Editorial
APRESENTAÇÃO: Materialidades e mediações nas religiosidades latino-americanas
Nos últimos 15 anos, materialidade passou a ser um termo chave nas pesquisas e publicações sobre religião. Na antropologia, isso acompanha e expressa a virada material que conferiu aos objetos e suas agências um protagonismo renovado. Nos religious studies, a mesma tendência é parte de um questionamento mais amplo sobre visões que privilegiam as crenças e os conteúdos em detrimento de práticas e formas. A criação da revista Material Religion em 2005 pode ser tomada como indicador importante dessas transformações. Editada a oito mãos, a revista deixava clara ainda a natureza multidisciplinar de sua proposta, capaz de envolver, além da antropologia e dos religious studies, a estética, a geografia, a arquitetura, a museologia e, evidentemente, a sociologia e outras ciências sociais.
A noção de materialidade envolve não apenas objetos ou coisas, mas também três outras dimensões. Primeiro, o corpo, tanto em seus usos (as técnicas corporais de que nos falava Marcel Mauss), quanto como terreno de sensações e disposições coletivamente condicionadas. Segundo, o espaço, tal como se constitui em arquiteturas e configurações específicas. Terceiro, a escritura, com seu poder de encerrar a palavra em um campo visual, como descreveu Walter Ong, e adquirir uma capacidade de mediação e tradução cultural de vital importância nos processos de institucionalização e expansão religiosa.
O reconhecimento da dimensão material implícita nos modos religiosos de criar sujeitos e comunidades, assumindo seu caráter positivo e evitando sua redução a evidências de crenças, ideias ou doutrinas, é aqui central. No campo dos estudos sobre materialidades religiosas, coloca-se também a questão do papel das mediações visuais e seus efeitos discursivos. Como fato social, o próprio fenômeno religioso, segundo os estudos de Hent de Vries, Birgit Meyer e David Morgan (entre outros autores), é observado como uma prática de mediação entre diferentes planos cosmológicos y entre emoções e significados, especialistas e leigos, objetos, corpos e memórias. É então essencial neste campo de estudos a relevância explicativa das articulações sociológicas, históricas, estéticas e ideológicas incorporadas em fotografias, desenhos, literaturas, arquiteturas, espaços públicos, lojas comerciais, corporalidades, música e vestuário (entre outras possíveis).
Ao evocar a materialidade, não nos referimos a uma única perspectiva, e muito menos a uma abordagem materialista. Tratamos mais propriamente de um campo de debates, aberto a diferentes marcos teóricos e enfoques metodológicos.
Portanto, não é o caso de anunciar algum tipo de ruptura epistemológica, e sim de saudar a consolidação de uma tendência que pode se articular a esforços de mais longa data.
O dossiê que apresentamos aqui, “Materialidades e mediações nas religiosidades latino-americanas”, compreende oito artigos que exploram, a partir de abordagens teóricas e referências empíricas particulares, o caráter perfomático de corpos, imagens e objetos em situações / espaços específicos de interação social.
O artigo de Nicolás Viotti “Das mediações à mídia. A vida material da espiritualidade contemporânea” inicia o dossiê. O mesmo apresenta uma discussão teórica sobre mídia, mediações e materialidades a partir de uma etnografia comparativa realizada em dois cenários das espiritualidades contemporâneas em Buenos Aires (Argentina): o circuito da Nova Era e a Renovação Carismática Católica. Apesar das diferenças entre expressões e práticas religiosas, o padrão que as conecta - e que se torna crucial na análise do autor - está ligado tanto à clivagem social, representada pelos setores médios urbanos, quanto à sua intencionalidade cosmológica orientada - nas palavras de Viotti - para a (re)construção da subjetividade por meio de uma “gestão cotidiana do bem-estar”. Com o foco nos problemas teóricos que atravessam o campo dos estudos, o trabalho revisita criticamente as interpretações sobre o chamado processo de individualização e desinstitucionalização religiosa. A regulação pública da diversidade religiosa, no espaço urbano, nos meios de comunicação de massa, na publicidade e nas redes virtuais, torna-se uma gramática afetiva fundamental, na qual "pessoas espirituais" atendem aos seus desejos e preocupações. É aqui, precisamente, onde imagens de virgens, água benta, penas, livros, pedras e música são co-criadores de experiências sensíveis e significativas.
Também atenta à discussão teórica e à análise empírica, o trabalho de Rodolfo Puglisi titulado “Materialidades Sagradas. Corpos, objetos e relíquias de uma perspectiva antropológica” problematizam um eixo analítico específico nos estudos sobre materialidades e mediações religiosas, expressos no início desta apresentação e também advertidos por Viotti em seu artigo: os corpos humanos. De fato, a articulação entre corporalidade e materialidade proposta por Puglisi liga as agências e as interações entre corpos vivos e mortos (como as relíquias) e objetos (como tumbas, cinzas e vestes) que encadeiam as experiências sagradas dos seguidores de Sai Baba em Buenos Aires. Enquadrando estudos sobre corporalidade, cultura material e relíquias, Puglisi avança em conceituações voltadas para o pensamento sobre o impulso carismático dos praticantes sobre o grau de proximidade e contato físico com os poderes sagrados. Aqui o autor propõe a noção de “desejo proxémico” para explicar a importância diária adquirida, dentro do movimento Sai, pelas materializações ex nihilo feitas pelo Avatar (como as cinzas vibhuti e os anéis de ouro), junto com seus corpos e vestidos sagrados, este último plausível para circular em espaços religiosos com o fim de garantir sua eficácia espiritual.
O artigo de Carlos Procópio “O catolicismo e sua publicidade: reflexões a partir da construção da catedral de Nossa Senhora de Guadalupe (Foz do Iguaçu/Brasil)” enfoca as transformações decorrentes da construção de uma nova catedral católica na cidade de Foz do Iguaçu. Foz de Iguaçu localiza-se em uma região de tríplice fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai), o que confere características peculiares ao seu campo religioso. Uma mesquita e um templo budista se destacam na paisagem local. Procópio sugere que é em resposta a essa situação que devemos entender a construção do templo católico. Este faria parte da estratégia da Igreja Católica para recuperar a visibilidade correspondente a sua hegemonia histórica. Outro ponto relevante é a associação da nova catedral com a Virgem de Guadalupe, o que sugere certo latinoamericanismo. Procópio mostra ainda como as obras vêm acompanhadas de transformações nas devoções promovidas ou incentivadas pela Igreja Católica local, tornando desde já o novo sítio uma referência significativa em termos religiosos. Ocorre assim uma relação entre construções materiais e dinâmicas devocionais.
O artigo de Leonardo Almeida: “O cru exposto: uma análise sobre o cru em lojas de artigos afrorreligiosos” enfoca lojas que comerciam artigos destinados às religiões afro-brasileiras em uma cidade brasileira. Em Porto Alegre, essas lojas são conhecidas como “floras”. Mais especificamente, Almeida enfoca o modo como os tambores são dispostos nas lojas, mostrando como formas de exposição estão relacionadas com preceitos religiosos. Não se trata de uma relação direta, ao modo de um assentimento. Segundo o autor, tal relação depende da compreensão de regras que orientam a confecção dos tambores e seu posterior uso ritual. Um tambor é “cru” antes de ser devidamente consagrado para uso ritual. São exatamente as potencialidades do cru que permitem entender em que lugar e ao lado de quais outros objetos os tambores são colocados à venda. Portanto, formas de exposição e formas de culto organizam materialidades religiosas.
O artigo seguinte, de Marcos Boldrini e Valdir Pedde: “Tensões nos processos de transformação dos espaços religiosos em Hospitais Públicos”, aborda os debates e conflitos ocorridos em torno dos espaços religiosos em onze hospitais públicos, também em Porto Alegre, sul do Brasil. Historicamente, esses espaços assumiram características católicas ou cristãs. Mas nos últimos anos há contestações a tal situação, resultando em demandas pela subtração de atributos católicos ou pela inauguração de um novo ambiente. Os autores denominam esse processo de desconfessionalização, o qual tem gerado novos usos para espaços católicos ou cristãos, ou a criação de espaços que abrigam símbolos de várias religiões, ou ainda a proposição de estruturas físicas ausentes de quaisquer símbolos. A desconfessionalização, geralmente promovida por agentes estatais, encontra, em alguns casos, a reação de grupos católicos que lutam para preservar os espaços existentes ou moderar as mudanças. O artigo discute essas situações de transformação material recorrendo a alguns debates em torno das noções de secularização, laicidade e neutralidade.
O artigo de Alejandro Martín López: “Imágenes… ¿sagradas?
Negociaciones en torno a lo numinoso en el Aikido del Gran Buenos Aires”, trata de certas negociações e disputas acerca do sentido das imagens que preenchem os espaços de uma arte marcial de origem japonesa, tal como podem ser encontradas na cidade de Buenos Aires. Nos lugares de prática do Aikido, há uma fotografia do seu fundador em trajes peculiares; espera-se que essa imagem seja saudada pelos praticantes em posição ajoelhada. Esse gesto é questionado por evangélicos pentecostais, que o recusam como algo “religioso”. López explica essa recusa considerando o regime visual e a interpretação literalista que caracterizam os evangélicos. A mesma recusa conduz a uma arqueologia, que se depara com as conexões do Aikido, em suas origens, com tradições religiosas japonesas, conexões expressas em altares, cultos a ancestrais e oferendas rituais a potências sagradas. Em período posterior e em função de sua internacionalização, o Aikido prefere vincular-se a um imaginário em sintonia com uma espécie de “ecumenismo espiritual” que busca contornar interpretações religiosas. O artigo, portanto, investe na exploração dos sentidos divergentes de configurações materiais formadas por palavras, imagens e gestos no quadro de certa espacialidade.
No artigo seguinte, “Fotocartos: uma maneira de destacar os elementos discursivos cristãos”, Graciela Bernardi Horn e Cláudia Duarte analisam o papel que os símbolos e as imagens religiosas cristãs apresentam em uma escola rural no estado do Rio Grande do Sul. Com base em uma maior investigação sobre as formas pelas quais os valores morais regulam a produção do sujeito escolar, as autoras dialogam com teorias pós-estruturalistas, situando a questão pela produção de discursos e subjetividades por meio de fotografias e imagens. A fim de investigar o alcance da enunciação visual-discursiva apresentada por certas imagens e símbolos religiosos no ambiente escolar, como cruzes, objetos, desenhos e frases, as autoras constroem um novo instrumento de análise: “fotocartos”, um neologismo que busca reunir semanticamente os universos fotográficos e cartográficos. Essa técnica envolve a deformação intencional de uma fotografia, registrada e selecionada do trabalho de campo em um espaço social específico, com o objetivo de enfatizar seu poder significativo. Assim, fotografias de cruzes e imagens de Jesus em oficinas escolares, ou a camisa que os alunos podem trazer em troca do uniforme escolar, entre outros casos, são deformadas em seus visuais, ampliando, por exemplo, algumas partes ou executando outros focos, como forma de desvendar a força discursiva desse conteúdo religioso na ordem moral da instituição.
Objetos, corpos, imagens, espaços e literaturas dão conta das materialidades e mediações analisadas nos diversos estudos que compõem o dossiê. No último tópico mencionado trabalha especificamente o artigo de Mariana Espinosa “El ministerio de la escritura: expansión evangélica y mediación cultural entre indígenas del Noroeste Argentino”. O objetivo central é explorar a força perlocutória da cultura escrita em uma missão protestante entre os povos indígenas do norte da Argentina. Investigando as relações entre os Irmãos Livres Evangélicos e os grupos Guaraní e Colla de Salta e Jujuy, Espinosa trabalha a perspectiva de Paula Montero sobre as missões cristãs como experiências recíprocas de mediação cultural para dar conta das práticas de leitura e escrita empregadas pelos missionários e apropriadas pelos indígenas. No contexto de um espaço fronteiriço nacional e de uma economia política de enclaves industriais, a autora observa as tensões resultantes na circulação de impressos e, marcadamente, nas pedagogias civilizatórias materializadas na leitura da Bíblia e nas canções do Hinário. Como Espinosa adverte, contrastando também outras estratégias missionárias no território, a adoção da Bíblia torna-se um texto-chave de mediação para o castelhano e o cristianismo torna-se um símbolo instituinte de civilidade e poder performático para os crentes indígenas. Os estudos sobre feitos desde a América Latina, por pesquisadores locais ou não, podem contribuir de maneira significativa para debates que tomam por referências as materialidades religiosas. Como demonstram as situações abordadas pelos artigos que compõem o dossiê deste número, a riqueza empírica é inesgotável. Tal constatação certamente relaciona-se com a forte presença de tradições iconofílicas, que cultivam e renovam o papel desempenhado por imagens, objetos e rituais nas práticas religiosas. Isso aplica-se ao catolicismo, às religiões afro-americanas, às cosmologias indígenas e amplia-se nos inúmeros sincretismos alimentados por essas matrizes. Mesmo práticas protestantes, se lembrarmos de certos cultos pentecostais, não escapam a essa iconofilia - ainda que seja necessário não desconsiderar tendências iconoclastas, e não apenas no universo protestante. Há, portanto, um amplo campo de pesquisa, com situações a serem umas descobertas, outras revisitadas, sob a inspiração de abordagens focadas na materialidade.
Há ainda outro plano no qual se pode apostar que tenhamos uma contribuição latino-americana para o debate. E aqui lançamos uma sugestão e uma provocação. Quais objetos seriam invenções latino-americanas? E o que essas invenções teriam a dizer sobre os contextos nos quais surgiram e para os contextos com os quais debatemos? Pensemos em um Gauchito Gil, em Santa Muerte ou San La Muerte, em um Cristo Redentor, na Virgem de Guadalupe, enfim, em tantas outras figuras não exatamente originais, mas certamente paradigmáticas para as questões que acabamos de enunciar. Abordagens focadas na materialidade permitiriam articular questões sobre a forma de composição de objetos a questões sobre as práticas que tais objetos convocam. Nessa linha, outras dimensões certamente poderiam ser exploradas. Mas com a intenção de elaborarmos uma teoria de objetos latino-americanos capaz ela mesma de lançar contribuições para debates que compartilhamos com nossos colegas “do norte”. É algo em que vale a pena apostar?
Junto com o dossiê, a presente edição incorpora quatro artigos na sessão de textos livres. No primeiro deles, “Comunidades de terreiro na Argentina”, Guilherme Dantas Nogueira buscou apresentar o modo de funcionamento e o contexto social das comunidades de terreiro naquele país, mediante o processo de transnacionalização e consequente fixação das religiões afro-brasileiras desde o Brasil. Para tanto, realizou pesquisa de campo com imersão junto à comunidade do terreiro Ilé Nueva Conciéncia, localizado na província de Buenos Aires, assim como diálogos com diferentes religiosos e visitas aos locais de referência e interesse desses, além de pesquisa bibliográfica e contato com outros públicos interessados não apenas na temática afrorreligiosa, mas também afrodescendente no país platino. Comunidades de terreiro e suas religiões resistem a um ambiente social intolerante na Argentina e a um Estado que sustenta o catolicismo como religião oficial, mas seguem cultuando seus antepassados e divindades, sendo, ainda, pioneiras na luta contra o racismo naquele país.
No texto seguinte: “A experiência religiosa do batismo com o Espírito Santo: um estudo psicossocial”, Gabriel Alves Laurentino e Aline Oliveira Machado buscaram compreender tal experiência religiosa dos cristãos evangélicos pentecostais da Assembleia de Deus. Os resultados evidenciaram que o batismo com o Espírito Santo caracteriza-se por uma experiência relacional com Deus, lúcida, porém, que possui as mesmas características que configuram um Estado Alterado de Consciência (EAC), constituindo o papel social do crente batizado em adequar-se como modelo de “servo”. Concluiu-se que a experiência religiosa do batismo com o Espírito Santo é vivenciada enquanto um EAC, condicionada e significada pelo sistema de crenças à qual está vinculada e que tal experiência tem forte repercussão na vida daqueles cristãos.
O próximo artigo, de Diego Santos Vieira de Jesus, “Em nome de Deus? Religião e Relações Internacionais” objetivou explicar a pouca atenção dada por autores da área de Relações Internacionais à religião, examinando o impacto do tema nessa área a partir da década de 1970, a fim de identificar as formas pelas quais a religião influencia a política internacional. A pouca atenção inicial dada por autores da área de Relações Internacionais à religião estava relacionada à predominância da “tese da secularização” nas Ciências Sociais, que não considerava o aspecto religioso junto à política internacional na elaboração de normas e princípios em termos de seus parâmetros básicos e de organização da governança em todos os níveis de interação social.
Por fim, encerrando este volume, em: “Introdução às gestas pentecostais: análise estrutural de uma narrativa autobiográfica”, Daniel Alves e Fábio Costa, a partir do livro Bom dia Espírito Santo, do autor e líder evangélico Benny Hinn, construíram uma leitura estrutural de sua autobiografia, partindo de sua narrativa heroica a partir dos conflitos que se opuseram à sua ascendência como líder religioso. Inspirando-se na metodologia estruturalista de interpretação dos mitos conforme desenvolvida por Lévi-Strauss, os autores delinearam alguns conflitos inerentes à narrativa e suas soluções: as rupturas com o mundo anteciparam aprofundamentos pessoais do Espírito, enquanto as visões espirituais anteciparam conflitos familiares no mundo.
Como coordenadores desta edição da nossa revista Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião acreditamos que os trabalhos ques compõem as duas seções, temática e livre, apresentam interpretações originais sobre mundos sociais significativos nos quais o religioso, o espiritual ou o sagrado adquirem sentidos e interpelações variadas.
César Ceriani Cernadas e Emerson Giumbelli Buenos Aires e Porto Alegre, Dezembro de 2018.