Article
DOI: https://doi.org/10.20396/csr.v20i29.12324
Resumo: Busco analisar sobre a maneira como as fotografias deixaram de sê-las para tornarem-se aquilo que denomino “fotocartos”. As fotocartos são fotografias de locais, objetos ou pessoas cuja composição seja deformada para dizer quais os sentidos emergiram e “falaram mais alto” em função do encontro com elementos discursivos. O latejar do conjunto de elementos que circulam em uma escola - localizada no sul do Brasil -, causaram estranhamentos, me impelindo a pensar nos regimes de verdade atrelados e que se colam ao currículo escolar da instituição analisada. A cruz e outros elementos do cristianismo são elementos que apareceram recorrentemente na escola pesquisada, acenando para o enraizamento dessa linha discursiva que, suponho, seja uma daquelas que, mais robustamente, regula as condutas daquela comunidade. As fotocartos deram destaque ao conjunto de elementos cristãos que constitui as linhas de força discursivas vigorosas em funcionamento como práticas discursivas na construção de uma subjetividade cristã escolar.
Palavras-chave: Pós-Estruturalismo, fotografia, fotocarto, cristianismo.
Abstract: This article looks at how to turn photos into photocartos. Photocartos are photographs of places, objects or people whose composition is deformed to tell which senses have emerged and "spoke louder" due to the encounter with discursive elements. The throbbing of the set of elements that circulate in a school - located in the south of Brazil - caused strangeness, impelling me to think about the truth systems linked and that stick to the school curriculum of the analyzed institution. The cross and other elements of Christianity are elements that recurrently appeared in the researched school, beckoning to the rooting of this discursive line that, I suppose, is one of those that, more robustly, regulates the conducts of that community. The photocartos highlighted the set of Christian elements that constitute the vigorous discursive lines of force in operation as discursive practices in the construction of a school Christian subjectivity.
Key-words: Post-Structuralism, photography, photocarto, christianity.
Introdução
A perspectiva pós-estruturalista busca problematizar os processos que envolvem o gerenciamento meticuloso e regulador da conduta de indivíduos e de grupos, se debruçando em analisar quais tramas discursivas atravessam os lugares, produzindo verdades sobre o que os sujeitos são ou como deveriam ser. Nesse terreno, as formas “sujeito” não são uma realidade natural a priori, mas sim efeitos e materializações de discursos que os delimitam enquanto objetos de saber, normatizando e regulando suas ações, falas, gestos, etc. em consonância com as regras discursivas de seu tempo.
Pensar a partir dessa perspectiva - em que os sujeitos são posteriores a um mundo social discursivo constituído na e pela linguagem -, pressupõe pensar a linguagem como um veículo não neutro e não transparente, mas como um fluxo de palavras que eternamente escorregam na tentativa de capturar fidedignamente “a realidade”.
Pensando nisso, a fotografia, longe de ser o retrato da realidade, também não é neutra, mas o resultado do ângulo de visão escolhido, da distância em relação ao objeto, do isolamento do objeto em um ponto do retângulo onde o mesmo ficará registrado. A construção da realidade é resultante do embate entre muitos discursos, em que apenas um conjunto deles emerge e ganha visibilidade, sendo justamente estes que nos subjetivam sobre quais os sentidos devemos (ou não) dar às coisas do mundo em determinado momento histórico.
Neste artigo, busco analisar sobre a maneira como as fotografias deixaram de sê-las para tornarem-se aquilo que denomino “fotocartos”, isto é, fotografias deformadas por anamorfose em função do encontro com elementos discursivos. O latejar do conjunto de elementos que circulam em uma escola - localizada no litoral norte do Rio Grande do Sul/Brasil - me causaram estranhamentos, me impelindo a pensar nas condições históricas de produção e de emergência dos discursos que circulam na escola pesquisada.
Sobre a não ingenuidade da fotografia
A fotografia foi, por muito tempo, encarada como um “instrumento fiel de reprodução do real” e esteve ligada a um papel funcionalista, qual seja o de “conservar o traço do passado ou auxiliar as ciências em seu esforço para uma melhor apreensão da realidade do mundo” (DUBOIS, 1993, p. 30). No entanto, nas palavras de Fontcuberta (1998, p. 38), “a câmera não copia a realidade na forma com que faria um olho livre e inocente, em condições assépticas (...)”, uma vez que “O olho seleciona, rejeita, organiza, discrimina, associa, classifica, analisa e constrói”1 [Tradução nossa].
Vários autores se opõem, nas palavras de André Rouillé (2009, p. 191), ao reduzir “a” fotografia “a um simples olho do real” ou a uma “impressão física do objeto real” (Ibidem, p.195), tais como Philippe Dubois (1993), Joan Fontcuberta (1998; 2003), Antonio Fatorelli (2009), Arlindo Machado (1998), dentre outros. Segundo eles a fotografia não pode ter a ilusão de descrever, capturar ou documentar o mundo com uma pretensa veracidade, autenticidade e neutralidade.
A concepção supracitada problematiza a pretensa forma “natural” de ver as coisas, pois “acreditar que os meios mecânicos são ‘realistas’, que transmitem a realidade facilmente, supõe não compreender que o real, como toda invenção humana, é relativo, histórico, condicionado pela ideia que os homens se fazem do mundo e de si mesmos2” (FONTCUBERTA, 1998, p. 37) [minha tradução].
A fotografia abre uma fenda, algo como um buraco no funcionamento de uma parede por onde espiamos somente parte de um entorno que foi omitido, e, por isso, “extrai o detalhe de um continuum: suspende algo de seu tempo e espaço, realizando um recorte” (SILVA, 2004, p. 190). A fotografia me convida a um olhar mais demorado sobre as coisas, forçando a pensar sobre e entre elas. Constitui-se em uma forma de pensar e olhar a(s) realidade(s) sob um certo ponto de vista. O fotógrafo, assim, não é neutro em relação ao mundo, uma vez que segue e é porta-voz de determinadas regras pertencentes a determinados discursos vigentes à época. Então, as margens da fotografia,
[...] delimitam as escolhas feitas pelo fotógrafo para demarcar o tempo e o espaço; elas são o resultado de um só gesto, um gesto último e definitivo, aquele de apertar o disparador; é um ato intencional e determinado pelo ponto de vista particular daquele que olha e adota uma certa posição frente a realidade. Uma fotografia é a materialização de um olhar, é o discurso de um olhar (ACHUTTI, 2004, p. 111). [Grifos nossos]
Nessa perspectiva, a fotografia implica o campo do vivido, dos sentidos, das sensações ou das invenções. Ela nos convida a estranhar o que vemos e ouvimos nela e dela: retorcer as sensações para pensar de outros modos, buscando ampliar as possibilidades de diferentes linguagens. A fotografia é uma linguagem, tão legítima quanto a das palavras, como uma forma de ver, pensar e dizer sobre as coisas do mundo (ACHUTTI, 2004). São registros que, como os estratos, recolhem, solidificam a poeira visual e o eco sonoro de uma batalha que se trava por cima deles (DELEUZE, 2013).
De um olhar anatômico para um olhar vibrante
As fotografias são aqui entendidas como uma produção (e não coleta) de dados, uma vez que, como já sinalizado, as coisas não estão prontas e à espera de serem “descobertas”. Produzir os dados implica o modo singular a partir do qual cada um é capaz de ver o que vê e as verdades que transitam dependem “do sentido daquilo que concebemos, do valor daquilo em que acreditamos” (DELEUZE, 1976, p.49). Assim, tento tecer outra possibilidade de procedimento que não descobre códigos, mas os inventa a partir do cruzamento de forças discursivas que atravessam a singularidade de cada um.
Com uma máquina fotográfica em mãos, nas primeiras idas a campo, fui fazendo, de maneira tímida, alguns rudimentares ensaios fotográficos na escola. O trabalho foi realizado em uma escola na localidade de Morro Azul3, pequena localidade com aproximadamente cerca de mil moradores descendentes de imigrantes italianos e alemães. É uma instituição pública estadual que atende as séries iniciais e finais do Ensino Fundamental. De março a setembro de 2017, passei a visitar a escola escolhida com certa regularidade: uma ou duas vezes por semana, durante toda a manhã e/ou tarde.
Assim, minha presença na escola tornou-se corriqueira, de modo que pude acompanhar seu funcionamento.
Em todos os momentos possíveis, fotografias foram sendo registradas a fim de que a composição delas pudesse dizer algo sobre os discursos que constituem o currículo escolar. A longa distância percorrida até a escola, a estrada esburacada de chão batido, a menor quantidade de casas, pessoas e veículos, os ruídos de aves ou do vento sobre as folhas das árvores, os matizes de cores do rio, do céu e dos morros me convidava a outra escuta para as tonalidades de verde e azul que se misturavam. A cada semana, observava coisas diferentes (o recreio, a sala de informática, o prédio escolar, as ruas da escola, a praça central da localidade, a natureza da região, os jeitos de falarem, os corpos dos alunos e professores, as aulas de Ciências, as aulas de Matemática, as aulas de Geografia, etc. A partir de reiteradas observações e registros é que um conjunto deles “ganhou relevo” e me causou estranhamentos.
Mais uns dias se passam e fiquei mais sensível aos encontros que fertilizam e são fertilizadores de outras possibilidades de combinações de existência, outros devires condutores de novas intensidades. Foi crescendo o anseio por cartografar territórios discursivos em que haja a possibilidade também de fugazes brotos de afetos desterritorializados.
Na contramão, no entanto, o que a escola quer da pesquisa são respostas rápidas e objetivas que sanem logo suas feridas, uma vez que as intensidades selvagens que ela experimenta são entendidas como caóticas. A instituição escolar - muitas vezes asfixiada, engessada, abatumada e sedimentada demais -, sem força de encantamento, anseia por algo ou alguém que indique qual o caminho deva ser seguido, um caminho que trate de logo neutralizar, amortecer e organizar movimentos caóticos em uma estrutura firme.
A Escola é uma instituição que está sempre à espera: à espera do método mais adequado para ensinar, à espera do aluno ideal, à espera da melhor gestão, à espera de mais recursos, à espera de famílias mais parceiras, à espera de mais união entre os professores, à espera, à espera... No entanto, frustrando a expectativa dela, não tenho (e não há) um método infalível que indique o caminho acertado a tomar: não há verdade alguma a ser desvelada e nem previsões a serem projetadas sobre o futuro das coisas. Não há um mapa que sirva de guia para todos os olhares, uma vez que cada olhar é único e muda com as vivências do observador (ROSÁRIO; AGUIAR, 2012).
A Escola, assim como qualquer outra instituição, é atravessada por muitas linhas discursivas. No entanto, em diferentes momentos de sua história, apenas um conjunto delas consegue emergir e ganhar visibilidade. Em outras palavras, no complexo solo anamórfico, um determinado conjunto de discursos transita e se destaca na sua recorrência, ganhando maior visibilidade do que outros. Nesta perspectiva, para pensar nas verdades - que são inventadas de acordo com as necessidades de uma época -, provoquei o olhar a estranhar ou suspeitar das coisas que, supostamente, estariam “desde sempre aí” (VEIGA-NETTO, 2012; VEIGA-NETTO; RECH, 2014, p. 67).
Assim, reafirmei à escola onde estive que minha intenção era, no solo movediço da pesquisa (que, por esta condição está sempre provocando e sofrendo modificações oriundas dos encontros), destacar quais linhas discursivas orograficamente emergem do terreno, isto é, do currículo da escola pesquisada. Com este objetivo, ao longo de seis meses durante o ano de 2017, fui tirando fotografias de casas, ruínas, paisagens, pedras, água, pontes, plantações, salas de aula, pátios escolares, recreios, cadeiras, rabiscos, portões, banheiros, azulejos, animais, grama, janelas, lâmpadas, tetos, paredes, ventiladores, cemitérios, árvores retorcidas, buracos, tonalidades de verde, tonalidades de azul. A intenção não era captar as “mensagens” do local. Não estive ocupada em buscar a “essência” dos locais por onde passei e nem a sacralidade de um “original”. O que busquei foi um processo de criação que costurasse a tradução de perceptos, afectos, funções e conceitos como a didaticArtista de Corazza (2014), que conserva “traços dos elementos originais, transformando-os e agenciando-os de maneiras inusitadas. O seu realismo não se reduz, assim, à mimese do real; uma vez que busca, aí, o outro misterioso da realidade, que possibilita a existência didática criadora” (p. 50).
A gestação das fotocartos
A partir das fotografias registradas, nasceram as fotocartos. As fotocartos são fotografias de locais, objetos ou pessoas cuja composição seja intencionalmente registrada e deformada para dizer quais os sentidos, os signos discursivos que emergiram e “falaram mais alto” nos momentos em que estive em campo. Elas me puseram a pensar em quais regimes de verdade estão atrelados e que se colam ao currículo escolar da instituição analisada.
O registro por fotocartos foi feito, portanto, para dar destaque aos sentidos que dei às coisas, uma vez que “numa perspectiva pós-estruturalista, não entra em jogo pensar sobre uma suposta realidade do mundo simplesmente porque o que interessa é o sentido que damos para as coisas que estão no mundo; e só podemos dar sentido por meio da linguagem” (VEIGA-NETTO,1996, p.168), pois “(...) a linguagem constitui, ela cria a nossa relação com o mundo e conosco mesmos” (Idem). A linguagem que buscamos construir para falar sobre os encontros que se deram entre nós e as linhas discursivas emergentes foi por meio da anamorfose de fotografias.
Importante ressaltar que o modo de criar fotocartos, de certo modo, se aproxima à bricolagem, uma vez que ambos processos de investigação, sem instrumentos profissionais, recolhem e colecionam fragmentos heteróclitos de elementos que, quando em conjunto, formam algo diferente do que se considerados individualmente. A expressão “bricolagem” é utilizada para designar a criação de processos investigativos sem roteiros preexistentes, isto é, construídos à medida em que surgem as demandas. Tanto o fotocartógrafo como o bricoleur buscam colecionar pequenos registros, mesmo que, apressadamente, num primeiro momento, sejam consideradas sem sentido (LÉVI-STRAUSS, 1989). Isso porque, como num caleidoscópio, conforme os elementos vão sendo adicionados ao conjunto, o movimento dos componentes faz com que passem a funcionar juntos de modo a constituírem determinados sentidos. Ademais, tal como na fotocartografia, na bricolagem, segundo NEIRA e LIPPI (2012, p. 610), “não se busca descobrir verdades, como se elas estivessem escondidas à espera de um investigador, o que se pretende é entender a sua construção (...)”. A fotocartografia se aproxima também da cartografia, que cria modos de fazer pesquisa problematizando as verdades circulantes e analisando as linhas de subjetividades e modos de subjetivação que constroem sujeitos (PARAÍSO, 2004; OLIVEIRA, PARAÍSO, 2012; PARAÍSO, 2015; PASSOS et al, 2015). Também o processo de anamorfose não é novo. A anamorfose cartográfica usada em geografia, por exemplo, envolve transformações que deformam a área de figuras (CAUVIN, 1995), possibilitando outra visibilidade. Assim, as deformações nas fotografias, para a criação das fotocartos, são um modo de dar destaque àquilo que me afetou nas idas a campo. Portanto, a fotocartografia, tal como a bricolagem e a cartografia, é uma construção que, por sua vez, é oriunda dos efeitos produzidos a partir de encontros que afetam e mobilizam de algum modo, sendo os encontros sempre singulares, porque dependem da subjetividade de cada um.
Na fotocartografia, a deformação feita pela operação anamórfica busca dar maior destaque ao embate entre muitos discursos circulantes na escola. A partir da luta entre discursos, apenas um conjunto ganha mais visibilidade, sendo justamente esse conjunto que subjetiva as pessoas - de diferentes modos - e materializam formas-sujeito que são porta-vozes daquele conjunto de discursos. Dessa forma, o trabalho partiu na aposta da potência de encontros entre os signos da superfície da fotografia e eu. O acaso desses encontros é que alavancariam a necessidade do pensar (DELEUZE, 2003), uma vez que eles provocaram estranhamentos. “Pensar é, primeiramente, ver e falar, mas com a condição de que o olho não permaneça nas coisas e se eleve até as ‘visibilidades’, e de que a linguagem não fique nas palavras ou frases e se eleve até os enunciados” (DELEUZE, 1992, p. 119).
Para saber quais são as verdades que circulam em determinado local, o pesquisador tem seu olhar, audição e tato sensíveis a encontros que, inesperadamente, na coisa vivida cotidianamente no local da pesquisa, nos faça “pensar com e pelas imagens” (WUNDER, 2011, p. 160). Em meio a um cruzamento de várias forças discursivas, as fotocartos “registradas” são enunciações que ressoam pelos vários espaços da instituição escolar. Então, não busquei “interpretar” fotografias, mas, sim, por à mesa quais foram os atravessamentos potentes de dizibilidades e visibilidades que surgiram e me puseram a pensar.
Abaixo (Fotografia 1 e Fotocarto 1), segue um exemplo dessa transformação.
A primeira imagem é uma fotografia (sem anamorfose) da parte central da comunidade onde se insere a escola pesquisada, assim como a igreja local. Já a segunda imagem configura-se como uma fotocarto, isto é, a primeira fotografia mencionada com deformações que buscam ressaltar determinada composição de coisas (palavras, objetos, símbolos, etc.) emergiram “falando mais alto”. A cruz cristã e a flecha que traz a expressão “casa da coloniz” (a palavra colonização cortada) em direção à cruz foram deformadas para “saltarem” do papel e constituírem outros sentidos antes não destacados na primeira imagem. Além disso, a primeira imagem teve sua lateral direita cortada em, aproximadamente, um quarto e, após, transferida para a esquerda, de modo que o sufixo da palavra “colonização” ficou junto com a palavra “rural”, para constituir um novo sentido à placa: qual ação rural (ou “rural ação”) - ou melhor, qual prática discursiva - estaria em funcionamento nessa comunidade do interior do Rio Grande do Sul?
Do ponto de vista técnico, para executar a deformação da fotografia, selecionei o efeito “olho de peixe” do aparelho fotográfico, posicionando o cursor sobre a região desejada da fotografia. Após, apliquei mais contraste e saturação à imagem, para intensificar as cores. Além disso, para “puxar” uma região da fotografia, a imagem foi deformada por meio do editor VCW VicMan's, no computador.
A cruz e outros elementos do cristianismo são elementos que apareceram em vários locais na escola pesquisada, acenando para o enraizamento dessa linha discursiva que, suponho, seja uma daquelas que, mais robustamente, regula as condutas daquela comunidade. As fotocartos, então, dão destaque a um determinado conjunto de coisas que colaboram na constituição de linhas de força discursivas que estão em funcionamento em determinado local e circunstância histórica. Abaixo (Fotografias 2, 3, 4 e respectivas Fotocartos), seguem as fotografias e as fotocartos criadas a partir dos encontros com signos cristãos que emergiram como um dos vigorosos discursos que subjetivam as práticas escolares na escola analisada.
A emergência dessa configuração anamórfica é resultado do embate entre muitas linhas de força discursivas que fazem ver certas coisas em detrimento de outras e que subjetivam pelos jogos de saber e poder envolvidos. Assim, a fotocarto é resultado da visibilidade e enunciabilidade que produzem formas de ver, falar e se comportar e que delineiam o contorno da forma sujeito aluno cristão da escola pesquisada.
O entrecruzamento de palavras, frases, objetos é a fonte de luz que ilumina e dá visibilidade à formação de um determinado tipo de sujeito, que não poderia existir sem essa iluminação. A iluminação dada por esse conjunto de práticas discursivas torna possível, aceitável e legítimo ver e falar, na escola, determinadas coisas e não outras no que tange à educação e conformação de sujeitos alunos e professores. Nesse sentido, a escola se constitui como um espaço que cria condições para que o entrecruzamento de palavras, frases e objetos construa determinados tipos de sujeitos, bem como lhes dá condições para que falem de si mesmos de determinada forma e não de outra.
Assim, as fotocartos buscam dar destaque, pela anamorfose, ao conjunto de palavras, frases e objetos que constituem elementos que transformam indivíduos em um tipo de sujeito, acionando modos de reconhecimento de si e dos outros a partir do cumprimento de regras que são postas a circular em relação ao modo de falar, vestir, brincar, se relacionar, etc. Dessa forma, na perspectiva acima mencionada, entende que palavras, frases, objetos que corriqueiramente são tomadas como independentes e autônomas, nas fotocartos passam a soar harmonicamente umas com as outras de modo a fortalecer determinada enunciabilidade, no exemplo aqui tratado, a enunciabilidade cristã.
Atenta à tecelagem dos fios (e suas desconstruções)
As fotocartos são aqui entendidas como enunciações, veículos de criação e (trans)formação de sentidos, na medida em que veem e dizem determinadas coisas em detrimento de outras. Acreditamos que as fotocartos possibilitam ao fotocartógrafo (re)elaborar o que seja “a” realidade. É, a cada vez, fazer ouvir um grito nas coisas visíveis (DELEUZE, 2013). É ver, na constelação de forças discursivas, o delineamento de uma forma discursiva que vai se constituindo a partir dos fragmentos enunciativos, pertencentes a um corpo organizado, mas dispersos no local da pesquisa.
Fotografar envolve uma operação constelar, construção a partir de fragmentos. A proposição aqui analisada configura uma ligação de pontos. Pretendo catalogar, demarcar as partes dispersas de um desenho ainda sem forma definida. O fazer fotográfico aparece como uma anotação de um tempo determinado, enquadra um micro campo pertencente a um grande corpo. (…) Buraco é passagem. Onde termina um corpo e começa outro? Qual é a mínima partícula em que se tocam? (SILVA, 2004, p. 190).
O olhar do fotocartógrafo é de alguém que escreve com a câmera, que coopta o enunciável e o visível. Com esses elementos, fecunda e é fecundado pelo campo da arte. É uma atitude de pesquisa que envolve percepção háptica, ou seja, que considera o espaço não como algo inerte, homogêneo, neutro ou mero pano de fundo para o desdobramento de eventos ou fenômenos, mas como um elemento ativo de um processo de produção (ROY, 2002). Dito de outro modo, é uma atitude que não permite, não pode e nem quer traçar resultados como os de um caminho pretensamente reto. Esse trabalho, ainda larval, não pretende encontrar algo, mas apenas encontrar possibilidades de compor sentidos, sendo tais encontros da ordem do inusitado, da violência, do desassossego. Uma solidão povoada: solitário porque atravessa sempre de maneira única e singular e povoado porque se dá entre o pesquisador e alguma coisa (DELEUZE, PARNET, 1998).
O modo de pesquisar com fotocartos reafirma o entendimento de que tudo o que vemos, sentimos e pensamos são criações humanas, que as designam e classificam por meio da linguagem, subjetivando o sujeito a partir dos jogos de verdade que se dão nos embates entre as forças discursivas. O conjunto de linhas discursivas que emerge e ganha visibilidade é aquele que nos subjetiva sobre os sentidos que atribuímos às coisas e que passam a dizer quais são as verdades do mundo.
O trabalho com fotocartos pretende distorcer/deformar as imagens já prontas que nos são dadas pelas construções discursivas que entalham os sujeitos, para que passemos não só a desconfiar das verdades que circulam, mas também nos por a torcer e fiar os fios de qualquer matéria que advoga a si mesma o rótulo de essência primeira.
Referências
ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto Alegre: Editora da UFRGS: Tomo Editorial, 2004.
CAUVIN, Colette. Transformações cartográficas espaciais e anamorfoses. In: DIAS, Maria Helena (Coord.). Os mapas em Portugal: da tradição aos novos rumos da cartografia. Lisboa: Cosmos, 1995.
CORAZZA, Sandra Mara. Didática da tradução. In SCHULER, Betina; MATOS, Sônia Regina da Luz; CORAZZA, Sandra Mara (Org.). Experimentações de escrita, leitura e imagem na escola. Cadernos de Notas 6. Porto Alegre/RS: UFRGS, 2014.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro, Ed: 34. 1992.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Ed. Escuta. 1998.
DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. 2ª edição. Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
DELEUZE, Gilles. Foucault, 2ª edição. São Paulo, Brasiliense, 2013.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Tradução de Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 1993.
FATORELLI, Antonio. O virtual fotográfico: técnica, corpo e imagem na contemporaneidade. Revista Lumina/UFJF, 3(2):1-10, 2009.
FONTCUBERTA, Joan. Ciencia y fricción: fotografia, naturaleza, artificio. 1ª edição. Editora Mestizo A.C. Murcia, Espanha. 1998.
FONTCUBERTA, Joan. Estética fotográfica: uma selección de textos. Editorail Gustavo Gili/SA, Barcelona, 2003.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. - Campinas, SP: Ed. Papirus, 1989.
MACHADO, Arlindo. A fotografia sob o impacto da eletrônica. In SAMAIN, Etienne (Org.). O fotográfico. São Paulo: HUCITEC/CNPq, 1998.
NEIRA, Marcos Garcia; LIPPI, Bruno Gonçalves. Tecendo a Colcha de Retalhos: a bricolagem como alternativa para a pesquisa educacional. Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 37, n. 2, 2012.
OLIVEIRA, Thiago Ranniery de; PARAÍSO, Marlucy Alves. Mapas, dança, desenhos: a cartografia como método de pesquisa em educação. Revista Pro-Posições, v. 23, n.3 (69), 2012.
PARAÍSO, Marlucy Alves. Pesquisas pós-críticas em educação no Brasil: esboço de um mapa. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 122, 2004.
PARAÍSO, Marlucy Alves. Currículo nômade: quando os devires fazem a diferença proliferar. In: Edgar Roberto Kirchof; Maria Lucia Wortmann; Marisa Vorraber Costa (Org.). Estudos Culturais e Educação - Contingências, articulações aventuras, dispersões. 1ª Ed. Canoas: Editora da Ulbra, 2015.
PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. Pistas do método da cartografia: pesquisaintervenção e produção de subjetividade. - Porto Alegre, Sulina, 2015.
ROSÁRIO, Nísia Martins do; AGUIAR, Lisiane Machado. Pluralidade metodológica: a cartografia aplicada às pesquisas de audiovisual. Revista Comunicación, v.1, no10, 2012.
ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo, SP: Editora Senac, 2009.
ROY, Kastuv. Gradientes de intensidade: o espaço háptico deleuziano e os três “erres” do currículo. Educação & Realidade, 27 (2): 89-109, jul/dez, 2002.
SILVA, Mariana Silva da. Para preencher um buraco. In A fotografia nos processos artísticos contemporâneos. SANTOS, Alexandre; SANTOS, Maria Ivone (Org.). Porto Alegre: Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura: Editora da UFRGS, 2004.
VEIGA-NETTO,1996, p.168 VEIGA-NETO, Alfredo. A didática e as experiências de sala de aula: uma visão pós-estruturalista. Revista Educação & Realidade, 21(2):161-175, 1996.
VEIGA-NETO, Alfredo. De geometrias, currículo e diferenças. Revista Educação & Sociedade, ano XXIII, n.79, 2002.
VEIGA-NETTO, 2012; VEIGA-NETO, Alfredo. É preciso ir aos porões. Revista Brasileira de Educação, 17(50):267-492, 2012.
VEIGA-NETTO; RECH, 2014, p. 67 VEIGA-NETO, Alfredo; RECH, Tatiana Luiza. Esquecer Foucault? ProPosições, 25(2):67-82, 2014.
WUNDER, 2011, p. 160). WUNDER, Alik. Fotografias, restos quase mortais. Conexões: Deleuze e imagem e pensamento e... / Antônio Carlos Amorim, Silvio Gallo, Wencelao Machado de Oliveira Jr. (Orgs.). - Petrópolis, RJ: De Petrus; Brasília, DF: CNPq, 2011.
Notas