Resumo: O presente texto visa discutir a relação entre a ciência e a religião a partir de dois regimes de verdade construídos pela sociedade moderna e a distinção entre as coisas de deus e as coisas dos homens sem com isso adentrar nas discussões acerca das teorias da secularização. Sobretudo, o que se busca é pensar numa nova epistemologia e modo de pensar o social que escapa das amarras das ciências sociais e das teorias da secularização em prol de uma nova perspectiva de análise e modos de interpretar a realidade.
Palavras-chave: Ciência, Religião, Regimes de Verdade, Refundação do Social.
Abstract: The present paper aims discusses the relation between science and religion by the optica of two regimes of truth constructed by modern society. Also seeks to discuss the distinction between the things of God and the things of men without delibarate about secularization theories. Most of all, what is sought is to think a new epistemology and way of thinking the social that escapes the bonds of social sciences and secularization theories in favor of a new analysis perspective and ways to interpret the reality.
Key-words: Science, Religion, Regimes of Truth, Refoundation of Social.
Article
CIÊNCIA E RELIGIÃO: POR UMA EPISTEMOLOGIA DO SOCIAL A PARTIR DO BÓSON DE HIGGS
SCIENCE AND RELIGION: TOWARDS AN EPISTEMOLOGY OF THE SOCIAL FROM THE HIGGS BOSON
O que “deus” e o “elétron” têm em comum? Essa é uma pergunta, até certo ponto, bastante singular e que coloca em xeque todo um modo de vida fundado na separação entre as coisas de deus e as coisas dos homens. Movimento esse que separa o secular do não secular, que laiciza o Estado e a Justiça, mas também funda todo um modo de vida baseado em dois paradigmas bastante diversos.
Um secular, fundado na ciência e na existência do elétron, outro, não secular, fundado na religião e na existência de deus. Um secular que disciplina corpos ( FOUCAULT, 2000; 1999; 1997; 1996; BOURDIEU, 1999), reproduz modos, estilos de vida e práticas culturais ( BOURDIEU, 2007; 2003; 1964). Outro não secular, pautado na fé e em determinados preceitos morais que operam distinções entre o bem e o mal, o certo e o errado, o que é ético e o que se pode ou não fazer ( ROUSSEAU, 1995; 1978a; 1978b, KANT, 2007; 1999).
Neste sentido, apesar dos esforços da ciência moderna em separar as coisas dos homens das coisas de deus a partir da distinção entre ciência e fé, onde a primeira pautada na experimentação produz verdades e, a segunda, a partir da crença em determinados dogmas, tem-se que aos poucos essa relação vai sendo colocada em xeque tanto pela linguística quanto pela filosofia e não por aqueles que se ocupam das diferentes teses acerca da secularização/dessecularização do mundo.
No âmbito da linguística, tal desconstrução se opera em termos discursivos a partir da observação de que as categorias deus e elétron, do ponto de vista linguístico e da produção do discurso, ocupam o mesmo lugar semântico de modo que, apesar de não termos nenhum registro da existência de deus - a exceção dos escritos canônicos - e, também da existência do elétron - a exceção dos artigos científicos que apontam a existência de uma partícula de carga negativa que, teoricamente, se encontraria numa dada camada spin 1, mas que pode ou não estar ali - tem-se então que, dois mundos e modos de vida bastante diversos são construídos.
Um que ao apertar o disjuntor de uma simples tomada de luz de um laboratório, a partir da crença na ciência moderna e na existência do elétron, faz iluminar-se toda uma casa, um bairro, uma cidade e leva a construção de todo um modo de vida pautado no uso da eletricidade, a qual derivaria, em tese, do movimento de troca de camadas spins que os elétrons realizam quando estimulados com vistas a manter a carga atômica do átomo equilibrada. Outro, que ao apertar o disjuntor de uma simples tomada de luz de uma igreja e a partir da crença na existência de deus - e em seu desejo de ter a luz acesa e na vontade divina que isso aconteça - faz com que todo o templo se ilumine, sem com isso considerar o preceito e a crença na existência do elétron, por exemplo.
Em função disso, tem-se que em ambos os casos estamos nos referindo a dois regimes de verdade que, em princípio parecem diversos, mas que, a partir de caminhos distintos, convergem para um mesmo ponto, qual seja, de que “a luz irá acender”. O primeiro a partir de sua fé na ciência e em autores e experimentos por esta desenvolvidos que implicam em um regime de verdade que pressupõe a existência do elétron e que deste modo explica o mundo. O segundo, que explica o mundo a partir de um outro regime de verdade, esse dogmático, ligado ao desejo e a vontade de um ser superior de que isso aconteça e que, pelo caminho inverso ao primeiro, explica o mundo a partir da imanência e da presença de deus.
Já no âmbito da filosofia, tal movimento se dá a partir da retomada de conceitos e categorias de pensamento comuns ao campo do sagrado (da religião) e que servem para operar e pautar um modo de vida baseado na bondade, na ética e na preservação da pessoa humana que são trazidos para o seio dos debates filosóficos e passam a ser pensados a partir da relação dos homens com os homens e destes com a sociedade, cujo maior exemplo, talvez, resida na discussão levantada por Aristóteles ( 1984) em seu livro “Ética a Nicômaco” onde este expõe sua concepção teleológica e eudaimonista de racionalidade prática, sua concepção da virtude como mediania e suas considerações acerca do papel do hábito e da prudência. Preceitos esses que, grosso modo, orientam tanto aqueles que no interior da ciência moderna fundam um mundo baseado na existência do elétron quanto aqueles que no âmbito da teologia fundam um mundo regido pela existência e a vontade divina.
Para Aristóteles, toda racionalidade prática é teleológica. Ou seja, ela está sempre orientada para um fim ou um bem ( ARISTÓTELES, 1984). E, deste modo, tem-se que aquilo que se faz já esta contido em potência naquilo que o ser planeja e quer fazer ( ARISTÓTELES, 2002). Contudo, há regramentos - do se pode ou não fazer, de que modo e como se deve agir - que são dados a priori através da ética que deve estar sempre orientada para uma finalidade suprema (o summum bonum), que preside e justifica todas as demais.
Essa finalidade suprema é a felicidade ( eudaimonia), que não consiste nem nos prazeres, nem nas riquezas, nem nas honras, mas numa vida virtuosa. Essa virtude por sua vez, será encontrada - usando os termos do próprio autor - no justo meio entre os extremos por aquele que, educado pelo hábito e pelo exercício, é dotado de prudência ( phronesis).
Contudo, é importante deixarmos claro que a ideia de virtude utilizada por Aristóteles em sua obra é aquela comum na Grécia Antiga e que, pouco ou nada tem em comum com o atual modo como a ideia de virtude é interpretada em nossos dias a partir do cristianismo. Desta feita, tem-se que, aqui, parte-se de uma noção de virtude que tem o sentido da excelência de cada ação, de fazer bem feito, na justa medida, de cada pequeno ato. E aqui, também, a noção de bem e mal, utilizada por Aristóteles deve ser matizada e cotejada, afastando-a da atual que também se encontra eivada pelo cristianismo uma vez que, para o filósofo grego, a noção de bem está muito mais próxima de algo que se pode possuir do que de um valor, uma vez que, como escreve Malinoski e Silva (2006: 2):
Aristóteles apresenta uma hierarquia de bens, na qual ele divide os bens em: bens relativos e intrínsecos ao homem. Os relativos são aqueles necessários para a vida cotidiana (bens materiais, prazeres vitais, etc.). Estes mudam constantemente, pois sempre desejam outros e maiores. á, os bens intrínsecos, não visam outros porque eles são autossuficientes, ou seja, os bens intrínsecos são bens supremos.
E, deste modo, aqui é tomado num sentido bastante diverso do atual que baseado no ideário cristão enleva e atribui a tal categoria analítica uma dimensão moral, valorativa, que se constrói a partir de uma oposição binária com o mal, ou aquilo que não é bom.
Johann Wilhelm Hittorf, físico, em 1869, enquanto estudava a condutividade elétrica em gases rarefeitos observou que o brilho emitido do cátodo aumentava em tamanho com a redução da pressão do gás. Em seguida, em 1876, Eugen Goldstein, também físico, demonstrou que os raios deste brilho gerado por Hittorf formavam uma sombra que ele chamou de raios catódicos.
Assim temos que, como escreve Dekosky (1983), foi Sir William Crookes que, por sua vez, durante a década de 1870, desenvolveu o primeiro tubo de raios catódicos a partir do qual ele demonstrou que os raios luminescentes que apareciam dentro do tubo carregavam energia e se moviam do polo positivo (cátodo) para o polo negativo (ânodo). E, foi também Crookes que - ao aplicar um campo magnético sobre o tubo - demonstrou ser possível defletir os raios catódicos, assim demonstrando que, estes, se comportavam como se fossem carregados negativamente ( LEICESTER, 1971).
Já o físico Arthur Schuster, em seu tempo, também realizou um experimento similar ao de Crookes que, colocando placas de metal paralelas aos raios catódicos e aplicando um potencial elétrico entre as placas, demonstrou que o campo defletia os raios em direção a placa carregada positivamente, fornecendo maiores evidências que os raios catódicos que carregavam cargas negativas.
Logo em seguida, pouco antes do final do século XIX, em 1892, Hendrik Lorentz sugeriu que a massa destas partículas (elétrons) poderia ser consequência de sua carga elétrica ( WILCZEK, 2012). Quatro anos depois, em 1896, J. J. Thomson e seus colegas - John S. Townsend e Harold A. Wilson - demonstraram ainda que os raios catódicos eram partículas únicas, ao invés de ondas, átomos ou moléculas como se acreditava até então e estimou que o elétron tivesse uma massa que seria mil vezes menor do que a massa do menor ion conhecido, o hidrogênio ( THOMSON, 1897; WILSON, 1998). Uma boa estimativa para a época, uma vez que, mais tarde constatou-se que essa relação era de 1/1836.
A capacidade radioativa de alguns materiais foi descoberta em 1896 com Henri Becquerel ao estudar a fluorescência natural de alguns minerais de modo que, a partir de então, esses materiais radioativos passaram a despertar o interesse de muitos cientistas, incluindo-se entre esses o físico Ernest Rutherford que demonstrou que esses materiais emitiam partículas - que ele denominou de alfa e beta a partir da sua capacidade de penetrar a matéria - o que fortaleceu a tese de que os elétrons existiam e faziam parte das estruturas dos átomos ( TRENN, 1976; MYERS, 1976). Surgirá daí, em 1914, com os experimentos dos físicos Ernest Rutherford, Henry Moseley, James Franck e Gustav Hertz - a partir da ideia de que a estrutura de um átomo é composta por um núcleo de carga positiva cercado por elétrons de baixa massa e carga negativa - os primeiros estudos do campo física nuclear ( SMIRNOV, 2003) e todo um conjunto de preceitos e paradigmas relacionados a teoria atômica e a mecânica quântica que irão orientar o desenvolvimento desse campo de estudo nos cerca de cinquenta anos que antecederão a construção do primeiro acelerador de partículas ( PANOFSKY, 1997) e, nos quase cem anos que antecederão a construção do Grande Colisor de Elétrons e Positrons (LEP) da Organização Europeia para Investigação Nuclear (CERN) que operou entre 1989 e 2000 e que, hoje, abriga o Grande Colisor de Hádrons (LHC), onde, em 14 de março de 2013, o Bóson de Higgs teve sua existência provisoriamente confirmada.
O Bóson de Higgs foi predito inicialmente em 1964, partir do chamado Modelo Padrão da Física de Partículas 2, pelo físico britânico Peter Higgs que, ao se debruçar sobre as ideias de Philip Anderson a prediz. Contudo, dadas as limitações tecnológicas de seu tempo, este, não teve condições de investigar a sua possível existência até o ano de 2008 quando entrou em funcionamento o Grande Colisor de Hádrons (LHC).
Com o desenvolvimento da pesquisa e a busca da hipotética partícula, a faixa energética de procura do bóson foi se estreitando e, em dezembro de 2011, os limites energéticos de busca estavam entre as faixas de 116-130 GeV 3, segundo a equipe ATLAS 4, e entre 115 e 127 GeV de acordo com o CMS 5. E, logo em seguida, em 4 de julho de 2012, anunciou-se - pela primeira vez - que uma partícula desconhecida e com massa entre 125 e 127 GeV/c2 6 foi detectada de modo que, grande parte dos físicos que se ocupavam da questão passaram a suspeitar que, esta, poderia se tratar do Bóson de Higgs, conforme noticiado por muitas agências.
Em março de 2013, depois de uma série de estudos e experimentações, provou-se que tal partícula se comportava, interagia e decaía de acordo com as várias formas preditas pelo Modelo Padrão, além de provisoriamente provar-se que ela possuía paridade positiva e spin nulo, dois atributos fundamentais de um Bóson de Higgs, indicando fortemente a existência da partícula. Partícula essa que combina duas forças da natureza e mostra que essas são, de fato, dois aspectos diferentes de uma mesma força maior, que responde pela existência de massa nas partículas elementares. Contudo, os resultados das pesquisas são tratados com prudência ( phronesis) como advogava Aristóteles.
Todavia, se estamos nos referindo a uma partícula nuclear básica que compõem a estrutura mais elementar dos átomos, por que se referir a ela como a partícula de deus se ela não tem nada a ver com a religião e/ou com qualquer escrito canônico? A resposta mais comum se baseia no fato de que os meios de comunicação em grande parte popularizaram essa expressão a partir de um livro de divulgação científica, escrito por Leon Lederman, intitulado “The God Particle: If the Universe Is the Answer, What Is the Question?”, publicado em 1993, o qual, com vistas a tornar as complexidades da ciência acessíveis ao grande público, na construção de seu argumento recorreu a uma imagem expressiva que acabou por ter mais sucesso do que o nome escolhido pelos físicos 7.
Se como querem os teóricos da secularização, têm-se que o mundo moderno e todo o modo como ele está estruturado a partir da separação entre as coisas dos homens e as coisas de deus, ou sagradas, é um pressuposto da racionalidade e da prática teleológica contemporânea, a qual deve - em tese - orientar a ação humana para um fim. Têm-se então que isso não ocorre sem consequências. Em nome dessa teleologia e de um mundo fundado na ciência, criou-se todo um conjunto de regramentos que orientam a busca de seu fim último (o summum bonum) que preside e justifica as demais como muito bem estipulou Aristóteles (1984).
E, se, também, como querem aqueles ligados a religião, há, entre os homens, a necessidade de se orientar a vida como base em preceitos morais que explicam o mundo a partir de outro regime de verdade que não o dá ciência, ligado ao desejo e a vontade de um ser superior. Tem-se então que, cotejar a existência, a imanência e a presença de deus, torna-se fundamental para essa construção que, tanto do ponto de vista da filosofia quanto da linguística, implica numa refundação do social e numa nova epistemologia e modo de pensar a sociedade e o espiritual.
Epistemologia essa que coloca a chamada partícula de deus num ponto médio entre a religião e a ciência. E que, prudentemente, não nega a existência de seu duplo, mas com ele se funde, unificando o que dantes estava separado a partir produções discursivas e ilocutórias que reafirmam a existência de outro caminho a ser seguido.
Fé e ciência se misturam e a partir dessa fusão um novo modo de pensar o social e o modo como o mundo está organizado se faz presente. Contudo, se deus ou o elétron existem - ou se o Bóson de Higgs é mesmo a partícula de deus, isso não é uma questão que nos colocamos a discutir aqui.
Contudo, importa destacar que, sob a ótica da filosofia e da antropologia, é fato que uma mudança de paradigma e modo de pensar a realidade está em andamento. Tal movimento implica em se pensar novos métodos e categorias de análise que deem conta dessa realidade que aos poucos se descortina à nossa frente. Tentativa essa que fazemos neste texto, ao retomar uma questão deveras polêmica no campo das ciências sociais e das teorias da secularização, mas que, ao serem retomadas desde outra perspectiva que escapa à discussão clássica da relação entre a ciência e a religião, ganha potência e novos contornos, abrindo novas possibilidades de análise e modos de interpretar o social.