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COMUNIDADES DE TERREIRO NA ARGENTINA
Guilherme Dantas Nogueira
Guilherme Dantas Nogueira
COMUNIDADES DE TERREIRO NA ARGENTINA
Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 20, núm. 29, pp. 180-199, 2018
Universidade Estadual de Campinas
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Resumo: Busco com o artigo apresentar o modo de funcionamento e o contexto social das comunidades de terreiro na Argentina, o que passa por sumarizar o processo de transnacionalização e consequente fixação das religiões afro-brasileiras desde o Brasil àquele país. Para tanto, recorri à pesquisa de campo com imersão junto à comunidade do terreiro Ilé Nueva Conciéncia, localizado na província de Buenos Aires, assim como a diálogos com diferentes religiosos e visitas a locais de referência/interesse dos religiosos. Demais informações foram recuperadas via pesquisa bibliográfica e contato com outros públicos interessados não apenas na temática afrorreligiosa, mas afrodescendente na Argentina. Comunidades de terreiro e suas religiões resistem a um ambiente social intolerante na Argentina e a um Estado que sustenta o catolicismo como religião do governo, e seguem cultuando seus antepassados e divindades, sendo, ainda, pioneiras na luta contra o racismo naquele país.

Palavras-chave: Comunidades de Terreiro, Quimbanda, Umbanda, Batuque.

Abstract: I seek with this paper to present the operating mode and the social context of the Afro-Brazilian religious communities in Argentina, to which I summarize the process of transnationalization and consequent fixing of Afro-Brazilian religions from Brazil to that country. To do that, I engaged in field research with immersion in the community Ilé Nueva Conciéncia, located in the province of Buenos Aires, as well as in dialogues with different religious people and visits to reference/interest places for them. Further information was retrieved through literature and contact with other stakeholders not only in African-religious themes, but African descendance in Argentina. Afro-Brazilian religious communities and their religions resist an intolerant social environment in Argentina and a State that maintains Catholicism as government religion, and continue worshiping their ancestors and deities, being also pioneers in the fight against racism in the country.

Key-words: Afro-Brazilian religious communities, Quimbanda, Umbanda, Batuque.

Carátula del artículo

Article

COMUNIDADES DE TERREIRO NA ARGENTINA

Guilherme Dantas Nogueira
Universidade de Brasília, Brasil
Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 20, núm. 29, pp. 180-199, 2018
Universidade Estadual de Campinas
Introdução

Objetivo neste trabalho debater a organização e o contexto social das comunidades de terreiro na Argentina - o que passa por explorar seu processo de transnacionalização desde o Brasil e consequente fixação naquele país. Essas comunidades, estejam localizadas no Brasil ou no exterior, possuem como principal característica o fato de se organizarem e de reunirem pessoas em seus templos - os terreiros -, a partir dos desígnios e centralidade afrorreligiosos, seguindo os ensinamentos e a lógica comunitária afrobrasileiros (BOTELHO e NASCIMENTO, 2010).

O artigo foi construído a partir de parte da minha dissertação de mestrado, defendida em 2014. Como objeto daquela pesquisa, explorei a relação entre o Estado e as comunidades de terreiro na Argentina, para o que entender a forma como estas se estabeleciam e funcionavam foi um esforço central. Após o mestrado, busquei aprimorar o debate por meio de novos olhares, leituras e revisões, sendo o presente texto um dos resultados deste esforço.

No que tange a métodos, conduzi extensa pesquisa de campo na Argentina, que contou com trabalho de imersão junto à comunidade do terreiro bonaerense Ilé Nueva Conciéncia, comandada pela religiosa mãe Patrícia. Passei um mês em Buenos Aires, durante o qual fiz visitas e coletei variadas informações junto àquela comunidade. Sempre escorado em bibliografia especializada, busquei entender o contexto afrorreligioso naquele país para além dessas pessoas. Isso envolveu, dentre outras atividades, interações com outras/os religiosas/os, representantes de movimentos sociais simpáticas/os a religiões de matriz africana e visitas a lojas de artigos afrorreligiosos. Como facilitador do meu trânsito pelo campo e interpretação das informações recolhidas valeu-me o fato de que sou, além de pesquisador, candomblecista iniciado.

Um olhar atento à história, às instituições e à vida social argentinas indicam que aquele não é um país totalmente secularizado. Todavia, o Estado argentino assegura o direito à livre prática religiosa em sua Constituição (ARGENTINA, 1994). E é valendo-se dessa premissa que as/os integrantes das comunidades de terreiro se reúnem em seus templos naquele país para praticar suas religiões, notadamente, segundo Ari Oro (1999), a Quimbanda, a Umbanda e o Batuque.

As religiões afro-brasileiras envolvem diversas práticas devocionais, rituais cuidadosamente planejados e executados coletivamente dentro e fora do terreiro, celebrações espontâneas em louvor a divindades ou respeito e comunicação com entidades (espíritos não divinizados de pessoas mortas) e ainda a prática da magia de diversas formas. Suas comunidades, conforme Denise Botelho e Wanderson Nascimento (2010), organizam-se a partir da compreensão afro-brasileira de “comunidade, solidariedade e interdependência”, em que “todas e todos são importantes para a perpetuação da tradição e são acolhidos nas suas particularidades e especificidades” (BOTELHO e NASCIMENTO, 2010, p. 81).

As religiões afro-brasileiras foram formadas a partir da herança cultural e religiosa das/os africanas/os que desembarcaram no Brasil para realizar trabalho escravo, herança essa que foi aqui ressignificada por essas mesmas pessoas e suas/seus descendentes (NASCIMENTO, 2016). Para fins práticos, classifico-as aqui em dois grupos, conforme ênfase da prática comunitário-religiosa: religiões de (1) louvor a deuses africanos e de (2) culto a entidades - ambos os grupos contam com transes e incorporações mediúnicas. Sobretudo a partir do século XX, essas religiões e as formas peculiares de organização das comunidades de terreiro foram levadas por suas/seus praticantes do Brasil a outros países do Mercosul e de todo o ocidente (ORO, 1999). Todas as comunidades, com maior ou menor ênfase, creem e cultuam deuses africanos.

Há variações importantes entre divindades e entidades (BROWN, 1994). As primeiras foram trazidas ao Brasil (e a outros países das Américas) por africanas/os durante o tráfico negreiro (BASTIDE, 1971; VERGER, 1981; SILVEIRA, 2009). As segundas, geralmente - mas não exclusivamente - associadas à Umbanda, são espíritos que voltam à terra a serviço dos deuses africanos, com o auxílio das/os médiuns que lhes incorporam, para auxiliar as pessoas vivas (BROWN, 1994).

As divindades africanas cultuadas no Brasil são aquelas originárias do centro e do oeste africano, dividindo-se em três grupos, que apresentam sincretismos entre si: inquices, voduns e orixás (SILVEIRA, 2009). Elementos dos cultos a esses deuses e das culturas de seus adeptos foram reunidos e misturados no Brasil (BASTIDE, 1971). Assim, no Brasil - e em todos os países para os quais religiões afro-brasileiras foram levadas - orixás, inquices, ou voduns podem ser considerados como termos semelhantes, ainda que não sejam sinônimos. Neste trabalho, para facilitar leitura, me referirei a todos como divindades (ou, em alguns momentos, deuses africanos).

As/os afrorreligiosas/os são, invariavelmente, pessoas iniciadas/os. Em grande parte de suas religiões - particularmente no Batuque (religião de louvor a deuses africanos) - é durante o processo de iniciação que é revelado à/ao adepta/o, pela mãe ou pai de santo, por meio do método de divinação conhecido como jogo de búzios, sua(s) divindade(s) guia(s) - da(s) qual(is) é considerada/o descendente - e o papel que deve exercer na comunidade de terreiro. Trata-se, conforme Pierre Verger (1981), Botelho e Nascimento (2010), do nascimento para uma nova vida. Ao ser iniciada/o, a/o adepta/o se torna filha/o de santo da mãe ou pai que a/o inicia. A comunidade de terreiro, explica Julio Braga (1998), é formada pela mãe ou pai de santo e por suas/seus filhas/os de santo. Cabe às mães ou pais de santo o papel de liderar suas comunidades de terreiro, que assumem de acordo com as tradições de suas religiões. Há uma hierarquia de poder dentro dessas comunidades, que possui a mãe ou pai de santo como lideranças máximas (EUGÊNIO, 2011; NOGUEIRA, 2016). Divindades e outros seres espirituais cultuados são também parte das comunidades.

Herdeiras dessa mesma tradição, comunidades de terreiro umbandistas e quimbandistas podem apresentar variações em sua formação e funcionamento. No caso dessas religiões o início de uma comunidade pode se dar pela iniciativa de um/a médium (ou por uma designação espiritual que esse/a venha a receber), que incorpore uma ou mais entidades, como pretos velhos, caboclos, pombas giras e outros, que oferecem consultas a qualquer pessoa (cliente religiosa/o) que se interesse por conversar com esses espíritos. Em torno dessas consultas - e a partir do local em que ocorrem - é formado o terreiro, que poderá passar a funcionar de forma mais regular, com cultos abertos ao público e previamente agendados, contando, inclusive, com a participação de outros/as médiuns e suas entidades (BROWN, 1994). Nessas comunidades, o jogo de búzios nem sempre está presente.

Enquanto ritual, além da interação com as pessoas por meio de consultas espirituais e atividades relacionadas à magia, é característica das religiões afro-brasileiras a realização de festas pelas comunidades de terreiro, com ou sem a presença de público, em que músicas são cantadas e tocadas em atabaques em louvor a divindades. Por sua vez, durante a execução dessas cantigas, as divindades podem ser incorporar nas/nos iniciadas/os e participar dos cultos, dançando ao som dos tambores e sendo reverenciadas (BROWN, 1994).

Diana Brown (1994) explica que, embora se tratem de religiões em que os deuses africanos são impreteríveis e cultuados, o eixo central da Umbanda e da Quimbanda é o culto às entidades. São estas, conforme explica, que realizam o trabalho de atendimento à clientela religiosa, bem como é o poderio desses espíritos, sua eficácia no atendimento às demandas das pessoas, que traz fama à/ao médium que lhes incorpora. Sulivan Barros (2010) indica haver especificamente na Umbanda a possibilidade da incorporação de inúmeras entidades, distribuídas em grupos arquetípicos que se renovam ao longo do tempo. O autor lista os seguintes grupos: caboclos (índios), pretos velhos, crianças, exus, pombas giras, malandros, boiadeiros, marinheiros, sereias, ciganas/os, baianas/os, oguns (soldados) e outros personagens, que englobam espíritos de crianças de rua, judeus e homossexuais, dentre outros.

A Quimbanda, por sua vez, segundo me explicou mãe Patrícia, nasceu como religião a partir da Umbanda e se concentra na incorporação de exus e pombas giras. Trata-se de uma religião específica por ter crescido em relação à Umbanda, não sendo incomum que reúna clientela religiosa própria, com demandas direcionadas a essas entidades. Os pedidos estariam ligados à quebra de malefícios de magia negra e limpeza de ambientes, que são trabalhos distintos das ações de caridade, prestadas por pretos velhos e caboclos, considerados espíritos superiores. Essa explicação contraria Brown (1994), que indica ser a Quimbanda uma religião rival à Umbanda, dedicada à realização da magia para o mal, ao passo que a Umbanda se dedicaria à realização da magia para o bem e à consequente luta contra a Quimbanda. Segundo mãe Patrícia, tanto a Umbanda quanto a Quimbanda se dedicam à realização de magia para o bem, embora o malefício possa também ser demandado por uma pessoa a uma entidade incorporada, seja na Quimbanda ou na Umbanda, a partir de sua própria consciência.

Finalmente, conforme Oro (1999), a religião afro-brasileira mais praticada na Argentina é a Quimbanda. Isso se deve ao fato de haver naquele país a crença de que os exus são mais hábeis para a solução de problemas financeiros, uma causa comum que leva pessoas não adeptas aos terreiros. Nesse mesmo sentido, Alejandro Frigerio (2003) indica que sessões quimbandistas são sempre as mais concorridas e atendidas por interessados em religiões afro-brasileiras naquele país.

O Ilé Nueva Conciéncia

O relato sobre o Ilé Nueva Conciéncia e suas/seus religiosas/os é útil para ilustrar como pode vir a se formar e funcionar uma comunidade de terreiro na Argentina.

Segundo conta mãe Patrícia,

minha mãe de santo insistia em que eu devia começar a fazer sessõesi [de Quimbanda e Umbanda] na minha casa, que estava preparada. Já havia começado a realizar iniciações, mas apenas com ervas, nada de axoro [(sangue)], e vários exus haviam chegado pela mão do [meu exu,] El Viejo. Eu sentia medo, não me sentia segura para tal responsabilidade, mas um dia uma das entidades da minha chefe [de terreiro] marcou meu cacicado com pressa, pois eu já tinha todos os axés que ia necessitar para abrir minha casa nas três linhas [religiosas: Quimbanda, Umbanda e Batuque]. Mais ou menos um ano mais tarde falou de novo uma entidade de Umbanda dela marcando jogo de búzios, pois já era o momento; surpresa e ponto final à recusa. Eu não estava nessa sessão, foi uma festa na casa de outra pessoa onde ela (minha mãe) havia sido convidada a participar. Pouco tempo depois começaram os preparativos para a chegada dos meus orixás do templo da minha mãe à minha casa, desde então transformada em templo.

A comunidade começou com cerca de cinco membros e hoje são pouco mais de dez. Cada um carrega consigo a capacidade de incorporação de sua divindade pessoal (seu orixá) - para o que são iniciados pelas tradições do Batuque (o uso aqui da palavra “orixá” se refere a estas tradições) - e de múltiplas entidades, que se manifestam durante os rituais religiosos quimbandistas e umbandistas e interagem com os participantes. Assim, pode-se dizer que, dentre vivas e mortas, a comunidade é frequentada por várias pessoas, de diversas origens e tempos e com inúmeras histórias de vida. Dentre as vivas, destaca-se a grande presença de jovens adultas. Muitas moram em Ramós Mejía, mas há também pessoas de outras cidades da província de Buenos Aires, e da capital. Todas são filhas de santo de mãe Patrícia. Já dentre as mortas, há pessoas de diversas origens: afro-brasileiras/os escravizadas/os, que ainda em vida escaparam da senzala; ex-soldados que lutaram inúmeras batalhas ao longo de diversas vidas; boêmias/os de todas as épocas, que seguem adorando festejar; curandeiras/os poderosas/os e voluntariosas/os, que carregam como missão espiritual a ajuda ao próximo; dentre outras/os. De uma forma geral, todas são lideradas pela entidade Destranca Rua - El Viejo, como é chamada pela família religiosa -, líder espiritual da comunidade, que é incorporada por mãe Patrícia. Há ainda mais uma dezena de pessoas que foram iniciadas por essa mãe de santo, mas que não mais frequentam o terreiro.

El viejo se manifestou no corpo de mãe Patrícia pela primeira vez no Convento do Carmo, em Salvador/BA, em 1989. É uma entidade extremamente interessante, que faz jus ao apelido que carrega. Relata em claro e bem articulado português - o que impressiona, visto ser mãe Patrícia argentina - ter chegado ao planeta Terra como ser espiritual ainda no início da existência da humanidade, tempo sobre o qual conta diversas histórias, em detalhes. Em uma das mais incríveis, explica ter sido cultuado por uma tribo de caçadores como deus da caça, possuindo relação direta com as lanças usadas por aquelas pessoas para buscar comida. Contudo, não conseguia, a partir de onde se encontrava, desencarnado, entender as verdadeiras necessidades pelas quais era cultuado, visto não ter nunca passado fome ou precisado caçar um animal para se alimentar. Assim, em momento oportuno, encarnou-se na terra na condição de uma pessoa que deveria enfrentar a fome, para que, a partir dessa experiência, verdadeiramente compreendesse do que se tratava seu culto. A partir das vivências acumuladas em todas as suas encarnações, bem como em toda a sua existência como ser desencarnado - inclusive antes de chegar ao planeta terra -, El Viejo acumulou grande conhecimento, que hoje é utilizado e repassado nas atividades e cultos em que toma parte junto aos membros do Ilé Nueva Conciéncia.

A razão de existência da comunidade é o repasse de experiências entre suas/seus integrantes mortas/os e vivas/os. Em todas as sessões religiosas que participei o tom era aquele de uma reunião informal de amigas/os, que em círculo comiam, bebiam e conversavam sobre suas vidas. Nessas conversas, as pessoas vivas - eu inclusive - eram sempre ouvidas, aconselhadas e orientadas pelas entidades incorporadas, que demonstravam imenso prazer em contar suas histórias e repassar seus conhecimentos. Outras atividades também ocorriam, como consultas entre uma pessoa viva e uma entidade com o objetivo de cura, limpezas energéticas ou aconselhamento sobre problemas pessoais. Consultas com El Viejo eram particularmente frequentes e todos ao seu redor demonstravam interesse em suas orientações. Ainda assim, rodas de conversa dominavam as atividades. Também havia momentos de louvor a divindades.

Ainda que sejam as mais frequentes, os papeis religiosos de El Viejo, das demais entidades, e com eles de toda a comunidade, não se resumem às rodas de conversa e cerimônias religiosas realizadas no terreiro. Práticas devocionais e magia são elementos presentes em todos os momentos da vida dos integrantes da comunidade do terreiro, dentro e fora do templo. Em todas as atividades a participação de El Viejo pode ser demandada pelas/os filhas/os de mãe Patrícia, assim como a das outras entidades, ou a das divindades. Essas, vale dizer, mesmo nas cerimônias em que não são invocadas, seguem presentes como deuses que são, tendo, portanto, uma participação mais abrangente em todos os aspectos da vida das/os religiosas/os e, em sua crença, de todas as pessoas do planeta.

A partir dessa forma de organização de comunidade religiosa, a exemplo do que ocorre no Brasil com diversas comunidades de terreiro, a comunidade do Ilé Nueva Conciéncia poderia se envolver em atividades externas de diversas naturezas - como atividades filantrópicas ou de militância política. Isso, todavia, não ocorre, pois, segundo mãe Patrícia, “preferimos as atividades sociais laicas, sem bandeiras religiosas e, no meu caso, nem políticas”. A mãe de santo indica, contudo, que:

Trato de impulsionar os meus filhos [de santo] a sustentar uma consciência social em suas ações, assim sinto orgulho de vê-los ser homens e mulheres comprometidos desde diferentes trabalhos profissionais ou não. Creio que conheça o trabalho de A. Outro deles, D., participou muito ativamente, mas sem bandeiras políticas, na luta para que todos os trabalhadores por contrato [(que não possuem registro laboral formal)] de ferrovias fossem contratados formalmente em condição paritária. P. é bombeiro ad honerem, ainda que seja eletricista e, bem, minhas filhas [biológicas] querem ser professoras e a mais velha participa ativamente na representação estudantil. Estão lutando por um edifício próprio, estão dando aulas para a comunidade daquilo em que possuem competências. Juntamos roupa para enviar ao interior, às províncias mais pobres, algumas vezes por ano e eu tenho comigo mesmo como meta amadrinhar uma escola rural desde já alguns anos, mas não possuo ainda os meios econômicos. Mais do que isso não fazemos.ii

Completando a fala de mãe Patrícia, o trabalho de A., de que eu mesmo já teria conhecimento, inclui diversas práticas artísticas e musicais, inclusive de ritmos afro-brasileiros, que são desenvolvidas tanto junto ao público em geral quanto a crianças, como trabalho social.

Para além dessa fala, acrescento minha própria observação de que mãe Patrícia e algumas/uns de suas/seus filhas/os de santo se envolvem com ativismo digital, compartilhando protestos por causas sociais variadas por meio da Internet, que muitas vezes estão relacionadas ao combate ao racismo religioso na Argentina. Mas reitero a fala da mãe de santo, de que essas não são atividades em nome da comunidade do terreiro, ou mesmo que a envolvam, mas ações individuais.

Cabe aqui mencionar que a opção pela não militância política, ou por uma militância discreta, não é a regra entre os afrorreligiosos na Argentina. Pelo contrário, foram eles que iniciaram o que é hoje conhecido como movimento afrodescendente argentino, a que dedico um item próprio na sequencia deste trabalho.

O Ilé Nueva Conciéncia é uma comunidade de terreiro pequena. O templo em que se reúne funciona na casa de mãe Patrícia, com a qual se confunde em muitos momentos. A cozinha, por exemplo, central nas religiões afro-brasileiras, é a mesma utilizada pelas/os moradoras/es da casa - que são todas/os integrantes da comunidade. Em dias de rituais religiosos, a rotina do cômodo deve ser alterada e inúmeras práticas, como o ato de fumar, praticado pelas/os moradoras/es, ficam proibidas no local. Também na mesma cozinha se encontra um quadro de tarefas, que são divididas entre a família religiosa de forma hierarquizada, segundo preceitos quimbandistas e a liderança da mãe de santo.

Outros cômodos são também utilizados ao mesmo tempo como local de moradia e templo religioso, como a sala da casa, em que se localiza o altar central do terreiro e em que são realizadas rodas, cantigas e rituais de incorporação. Trata-se do principal salão do templo, em que cerimônias públicas são conduzidas, mas que, pelas dimensões pequenas do lugar, não pode receber muitas pessoas além da família de santo.

Com acesso pela sala, em seu próprio quarto, encontram-se os orixás assentados da comunidade, conforme indicam as tradições do Batuque. Assentamentos são materializações das divindades que, para os praticantes de religiões afro-brasileiras, balizam sua energia aos iniciados. Devem, portanto, ser guardados nos terreiros de que façam parte os religiosos e, por isso, ao mudarem de terreiro, como o fez mãe Patrícia ao iniciar seu próprio templo, os assentamentos são carregados. Em outro cômodo, em outra parte da casa, estão os assentamentos dos exus cultuados na Quimbanda. Esses são entidades que, com base nos rituais dessa religião, devem também ser assentadas.

Os cômodos em que se encontram os assentamentos, a sala com o altar, a cozinha e um banheiro, que também é utilizado pelas/os frequentadoras/es do terreiro, além de alguns corredores e áreas de passagem, conformam o primeiro andar da casa. Dessa forma, todo o pavimento é tomado pelo templo, que ocupa a maior parte do local. Resta ao uso particular das/os moradoras/es o segundo andar da casa, mas que pode ter seu banheiro também utilizado por convidadas/os durante atividades religiosas, caso haja filas no banheiro do primeiro andar. Com isso, conforme mãe Patrícia, sua casa funciona como residência e terreiro, mas por vezes muito mais como terreiro.

O Ilé Nueva Conciéncia é um terreiro mantido invisível por sua sacerdotisa, proprietária da casa onde funciona. Com isso, mesmo para observadoras/es atentas/os e durante uma cerimônia, é difícil perceber pela aparência externa do local que ali funciona um terreiro. Da porta para dentro tal fato se torna evidente, mas apenas convidadas/os passam pela porta. Tal postura encontra reflexo na forma como sua comunidade opera, também invisível aos olhos de pessoas ou organizações que não sejam conhecidas ou vizinhas da casa. Isso funciona como estratégia de sobrevivência: mantendo-se discreta a comunidade desperta pouco interesse externo e, consequentemente, sofre menos com a estigmatização direcionada às/aos afrorreligiosas/os (argentinas/os ou não), amplamente presente na Argentina.

Justamente por ser também a residência de quatro pessoas, faz-se necessário manter certa flexibilidade nas atividades do terreiro, que em geral ocorrem em dias pré-agendados e com periodicidade planejada. Às segundas-feiras, por exemplo, a família de santo vai até o terreiro para fazer feitiços demandados por suas divindades e entidades. Alguma flexibilidade é mantida também pelo fato de que nenhum/a dos/as religiosos/as vive do terreiro, nem mesmo mãe Patrícia, pelo que trabalham nos horários e dias designados por seus/suas contratantes, que podem se chocar com eventuais práticas religiosas. Não obstante, toda a comunidade se envolve coletivamente em algumas atividades que exigem a presença contínua de pessoas. Um exemplo é uma iniciação no Batuque de um/a novo/a filho/a, que deve ficar recolhido/a a uma sala de acesso restrito durante sete dias seguidos, em que deve ser alimentado/a, ensinado/a sobre detalhes da vida enquanto batuqueiro/a iniciado/a, auxiliado/a a lidar com seu orixá (que “nasce” nesse processo), etc.

O fato de o terreiro funcionar na casa de mãe Patrícia traz, ainda, outras limitações para o tamanho de sua comunidade e de seus rituais. Segundo a sacerdotisa, por ser sua residência, não lhe é confortável nem recomendado receber desconhecidas/os no terreiro. Assim, todas/os suas/seus filhas/os de santo possuem algum vínculo pessoal com residentes da casa. Efetivamente, teria sido impossível minha aproximação da comunidade sem a indicação de uma pessoa conhecida. Por outro lado, o tamanho pequeno do Ilé Nueva Conciéncia favorece a convivência com a comunidade externa ao terreiro. Isso porque mesmo quando noites são viradas em meio a rituais acompanhados de cantos e toques de tambores, o barulho não chega a ser alto e não parece incomodar as casas vizinhas. Pela mesma forma, não há movimentação grande de pessoas entrando e saindo da casa, e o transito de pedestres constante na rua do terreiro, que é rota de passagem para diversos bares e casas noturnas de Ramós Mejía, suplanta qualquer movimentação dentro do templo. Assim, a prática religiosa não chama a atenção e não dá motivos para que seja interpelada por pessoas de fora. O terreiro, por ser discreto, se mantém distante de maiores questionamentos, o que sua comunidade indica ser benéfico.

Cabe comentar, finalmente, que o templo funciona na casa de mãe Patrícia porque, segundo a sacerdotisa, ela não teria condições financeiras de manter sua residência e o terreiro em casas separadas, a exemplo do que ocorre com muitos terreiros de Candomblé e Umbanda no Brasil. Segundo Oro (1999), também no Rio Grande do Sul terreiros de Batuque funcionam na casa de suas/seus líderes, tendo essa sido uma prática levada para a Argentina junto com as próprias religiões.

A transnacionalização das religiões afro-brasileiras para Argentina

As/os africanas/os trazidas/os ao Brasil por meio do tráfico negreiro, via de regra, chegaram pelo porto de Santos, mas foram aí divididas/os em diferentes grupos e enviadas/os às regiões brasileiras que demandavam por escravas/os. Foi assim que chegaram ao Rio Grande do Sul, sobretudo à região Pelotas, pessoas responsáveis por lá introduzirem cultos a divindades. Essas pessoas não teriam inicialmente tido contato com outras/os africanas/os escravizadas/os em outros lugares do Brasil, o que as levou a desenvolver naquela região uma religião afro-brasileira própria, que é o Batuque. Finda a escravidão, o Batuque se espalhou pelo Rio Grande do Sul e pelo sul do país em geral (ORO, 1999).

Elementos comuns a outras religiões afro-brasileiras, inexistentes nos cultos africanos originais, como sincretismos entre orixás, inquices e voduns, podem também ser encontrados no Batuque. Isso demonstra que essa religião em algum momento se misturou com outras no Brasil. Segundo Oro (1999), no mesmo movimento de trânsito e mistura de religiões afro-brasileiras dentro do Brasil, no século XX a Umbanda chegou ao Rio Grande do Sul e começou a ser cultuada, dentre outros, nos terreiros onde já se praticava o Batuque.

O século XX trouxe também blocos econômicos como o Mercosul e o crescimento do fluxo migratório de pessoas por força da globalização da economia. Este foi ainda mais intenso entre o Brasil e os vizinhos Uruguai e Argentina. A movimentação de pessoas carregou consigo, mais uma vez, não apenas bens físicos comercializáveis, mas também bens culturais. E nesse movimento, na década de 1960, o Batuque e a Umbanda chegaram à Argentina (ORO, 1999).

Discorrendo sobre o processo da migração afrorreligiosa, inclusive a contemporânea, Frigerio (2003) afirma que:

As religiões afro-brasileiras, assim como outras variantes afro-americanas, se expandiram para distintos países. Essa propagação, não planejada nem dirigida, se produz através das ações particulares de indivíduos (...) que migram por motivos econômicos a outros países - outros visitam por períodos curtos - e lá iniciam novos devotos. Alternativamente, como sucedeu na Argentina e no Uruguai, a difusão também se deve ao acionar de devotos nativos que havendo conhecido a religião no estrangeiro começam a praticá-la em seu próprio país. Esta propagação sem direção e algo anárquica possui especificidades locais de acordo com o contexto social e a variante religiosa envolvida (FRIGERIO, 2003, p. 35).

Inicialmente as religiões afro-brasileiras foram aprendidas por uruguaias/os, na fronteira com o Brasil, tendo chegado primeiro ao Uruguai do que à Argentina, visto a repressão a religiões diferentes do catolicismo então vigente nesse país. Sua chegada na Argentina se deu na década de 1960 e contou com entrada dupla: uruguaias/os religiosas/os que migraram para lá levando Batuque e Umbanda; e argentinas/os que aprenderam as religiões afro-brasileiras diretamente no Brasil e as transportaram para o seu país (ORO, 1999). Em menor número, adeptas/os brasileiras/os também migraram para esses países e carregaram consigo suas religiões.

O processo de migração afrorreligiosa do Brasil para os países do Prata é chamado por Oro (1999, p. 17) de “transnacionalização das religiões afro-brasileiras”. Assim, o conceito de transnacionalização designa

“toda relação que (...) se constrói no espaço mundial além do quadro estatal nacional e que se realiza escapando ao menos parcialmente do controle ou da ação mediadora dos Estados” (BADIE e SMOUTHS, 1992). Este sentido dado à transnacionalização se aproxima daquele proposto por Paul Vieille, que a distingue de internacionalização e de mundialização (ou globalização). A internacionalização implica numa relação de trocas externas entre dois ou mais países e remete a uma relação de forças num sistema interestatal. Já a mundialização/globalização aponta para o efeito de homogeneização econômica, jurídica, cultural e institucional, que produz um mundo (total) de objetos materiais e imateriais estandardizados num contexto de luta entre blocos econômicos. A transnacionalização, por sua vez, escapa da lógica do Estado e não se refere diretamente a objetos, mas a necessidades que atravessam as fronteiras (VIEILLE, 1986). (...) Transnacionalização remete, portanto, à propagação, sobretudo, de bens e necessidades simbólicas que ocorre à margem do aparato estatal (ORO, 1999, p. 17-18).

A forma e consequências da transnacionalização com entrada dupla das religiões afro-brasileiras para a Argentina, conforme Oro (1999), culminaram no que classifica, citando Frigerio, como duas escolas: a entrada das religiões diretamente do Brasil - escola brasileira; e a entrada das religiões por meio do Uruguai - escola uruguaia. Essa separação não é distintiva apenas pelas fronteiras cruzadas, mas também pela forma como os rituais são praticados. O tempo de iniciação de pessoas da escola uruguaia é menor que o da escola brasileira, que também representa nações religiosas distintas: “Oió, Cabinda, JejeIjexá” (ORO, 1999, p. 64). A escola uruguaia representa a nação “‘Jeje, ou Jeje-Nagô’” (FRIGERIO, 1998a, apudORO, 1999, p. 64).

Além das escolas distintas, Oro (1999) explica haver duas versões para o momento de entrada das religiões afro-brasileiras na Argentina. Uma é apresentada por Frigerio, que indica Nélida de Oxum e Élio de Iemanjá como pioneiros. Ambos abriram terreiros em Buenos Aires, sendo primeira em 1966 e o segundo em 1968 (FRIGERIO, 1998a, apudORO, 1999). A outra versão, explica Oro (1999), é apresentada por Rita Segato, que indica que o primeiro pai de santo a formar clientela religiosa na cidade de Buenos Aires foi a travesti Santiago Paves, conhecida como Mara - versão que a autora indica ser substituída na Argentina por outras mais alinhadas com a moral social daquele país, como estratégia para conquistar respeito (SEGATO, 1985, p. 12, apudORO, 1999).

Não obstante a forma e/ou momento em que tenha se dado, a chegada dessas religiões aos países platinos gerou uma demanda pela presença de lideranças religiosas brasileiras naquela região. Esta foi atendida, o que intensificou o processo de transnacionalização, com novas/os adeptas/os sendo iniciadas/os pelas/os brasileiras/os a cada visita. Essa mesma fórmula é válida para Uruguai e Argentina, embora as religiões tenham se fixado mais facilmente no primeiro, em que o Estado é tradicionalmente mais secular (ORO, 1999).

A Argentina resguarda ainda no presente por meio de sua constituição o catolicismo como religião oficial do governo. Isso implica, conforme Frigerio e Hilario Wynarczyk (2004), dentre outros, que igrejas católicas possuem isenção de impostos e privilégios jurídicos. Além disso, Oro (1999) indica que as relações entre Estado e religiões afro-brasileiras na Argentina apresentaram desde o início durante o regime militar, um cenário de repressão e perseguição. A prática afrorreligiosa só era permitida se os terreiros fossem registrados na instituição Registro Nacional de Cultos e, mesmo assim, eram vigiados e frequentemente fechados, sendo suas/seus integrantes presas/os sob acusações como exercício ilegal da medicina e sacrifício animal. Assim, a maioria das/os religiosas/os preferia manter-se na clandestinidade e praticar suas religiões em segredo.

Mãe Patrícia relata ter vivenciado essa época - anterior ao Ilé Nueva Conciéncia - e indica “não haver ponto de comparação” entre a repressão por parte do Estado então vigente e a permissão que tem agora para conduzir as atividades de seu terreiro. Oro (1999), finalmente, indica que também a grande maioria das/os argentinas/os acusavam afrorreligiosas/os de serem feiticeiras/os, o que observo como surpreendente no século XX, sobretudo em um país que se pretende moderno.

Por ser a transnacionalização das religiões afro-brasileiras recente, sem coincidir com o processo de colonização das Américas, e operada por argentinas/os, uruguaias/os e brasileiras/os do presente, Frigerio (2003, p. 35) indica que esse é um movimento de “diáspora religiosa secundária”. A “diáspora religiosa primaria” foi aquela que trouxe os cultos a deuses africanos ao Brasil por meio do tráfico negreiro e que, portanto, ainda que haja aqui estigmatização, possibilitou que fizessem parte do processo de construção do país, sendo as religiões afro-brasileiras reconhecidas como parte do patrimônio cultural nacional. A “diáspora religiosa secundária” não se beneficia de tal fato e, com isso, carrega consigo dois elementos:

O primeiro é a resistência social que estas religiões geram quando ultrapassam um determinado umbral de visibilidade ou alcançam um número determinado de praticantes no novo contexto social. O segundo (...) é a enorme dificuldade que encontram os líderes religiosos e seus seguidores para organizar respostas coletivas dirigidas a fazer frente à estigmatização social que costuma acompanhar suas religiões (FRIGERIO, 2003, p. 3536).

Sobre a prática religiosa, Oro (1999) aponta não haver variações substanciais para o Brasil na forma como as religiões são praticadas na Argentina. Os terreiros se assemelham àqueles do Rio Grande do Sul e, majoritariamente, funcionam na residência das mães e pais de santo, praticando Umbanda e Batuque. O português é usado como língua ritual nos cultos umbandistas e as entidades incorporadas se comunicam nessa língua, mantendo o sotaque castelhano, ou algumas vezes em portunhol. Vale comentar que a língua ritual do Batuque, também no Brasil, é o iorubá.

Constatei em campo a forte presença do português brasileiro, muito bem falado por diversas entidades com quem conversei durante rituais umbandistas e quimbandistas no Ilé Nueva Conciéncia. Além disso, quando as perguntei sobre sua história, surpreendeu-me o fato de que a maioria respondeu terem sido brasileiras e/ou terem vivido no Brasil durante suas vidas. Algumas contaram ter sido pessoas nascidas na África e trazidas para o Brasil na condição de escravos; outras disseram ter sido baianas/os; uma entidade - chamada Nema - ficou especialmente animada com o fato de me contar detalhes de seu nascimento, vida e andanças por Minas Gerais, que é também meu estado de origem (documentei a conversa em outro artigo - NOGUEIRA, 2017). Verdadeiras aulas de uma história que não consta em livros me foram dadas por esses antepassados que, incorporadas/os em médiuns argentinas/os, seguem reproduzindo naquele país não apenas religiões brasileiras, mas a própria “brasilidade”, com toda animação, alegria e calor humano que essa imagem suscita.

Outrossim, havia dentre as/os religiosas/os argentinas/os com quem conversei pessoas que se esforçam para conhecer a língua portuguesa (a maioria delas) e também o iorubá e o bantoiii em alguns casos, ainda que não relatem haver utilidade para tal conhecimento em suas vidas cotidianas. Oro (1999) enfatiza que a manutenção da estrutura religiosa brasileira tanto no Batuque quanto na Umbanda, e da língua portuguesa na Umbanda, se deve ao fato de as religiões terem sido ensinadas às/aos argentinas/os e uruguaias/os por brasileiras/os. Isso, pois foram as/os brasileiras/os que durante as décadas de 1970 e 1980 empreenderam no que o autor classifica como um trabalho missionário naqueles países. Assim, terreiros foram abertos como filiais de templos gaúchos e as mães e pais de santo platinas/os buscam tornar público o fato de serem filhas/os de santo de brasileiras/os, quando este é o caso.

Seguindo com a transnacionalização religiosa, Oro (1999) explica que a década de 1990 viu uma diminuição da presença de brasileiras/os nos países do Prata, e as religiões afro-brasileiras seguiram se reproduzindo a partir das/os próprias/os praticantes locais. Isso impulsionou um movimento de diferenciação das práticas religiosas na Argentina. As/os integrantes do Ilé Nueva Conciéncia me relataram que quando as/os argentinas/os foram “deixadas/os sozinhas/os” pelas/os brasileiras/os, coube a elas/es próprias/os descobrirem e criarem formas de responder a interrogações que ainda teriam sobre as religiões, o que também passa por aprenderem com as próprias entidades que se incorporam em seus terreiros. Não se trata de uma forma de agir unanimemente apreciada, segundo explicaram, mas praticada e defendida por muitas comunidades de terreiro. Esse movimento reinventa as religiões afro-brasileiras na Argentina e tem potencial para, com o tempo, criar novas formas religiosas naquele país.

Ouvi de outras/os religiosas/os argentinas/os, contudo, que tais interpretações descaracterizam as religiões e vão contra seus fundamentos, devendo ser evitadas. Cabe observar que não há uma instância central padronizadora das religiões afro-brasileiras, a exemplo do que representa o Vaticano para o Catolicismo. Nesse sentido, é possível afirmar que, no limite, cada comunidade de terreiro possui suas próprias variações religiosas e define a forma como são praticadas. Isto não implica que todas as comunidades possuirão religiões radicalmente diferentes, mas que possuem liberdade de ajustar suas práticas às suas especificidades.

Com o afastamento das/os brasileiras/os houve aproximação por parte das/os argentinas/os de religiosas/os nigerianas/os, o que resultou na criação de uma linha dissidente do Batuque praticado naquele país, que passou a resgatar o culto a Ifá, com seu oráculo divinatório que, no Brasil, perdeu espaço para o jogo de búzios no século XX. Trata-se de um resgate argentino, diferente de movimento semelhante que também ocorre no Brasil. Os pais e mães de santo responsáveis pela criação dessa linha se ocupam, também, do estudo da língua iorubana, o que lhes auxiliaria a compreender melhor o próprio Batuque. Contudo, do ponto de vista de seus rituais, essa linha dissidente, chamada de Ifismo, não é muito diferente do Batuque original, apenas conta com o culto a Ifá como diferenciador (ORO, 1999).

Constatei em campo que, para as/os afrorreligiosas/os argentinas/os há uma diferença entre Batuque e o Ifismo. As/os ifistas, suas/seus praticantes, não são confundidas/os com as/os batuqueiras/os tradicionais, seguidoras/es dos ensinamentos das mães e pais de santo gaúchas/os. Como pleito, defendem resgatar cultos afro-argentinos originais, que não possuem relação com o Brasil, descontinuados desde um passado longínquo em que a população negra na Argentina foi drasticamente reduzida do que teria sido quando o tráfico negreiro também levou africanas/os àquele país.

Oro (1999) problematiza, contudo, que o Ifismo pode não ter relação com uma recuperação das raízes afro-argentinas naquele país, sendo motivado por uma competição com religiosas/os do Rio Grande do Sul, que vivem geograficamente próximos à Argentina. Ou seja, em um ambiente de competição por clientelas religiosas que demandam por serviços espirituais, as/os argentinas/os apresentariam uma “vantagem competitiva” às/aos gaúchas/os, criadoras/es do Batuque, que é a divinação do destino das pessoas por meio do oráculo de Ifá, que creem ser mais exato do que o jogo de búzios. Isso é ainda mais evidente para Oro (1999) com a observação de que as/os argentinas/os acusam as/os batuqueiras/os brasileiras/os de terem perdido os fundamentos da religião, que devem, portanto, ser resgatados diretamente na África, acusação essa que não recairia sobre as/os candomblecistas brasileiras/os. O Candomblé, afro-baiano e percebido como uma religião mais africana e mais preservada do que o Batuque, é pouco praticado na Argentina ou mesmo no Rio Grande do Sul, pelo que não oferece competição ao Batuque. O Ifismo, finalmente, é característico do cenário religioso argentino, embora não seja generalizado. Há ainda, segundo Oro (1999) e conforme constatei em campo, casas de Batuque como o Ilé Nueva Conciéncia que seguem praticando essa religião tal como teria sido originalmente ensinada pelas/os brasileiras/os, sem perceber problemas nisso.

Ainda sobre as práticas religiosas, concordo com Segato (2003) na tese de que um dos resultados da migração religiosa é um continuado sincretismo entre crenças estrangeiras e locais. Isso, no caso da transnacionalização das religiões afro-brasileiras para a Argentina se verifica, por exemplo, no uso de defumadores do santo católico San Cayetano - bastante popular na Argentina - nos rituais umbandistas daquele país. Isso contribui para a formação contínua de um conjunto de religiões afro-brasileiras próprio da Argentina, ainda que o Brasil mantenha o papel simbólico como seu local de origem.

Seja com ou sem variações, sofrendo mais ou menos com a intolerância religiosa, o fato é que com o tempo as religiões afro-brasileiras se fixaram na Argentina. De acordo com Frigerio e Eva Lamborghini (2011), existiam em 2011 entre 3.000 e 4.000 terreiros na Argentina, a maioria se localizando na província de Buenos Aires.

Cabe ainda comentar sobre o comércio de artigos afrorreligiosos. Religiões afro-brasileiras são invariavelmente acompanhadas por lojas especializadas, por serem altamente dispendiosas em recursos materiais. São necessários bens físicos para se realizar oferendas às divindades e entidades e para o uso em rituais. Parte desses bens tem uso de caráter permanente, como as imagens utilizadas em altares, e outra parte consumo imediato, como velas, ervas para banhos, etc.

Inicialmente, quando da chegada das religiões afro-brasileiras na Argentina, coube às/aos mães e pais de santo brasileiras/os levar boa parte desses produtos para lá. Os objetos eram levados nas malas das/os religiosas/os, o que era uma prática arriscada, devido ao controle aduaneiro de entrada e saída de produtos. Com o tempo o comércio desses produtos também se internacionalizou, interpenetrando religião e economia na transnacionalização das religiões afro-brasileiras. Serviços religiosos das/os mães e pais de santo brasileiras/os, que são pagos, também passaram a ser exportados para a Argentina (ORO, 1999).

O fato de o comércio de artigos afrorreligiosos ter chegado à Argentina, entretanto, não é suficiente para fornecer às/aos iniciadas/os daquele país todos os produtos que demandam. Pelo contrário, candomblecistas argentinos me explicaram ser ainda difícil a aquisição de determinadas folhas, que devem ser importadas do Brasil, o que não ocorre sem problemas junto ao controle aduaneiro argentino. Por outro lado, com a contínua adaptação das religiões afro-brasileiras à Argentina, algumas folhas argentinas passaram a substituir as brasileiras, o que os mesmos candomblecistas me explicaram não ser um problema, por serem usadas para cuidar de orixás de religiosas/os iniciadas/os naquele país. Essa situação, contudo, traz mudanças que, no limite, alteram as formas como as comunidades de terreiro praticam suas religiões na Argentina.

Os artigos religiosos são comercializados principalmente na região de Liniers, que fica no limite físico entre a cidade e a província de Buenos Aires, podendo ser entendida como um subúrbio da capital. Para Oro (1999), essa localização reflete o espaço marginal que as religiões afro-brasileiras possuem na Argentina. Em Liniers, diversas lojas de artigos afrorreligiosos, chamadas de santerias, se estabeleceram e comercializam seus produtos ao redor da igreja católica de San Cayetano. Visitando essa região conheci lojas de todos os tipos: grandes, pequenas, simples, luxuosas, etc.

As mais diversas demandas podem ser supridas com os produtos comercializados: roupas para rituais; fios de contas ou as próprias contas soltas; feitiços prontos; etc. Chama a atenção a quantidade de imagens de divindades, de entidades e de ícones devocionais de cultos que não possuem matriz africana, como El Gauchito Gil, San la Muerte e o Papa Francisco. Visitei Liniers na companhia da religiosa A., que me explicou que as religiões afro-brasileiras fazem parte para as/os comerciantes das santerias, junto ao catolicismo popular, de um amplo grupo de cultos populares e místicos, por isso as lojas vendem artigos de outras religiões também. A. também me indicou haver nas santerias produtos raros, que apenas podem ser encontrados nessas lojas, como pedras sagradas que são utilizadas na montagem de assentamentos nos terreiros.

Outra particularidade das santerias é o fato de ofertarem também kits que substituiriam serviços religiosos, no Brasil prestados apenas por comunidades de terreiro. Por exemplo, kits para a harmonia doméstica, que entregariam a seus compradores fórmulas prontas destinadas à realização de magia com essa finalidade (ORO, 1999). A., por sua vez, me indicou que muitas dessas fórmulas são de eficácia duvidosa, pelo que os membros do Ilé Nueva Conciéncia optam por não as adquirir.

A militância afro-religiosa e o movimento afrodescendente na Argentina

Oro (1999), Frigerio (2001; 2003) e Frigerio e Lamborghini (2011) explicam que tanto as perseguições policiais quanto a imagem ruim em geral que possuem as religiões afro-brasileiras na Argentina levaram suas/seus adeptas/os a adotarem diversas estratégias para protegerem suas práticas naquele país. Como organização política, a estratégia que mais chama atenção é a criação de associações de religiosas/os, capazes de lutar de forma mais organizada por seus direitos (FRIGERIO e LAMBORGHINI, 2011), ainda que essas nunca tenham obtido grande sucesso na reunião de pessoas (FRIGERIO, 2003). Outra estratégia que merece destaque é a forma de organização dos terreiros e, a partir dessa, de introdução das religiões no país. Oro (1999) explica que a grande maioria das comunidades de terreiros argentinas cultua/incorpora entidades e divindades. Todavia, as comunidades tendem a apresentar primeiramente às/aos interessadas/os que nunca tiveram contato com religiões afrobrasileiras, os cultos a entidades, por vezes mesclados com elementos do catolicismo - inclusive palavras rituais. Caso essas pessoas sigam interessadas, elas podem vir a ser iniciadas na Umbanda. Em seguida são apresentadas às divindades, que, ao contrário do Brasil, não fazem parte do imaginário popular da Argentina. Conforme demonstrem contínuo interesse, são iniciadas também no Batuque.

Uma terceira estratégia foi, a partir do início da década de 1990, a caracterização dos cultos a deuses africanos como bens culturais afro-argentinos, enfatizando aspectos como a dança e a música. Isso, em detrimento de sua ligação com o Brasil e sob o argumento de que práticas culturais africanas já existiam na Argentina, como legado da própria presença negra naquele país. Tal presença, embora pequena, não deve ser desconsiderada enquanto força de reprodução cultural (FRIGERIO e LAMBORGHINI, 2011). Efetivamente, Pablo Cirio (2007a) explica que particularmente a música africana sobreviveu a todas as investidas para a extinção de traços negros na Argentina, tendo sempre sido tocada, ainda que as escondidas, e influenciou fortemente a estruturação do próprio tango, ritmo nacional argentino.

Tanto a criação de associações de religiosas/os quanto a caracterização da afrorreligiosidade como bem cultural são estratégias que Frigerio (2003) trata como ações da militância das próprias comunidades de terreiro, em um movimento que se estende desde a década de 1970 até o início dos anos 2000, dividido em três marcos principais. O primeiro destes buscava adequar a Umbanda ao modelo de religião já conhecido por argentinas/os, baseado no Catolicismo, enfatizando uma “identidade coletiva religiosa”, mostrando rituais em público, explicando “como a Umbanda se ajustava ao modelo social do que seria uma ‘religião’. Tentou-se, ao mesmo tempo, organizar uma cúpula de líderes reconhecidos que determinaria a maneira ‘correta’ de praticar a religião” (FRIGERIO, 2003, p. 64).

Essas ações não obtiveram o sucesso esperado na montagem do “conselho supremo de sacerdotes”, e falharam em um momento específico de escalada de acusações sofridas pela Umbanda de ser uma seita maléfica. Inesperadamente, neste mesmo momento as/os religiosas/os receberam apoio da Embaixada da Nigéria na Argentina (FRIGERIO, 2003, p. 64). Em conjunto, esses fatores inauguram e tornam popular o segundo marco, a

ação coletiva cultural que alguns líderes vinham desenvolvendo desde alguns anos antes. Vários pais e mães pensaram que a ênfase na cultura poderia ser um guarda-chuva sob o qual colocar suas diferenças de rituais e mostrar-se externamente [por meio de eventos] como uma comunidade unida, e que as acusações de seita criminosa seriam refutadas mostrando o pertencimento a um tronco cultural e étnico que influenciou na dança, na música, na arte de quase todos os países americanos. Ainda que este marco tenha ajudado a segurar o temporal de acusações mais graves e tenha permitido que os africanistas/umbandistas conquistassem algum apoio em setores acadêmicos, artísticos e diplomáticos, em poucos anos mostrou suas limitações. Duas das mães de santo que o propuseram com maior ênfase faleceram (...) e a situação econômica do país cada vez pior tornou mais difícil o aluguel de teatros ou de auditórios de centros culturais para realizar os eventos (FRIGERIO, 2003, p. 64).

As dificuldades enfrentadas relativas à situação socioeconômica argentina, agravada pela piora nas relações que as/os religiosas/os então mantinham com o Estado, do qual haviam anteriormente se aproximado a partir de sua militância, motivou o desenvolvimento do terceiro marco de ação coletiva, que enfatizava direitos civis.

Alguns líderes religiosos propuseram então construir uma [identidade coletiva] baseada simplesmente na defesa de sua cidadania. Aproveitando as eleições presidenciais [de 1999] - que se repetiram depois de dois anos - e tomando como exemplo explícito o lobby realizado desde tempos antes pelos evangélicos com os políticos, realizaram algumas reuniões abertas com candidatos aos quais prometeram apoio. Sua modalidade de ação coletiva, influenciada pelos diminuídos recursos econômicos, se restringiu principalmente a reuniões abertas em distintos templos nos quais os candidatos debatiam problemas e linhas de ação. Para evitar maiores divisões, as discussões eludiam temas religiosos e enfatizavam a busca de soluções aos problemas concretos de estigmatização que ainda os afetavam (FRIGERIO, 2003, p. 64).

Sobre este último marco, Frigerio (2003) indica ter sido capitaneado por uma organização de sociedade civil, formada pelas/os afrorreligiosas/os, denominada inicialmente Foro de Religiones AfroAmerindias, e posteriormente Foro de Religiones Africanas y Afro-Amerindias. Procurei por informações acerca dessa organização, bem como por sua página na Internet mencionada por Frigerio (2003), mas não encontrei resultados além dos vestígios deixados pelo próprio trabalho desse autor. Minha hipótese explicativa para isso é a extinção da organização, que se reforça pelas indicações de Frigerio (2003) de que poucos terreiros teriam aderido à mesma e de que esse movimento não alcançou seus objetivos até a publicação do seu texto, em 2003.

Acerca da caracterização das religiões como bens culturais - movimento que não se encerra com o Foro de Religiones Africanas y Afro-Amerindias -, conversei em campo com um grupo de musicistas interessadas/os tanto no Maracatu do nordeste brasileiro quanto no Candombe rio-platense. Acerca do Candombe, tais artistas me contaram a história de uma família negra argentina, tão reservada que apenas há poucos anos se tem conhecimento de sua existência, e que foi descoberta por antropólogos/as - notadamente Cirio - interessados/as na cultura afro-argentina. Tal família carregaria consigo desde sempre e por herança de seus ancestrais, o conhecimento de toques tradicionais de tambores, semelhantes àqueles das religiões afro-brasileiras, que são utilizados no Candombe argentino. Esses estariam hoje sendo ensinados e, com isto, contribuindo, dentre outros movimentos, para ampliar o resgate contemporâneo desse ritmo no país. O mesmo grupo me explicou já não haver, no presente, associação do Candombe com religiões afro-americanas, embora se saiba que os ritmos tocados teriam origem religiosa. Cirio (2007a) confirma tal argumento, acrescentando que parte das músicas são cantadas em quicongo, e que teriam servido no passado, na própria Argentina, para “dançar o santo” (CIRIO, 2007a, p. 6), prática ainda mantida pelas religiões afro-brasileiras.

Oro (1999) indica que o movimento de caracterização da afrorreligiosidade como bem cultural afro-argentino é o mesmo que resgata o Ifismo. Mãe Patrícia me explicou que as/os ifistas são as/os afrorreligiosas/os que mais acesso possuem a universidades e a pessoas ligadas com movimentos culturais, gozando de um status social mais elevado, como intelectuais. Para as universidades, as/os ifistas organizam palestras e congressos, inclusive com a participação de expoentes e debatedoras/es africanas/os, o que atrai atenção e prestígio.

A partir da década de 2000, as iniciativas que lhes caracterizam como patrimônio cultural afroargentino trouxeram melhorias às relações das comunidades de terreiro com o Estado argentino. O resgate cultural do negro na Argentina, e da cultura afro-argentina, movimento que foi encabeçado pelas/os religiosas/os, possibilitou a retomada dos debates com o Estado, por meio da criação de fóruns sobre as religiões de matriz africana, conduzidos pelo Instituto Nacional contra la Discriminación, la Xenofobia y el Racismo (INADI) (a partir de 2005). Esses contêm equívocos graves, como a preferência pela participação de religiosas/os negras/os em função de sua cor, ainda que não sejam reconhecidas/os como importantes por seus pares (FRIGERIO e LAMBORGHINI, 2011). Contudo, sua mera existência é positiva para a construção de um debate antes inexistente.

O resgate cultural do negro não se encerra com a temática religiosa. O Candombe, “uma das expressões mais emblemáticas da população negra da Cidade Autônoma de Buenos Aires”, dada por desaparecida junto com a própria população negra desde o final do século XIX (CIRIO, 2007b, p. 3), para Frigerio e Lamborghini (2011), aparece como segundo movimento cultural de maior visibilidade desde os anos 1990. Emerge da marginalização, para a prática por jovens de classes mais abastadas.

O Candombe, embora não seja acusado como “seita maligna”, também sofreu durante as décadas de 1990 e 2000 com racismo e repressão por parte da população, do Estado e da igreja católica. Há registros de violência entre musicistas e adeptas/os, e entre essas/es e a polícia, que culminaram em mortes de lideranças do movimento, posteriormente ressignificadas como incentivo a uma contínua luta pelo direito à livre prática e valorização dessa expressão cultural (FRIGERIO e LAMBORGHINI, 2011). Outrossim, Cirio (2007a) indica que antes da década de 1990 o Candombe seguia sendo praticado em diferentes locais da Argentina, mais enfaticamente em Buenos Aires, embora de forma marginalizada e oculta.

A década de 1990 viu surgir, também, organizações do movimento negro argentinoiv, que militam contra o racismo contra afro-argentinas/os (negras/os nascidas/os na Argentina), africanas/os e outras/os imigrantes negras/os na Argentina. Tal movimento foi favorecido pela visibilidade adquirida com a luta das comunidades de terreiro e das/os praticantes do Candombe, bem como pela conjuntura internacional favorável, marcada pela assinatura e ratificação por diversos países - Argentina inclusive - do Protocolo de Durban em 2001 e outros tratados internacionais que buscam pôr fim às desigualdades raciais em todo o planeta. Foi esse também o contexto da criação do INADI, em 1995 (FRIGERIO e LAMBORGHINI, 2011). Além disso, conforme Laura López (2006), diversas organizações internacionais, como UNESCO, OEA, OIT, BID, BIRD e Fundação Interamericana, incluíram na década de 1990 em suas agendas a temática afrodescendente, passando, em alguns casos, a financiar projetos para a melhoria de vida dessa população nas Américas. O posicionamento dessas instituições internacionais favoreceu os movimentos em nível nacional.

O movimento negro argentino é pequeno, mas mobiliza mais apoio e menos resistência do que as religiões afro-brasileiras e o Candombe, e conseguiu introduzir pela primeira vez no censo da população argentina, em 2010, uma pergunta acerca da origem afrodescendente da/do respondente (FRIGERIO e LAMBORGHINI, 2011). A formulação e inclusão dessa pergunta foi negociada com o Estado ao longo da década de 2000, com apoio de organismos internacionais. Estes advogavam que para financiarem projetos de melhoria de vida para a população afrodescendente era necessário conhecê-la (LÓPEZ, 2006). De acordo com os resultados do censo, 149.493 pessoas se reconheciam afrodescendentes na Argentina, o que representava cerca de 0,37% da população de 40,1 milhões de pessoas em 2010 (INDEC, 2012). Esse número não deve ser tomado como exato, pois a pergunta do censo é aberta e busca uma resposta espontânea acerca da compreensão étnica da/do respondente, que pode não se entender - ou não indicar ser por diversas razões - afrodescendente. Ainda assim, em termos absolutos o número aferido indica não ser uma população inexistente ou desprezível.

Cabe comentar que não é objetivo desse movimento antirracista a defesa de religiões de matriz africana, mas sim, conforme me relatou um membro da diretoria da organização militante DIAFAR - com quem conversei em Buenos Aires - defender as/os negras/os enquanto pessoas e lutar contra o estereótipo de que não existem na Argentina. Nesse sentido, López (2006) explica ser a quantificação da população afrodescendente no censo uma ferramenta importante para a militância antirracista, sobretudo por ter sido o censo uma ferramenta utilizada pelo Estado, desde o século XIX, para invisibilizar tal população e reforçar o mito de uma Argentina exclusivamente branca. Analiticamente, afirmo que tal luta favorece o movimento afrorreligioso, pois ainda que não levante sua bandeira, contribui para a melhoria da imagem do povo negro e sua herança cultural em um país que ainda se propagandeia como unicamente branco em cor e europeu em cultura.

Todos esses movimentos sociais foram beneficiados por uma mudança de postura por parte do governo centro-esquerdista de Buenos Aires no início dos anos 2000, bem como pela elevação desta ao status jurídico de cidade autônoma. Isso envolveu a promulgação de uma constituição unicamente portenha, favorável à diversidade cultural e a caracterização desta capital como uma metrópole cosmopolita e plural, ao contrário da ideia anteriormente vigente de cidade europeizada e branca (FRIGERIO e LAMBORGHINI, 2011).

As religiões afro-brasileiras ainda sofrem com discriminações e com a estigmatização social, sendo sua causa a menos favorecida dentre as três explanadas, mas o cenário se torna mais favorável a partir dos anos 2000 (FRIGERIO e LAMBORGHINI, 2011). Isso, ainda que a constituição argentina siga indicando, em seu artigo 25º, que “o governo federal fomentará a imigração europeia” (ARGENTINA, 1994/2016, p. 4), o que alude à manutenção de uma Argentina europeizada, artigo esse que já constava na carta magna do país de 1853 (CIRIO, 2007a).

Considerações finais

Busquei aqui apresentar o modo de funcionamento e o contexto social das comunidades de terreiro na Argentina e, igualmente, sumarizar o processo de transnacionalização e fixação das religiões afrobrasileiras naquele país. Conforme exposto, tratam-se de diferentes religiões e práticas ritualísticas que ainda no presente não são bem aceitas na Argentina, embora mobilizem considerável número de templos na província de Buenos Aires.

A Argentina, como país, orgulha-se de possuir uma matriz cultural europeia, embora tenha contado em sua história, tal como toda a América colonizada, com a presença populacional do negro e influência cultural africana. Esta foi excluída dos processos de construção da nação - aqui não debatidos - mas se vê resgatada de forma irreparável por grupos de religiosas/os de matriz africana, bem como por outros movimentos sociais daquele país. Isso contribui para a contínua complexificação da já heterogênea sociedade argentina.

Neste texto não me aprofundei em questões igualmente relevantes dentro da temática das religiões afro-brasileiras na Argentina, como as relações contemporâneas e intercâmbios entre comunidades de terreiro brasileiras e argentinas. Igualmente, não debati o contexto das práticas afrorreligiosas nas regiões de fronteira entre Brasil e Argentina, ou Argentina e Uruguai. Esses são tópicos de igual valor investigativo, que cabem ser aprofundados em outros trabalhos. Ocupei-me em relatar o contexto e a presença das comunidades de terreiro naquele país, percebidos, sobretudo, a partir de minha própria experiência de campo. Esta possuiu limitações e cabe ser rediscutida em diferentes trabalhos. Isto, claro está, aprofundaria o debate e enriqueceria a temática.

Material suplementar
Referências bibliográficas
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Notas
Notas
i Sessões são cerimônias organizadas com o intuito de que as entidades se incorporem e conversem com as pessoas vivas presentes.
ii As letras A., D. e P. foram por mim utilizadas em substituição aos nomes das pessoas mencionadas, para que tenham suas identidades preservadas. Não utilizei letras para me referir a mãe Patrícia pois, além de ser a autoridade religiosa máxima com quem conversei, nenhuma de suas falas aqui reproduzidas contraria suas posições públicas ou expõe detalhes de sua intimidade.
iii Cabe indicar que banto não é um idioma próprio, mas um grupo linguístico formado por diferentes idiomas e dialetos. Assim, a rigor não se aprende essa língua, mas variações linguísticas de que é raiz.
iv O termo movimento negro se refere ao movimento antirracista, que é diferente do movimento afrorreligioso e do movimento de resgate do Candombe. Todos esses são movimentos afrodescendentes.
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