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CRISTÃOS E AFRORRELIGIOSOS NO ESPAÇO PÚBLICO: NOTAS ETNOGRÁFICAS ACERCA DAS MARCHAS RELIGIOSAS EM PORTO ALEGRE/RS
CHRISTIANS AND AFR-RELIGIOUS PEOPLE IN PUBLIC SPACE: ETHNOGRAPHIC NOTES ABOUT RELIGIOUS MARCHES IN PORTO ALEGRE/RS
CRISTÃOS E AFRORRELIGIOSOS NO ESPAÇO PÚBLICO: NOTAS ETNOGRÁFICAS ACERCA DAS MARCHAS RELIGIOSAS EM PORTO ALEGRE/RS
Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 20, núm. 28, pp. 33-46, 2018
Universidade Estadual de Campinas
Resumo: Este artigo busca analisar a presença de agentes religiosos no espaço público em um processo de conflito dialógico no qual cristão e afrorreligiosos (mas não apenas estes) ocupam as ruas, disputando espaços e significados de suas respectivas identidades. A breve análise teórica apresentada constitui uma primeira aproximação a este objeto singular, a saber, a Marcha Estadual Pela Vida e Liberdade Religiosa e a Marcha para Jesus em Porto Alegre/RS. O foco recairá na noção do público enquanto espaço de disputas ou controvérsias, que mobilizam diferentes formas de estar e fazer público, assim como mobiliza discursos direcionados a um público específico.
Palavras-chave: Evangélicos, Afrorreligiosos, Marcha para Jesus, Liberdade religiosa.
Abstract: This article seeks to analyze the presence of religious agents in the public space in a process of dialogical conflict in which Christian and afro - religious (but not only these) occupy the streets, disputing spaces and meanings of their respective identities. The brief theoretical analysis presented is a first approximation to this singular object, namely, the March State for Life and Religious Freedom and the March for Jesus in Porto Alegre / RS. The focus will fall on the notion of the public as a space for disputes or controversies, which mobilize different ways of being and doing public, as well as mobilizing discourses directed to a specific audience.
Keywords: Evangelicals, Afro-religious, March for Jesus, Religious freedom.
Introdução
O presente texto busca tratar das controvérsias geradas pela presença da religião no espaço público. Mais precisamente, tratamos aqui da Marcha para Jesus e da Marcha Estadual pela Vida e Liberdade Religiosa (MEPVLR) na cidade de Porto Alegre/RS. Dois eventos profundamente imbricados, que envolvem profundamente tanto seus participantes quanto outros segmentos da população, por um lado atrai apoio e simpatia de parte da população, por outro é recusado ao ferir a sensibilidade secular de parte da população. O material analisado é de cunho etnográfico, sendo produzido ao longo de quatro edições consecutivas de cada evento, no entanto, com o intuito de dar maior coesão descritiva optei por focar nossos relatos nas últimas edições, ou seja, foram acompanhadas as Marchas para Jesus de 2014 a 2017, com foco em 2017, e foram acompanhadas as MEPVLR de 2015 a 2018, com foco em 2018.
Os eventos não foram escolhidos ao acaso. Sua relação em lados opostos de um mesmo contexto político, social e religioso, é o centro de uma controvérsia que há algumas décadas anima os debates na sociedade brasileira, assim como nos meios acadêmicos. Me refiro o fortalecimento do segmento evangélico, sua presença na política partidária e a reação de segmentos minoritários que se sentem agredidos por suas ações.
O texto se divide em quatro partes: as duas primeiras tratam-se das descrições etnográficas dos eventos; a terceira trata-se de uma primeira análise comparativa entre os dois grupos; e na quarta, ainda om ênfase comparativa, nos dedicamos a pensar a relação destes eventos com a temática do público, abordando algumas dimensões que permitem visualizar a própria constituição deste, como discursos, imagens e a própria constituição do espaço. Dito isto, passemos aos nossos dados.
“O senhor está no comando”
A Marcha para Jesus é um evento que teve sua primeira edição em Londres, em 1987, onde foi organizado pelo pastor Roger Forster, pelo cantor Graham Kendrick, e pelos evangelistas Gerald Coates e Lynn Green, espalhando-se por várias cidades do mundo a partir de então. No Brasil, a primeira edição do evento foi organizada pela Igreja Sara Nossa Terra, do casal apóstolo Estevam Hernandez e pela Bispa Sônia Hernandez em São Paulo em 1993. A partir daí passou a ser organizada em praticamente todas as capitais brasileiras, além de outros municípios. A organização cabe ao campo evangélico local de acordo com o contexto em que está inserido e sua correlação de forças. Este evento já vem atraindo a atenção de alguns pesquisadores, focando em breves relatos etnográficos ( Gomes e Didier, 2011; Pontes 2015; Silva e Múscari, 2016) ou em sua perspectiva ritual ( Mendes, 2008; Paegle, Klug e Assmann, 2010), no entanto, até agora, apenas uma tese foi produzida, tendo como foco a identidade evangélica mobilizada durante a marcha ( Sant’Ana, 2017).
A Marcha para Jesus em Porto Alegre é organizada pelo Conselho Interdenominacional de Ministros Evangélicos de Porto Alegre (CIMEPA). Este conselho conta com a participação de lideranças de pequenas e médias igrejas de Porto Alegre, dos quais podemos citar o Pr. Hudson Teilor Rodrigues (Igreja Batista Brasa), o Pr. Hamilton Mayer (Igreja do Evangelho Quadrangular Partenon), o Pr. Dari Pereira (RENAS - Rede Evangélica Nacional de Ação Social), o Pr. Flavio Schroeder (Igreja Rio de Vida), o Pr. Isaias Figueiró (Encontros de Fé), o Pr. Luiz Anjos Santos (Sara Nossa Terra), o Pr. Olavo Nunes Neto (O Brasil Para Cristo), o Pr. Samuel Espíndola (Igreja Batista Filadélfia), o Pr. Eliezer Morais (Assembleia de Deus) e o Pr. Odir Olivaes Filho (Sociedade Bíblica do Brasil). Nota-se que a maioria destas igrejas são pentecostais, não contando com a presença de denominações do protestantismo histórico ou de grandes igrejas neopentecostais como a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e a Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD), o que não exclui a participação de fiéis destas denominações durante a marcha. Da mesma forma, o protagonismo da Igreja Sara Nossa Terra é substituído por uma ênfase em denominações batistas 1.
A primeira marcha ocorreu oficialmente em 2009, embora em 2008 houvesse uma primeira tentativa de organização sem grande sucesso. A partir de 2011 a marcha tomou visibilidade, principalmente pela participação do então prefeito José Fortunati, membro da Igreja Batista Filadélfia. Nesta ocasião o prefeito declarou: “ O senhor Jesus está no comando desta cidade” 2, e entregou a simbolicamente a chave da cidade para os pastores membros do CIMEPA. Embora já tivesse participado de outras edições, esta foi a primeira vez que se apresentou como prefeito, depois de ocupar o cargo deixado por José Fogaça em março de 2010. Outras figuras políticas evangélicas também marcaram presença em várias ocasiões, em 2014, além de Fortunati, também estiveram presentes Luiza Neves, vereadora e membro da Assembleia de Deus e o deputado estadual Tiago Simon, que se declara evangélico; em 2015, além de Luiza Neves, e o prefeito, também participaram sua esposa, Regina Becker Fortunati e Liziane Bayer, membro da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) e filha do seu coordenador estadual, o pastor Alcides Bayer, ambas em seu primeiro mandato como deputadas estaduais; em 2016, apenas Tiago Simon compareceu.
A movimentação para as marchas não se limitam ao dia do evento, são precedidas por uma série de eventos e atividades que auxiliam nos preparativos, como o jantar de lançamento, em 18 de agosto de 2017, na Igreja Batista Filadélfia. Também há vigílias e a confecção e venda de camisetas oficiais. A cada ano as camisetas possuem uma cor diferenciada, um trecho dos textos bíblicos nas costas e uma variação do logotipo no peito (a silhueta de uma pessoa erguendo um bandeia e o título Marcha para Jesus), desta forma para além de um produto novo que facilitariam as vendas, também constitui uma forma de diferenciação de cada evento. Em 2014 as camisetas foram cinza claro com os dizeres “Manifestação dos filhos de Deus. Rm 8.19”; em 2015 a cor foi vermelha, com os dizeres “Acolherá uns aos outros, como também nos acolheu para a glória de Deus. Rm 15.7”; em 2016 a camiseta foi verde e em 2017 foi azul clara com os dizeres “… orai por ela ao senhor; por que na sua paz vós tereis paz. Jeremias 29.7” A arte dos cartazes é igualmente trabalhada sobre um lugar símbolo da cidade, como a Usina do Gasômetro (2017) ou o Mercado Público (2016 e 2015) onde ocorre a concentração.
Em 2017 a Marcha para Jesus foi realizada dia 07 de outubro. No sábado à tarde o Largo Glênio Perez encontrava-se tomado por uma pequena multidão aguardando o início da marcha. Um carro de som, que fazia as vezes de palco e trio elétrico, encontrava-se na extremidade sul do largo, estacionado de costas para a Praça Montevidéu e a Prefeitura de Porto Alegre. Ao seu lado estava estacionado um antigo ônibus amarelo com o logo da Igreja Batista Brasa. Um outro carro menor, encontrava-se a uns 20 metros na lateral sudoeste. Ambos decorados com uma faixa branca contendo sucessivos logotipos do evento em cor vermelha. Ao contrário dos últimos anos, não houve um palco na extremidade oposta do largo.
A primeira vista a multidão era formada por muitos grupos de jovens, e casais com seus filhos a tiracolo ou sobre os ombros. Ao contrário dos anos anteriores o número de camisetas oficiais do evento foi bastante reduzida. A maioria utilizava roupas esportivas ou leves. O calor neste dia não foi excessivo mas o sol estava forte. O que levou muitos a utilizar bonés, chapéus e óculos de sol. Alguns arriscavam indumentárias mais festivas, características dos carnavais de rua, como chapéus de plástico, pintura, faixas, abadás e óculos coloridos. A grande maioria poderia se considerada de ascendência europeia, um pequeno número poderia ser considerado de ascendência afro-indígena. As roupas e acessórios indicam que a maioria é oriundo de extratos medianos da sociedade. Estes dois elementos são características do público frequentador das denominações citadas anteriormente.
O caminhão de som, ora se transformava em trio elétrico, servindo de palco para bandas gospel - as grandes atrações foram as cantoras gospel Sarah Beatriz e Ana Nóbrega - ora se transformava em púlpito para oradores que realizavam louvores. O público, igualmente, intercalava momentos festivos, nos quais os jovens tomavam o protagonismo, com momentos de oração, onde a maioria dos presentes participava de olhos fechados e com as mãos com as palmas voltadas para cima, dento dos modelos de culto carismático cada vez mais comuns entre pequenas e médias denominações pentecostais e neopentecostais. Diante do palco, um pequeno grupo de jovens seguia a música, realizando uma performance de dança. No caro de som, se sucederam cantores e oradores. Contando com a presença dos deputados estaduais Tiago Simon e Liziane Bayer.
Transeuntes passavam pelas extremidades da multidão, alguns paravam por alguns instantes e seguiam seu caminho, outros reagiam negativamente, como um casal de jovens com camisetas negras de bandas de Heavy Metal que passaram olhando com expressão jocosa para a Marcha. Uma senhora que aguardava na parada de ônibus, estava bastante irritada com a Marcha, pois, segundo comentava se atrasaria para chegar em casa.
A marcha seguiu seu caminho habitual. Subiu a Av. Borges de Medeiros, dobrando na Rua Riachuelo em direção a Praça da Matriz. Nas ruas mais estreitas, a multidão se afunilava misturandose aos transeuntes. Alguns participantes falam com estes animadamente convidando a juntar-se a eles. Vários dos participantes utilizavam camisetas ou cartazes identificando seu pertencimento denominacional, alguns portavam bandeiras, durante a caminhada pude observar ao menos duas de Israel e duas do Rio Grande do Sul. Um jovem usa uma camiseta com a imagem de Nossa Senhora Aparecida e um par de senhoras anda de braços dados ambas com um terço na mão, indicando uma presença, ainda que discreta, de católicos na marcha. Na praça, diante do Palácio Piratini, sede do governo estadual, foram realizadas orações. A marcha desceu a Rua Caldas Junior. Dobrando na Rua Siqueira Campos em direção ao Mercado Público.
Ao final do percurso, de volta ao Largo Glênio Peres, alguns participantes começam ir embora.
Progressivamente a multidão se dissipa. Alguns vão em direção aos terminais de ônibus ao lado do Mercado Público e nas ruas adjacentes, outros se dirigem para a estação de trem do outro lado do Mercado. No trem, que cruza a zona metropolitana de Porto Alegre, em direção ao norte, passando por vários municípios, grupos de participantes seguem em conversas animadas, em um vagão, um grupo grande, aparentemente formado por 3 ou 4 famílias, desce em Canoas, outro grupo formado por cerca de 8 jovens desce em Esteio.
“Juntos somos fortes”
A Marcha Estadual pela Vida e Liberdade Religiosa (MEPVLR) do RS, teve sua primeira edição em 2009, e tem como principal instituição organizadora a Associação dos Povos de Terreiro do Rio Grande do Sul sempre contando com o apoio de outras organizações e entidades como o Conselho Estadual da Umbanda e dos Cultos Afro-brasileiros do Rio Grande do Sul (Ceucab-RS) e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC). Esta é uma das principais características desta marcha, embora tenha como principal público os adeptos de religiões de matriz africana, esta está aberta a participação de qualquer segmento religioso que se identifique com suas bandeiras. A marcha sempre ocorre em torno do 21 de janeiro. Neste dia, no ano de 2000, ocorreu o falecimento por infarto da Iyalorixá Gildásia dos Santos - a Mãe Gilda - após sua imagem ter sido utilizada em um número da Folha Universal - periódico impresso pela Igreja Universal do Reino de Deus - e seu terreio ter sido invadido e depredado. Em 2007 promulgou-se a Lei 11.065, decretando a data de 21 de janeiro como Dia Nacional de Combate a Intolerância Religiosa.
Somando-se a estes acontecimentos, o fortalecimento do segmento evangélico dentro do legislativo, os projetos de lei proposto por representantes destes segmentos 3, em um processo de “teocratização” do estado, assim como o anúncio da organização das Marchas para Jesus em diversas cidades do Brasil, incluindo Porto Alegre, segundo os discursos das lideranças durante as marchas e de alguns participantes, foram as principais motivações para sua organização. Estas são organizadas por meio de reuniões entre representantes das instituições, mas são abertas aos interessados em dar apoio, sendo anunciadas pelas redes sociais com antecedência.
Segundo a página do evento 4, a cada ano optou-se por adotar como tema uma bandeira específica de acordo com o contexto do momento: em 2009 o tema foi criação da Delegacia de Combate a Intolerância Religiosa e ao Racismo e contra a Lei 13.085 de dezembro de 2008 de autoria do pastor da Igreja Universal do Reino de Deus e deputado estadual Carlos Gomes (PRB) que prevê a restrição do número de decibéis emitidos por templos religiosos. Em 2010 o tema foi a campanha "Quem é de Axé diz que é" que defendeu a autodeclaração como negro e afrorreligioso no Censo 2010. Em 2011 foi a criação do Conselho Estadual do Povo de Terreiro; em 2012 foi novamente a criação da Delegacia de Combate a Intolerância Religiosa e ao Racismo. Em 2013 foi criação do Conselho Estadual do Povo de Terreiro, este de fato criado em 2014. Em 2014 foi o combate a desterritorialização do Povo de Terreiro, consequência direta da remoção de comunidades irregulares durante as obras que preparavam a cidade para a Copa do Mundo e a especulação imobiliária na cidade. Já em 2015, 2016 e 2017 manteve-se a bandeira pela criação da Delegacia de Combate a Intolerância Religiosa e ao Racismo, sendo que em 2015 somou-se a defesa da implementação de feriado municipal no dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), em 2016 manteve-se a defesa dos territórios de matriz africana e em 2017, defendeu-se a democracia, visto o contexto de destituição da presidenta Dilma Rousself, além da defesa da criação do Conselho do Povo de Terreiro no município de Porto Alegre.
O logotipo da marcha é constituído por uma cabaça da qual saem uma série de braços, o título da marcha está à frente e abaixo o lema: “Juntos somos fortes”. A cabaça nas religiões afro-brasileiras possui diversos usos e significados, mas sua principal associação é com a cabeça ( ori) e com o útero, constituindo desta forma uma representação do universo, da totalidade. Assim, se por um lado o logotipo representa a totalidade e a união, através da cabaça, por outro representa a diversidade, através dos braços, em alguns anos estes tiveram cores diferentes. No entanto, não há uma grande variação nos cartazes, mantendo sempre a mesma fórmula.
É importante frisar que a organização da marcha tem como principal personalidade articuladora o babalorixá Bàbá Diba de Iyemonja, liderança da Comunidade Terreira Ile Axé Iyemonja Omi Olodo, o que condiciona, a participação de outros grupos afrorreligiosos, dentro de uma estrutura de alianças entre lideranças com base na reciprocidade, o que traz ao evento uma ampla variação tanto em termos de agentes, quanto de número de participantes. Além disso, Bàbá Diba é militante do Partido dos Trabalhadores (PT), o que agrega mais um elemento ideológico a organização da marcha, como veremos adiante.
Em 2018 a marcha ocorreu em uma segunda-feira, dia 22 de janeiro. O tema foi: “Povo de Terreiro é povo trabalhador - Pela garantia de direitos, por um estado laico e democrático” visto as reformas trabalhistas e da previdência, em andamento pelo governo federal, além disso a cidade passava por um momento tenso, dois dias depois ocorreria o julgamento do ex-presidente Lula. Visto a filiação partidária de sua principal liderança, este fato, teve forte influência para a marcha.
O dia começou com chuva, que sessou no meio da tarde. Durante a manhã foi realizado um seminário preparatório na sede do CPERS (Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul). A marcha estava marcada para as 18h, mas as 17h já havia um pequeno número de afrorreligiosos, diante da prefeitura, quase todos vestidos com suas indumentárias rituais, em sua grade maioria pertencentes a comunidade liderada por Bábà Diba. Junto a eles estão alguns praticantes do neopaganismo portando um faixa verde onde se vê escrito “Paganismo presente na luta contra a intolerância religiosa”. Também há representantes da população em situação de rua. Aos poucos vão chegando mais e mais pessoas. Cumprimenta-se de forma tradicional, beijando a parte superior da mão um do outro. Entre os mais íntimos, um abraço apertado. Os alabês tocam, se revezando e cantam, o público afrorreligioso responde em coro.
Entre os participantes está Adriana Rodriguez, atriz do grupo Caixa Preta que vestida de Bará 5 anda de um lado para o outro portando um facão, com o rosto maquiado e um vestido vermelho cujo o dorso está repleto de chaves costuradas. Nas marchas anteriores ela realizou suas performances vestida de acordo com o orixá referente ao ano. Do outro lado, junto a prefeitura está o Bispo Humberto Maizteguida da Igreja Episcopal Anglicana e representante da CONIC no Rio Grande do Sul, não muito longe está Bàbá Hendryx de Òrumìlà, outro importante articulador da marcha.
Às 18h chega o carro de som. Os alabês seguem tocando, agora com mais ênfase, Bàbá Diba entoa cantos preparando-se para a saída. Algumas lideranças sobem no carro de som e falam contra a reforma trabalhista e contra a intolerância. A fala mais contundente é a de Bàbá Diba, que assume seu posicionamento político e condena aqueles que através das redes sociais tentam desarticular a marcha acusando-a de ser partidária. Mais algumas falas e as 18h30 começam a organizar-se para sair.
Iya Sandrali Bueno de O sún, importante Iyaloris á de Pelotas/RS e os alabês sobem no carro, a frente segue o grupo que realizará o padê 6, seguidos da faixa de abertura da marcha na qual se lê “X Marcha pela Vida e Liberdade Religiosa" em amarelo sobre um fundo verde-escuro. Intercaladas por um pequeno grupo de pessoas seguem a faixa dos neopagãos e uma faixa onde se lê o tema da marcha em um fundo amarelo sobre os logotipos das instituições apoiadoras. Atrás do carro seguem os demais participantes. Ao chegar ao primeiro cruzamento (Av. Borges de Medeiros com a Rua José Montaury) realizam-se as libações rituais do padê, pedindo licenças ao Bará para iniciar a caminhada. Durante todo o percurso os alabês tocaram, enquanto Bábà Diba entoava cantos aos ori sás, e a atriz travestida de ori sá seguia sua performance.
Durante todo o caminho a marcha recebeu apoio da EPTC (Empresa Pública de Transporte e Circulação) que controlou o trânsito. Ao chegar a zona administrativa da cidade somaram-se alguns policiais militares. Durante o caminho mais algumas pessoas somaram-se a marcha. Já alguns transeuntes demonstraram seu apoio, alguns tiravam fotos, outros dançavam, outros saudavam com um aceno ou uma reverência. Não percebi nenhum gesto de reprovação por parte destes.
A marcha segue pela Av. Borges de Medeiros, dobrando na Rua José do Patrocínio em direção ao Largo Zumbi dos Palmares (antigo Largo da Epatur), ao contrário dos anos anteriores a marcha não entra no largo, passando ao seu lado em direção a Rua João Alfredo, seguindo por está até a Rua da República, à esquerda pela Rua Baronesa do Gravataí até a Av. Aureliano de Figueiredo Pinto. Em frente ao prédio do Mistério Público Estadual a marcha se deteu e se tocou um Alujá, toque dedicado ao orixá Sángo, deidade associada a justiça. O plano original era chegar ao Tribunal Regional Federal da 4º Região, onde ocorreria o julgamento do ex-presidente Lula, dois dias depois, mas o controle policial na região não permitiu a passagem. Assim a marcha dobrou a direita em direção ao Anfiteatro Pôr do Sol onde se encontravam acampados milhares de apoiadores do ex-presidente aguardando pelo julgamento. Nos anos anteriores a marcha seguiu até as margens do rio Guaíba onde foram entregues oferendas nas águas, no entanto, neste ano isto não ocorreu. Na entrada do acampamento, militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) que realizavam a segurança saldaram a marcha quando esta chegou. Desde um carro de som outros militantes saldaram nossa chegada. A marcha parou na lateral do Anfiteatro e ali realizou-se um círculo onde os participantes dançaram. A parti disso a marcha se dissipou progressivamente.
Em comparação com o ano anterior, houve menor adesão, cerca de 150 participantes, contra os cerca de 600 de 2017. Tudo indica que a opção por posicionar-se politicamente em um momento de crise política no país tencionou a marcha ao ponto de desarticular parte de sua assistência. Mas ainda deve-se considerar que ao menos a metade dos participantes no ano anterior era formada por defensores do carnaval de Porto Alegre representados pela União Popular Carnavalesca, além de alguns capoeiristas de grupos locais.
Cristãos e afrorreligiosos no espaço público: aspectos comparativos
É central para qualquer análise considerar os dois eventos como pertencentes a um mesmo contexto de disputas, estando profundamente imbricados. Neste sentido, podemos observar alguns aspectos das formas de estar, fazer e ir a público como elementos que se retroalimentam gerando disputas e reafirmações entre os segmentos. Esta descrição etnográfica, apesar de breve, apresenta uma série de elementos que nos permitem pensar o lugar destes segmentos religiosos no espaço público e sua agência na constituição deste, com isto em mente, façamos um breve exercício de comparação entre os dois eventos, com base em nosso material etnográfico.
Em termos organizativos, observamos que a Marcha Para Jesus é pensada exclusivamente para um público cristão. Seguindo a lógica monoteísta da universalidade da fé cristã. Discursivamente, sua finalidade é, por um lado, congregar todos os cristãos, independente de seu pertencimento denominacional, sob a figura de Jesus Cristo, e por outro, dar visibilidade da força destas denominações quando unidas com um único objetivo. Assim, união, visibilidade ou proclamação e diluição das diferenças podem ser considerados os princípios chave deste evento. O logotipo da marcha representa bem estes princípios, pois vemos uma silhueta humana erguendo uma bandeira, ou seja, um indivíduo genérico, sem identidade que proclama uma ideia. O identificamos como cristão pelo título da marcha. Os trechos bíblicos estampados nas camisetas também fazem referência a união, acolhimento, proclamação. De fato, uma das orientações dadas aos participantes era o de não portarem elementos de distinção denominacional, como camisas ou faixas, o que não foi seguido por alguns grupos. No entanto, apesar do esforço para expressar sua unidade, devemos considerar que na prática, o público da Marcha Para Jesus é, sobretudo formado por evangélicos pentecostais de pequenas e médias denominações 7, as denominações maiores como a IURD e IIGD não mobilizam sua membresia para tais manifestações, e outras denominações cujo poder é fragmentado entre as diversas lideranças, como a Assembleia de Deus e a Igreja Quadrangular, não tem capacidade de mobilização massiva. Assim, a participação, restringem-se a igrejas específicas e a um público cristão genérico (evangélico ou católico).
O comportamento e indumentária refletem uma experiência religiosa informal e espontânea. Como chama a atenção Paegle, Klug e Assmann (2010), se trata de um momento de culto, mas também é um momento festivo, estão ausentes o comportamento sóbrio e as roupas formais característicos dos cultos evangélicos, dando lugar a um comportamento festivo, brincalhão, de alegria e descontração. Os participantes cantam e dançam, usam roupas esportivas e confortáveis. Embora destoe do comportamento esperado para o segmento evangélico, este modelo de culto é cada vez mais comum entre igreja pentecostais e carismáticas, o que via de regra atrai e íntegra o público mais jovem e contribui nas últimas décadas para o crescimento do que passou a ser chamado de cultura gospel. Neste sentido, os autores chamam a atenção para a penetração destas práticas em denominações mais tradicionais, em um processo que o autor chama de neopentecostalização do segmento evangélico.
Já a MEPVLR, tem como foco a diversidade. É organizada por grupos específicos do segmento afrorreligioso, mas está aberta a participação de outras religiosidades, tanto na marcha quanto na organização, além do apoio de qualquer segmento social que se identifique com seus princípios. São estes, a liberdade religiosa e o respeito a minorias, mas sempre associadas a questões de classe e raça, confluindo bandeiras políticas da esquerda partidária com necessidades da população adepta destas religiões, ou seja, em sua maioria trabalhadores assalariados, afrodescendentes e moradores de comunidades de baixa renda. A lógica que predomina é a lógica da segmentaridade, ou seja, da união na multiplicidade. Segundo Anjos (2008) é este tipo de pensamento que permitiria as religiões matriz africana unirem uma série de elementos diferentes sem estes perdessem sua singularidade. De forma semelhante Goldman (2003) propõem que haveria duas forças políticas em ação nestas religiosidades, uma centrífuga e outra centrípeta, a primeira seria a responsável pela segmentação dos grupos e sua singularização, enquanto a segunda, forçaria a união através da normatização e legitimação de práticas. Neste sentido, fica clara a capacidade de unir a diferença em um evento político em defesa de princípios valorizados por segmentos religiosos minoritários em confluência com valores políticos dos segmentos progressistas da sociedade.
Assim como na Marcha para Jesus, sua identidade visual expressa muito destes princípios, além o logotipo com a cabaça e as mão coloridas, expressando a totalidade e a diversidade. O uso de roupas rituais ( a sós ) e adereços, que por si só são singulares, assim como os ori sás que constituem cada pessoa. Ao contrário da marcha cristã, cada segmento é encorajado a expressar sua identidade através de faixas, bandeiras, roupas e performances (pensemos o caso dos carnavalescos e capoeiristas) apesar de a ênfase ser afrorreligiosa. Os corpos também estão performados pelo contexto, ao contrário da Marcha para Jesus, a atitude não é descontraída, a festividade evocada pelo som dos tambores e os cantos têm caráter combativo. Estar vestindo um a só, com ojá 8 na cabeça e suas guias 9 no pescoço é um ato de resistência. Muitos caminham de cabeça erguida, sérios, em uma postura altiva e desafiadora, outros dançam conforme o canto para cada ori sá.
Assim como as performances, a utilização dos espaços, ou seja, os trajetos e pontos-chave das caminhadas reflete muito das relações destes grupos com a sociedade e sua forma de inserção na política. A disputa simbólica começa na concentração, ambos ocupam o Largo Glênio Peres e a frente da prefeitura de Porto Alegre, lugares simbólicos para muitos afrodescendentes. O centro do Mercado Público é considerado um lugar de poder para os afrorreligiosos de Porto Alegre, ali está plantado um assentamento do Bará. Tanto a prefeitura como o Mercado Público foram construídos por escravos negros. E no subsolo do prédio da prefeitura se encontravam as senzalas onde eram acomodados os escravos pertencentes à administração municipal. Muitos dos que chegam para a marcha passam antes pela encruzilhada do Mercado, para saudar e pedir licença ao Bará. Para mutos afrorreligiosos a utilização da imagem e do espaço do Mercado pelo segmento evangélico é uma afronta direta as religiões de matriz africana.
Ambas as marchas seguem pela Av. Borges de Medeiro, os afrorreligiosos entoando seus cantos ao som dos tambores. Os evangélicos louvando Jesus Cristo de todas as formas possíveis, pois como diz uma dos cartazes “Todo ato que agrada ao senhor, é um ato de adoração”. A diferença começa com os destinos de cada marcha. A Marcha para Jesus segue para a Praça da Matriz, onde se localizam a Catedral Metropolitana de Porto Alegre, o Palácio Piratini, a Assembleia Legislativa do Estado e o Palácio da Justiça, respectivamente a sede da poder católico, do poder executivo, do poder legislativo e do poder judiciário na cidade. Contando com a presença de representantes do poder legislativo realizam orações. A MEPVLR segue pela avenida, até o Largo Zumbi dos Palmares, anteriormente denominado Largo da Epatur, símbolo da presença negra na cidade. A exceção deste último ano, onde o contexto político falou mais auto, costumam realizar uma segunda concentração no largo e partir, desde ali, seguindo até as margens do rio Guaíba, onde são depositadas oferendas para O sún , a orisá das águas doces. Abaixo segue uma primeira síntese desta comparação.
Público, públicos e publicização
Primeiramente, seria importante definir que conceito de público estamos falando. Afinal um conceito tão ligado ao estado moderno e disputas entre vários segmentos sociais, e ao mesmo tempo tão polissêmico, pode facilmente induzir a distorções de argumento. E é justamente esta característica que o fundamenta. Desta forma, quando falamos de público, estamos falando de disputas, de controvérsia, público, aqui, nada mais é onde e pelo que se desenrola a disputa, uma arena se preferirem. Assim, lugares, discursos, símbolos, objetos e até pessoas podem torna-se foco de controvérsia, tudo pode se tornar público.
Da mesma forma, é necessário esclarecer alguns pontos acerca do conceito clássico de secularização. A sua perspectiva weberiana, como separação da esfera política/pública em relação a religiosa/privada, em um processo contínuo de enfraquecimento do religioso foi defendido por ao menos três sociólogos, Sabino Acquaviva (1961), Peter Berger (1985) e Bryan Wilson (1998). Acquaviva, a percebe enquanto recuo do sagrado no mundo ocidental (Aquaviva, 1961). Para Wilson, a secularização é um “processo pelo qual o pensamento, práticas e instituições religiosas perdem seu significado para a operação do sistema social” ( Wilson, 1998, p. 49). Já Berger, defende a ideia segundo a qual a secularização "é o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos" ( Berger, 1985, p. 119). No entanto, nas últimas décadas, tal conceito vem sendo contrariado pelo processo de ressurgimento do sagrado. O que vemos empiricamente é um fortalecimento do religioso, não como esfera de poder, mas como elemento articulado em praticamente todos os âmbitos da sociedade. Neste sentido as perspectivas propostas por Hervieu-Léger e Birgit Meyer oferecem uma leitura dos processos de interação entre o religioso e o político observada nas últimas décadas. Hervieu-Lége (1987) concebe a secularização como uma série de “processos múltiplos de redistribuição de significações que ligam intrinsecamente uma a outra a ordem do religioso e o do político” ( Hervieu-Léger, 1987, p. 18) ou ainda, como “… processo de reorganização permanente do trabalho da religião numa sociedade estruturalmente incapaz de atender as expectativas que precisa suscitar para existir como tal” ( Hervieu-Léger, 1987, p. 227). Já Birgit Meyer (2011) ataca a questão por outro flanco, dedicando-se a pensar o religioso enquanto elemento de mediação entre mundos. A autora propõem considerar algumas religiosidades como intrinsecamente associadas ao público, de forma que estar e fazer público seriam elementos estruturantes destas religiosidades e passando a considerar a publicidade como uma característica intrínseca do campo pentecostal, e até da religião, ou seja, estas são “religiões públicas”, a autora diz:
… para os pentecostais o próprio ato de tornar público é consagrado em um modo cristão de revelação de longa data que procura desmascarar o que está escondido atrás da superfície de aparências. Fazer público não é, portanto, um ato neutro, mas inscrito numa lógica cristã de divulgação e revelação. ( MEYER, 2011:156, tradução do Autor).
Neste sentido, podemos compreender que o ato de ir para as ruas, ocupar os espaços públicos e divulgar seus princípios religiosos, é a realização de um valor religioso por si só. Da mesma forma que encarregar-se dos assuntos da política partidária dentro da lógica religiosa, seria um ato que ao mesmo tempo é prática religiosa e a constituição de um projeto imaginado de mundo. A autora chama a atenção para a confluência entre esta característica e as novas formas de comunicação de massas, que incluem não apenas tecnologias de informação, mas também, desenvolvimento de mercados específicos. De forma que, a sociedade envolvente se vê ela mesma imersa em sons, imagens, discursos e práticas deste segmento religioso, em um processo que a autora chama de “pentecostalização da esfera pública.” (Idem, 2011:158, tradução do Autor).
O segmento afrorreligioso, principal promotor da MEPVLR, se escreveria fora desta lógica, embora a autora chame a atenção para uma relação constante entre a lógica religiosa e o uso das mídias, uma vez que esta seria por definição um elemento de mediação entre o humano e os nãohumanos. No entanto, devemos considerar que enquanto o cristianismo é uma religião de revelação, e em sua versão pentecostal de acesso direto à verdade através do Espírito Santo, os cultos de matriz africana, são religiões herméticas, onde a multiplicidade do mundo é revelada através de um largo processo de aprendizado através da participação e experiência. Se o primeiro tem os usos das mídias uma forma de “cristianizar” e “converter” o mundo, elemento estruturante de sua religiosidade, o segundo tem nas mídias apenas um recurso de acesso ao mercado religioso, como publicização de suas demandas. Em outras palavras, hipoteticamente, sem as mídias os cristãos não completariam parte de sua missão no mundo, ou seja, espalhar a palavra de Jesus Cristo. Já o segmento afrorreligioso seguiria mantendo sua integridade enquanto culto.
Assim, vemos que o ato de ir a público, para o segmento afrorreligioso, constitui-se como uma necessidade, uma estratégia de resistência, ou seja, uma reação a lógica pentecostal, que se não ataca diretamente, personificando a figura do mal nestas religiosidades, resignificando seus elementos e legislando contra suas práticas religiosas ( Silva, 2007; Almeida, 2009), as agridem ao negarem a pluralidade religiosa, o que é de certa forma é reafirmado na Marcha para Jesus. Ao contrário dos segmentos cristão, que não apenas se apropria do espaço e interpela os transeuntes como irmãos em Deus, de forma despojada e segura de estar em seu lugar. Para os afrorreligiosos, estar em público, não é um ato naturalizado e cômodo, é uma necessidade política de reafirmação de sua existência e seu direito de culto. Em dois outros momentos, após a marcha de 2017, ao perguntar para dois babalorixás, por que não participavam das mesmas, ambos afirmaram que o lugar da religiosidade africana era no terreiro, sem aparecer demasiado, sem chamar a atenção. Uma clara sequela dos séculos de perseguição. Da mesma forma, tanto o discurso quanto a postura dos participantes, tensa, altiva, combativa é sinal de não estarem em uma simples festividade mas em uma luta.
Meyer (2011) ainda chama a atenção para uma das características do segmento pentecostal, que seria a de trazer a público questões antes relegadas ao privado. Seja em forma de testemunho da conversão ou como categoria de acusação, desqualificando os desviados ou expondo os infiéis, dinâmica que vemos no caso de Mãe Gilda, e motivo pelo qual teria sofrido a agressão. Curiosamente, ao menos em Porto Alegre, não observamos esta dinâmica durante a marcha. O que vemos é uma extrapolação de fé, onde o discurso de “a cidade pertence a Jesus”, parece ser levado ao pé da letra. Tudo se passa como se todos na cidade fossem filhos do deus cristão, apenas esperando para unir-se aos demais, ou seja, o público da marcha, como veremos a seguir. Por outro lado, podemos ver que o discurso que impera entre os participantes da Marcha Estadual pela Vida e Liberdade Religiosa é justamente o de acusação. Acusam os evangélicos de intolerantes, de serem coniventes com a injustiça social e de serem responsáveis pela “teocratização” das estruturas do estado.
Quanto a composição dos participantes, o público das marchas, vemos que a aderência a estas está sujeita a discursos específicos. Neste sentido, Michael Warner (2002) contribui atribuindo uma série de características próprias aos públicos. Destas, algumas são úteis para pensar nosso objeto. O autor define um público como “auto-organizado”, “formado por pessoas estranhas entre si”, “anônimas”, onde é “constituido por mera atenção” aos discursos que são ao mesmo tempo “pessoal e impessoal” e é “um espaço social criado pela circulação reflexiva do discurso”.
Transpondo tais afirmações para o observado nas marchas, vemos que o público da Marcha para Jesus é formado por uma variedade de pessoas provenientes de igrejas pentecostais e outros segmentos evangélicos, católicos e cristão genéricos. O que atraí estas pessoas é justamente a característica marcante deste evento, o qual citamos reiteradas vezes, ou seja, a generalidade da mensagem simbolizada na figura de Jesus Cristo. Da mesma forma, os participantes da MEPVLR, se unem a uma mensagem genérica que se associa a seus valores progressistas, como pluralismo ou respeito a diversidade, quando não diretamente a um sentimento de injustiça sofrida por seu pertencimento religioso. Nos dois casos temos grupos de pessoas que não se conhecem entre si mas se identificam com o discurso, claro que muitos são pertencentes ao mesmo ambiente, e quanto menor o evento, mais integrado serão os participantes.
Como já expresso anteriormente, a baixa aderência a MEPVLR de 2018, se deu justamente pela inclusão de uma bandeira que causou uma dissociação entre possíveis participantes e o discurso mobilizado, ou seja, não houve um público numeroso, uma boa parte dos presentes estavam associados a figura de Bàbá Diba. Ao mesmo tempo, há espaço para reflexibilidade, as idiossincrasias de cada participante estão em jogo interagindo com o discurso e produzindo suas próprias interpretações do mesmo. O que nos leva a noção de “contra-público”, que o autor define como uma parte de um público que está em conflito com o público dominante, ou seja, virtualmente, as ausências de militantes que se identificam com o discurso geral, se deram por uma não concordância com a inclusão da pauta política associada ao Partido do Trabalhadores.
A noção de “fé ambiente” desenvolvida por Matthew Engelke (2013) também traz algumas interessantes reflexões sobre a constituição de ambientes sensorialmente permeados por referências a religiosidade. Ao tratar das campanhas da Sociedade Bíblica na Inglaterra para promover a fé cristã, o autor pontua suas estratégias de divulgação de referências genéricas a elementos do cristianismo, de forma a diluir fronteira daquilo que se pensaria como luga do público e lugar do privado, ele diz: “… a produção aqui de fé ambiente não é apenas um esforço para promover a mudança em relação à distinção público-privado: trata-se de evitar a necessidade de tal distinção completamente. (Idem,2013:60, tradução do autor). Se pensarmos as marchas como veículos de discursos que, para além de colocarem o corpo dos adeptos como veículos desta mensagem, também ambientalizam os espaços através da utilização de imagens, sons e performances corporais, encontraremos alguns paralelos com a análise do autor em ambos os eventos, assim como as especificidades de cada evento.
Em ambo os casos o elemento que chega com maior ênfase aos sentidos é o som. Embora na MEPVLR o som dos tambores e os cantos sejam inconfundíveis, assim como o toque de um berimbau ou uma bateria de samba. Aqui o som não convida, não busca atrair participantes, mas chamar a atenção. Na Marcha para Jesus, são intercalados louvores, orações e música. Para quem está envolvido na marcha estes elementos são centrais, no entanto, para aqueles que cruzam as proximidades estes sons carregam apenas uma identidade difusa que remete a religião. Apenas em alguns momentos, os preletores interpelam diretamente os transeuntes convidando-os a juntarem-se a eles. Assim como os sons dos cantos islâmicos que permeiam a ruas do Cairo, descritos por Charles Hirschkind (2006 apudEngelke, 2013), os sons aqui estão presentes nas ruas do centro da cidade, mas não de forma permanente, mas como extensão das marchas muito além dos espaços ocupados por seus participantes.
Segundo Engelke o foco da Sociedade Bíblica inglesa era fazer a bíblia tornar-se relevante novamente na vida das pessoas. Este termo, relevância, parece ser central para entender as motivações dos participantes destas marchas. Eles buscam dar visibilidade a suas visões de mundo e demandas, mas antes de tudo buscam que a sociedade porto-alegrense reconheça sua existência de forma cotidiana, “ como um recurso para dar sentido a própria a vida e o mundo contemporâneo” (Idem, 2013: 67).
Para além disso ainda restam as imagens, faixas, cartazes, performances corporais. Os cristãos utilizam o elemento discursivo estruturante de sua religiosidade: a palavra escrita. Cartazes, mensagens, trechos bíblicos, e em alguns casos imagens de cristo como veículos de sua identidade. Não há como não identificar a marcha em uma imagem, os elementos do cristianismo ressaltam, enquanto as pessoas se diluem na multidão. Para bem ou para mal, quem cruza com Marcha para Jesus entende sensorialmente que está em um evento cristão. Igualmente, os afrorreligiosos dominam a imagem da MEPVLR, mas os veículos são outros: seus corpos ou mais precisamente suas pessoas, múltiplas, compósitas. Formações singulares, compostas de trajes, guias, gestos e lugares. Que podem ser apreendidos em níveis distintos por aqueles que observam a marcha. Uns os identificarão por seus trajes, além da música, outros identificarão pelas guias “qual é seus ori sá ” e qual seu lugar na estrutura religiosa. Em suma, quem cruza com estes eventos entende não apenas a que mensagem religiosa estão associados, mas também como se colocam perante a sociedade, uns buscando a reforçar sua presença na sociedade local e reafirmar seu força, outros combatendo e reafirmando-se como alteridade.
A título de considerações finais, podemos acrescentar que observação de ambas as marchas, indica que enquanto expressões de religiosidade, possuem níveis distintos de interação com o espaço público. Enquanto a Marcha para Jesus representa praticamente uma tomada de assalto do espaço, ao ponto de inibir qualquer voz discordante entre os seus, dissolvendo a diferença, a Marcha Estadual pela Vida e Liberdade Religiosa é um emaranhado de discursos, que aos poucos e até de forma tímida vai tomando as ruas da capital, mas depende sobretudo de um consenso entre vários atores sociais, que se unem justamente para conservar sua autonomia. Apesar de breve, o presente texto buscou problematizar justamente estas duas formas de conceber a coletividade, em um momento de extravasamento de tensões internas e externas. Unidos sob uma única bandeira, a de Jesus Cristo, ou unidos sob várias, de Bará a O sálá, estes religiosos buscam reafirmar sua presença na sociedade brasileira, no entanto, disputam os mesmos espaços de forma que ir ao público é a única forma de ganhar a legitimidade tão almejada.
Referências
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Notas