixão e das dores de Maria, sua mãe, com missas, vias-sacras, terços, encenações, procissões e outras atividades religiosas, que terão como ápice a Semana Santa, realizada entre o Domingo de Ramos e o Sábado Santo. Para dela participar, “fiéis, padres e imagens de santos saem do interior da igreja para atuarem em conjunto com outras pessoas, na rua” ( PEREIRA, 2014, p. 14), em uma forte e intensa procura pela reatualização de um tempo mítico, in illo tempore. Reatualização que, baseando-nos nas discussões de Eliade (1992), interpretamos como a atuação ou a intervenção do homo religiosus para memorar, recuperar, reviver, reativar e reconectar-se a um mito, um elemento fundante e central de suas crenças, a partir de ritos ou gestos rituais específicos.
Embora o calendário institucional regule a quaresma e suas atividades, ele não será interpretado do mesmo modo por um homo religiosus e um homem não religioso. Para este último, em muitos momentos, esse calendário será apenas regulador da vida social com feriados e dias comerciais, enquanto para o primeiro, será o demarcador do início de atividades de devoção e ciclos sagrados, logo, os dias lhe figurarão como diferentes, santificados. Para este, “a duração temporal profana pode ser ‘parada’ periodicamente pela inserção, por meio de ritos, de um tempo sagrado, não histórico” ( ELIADE, 1992, p. 39) e
De maneira simplificada pode-se dizer que o rito é a práxis do mito. É o mito em ação. Enquanto o mito rememora, o rito comemora. O rito abole o tempo profano, cronológico, é linear e, por isso mesmo, irreversível. Os limites entre o sagrado e o profano, entre o rito religioso e a festa estão muito próximos. ( MARCHI, 2005, p. 48)
Assim, a quaresma e seus ritos, tornam-se para o homo religiosus cristão um tempo de sublimação da alma e conexão com os céus, a partir da preparação para um tempo particular de contato próximo e íntimo com o divino, o arrependimento dos pecados e, sobretudo, a devoção às dores do Cordeiro de Deus, Jesus Cristo, e igualmente de sua Mãe das Dores.
Nesse sentido, a Festa de Passos, além de ser um tempo religioso inserido entre os dois dias finais da Semana das Dores e os dois dias iniciais da Semana Santa, proporciona aos católicos um retorno periódico, anual, às mesmas situações primordiais e à reatualização do tempo sagrado na recordação dessas dores em ritos específicos, conservados e mantidos pelos pirenopolinos há anos. Ela poderá contar com a participação de um grande número de pessoas, dentre as quais leigos católicos, padres, seminaristas, religiosos, membros de irmandades, turistas, curiosos e pesquisadores. Alguns poderão dela participar apenas para conhecer a manifestação “folclórica” daquele povo e tentar compreender quais são os fundamentos que ainda o mantém atrelado a um universo cósmico, sagrado e arcaico, em pleno século XXI; outros porque souberam de sua realização por meio de uma conversa com alguém em alguma loja, bar ou pousada; ainda haverá aqueles que dela participarão porque estando distantes de suas paróquias se sentirão unidos a elas, a Deus e cumprirão com suas obrigações litúrgicas participando das atividades religiosas pirenopolinas.
A Festa de Passos terá sentidos diferentes para aqueles que dela participam. Para o católico pirenopolino, terá o sentido de um tempo sagrado, santificado, em que Cristo e Maria retornam à vida, principalmente a partir da veneração de suas imagens. Elas muito mais do que obras artísticas, feitas de materiais perecíveis, tornam-se, portanto, personificação, presentificação (CHAVES, 2009), humanização, pessoalização, sacralização e animação do próprio sagrado ( PEREIRA, 2014).
Durante esse tempo, céu e terra estarão mais próximos. Os gemidos, as dores, os sofrimentos das divindades poderão ser sentidos. E serão sentidos, pois a compunção e a consternação tomarão conta dos corações. Apenas o homo religiosus será capaz de viver essas experiências em sua totalidade, como se estivesse, ele mesmo, há dois milênios atrás, caminhando pelas ruas de Jerusalém com Jesus e Maria.
A sexta-feira 4 tem um sentido especial para o católico por se tratar de um dia convidativo à consternação, interiorização e a meditação da paixão de Jesus Cristo em expiação pelos nossos pecados e os do mundo inteiro 5. No decorrer do tempo litúrgico, dedica-se ao seu dia a reza do terço a partir da contemplação dos mistérios dolorosos, que, a cada dez ave-marias e um pai-nosso, apresentam uma passagem dos derradeiros sofrimentos de Cristo.
Na quaresma, tempo de particular devoção ao sofrimento de Cristo e Maria, ela ganha uma tônica maior. Passa a significar para a comunidade o demarcador da antecipação e da preparação para uma sexta-feira maior, a chamada Sexta-feira Santa, dia que rememorará e reatualizará a morte do Messias. Por isso, são realizadas orações para purificação, contrição e arrependimento dos pecados, procissões, meditações da via sacra, das sete dores de Maria e rezadas missas em intenções diversas. É em uma dessas sextas-feiras, especificamente a penúltima, chamada SextaFeira das Dores, que se inicia a Festa de Passos em Pirenópolis.
Os preparativos para as solenidades se iniciam conforme a atuação de cada agente. Para os membros do Coro, ela tem início com os ensaios dos motetos 6; para muitos fiéis, com o primeiro dia do Setenário 7 das Dores, e não propriamente com o primeiro dia da Festa de Passos e para as zeladoras (mulheres da comunidade que se encarregam de vestir Nossa Senhora das Dores) com a preparação e a escolha de vestidos, mantos, peruca, resplendor, sapatos e qualquer tipo de aparato indispensável à composição da imagem, pois o “seu corpo não é um mero objeto, pronto a ser contemplado, mas sim um elemento a ser revestido e finalizado” ( PEREIRA, 2014, p. 38).
A imagem de roca ( figura 3) é uma imagem em estilo barroco e remonta ao século XIX. Sua altura se equipara à de uma mulher de estatura mediana. Embora tenha olhos de vidro, braços, mãos, pés e rosto entalhados em madeira e pintados, necessita de outras peças para concluir sua composição, como qualquer outra imagem do estilo, pois no lugar do corpo que ficaria encoberto pelas vestes há uma armação de madeira, que precisa ser escondida, e não existe um entalhe de seus cabelos. Pereira (2014), em seu estudo sobre a composição das imagens sacras na Semana Santa de Ouro Preto e a teatralização da religião nesse recorte, afirma que esse tipo de imagem por demandar um tipo particular de manutenção e montagem se realiza através do trabalho de diferentes pessoas. Em suma,
Nessas imagens, é pelo resultado final da junção de uma armação de madeira, com partes do corpo talhadas e as vestimentas que as imagens adquirem uma proporção física análoga à do corpo humano. Além disso, a utilização de olhos de vidro e de perucas feitas com cabelos naturais intensificam a produção de um efeito de semelhança em relação ao corpo de uma pessoa. Esses elementos externos, aliás, tornam possível a inferência de que sob as roupas usadas pela imagem haja um corpo - ainda que não se saiba como ele é composto. (idem, p. 30)
Destarte, as zeladoras escolhem e colocam na imagem suas melhores roupas, não sem antes prepará-las, lavando-as, passando-as e, quando for o caso, até mesmo costurando ou confeccionando novas peças. Os cabelos da peruca, pacientemente penteados e modelados, adquirem os melhores cachos. O manto azul celeste delicadamente colocado sobre sua cabeça é preso por um resplendor de prata. Sobre seu coração é encravada uma espada de prata com as iniciais da letra do hino cantada pelos fieis “sua alma enternecida, gemia transpassada, da penetrante dor, da aguda espada”, assim é completada sua preparação e composição. Tudo feito com uma forte aura de piedade, como se fosse vestida a própria Maria para o encontro doloroso com o filho agonizante, in illo tempore. Para algumas das zeladoras, talvez não houvessem dúvidas de que estivessem fazendo isso. A imagem, nesse caso, já não é mais uma imagem. É a própria Senhora que se faz efetivamente presente ali. Pois, manifestando o sagrado, a estátua torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ela mesma, não havendo mais
[...] distâncias entre a forma e o conteúdo veiculado, entre o ato de simbolizar o que é simbolizado. Pensados por alguns como constituído internamente de duas partes, por outros como veículos privilegiados de acesso, o símbolo, para os devotos, é eficaz já que nele, “ser” e “parecer”, significado e significante estão fundidos. A imagem, percebida como a presentificação da coisa, é para ser adorada, venerada mais do que explicada. (CHAVES, 2009, p. 224)
Então, “o símbolo, nessa perspectiva, não se refere, sendo um meio de acesso, e, sim, traz em si, presente, sua significação. Entre a aparência sensória e a ideia, a relação não é de analogia, e sim de co-presença, fusão e identificação”. (idem, p. 225). Ao cair da noite da sexta-feira das Dores, a Senhora das Dores já estava pronta e posta no seu andor, aguardando a repetição do rito anual de sua procissão e a retomada do tempo mítico de outrora, em que caminhara pelas ruas de Jerusalém a procura de seu filho Jesus. Houve uma época em que os sinos demarcavam o início do ritual, convidando a população para as atividades religiosas, o que não pudemos observar neste ano, pois os sinos da Matriz estavam rachados.
Na igreja, algumas pessoas (um senhor idoso, algumas senhoras e um rapaz) se aproximaram do andor, em momentos diferentes, e ficaram postos em frente à santa, conversando com ela, como se fosse capaz de ouvi-los e atendê-los. Naquela ocasião, essa imagem-símbolo, criava-lhes a realidade (realizava) daquilo que simbolizava. (CHAVES, 2009)
Embora no altar-mor, logo atrás do andor que estava sobre os primeiros bancos da igreja, houvesse uma imagem da mesma Virgem, porém com o título de Senhora do Rosário, olhavam e veneravam a Senhora das Dores. Era com ela que os devotos conversavam e a ela clamavam. Alguns se emocionavam. Choravam. Unidos às dores da Senhora rememoravam e apresentavam suas próprias dores. Também havia os indiferentes, sentados em seus lugares, preocupados em conversar uns com os outros e em lidar com seus próprios pensamentos. Por fim, ainda tinham aqueles preocupados em tirar algumas fotos, para congelar aquele momento junto à virgem Mãe de Deus. Um dos poucos em que ela descia não dos céus, mas do altar lateral, e se dignava a ficar mais próxima aos homens, caminhar com eles, ser carregada por eles, sobre seus ombros. Aliás, esta última questão gerou certo descontentamento na comunidade. “Era costume dos antigos”, expressão auferida por nós durante a procissão, as mulheres carregarem o andor de Nossa Senhora das Dores durante as procissões da Festa de Passos, entretanto isso não foi possível na edição de 2017. O pároco decidiu encaixotar a santa em uma proteção de acrílico, para evitar que se molhasse no caso de uma possível chuva. No ano anterior, mesmo ele sendo orientado a não sair com a imagem na Procissão do Enterro, devido à proximidade de um forte temporal, assim o fez. Choveu. E houve danos irreparáveis a esta peça e algumas outras.
O andor, então, parece ter ficado muito pesado. Os irmãos do Santíssimo Sacramento precisaram levá-lo durante todo o trajeto.
Algumas pessoas entravam na igreja e perguntavam por que Nossa Senhora estava encaixotada, ou até mesmo “dentro de um aquário”. O murmúrio continuou forte até mesmo durante a procissão. Enquanto alguns rezavam, um grupo de mulheres do Apostolado da Oração reclamava por não poder carregar o andor “pela primeira vez na vida” e que “aquela era a única vez do ano em que a Irmandade deixava elas [mulheres] carregarem o andor”.
O padre deve ter percebido ou pressentido o desconforto gerado, pois ao final da missa justificou o motivo da proteção de acrílico, conclamou os fiéis a preservarem os bens da comunidade e afirmou que quem quisesse beijar ou tocar a santa, poderia fazê-lo simbolicamente, tocando uma fita de cetim passada especialmente para isso ao redor da proteção de vidro.
Essa não foi a primeira vez que houve desconforto entre o clero e os leigos durante a procissão das Dores. Em 2014, o pároco anterior resolveu colocar um trio elétrico na procissão, o que causou grande revolta em todos e a não repetição do feito. Nossa Senhora das Dores foi carregada triunfalmente em procissão, passando pela Rua da Direita, Travessa Santa Cruz, Largo de Santa Cruz, Rua Nova e o Largo da Matriz. A procissão começou e terminou na Matriz Nossa Senhora do Rosário, já que é no seu interior sagrado que o mundo profano é transcendido ( ELIADE, 1992, p. 19).
As pessoas, todas, dispostas em duas grandes filas, acompanhavam o andor. Alguns rezavam, com velas acesas nas mãos. Outros silenciosos caminhavam cabisbaixos, como se sentissem a dor da Virgem Maria, que estava à frente de todos, conduzida pelos irmãos do Santíssimo Sacramento, que formavam uma ala de cada lado do andor e tinha adiante as jovens Filhas de Maria, os Ministros Extraordinários da Comunhão Eucarística, doravante MECE, o padre, ladeados pela fila dos leigos e pelos membros do Apostolado da Oração. Olhares compungidos e piedosos pareciam encorajar Maria a prosseguir seu trajeto. Um clima de soturnidade e consternação pairava sobre as preces e a própria expressão facial das pessoas.
Outro constrangimento observado, também relacionado ao clero local, foi a interferência visual no aspecto como tradicionalmente são realizadas as procissões tradicionais. Em Pirenópolis, assim como em muitas cidades do período colonial, existem duas procissões em uma, sendo uma formada pelos leigos, e que segue rente ao meio fio das ruas, formando as filas, e outra, no meio da rua, formando a ala da confraria/irmandade que carrega a imagem venerada. Na edição de 2017, o clero local impôs a todos os MECE que servissem na procissão paramentados com seus jalecos, mesmo aqueles que também fizessem parte do Apostolado da Oração ou da ISS. Assim, houve um tumulto no meio da procissão, enfraquecendo as tradicionais entidades promotoras do evento.
Em momentos específicos, o andor para defronte algumas casas onde há os Passos 9, sendo ali entoados os Motetos das Dores pelo Coral Nossa Senhora do Rosário e a Orquestra da Banda Phoenix. Retratavam, todos, em latim, as dores da Santíssima Virgem. À sua entoação, a consternação tomava conta ainda mais do ambiente, como se a própria Virgem estivesse ali, parada, prostrada, tomando um fôlego para continuar a procura por seu filho Jesus.
Entre um moteto e outro, era executada pelo Coro e alternada pelos fiéis a Ave-Maria do Setenário, enquanto se caminhava em procissão. Às vezes eram interrompidos pelo padre que centralizava a animação da procissão, a reza do terço e entoação dos cânticos (que substituíram há muito tempo as marchas fúnebres). Embora houvesse um coral, o padre concentrou para si toda a atenção.
Nas casas havia pouca ornamentação. Pouca, se considerarmos que em anos anteriores houve um número maior deles no percurso da procissão, com toalhas estendidas nas janelas, velas acesas e arranjos de flores. Parece que o pirenopolino tem deixado morrer essa tradição ou tem se preocupado mais em fazer outras coisas do que enfeitar a porta de sua casa para saudar uma imagem barroca.
Embora esse não seja nosso objeto de estudo e não nos propomos a aprofundar essa discussão, podemos levantar como hipóteses que a paróquia não tem dado devidas atenções e orientações sobre este costume; o número de conversões ao protestantismo ainda é crescente e após uma conversão o outrora fiel católico renega suas tradições e costumes; muitas residências da rua da Direita têm se tornado pontos de comércio, e a morte dos moradores antigos, octogenários, septuagenários, frutos de uma sociedade majoritariamente católica e tradicional, imunes às rupturas religiosas, sepulta consigo uma tradição familiar e religiosa, posto que, para os mais novos, que ficam, talvez tais celebrações não tenham o mesmo sentido.
Fato este observamos quando uma senhora elogiou a proprietária de uma residência, na Rua da Direita, por manter a tradição de montar o altar para Nossa Senhora das Dores, mesmo após a morte da matriarca e dona da casa. A filha da falecida justificou que assim havia feito por se tratar de um pedido da mãe no leito de morte e que ela havia até lhe indicado usar toalha “azul e branca que é a cor de Nossa Senhora das Dores”. Já ela, a filha, fazia isso para honrar a memória da mãe e cumprir com o que havia lhe prometido.
Terminada a procissão de Nossa Senhora das Dores, houve uma missa na matriz ( figura 3), cuja homilia se vinculou necessariamente ao sofrimento de Maria e suas dores. Nesta missa houve uma participação muito menor do que na procissão. Muitos foram embora. Acompanharam a santa até o limiar do largo da matriz e não entraram na igreja para ouvir o sermão. Para estes, o que acontecia ali não era a reatualização das dores de Maria, era apenas uma manifestação cultural de um povo ainda apegado às suas tradições e costumes arcaicos. Uma encenação. Talvez não ficaram para a missa por considerá-la, de fato, o evento religioso daquela noite.
No domingo seguinte à Sexta-feira das Dores, a liturgia da Igreja celebra o Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor, que em Pirenópolis é conhecido também como o Domingo do Encontro. É o ápice da reatualização das dores de Maria. É o dia em que se celebra seu encontro com Jesus a caminho do calvário. “É a reatualização de um acontecimento primordial, de uma ‘história sagrada’” ( ELIADE, 1992, p. 54), cujos atores principais são eles: a Mãe e o Filho. A procissão com a imagem dos Passos saiu da Igreja do Carmo, passando pela Avenida Beira Rio e a Rua do Rosário, com destino ao local do Encontro (na rua da Direita), percorrendo neste percurso os Passos onde são entoados Motetos de Passos. As duas, outrora residenciais e agora predominantemente comerciais, condicionaram um claro e aparente confronto de realidades entre o homem religioso e o homem não religioso. Enquanto os católicos seguiam o santo, restabelecendo o tempo de origem, nas calçadas, dentro das áreas de comércio, alguns comiam, bebiam, riam, outros se silenciavam, abaixavam a cabeça em sinal de respeito, ao menos até o andor passar. Assim, entendemos que, para o homo religiosus há duas espécies de tempo: o sagrado e o profano. Naquela ocasião ele era determinadamente sagrado. In illo tempore. Para o outro, há talvez um único tempo, o profano, embora seja
[...] preciso acrescentar que uma tal existência profana jamais se encontra no estado puro. Seja qual for o grau de dessacralização do inundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso. ( ELIADE, 1992, p. 18)
A procissão começou em diferentes lugares para homens e mulheres, conforme o antigo costume da comunidade pirenopolina.
Os homens saíram da Igreja Nossa Senhora do Carmo, no Largo do Carmo, acompanhando a imagem de Nosso Senhor dos Passos ( figura 03) e as mulheres da Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário acompanhando a imagem de Nossa Senhora das Dores, o que não se efetivou para vias de fato. Havia pessoas de um sexo e outro em ambos os grupos.
O Senhor dos Passos, de aspecto consternado, sofrido, entristecido e soturno, tinha à sua frente o guião, uma grande bandeira antigamente carregada pela Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos. Nela se lê as iniciais S.P.Q.R (Senatus Populesque Romanus) que em latim significa “o Senado e o povo de Roma”, em alusão ao império Romano, pelo qual Ele foi crucificado. Agora esse distintivo é carregado pelos Irmãos do Santíssimo Sacramento.
A imagem dos Passos não era mais uma imagem. Era o Senhor dos Passos. Se perguntássemos para algum devoto, certamente diria logo que era “Nosso Sinhô”, “Jesus”. Pirenópolis, naquele momento, não era mais Pirenópolis, era a nova Jerusalém. Suas ruas reconfiguraram-se, transformaram-se nas ruas de outrora, há dois mil anos. Ali, revivia-se um tempo mítico. Recordava-se um elemento fundante. O Sagrado estava próximo. Fácil. Passível de ser tocado. Ao menos para aqueles que nele acreditassem.
Poucos e contidos altares saudaram a procissão. Na Rua do Rosário (também chamada de Rua do Lazer) havia um único altar, preparado na porta de uma lanchonete, onde se entoou o primeiro moteto dos Passos. Como na Sexta-feira das Dores, podemos perceber um decréscimo no costume pirenopolino de usar manjerona, flores, velas, toalhas e altares para saudar as procissões religiosas.
Maria, conduzida também pelos irmãos do Santíssimo, acompanhada por crianças vestidas de anjos ( figura 04), ministras extraordinárias da Sagrada Comunhão Eucarística, filhas de Maria, mulheres do Apostolado da Oração e muita gente, vestida com a mesma roupa da Sexta-feira das Dores, continuava procurando seu filho. Entristecida, dilacerada. Os olhares, as preces, os cantos, a solidariedade e o cuidado do povo encorajavam-na, consolavam-na.
Embora o centro devesse ser Cristo, o sofredor, o verdadeiro padecente, muito dos cantos e dos gestos rituais se voltara para ela. Reatualizava-se sim as dores de Jesus, mas não se deixava reatualizar também as suas. Pois Mãe e Filho estavam imbricados naquele tempo mítico. Unidos pela dor.
Na rua da Direita, no local de costume, houve a reatualização do encontro entre Jesus e Maria. Meditou-se sobre as dores de ambos. E Maria teve igual destaque na veneração e na meditação a que o padre se propôs. Os andores colocados frente a frente, um do outro, permitiram a reatualização, a rememoração daquele encontro entre Mãe e Filho, conforme a narrativa evangélica.
O silêncio, a soturnidade e a consternação, maiores do que na Sexta-feira das Dores, pareciam dimensionar aquele encontro como real. As pessoas, os devotos, já não viam apenas duas estátuas de roca. Viam algo além, visível e compreensível apenas para os que, àquele círculo religioso, se amalgamavam e transcendiam a própria humanidade. Ali, naquelas terras cerratenses, reviveu-se um tempo passado no Oriente Médio há dois mil anos. Lágrimas, joelhos dobrados no chão, pessoas abraçadas, provavam isso. Mostravam solidariedade. Mostravam cumplicidade.
Após o Encontro, o Coral Nossa Senhora do Rosário e a Orquestra da Banda Phoenix entoaram O vos Omnes, o Moteto do Encontro, ensaiado e preparado há tempos para aquele momento ( figura 05). O padre proferiu o célebre sermão das sete palavras. Aos hinos, murmúrios de orações e os gestos rituais, somavam-se os flashes de câmeras e celulares. Até na reatualização do sagrado a tecnologia se faz presente. Registra. Conecta. Expande. Divulga.
Daquele ponto em diante, os andores foram carregados lado a lado, pertinho um do outro, como se Mãe e Filho estivessem caminhando juntos, cúmplices, comiserados e unidos pelas ruas de Jerusalém-Pirenópolis. Havia, ali, naquela esfera, naqueles gestos divinos repetidos. Os sofrimentos de Jesus eram reatualizados. Não podemos negar. Mas as dores de Maria também o eram.
A procissão seguiu o trajeto passando pela Travessa Santa Cruz, Largo da Santa Cruz, Rua Nova, Largo da Matriz e encerrou-se na porta da igreja. As imagens foram guardadas em seu interior. Durante certo tempo, receberam as preces, os préstimos e as condolências dos devotos. Guardadas ficarão até o ano seguinte, quando tudo será recuperado, refeito, em um movimento cíclico de reatualização daquele tempo mítico.
A festa de Passos é a reatualização de um tempo mítico, in illo tempore, nas palavras de Eliade (1992), e como tal rememora um tempo sagrado em que um evento mítico, fundante ocorreu. Desse modo, compreendemos que participar religiosamente dessa festa resulta na ruptura com uma “duração temporal ‘ordinária’ e a reintegração no tempo mítico reatualizado pela própria festa” (idem, p. 38). Assim, mantida e fomentada por uma comunidade goiana, vincula-se à sua identidade, ao seu imaginário e à sua própria concepção de si mesmo enquanto persona religiosa.
Percebemos que, embora essa reatualização tivesse como protagonista a figura de Jesus Cristo, Maria ocupou um papel de destaque, ao seu lado, e teve tanta visibilidade como ele próprio.
As dores, os sofrimentos de ambos pareciam não ter significado se reatualizados separadamente. Assim, os gestos divinos de Cristo, bem como sua história e a memória que dele (para ele) fazem, recaem diretamente sobre a figura feminina e materna de Maria.
Logo, esta pesquisa merece ser ainda mais aprofundada, no sentido de tentar compreender de um modo mais amplo como as dores de Cristo são reatualizadas nas atividades religiosas da Semana Santa de Pirenópolis e o significado disso para aqueles que as mantêm, promovem e delas participam.