Editorial
O presente dossiê é o resultado do Grupo de Trabalho (GT), de mesmo nome, que aconteceu na XIII Reunião de Antropologia do Mercosul, em julho de 2019 em Porto Alegre. Infelizmente, a mostra que temos aqui é uma pequena parcela das apresentações do GT, que trouxeram diversas abordagens, temas e reflexões a respeito dos campos religiosos e espirituais, focando-se principalmente nos índices e materialidades das entidades, e os consequentes efeitos de suas existências nas vidas das pessoas.
A nossa proposta, tanto no dossiê quanto no GT, foi de agregar diversas pesquisas que tenham o interesse em extrapolar a noção de crença e o status de cultura (material ou imaterial) dado a essas entidades e a esses seres com quem travam relações as pessoas com as quais aprendemos. A ideia é muito simples e já foi desenvolvida por alguns teóricos do que tem sido chamado de virada ontológica, mas também de virada material na antropologia da religião. Se esses seres fazem parte da vida das pessoas, concebendo realidade a elas da mesma forma que são percebidas as necessidades materiais e econômicas, por qual razão não daremos a devida atenção a esses seres para a constituição da vida social e a consequente elaboração teórica dessa vida? Além disso, as relações entre as pessoas e diversos tipos de agentes espirituais também possibilitam um alargamento e tensionamento das compreensões ocidentalizadas do que é viver, a razão e a própria constituição do mundo moderno.
A abrangência alcançada e almejada de temas e realidades apontam para abordagens abertas, com estratégias metodológicas e epistemológicas específicas para cada situação. Portanto, a nossa estratégia foi não nos limitarmos a um escopo teórico específico. Não tivemos a intenção de estabelecer escolas com os participantes do GT.
Os alicerces das pesquisas apresentadas vão para além do giro ontológico. Mencionamos esse giro porque ele é caro aos estudos que levam em consideração a existência, de alguma maneira, dessas entidades, e a sua consequente participação na construção de mundos. A discussão se estamos em um mesmo mundo, ou em vários, não entra em nosso Grupo de Trabalho, nem no dossiê, mas podemos mencionar que as pesquisas aqui reunidas sugerem a existência de mundos em movimento, que podem se encontrar ou permanecer distantes, embora nada seja definitivo. As autoras e autores do referido giro propõem quebrar esquemas de pensamentos próprios do Ocidente moderno, criando e se relacionando com lógicas diferentes. As investigações que abordam o religioso e o espiritual, ao se basear em ideias que desde tal postura hegemônica seriam consideradas falsas, implicam um esforço maior de diálogo. Talvez possamos dizer que são estes trabalhos que permitem realmente colocar em prática esta corrente.
As apresentações que viraram artigos para este dossiê se esforçam por tomar a sério estes modos de organizar a existência e o viver. Sejam eles mais palatáveis ao estômago antropológico, como é o caso da maioria dos textos apresentados, sejam também intragáveis embora imprescindíveis, como é o caso do artigo que logo mais apresentaremos sobre as relações entre bolsonarismo e milenarismo. Talvez seja neste conjunto que se tome em conta diferentes entidades como fazendo parte das estruturas sociais analisadas, como sugerem os autores do campo em questão. Caso contrário, dificilmente entenderemos como se organizam e funcionam diferentes grupos, fazendo com que nossas análises percam elementos centrais para a vida das pessoas participantes dessas realidades. Isto também nos leva a perguntar, mesmo que de maneira retórica, por que algumas miradas e perspectivas são tomadas a sério, ou ao menos consideradas, enquanto outras, menos “modernas” e “progressistas”, não. É trabalho da antropologia criar um espaço de diálogo com essas distintas formas de entender e habitar o mundo, que se pluraliza diante de tais concepções e práticas.
Diante disso, apresentaremos os artigos do dossiê. Não evidenciamos referências mais específicas por entender que a forma como organizamos o grupo de trabalho não englobou nenhum viés particular da antropologia, a não ser o levantamento da hipótese: se nossos interlocutores e interlocutoras possuem modos de convivência específicos com seres de outra ordem que não a humana, sendo percebidas geralmente como participantes de planos outros de existência, devemos, em nossas pesquisas, considerar tal importância, sem engessá-la no âmbito da diferença cultural e da metáfora social. A ordem dos textos não chega a ser uma escolha editorial. Levamos em consideração que estamos em uma revista digital, portanto os textos não serão necessariamente lidos em ordem.
Evandro de Sousa Bonfim em O Espírito Santo e “o rei do fim do mundo”: transmissão de carisma e iconografia escatológica no governo Bolsonaro, traz uma inovadora análise sobre o bolsonarismo e umas das relações que ele estabelece com certo tipo de cristianismo. Bonfim aponta os encontros de Jair Bolsonaro com lideranças de grande expressão do cristianismo brasileiro, como se fosse o encontro espelhado do bolsonarismo com a própria concepção milenarista de fim do mundo. A partir de certas configurações rituais (dentre elas, a imposição de mãos, ritual que transfere o Espírito Santo para a pessoa) e de iconografias (o artigo está eivado de referências), Bolsonaro é construído como essa figura milenarista -em diálogo com Norman Cohn- do “rei do fim do mundo”. O artigo foca no encontro entre o bolsonarismo e a Canção Nova, e na produção do carisma do “rei do fim do mundo” a partir da injunção tecnológica (a produção de imagens e a sua divisão a partir de mídias sociais) com a transmissão do carisma via o contato ritual com as lideranças cristãs. Portanto, esse carisma do “rei do fim do mundo” deve ser sempre produzido e construído, daí a incessante manifestação de seus apoiadores e asseclas, constantemente dispostos a fazer e reforçar o discurso dessa figura como uma liderança mitológica.
Adrielle Luchi Coutinho Bove e Rafael Siqueira Machado em Corpus Paganus: sensibilidades, percepções, habilidades e canalizações em um ritual neopagão contribuem com uma pesquisa desenvolvida em meio a grupos neopagãos em Juiz de Fora, Minas Gerais. Pautados na noção de modos de existência de Latour, a pesquisadora e pesquisador acompanham um ritual que, para os seus participantes, faz parte de uma ligação druídica com o mundo. O artigo traz a descrição de um ritual de canalização, o qual se materializa em um líder do clã a deusa celta da guerra, Morrigan. A canalização, segundo acompanhamos no texto, não é unanimidade entre os participantes dessa religião. Entretanto, é praticada pelo grupo apresentado, evidenciando que um corpo sensorial, a aprendizagem de habilidades e o afloramento de percepções, são elementos importantes para o desenvolvimento do grupo e no seu diálogo com essa realidade que se materializa a partir da religião e da entidade. Interessante notar que os participantes do ritual ingerem um chá à base da Jurema, planta, bebida, entidade e religião afro-indígena de forte presença no cenário brasileiro, sobretudo no norte e nordeste do país. A autora e o autor mostram como a composição ritual instaura os acontecimentos narrados.
Andréa Lúcia da Silva de Paiva apresenta Trançado: memória e devoção aos Santos de Cor nas festividades a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, uma comparação das festividades dos santos, partindo da categoria “trançado”. A autora retoma o conceito emergido no campo para focar nos “santos de cor” como mediadores do sagrado e do profano, da vida e da morte, do tempo e do espaço, mas também são tomados por materializações que atualizam memórias e devoções negras, ressignificando e entrelaçando o catolicismo institucional e o popular, além de marcar essa religião com a experiência negra. Ao tempo que ressignifica a desigualdade social e racial, o trançado lhe permite dar conta das relações entre humanos e espíritos sacralizados, na feita que situa esses fiéis diante de uma concepção diferenciada de catolicismo e religião. Assim, Andréa Paiva nos remete a uma estratégia de conhecimento bastante comum na antropologia. Ao colher para este conhecimento a categoria utilizada por suas interlocutoras e interlocutores, a autora traça uma relação entre a antropologia encontrada junto aos devotos negros e a sua própria.
Caio Monticelli em Kanaimé, o grande matador, traz parte de sua etnografia com os Taurepáng, nação indígena que está localizada no maciço guianense, distribuída em diversas populações que tangenciam o Monte Roraima. No artigo, conhecemos uma resolução complexa empreendida pelos Taurepáng: a criação de um cárcere para os Kanaimé. Kanaimé é um fenômeno polissêmico, que engloba práticas de feitiçaria, mas também acontecimentos inevitáveis, podendo alguns indivíduos serem considerados como um Kanaimé, que pode desembocar em práticas de dependência do próprio em relação ao sangue de suas vítimas. Esses eventos geram tensões entre os familiares das vítimas e os familiares dessa entidade. O Kanaimé é central para o entendimento das relações entre os Taurepáng, tanto entre eles, quanto entre os outros. Sendo um fenômeno espectral ligado à maliciosidade dos estrangeiros e agressores, é lido como uma forma de feitiçaria, mas também percebido como uma agressão física, que pode chegar ao assassinato. O artigo se propõe a levar a sério as consequências das ações do Kanaimé (também chamado de rabudo) para os Taurepáng. O Rabudo é relevante na medida que condiciona a percepção que os moradores têm sobre a própria terra onde eles habitam, concebendo-a como um “lugar de morte”. Além disso, a presença dessa figura intervém nas relações com os “brancos”, pois os donos de mineradoras (legais e ilegais) contratam o Kanaimé para eliminar os líderes Taurepáng. Assim, a situação territorial é complexificada a partir da presença dessa entidade em correlação com a presença colonial e devastadora dos brancos, e irônica ou infelizmente, o Kanaimé não gosta de se alimentar do sangue dos brancos.
Jerônimo da Silva e Silva em A cobra na cosmologia das rezadeiras amazônicas, analisa através de narrativas de rezadeiras na Zona Bragantina, nordeste do Pará, a relação entre as práticas de cura e proteção praticadas pelas rezadeiras com o encantado de cobra, entidade que se manifesta em rios e lagos sob a “formatura” da cobra. A relação do encantado de cobra com as primeiras manifestações iniciáticas do “dom de rezar”, a propagação dos filhotes de cobra com “ovos” depositados no corpo de enfermos mediante “a doença do cobreiro”, a incorporação da cobra em pessoas da região, fazendo-os manifestar o deslize e odor (pitiú) do ofídio na beira dos rios, bem como a capacidade das cobras inserirem suas crias em mulheres grávidas, revelam a mobilização desta entidade como fundamental para a elaboração cosmológica do corpo e da cura no assento de seres atravessados pelas cosmologias de religiões afro-brasileiras e indígenas. A partir deste recorte no complexo dos encantados no contexto amazônico, o artigo possibilita, de um lado, a compreensão de singularidades sociais, mesclando migração, memórias e práticas de cura, e por outro, a difusa e fascinante simbólica da cobra.
Por fim, incentivamos a leitura desses textos que tentam, cada um com sua especificidade, dar conta da complexidade encontrada na experiência humana no lidar com esses seres de alteridade bem marcada, que apesar disso, não param de traçar relações conosco, tanto na experiência dos grupos em questões, quanto na antropologia e alhures.