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O ESPÍRITO SANTO E O “REI DO FIM DO MUNDO”: TRANSMISSÃO DE CARISMA E ICONOGRAFIA ESCATOLÓGICA NO GOVERNO BOLSONARO
EL ESPÍRITU SANTO Y EL “REY DEL FIN DEL MUNDO”: TRANSMISIÓN DE CARISMA EICONOGRAFÍA ESCATOLÓGICA EN EL GOBIERNO BOLSONARO
THE HOLY SPIRIT AND THE “KING AT THE END OF THE WORLD”: TRANSMISSION OF CHARISMA AND ESCATOLOGICAL ICONOGRAPHY IN BOLSONARO’S GOVERNMENT
Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 22, pp. 1-18, 2020
Universidade Estadual de Campinas

Article


DOI: https://doi.org/10.20396/csr.v22i00.13541

RESUMO: A eleição de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil teve o apoio, dentre outras alianças, de três lideranças religiosas de grande relevância para o Cristianismo brasileiro: o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal, e o Monsenhor Jonas Abib, da Comunidade Canção Nova (CN). Após a eleição, Bolsonaro fez demonstrações públicas de agradecimento aos religiosos, tendo comparecido a eventos na Assembleia de Deus e na Chácara Santa Cruz, sede da CN no Vale do Paraíba Paulista, e mais recentemente ao Templo de Salomão, da IURD. A visita à Canção Nova foi marcada por um ritual descrito pelos meios de comunicação como “oração”, mas que corresponde ao complexo ritual de “imposição de mãos”, que inclui, além de rezas, a transferência do Espírito Santo, entidade espiritual que faz parte do processo de constituição da pessoa carismática ( Bonfim, 2012). O objetivo do artigo é conjugar o aspecto ontológico e ritual da comunicação pneumática contemporânea da Canção Nova dentro das relações entre o religioso e o político, mobilizadas com a ascensão de um governo de direita no Brasil.

Palavras-Chave: Imagem, messianismo, corpo do Rei, milenarismo, discurso Político.

RESUMEN: La elección de Jair Bolsonaro como presidente de Brasil ha contado con el apoyo, además de otras alianzas, de tres liderazgos religiosos pivotales para el cristianismo brasileño: el pastor Silas Malafaia, de la Asamblea de Deis, el obispo Edir Macedo, de la Iglesia Universal, y Monseñor Jonas Abib, de la Comunidad Canción Nueva (CN). Tras las elecciones, Bolsonaro realizó una gira pública en agradecimiento a los religiosos, atendiendo a eventos en los templos presididos por ellos, como la Hinca Santa Cruz, sede de la CN en el Valle del Río Paraíba (SP). La visita a Canción Nueva ha sido marcada por un ritual descrito por los medios como “rezo”, pero que se enlaza al complejo ritual de la “imposición de las manos”, que incluye, además de preces, la transferencia del Espíritu Santo -entidad espiritual que forma parte del proceso de conformación de la persona carismática ( Bonfim, 2012)-. El artículo busca pensar el aspecto ontológico y ritual de la comunicación paraclética contemporánea, como la de Canción Nueva, en las relaciones entre lo religioso y lo político que han emergido con la ascensión de un gobierno de derecha en Brasil.

Palabras clave: Imagen, mesianismo, cuerpo del Rey, milenarismo, discurso Político.

ABSTRACT: The election of Jair Bolsonaro as president of Brazil was supported, among other alliances, by three noticeable religious leaders of Brazilian Christianity: Pastor Silas Malafaia, of the Assembly of God, Bishop Edir Macedo, of the Universal Church, and the Monsignor Jonas Abib, of the Canção Nova Community (CN). After the election, Bolsonaro made public appearances in order to thanks his religious supporters, having attended events at the Assembly of God and at Chácara Santa Cruz, headquarters of the CN in Vale do Paraíba Paulista, and more recently at the Temple of Solomon, of the IURD. The visit to Canção Nova was marked by a ritual described by the media as “prayer”, but which corresponds to the complex ritual of “laying on of hands”, which includes, in addition to prayers, the transference of the Holy Spirit, a spiritual entity that makes part of the process of constituting the charismatic person ( Bonfim, 2012). The objective of the article is to combine the ontological and ritual aspect of contemporary pneumatic communication of Canção Nova within the relations between the religious and the politician mobilized with the ascension of a right-wing government in Brazil.

Keywords: Image, messianism, king’s Body, millenarianism, political Discourse.

Introdução

Às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, o líder da Igreja Universal do Reino de Deus anuncia apoio público ao então representante do Partido Social Liberal (PSL), Jair Bolsonaro (atualmente sem partido) 2. Com a demonstração, estava costurada a aliança de três importantes lideranças religiosas brasileiras em torno do candidato. Além de Macedo, Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, e Monsenhor Jonas Abib, da Comunidade Carismática Católica Canção Nova, também deram suporte ao militar reformado. Tanto que, entre os primeiros atos de Bolsonaro como presidente eleito, estiveram a participação em culto ministrado por Malafaia e a visita à sede da Canção Nova em Cachoeira Paulista, São Paulo.

Embora haja embates prévios entre os três religiosos, eles possuem algo em comum: são líderes de importantes coletivos pneumáticos, ou seja, de denominações cristãs que se organizam a partir da experiência com o Espírito Santo. Não se constitui novidade o apoio direto, sobretudo de pentecostais como Malafaia e Macedo, a candidatos presidenciais, como também a visita de presidentes às instalações dos apoiadores religiosos - como no caso da presença da presidenta deposta Dilma Rousseff na inauguração do Templo de Salomão da IURD na capital paulista, junto a outras autoridades. O que se deseja destacar é a forma específica de relação que Jair Bolsonaro tem estabelecido com tais lideranças, que não se limita à busca de maioria no legislativo ou composição do governo, mas envolve a participação em liturgias próprias da religiosidade pneumática como o ritual de imposição de mãos.

O objetivo do artigo é mostrar que tipo de figura política pode emergir de cerimônias envolvendo a comunicação do Espírito Santo, levando-se em conta a importância que o ritual possui em comunidades como a Canção Nova. Em conjunção ao rito carismático, se faz igualmente notável a utilização, pelo poder executivo e partidários do presidente, de iconografia associada ao milenarismo medieval (no qual o Espírito Santo desempenhava papel importante), mostrando a pregnância dos motivos quiliásticos no discurso político não-verbal na atualidade brasileira, incluindo a oposição ao governo, sobretudo na área cultural. Em conclusão, a análise pretende mostrar como a reiteração dos atos de transmissão paraclética e de outras potências divinas correspondem à dependência constante por carisma proveniente de fontes exteriores ao governo para a manutenção da imagem messiânica particular do presidente: o rei do fim do mundo, de acordo com a terminologia dos elementos milenaristas descrita por Norman Cohn (1972).

A imposição de mãos como ritual político

Ainda enquanto conversávamos, Helena chegou para me fazer o seguinte convite: “Sei que você não é católico, mas a gente tem o costume de orar e impor as mãos nas pessoas que vêm visitar a gente aqui. Mas fica à vontade se não quiser a oração”. Eu prontamente aceitei, pois encarei o convite como deferência do grupo para comigo que eu, como hóspede, não poderia recusar. [...] Helena colocou a mão na minha cabeça e disse: “Senhor, estamos aqui para orar pelo teu filho, Evandro”. Débora também veio e colocou a mão no meu ombro direito. Logo ao impor as mãos, Helena e Débora começam a orar em línguas e eu começo a orar normalmente, dizendo algo como o seguinte: “Querido Deus, obrigado por tudo de bom que o Senhor tem feito comigo, eu te agradeço muito, eu peço desculpas...”. Comecei a sentir que as palavras que saiam da minha boca não acompanhavam o fluxo do que eu estava pensando. O rapaz que estava também na capela se aproxima e coloca as mãos no meu ombro direito. Em certo momento, escuto Helena dizer: “Senhor, cura as feridas do teu filho, feridas da juventude, que não deixam ele ser feliz”.

A situação descrita acima aconteceu na Casa de Maria, primeira sede permanente da Canção Nova em Queluz, no Vale Histórico do Paraíba. Assim como eu, outro visitante havia passado pelo mesmo ritual. Porém, irmão Marcelo, religioso pertencente a outro grupo das chamadas “Novas Comunidades” católicas, a Toca de Assis, já estava familiarizado com a cerimônia, tendo, inclusive, provocado o repouso do Espírito Santo em imposições de mãos espontâneas ( Bonfim, 2012: 74). À época, Marcelo afirmava que estivera há algum tempo sem sentir a infusão do Espírito Santo, tendo retomado a experiência na estadia entre os participantes da Canção Nova, a quem admirava pela capacidade de promover a transmissão da pessoa divina. Contudo, para o público em geral, a transmissão do Espírito Santo deve ocorrer após a formação nos chamados Seminários de Vida no Espírito Santo e Encontros Querigmáticos, as instâncias formais da Renovação Carismática Católica para lidar com o evento espiritual que a distingue do restante do Catolicismo.

No entanto, o ritual de imposição de mãos, de forma similar à descrita anteriormente, foi acionado por ocasião da visita do recém-eleito Jair Bolsonaro à sede da comunidade carismática em Cachoeira Paulista (SP), conforme mostra a seguinte imagem:


Imagem 1
Imposição de Mãos sob o presidente eleito Jair Bolsonaro. Fonte: Canção Nova/ Wesley Almeida

Na cena, pode-se notar os principais elementos do ritual de imposição. Padre Bruno, à direita e em primeiro plano, conduz a oração principal, como Helena no relato inicial, mas abençoando Bolsonaro à distância. Os principais protagonistas, no entanto, são o monsenhor Jonas Abib e Luzia Santiago. Os dois possuem carismas ou dons especiais dentro da concepção carismática católica: o carisma de fundador, para o religioso, e o de cofundadora, para a leiga. Tais carismas são importantes porque são as pessoas que os possuem que servem de principal veículo para a manifestação e conformação dos dons distintivos de cada coletivo carismático. No caso, trata-se do dom Canção Nova, relativo à evangelização mediante os meios de comunicação. No terceiro plano está, além do sacerdote, Wellington Jardim, diretor executivo da Fundação João Paulo II, a pessoa jurídica da comunidade Canção Nova. Ele e Luzia Santiago são casados e, junto a Monsenhor Abib, costumam ser representados sob a forma de triunvirato.


Imagem 2
Lideranças da Canção Nova em Triunvirato.
Fonte: Imagem do autor.

Assim, a fotografia não registra apenas o encontro entre aliados políticos, mas retrata igualmente os principais elementos do ritual carismático oficiado pelas lideranças centrais da comunidade e realizado em benefício de figura pública que viria a se tornar o governante do país. A cena, composta de movimentos estilizados, se insere no motivo pictórico da consagração ou unção do líder político por instâncias religiosas.

A cerimônia na Canção Nova foi precedida por outra consagração, a oração realizada por Silas Malafaia em prol do mandato presidencial logo após o resultado das eleições, com o pastor apenas colocando o braço ao redor de Bolsonaro. Em meados do primeiro ano de governo, a vez de abençoar o presidente coube a Edir Macedo. De acordo com Nascimento, “o líder da Universal recebeu Bolsonaro no Templo de Salomão, diante de 10 mil pessoas. Ajoelhado no púlpito e de costas para os fiéis, o presidente foi ungido pelo bispo. Com as duas mãos sobre a cabeça de Bolsonaro, Macedo pediu que Deus lhe dê ‘sabedoria, inteligência e coragem’” (2019: 16-17). Conforme mostra o autor, o ritual coincide com a divulgação da primeira avaliação negativa do governo, com queda no índice de popularidade.

Contudo, vários rituais podem ser mobilizados para a investidura, como, por exemplo, o batismo:


Imagem 3
Batismo de Clóvis. Fonte: domínio público.

Imagem 4
Batismo de Bolsonaro em Israel.
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=XmDE6jGtfRU&feature=emb_title

As duas cenas estão em ressonância discursiva ( Souza, 2018), ou seja, estão ligadas pela recorrência dos sentidos na deriva histórica e em relação de comentário, conforme a definição de Foucault (2009 [1970]), que enfatiza as cadeias parafrásticas nas quais discursos, no caso discursos visuais, são retomados, promovendo o efeito discursivo do novo mediante a reapresentação do antigo. “O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”, afirma o filósofo francês ( Foucault, 2009: 26). Acrescentamos que as retomadas não são apenas verbais, mas incluem as figurações, as cenografias e os ícones. Diferentemente das cerimônias de coroação, rito incorporado à liturgia de transmissão de poder em determinadas formas de Estado, o batismo e também a imposição de mãos se relacionam mais à ideia de ruptura e consequente fundação do que de continuidade dos arranjos políticos. Ao se converter ao Catolicismo, Clóvis marca a diferença dele em relação aos outros povos germânicos, que praticavam o cristianismo na versão arianista. E, conforme mostra Lacerda (2019: 186-187), a imersão no Jordão corresponde também à conversão do então deputado federal em defensor de pautas moralizantes (como a Escola sem Partido), durante a campanha presidencial (2014) e o segundo mandato de Dilma Rousseff (2015-2016). Anteriormente, Bolsonaro se dedicava a questões circunscritas à remuneração da caserna. Mas que tipo de figura política emerge dos sucessivos rituais aos quais o presidente se submete?

O “Rei do Fim do Mundo”: caracterização e iconografia

De acordo com Negrão (2015), em revisão dos estudos sobre os movimentos messiânicos no Brasil, os fenômenos relativos ao messianismo e ao milenarismo são necessariamente “típico-ideais”, e podem combinar ou não os aspectos da expectativa de liderança pela divindade ou emissários (messianismo) que poderá atuar para a implementação da nova ordem que vai pôr fim a todos os males (milenarismo). A figura política de Jair Bolsonaro, conforme aludido antes, que estava restrita a representar no legislativo federal demandas dos militares, teve que ser ampliada para a construção da candidatura presidencial vitoriosa, elaboração que continua ativa passado o primeiro ano do mandato. Os rituais apresentados acima fazem parte da reconfiguração do escopo político do ex-militar, constituindo-se, portanto, rituais de religião pública. As cerimônias associam a eleição nas urnas com a escolha divina para a renovação do país 3, mas devidamente mediadas por sacerdotes portadores de carisma.

Obviamente, a dimensão milenarista-messiânica não é o único fator na ampliação da figura política de Bolsonaro em virtude da disputa presidencial. Cesarino (2019) aponta para outros elementos como a discursividade populista e a magnificação ocorrida devido à repercussão nas mídias sociais do suposto atentado acontecido em campanha, que a autora chama de “corpo digital do rei”, em referência à teologia política medieval. “O mecanismo do populismo digital não colocou em relação líder e povo enquanto sujeitos políticos preexistentes, mas os (re)constituiu enquanto tais: num sentido bastante concreto, o líder Bolsonaro era esse corpo digital e não existiria sem ele”, afirma ( Cesarino, 2019: 534). É interessante que a forma populista de Bolsonaro que inclui o expediente do corpo magnificado do rei, a posição dita antissistema e o discurso difamatório que se desloca dos dossiês secretos para a divulgação robótica de fake news, já havia sido identificada por Marilena Chauí no tocante a outro político brasileiro emblemático, Paulo Maluf. Segundo a autora, no corpo místico do rei malufista se destaca, de maneira bastante similar a Bolsonaro:

O elogio a agressividade, do trabalho ininterrupto e das grandes realizações não é apenas o elogio aos valores mais claros da classe média ressentida e temerosa, mas é sobretudo a construção de um corpo político exemplar, objeto de imitação. Não só seu corpo político deve penetrar em todos os detalhes do cotidiano social e psíquico, mas o social no seu todo deve ser a realização do corpo uno do governante. ( Chauí, 1984: 40)

Contudo, o próprio aporte de aspectos messiânicos e milenaristas demonstra que a relação entre líder e povo não ocorre de maneira direta, mas passa necessariamente por mediações: no caso, a constituição de alianças e as recorrentes atualizações do novo estatuto político alcançado por Bolsonaro. A mobilização entre lideranças religiosas e fiéis concebidos como eleitores tem ocorrência prévia à última eleição. Silva (2018) apresenta a intensa atuação na internet durante as eleições de 2014 de Emmir Nogueira, cofundadora do Shalom, importante comunidade da Renovação Carismática Católica, sediada no Ceará. Conforme mostra o autor, a cofundadora atua como formadora de opinião dentro da comunidade, oferecendo ou dando credibilidade a determinados conteúdos e visões políticas relativas aos candidatos em disputa.

Emmir Nogueira foi, ao longo do processo eleitoral, elencando as razões da necessidade do engajamento dos fiéis católicos (e não apenas da RCC) na referida eleição, apontando a necessidade de se derrotar “a ideologia”, adjetivação com a qual referia-se à candidatura de Dilma Rousseff (PT), “contrária aos valores do Evangelho”, mobilizando, pois, numa campanha “anti-voto” na candidata, ou seja, não apontando em “quem votar” mas elencando as razões de em quem “não votar”. ( Silva, 2018: 34-35)

Assim, Bolsonaro se mostra a versão atual do corpo virtual e digital antipetista formado previamente mediante interações bastantes conhecidas das técnicas de comunicação política, a teoria do fluxo comunicacional em duas etapas, que enfatiza o papel dos formadores de opinião em base comunitária. Tais mediadores são pensados para refinar a ideia de que os meios de comunicação de massa atingem diretamente os receptores independente do contexto social. No âmbito da internet, que se comporta mais como mídia dirigida do que massiva, o papel de formador de opinião pode ser combinado ao agente que nas redes sociais têm sido chamado de influenciador digital. Muitos influenciadores digitais surgem no próprio ambiente cibernético, mas muitos, como o caso de Emmir Nogueira, adotam plataformas digitais de forma a ampliar e amplificar a influência que possuem em determinado perfil de público. A forma de atuação da qual a católica carismática fora precursora alcança o potencial máximo nas eleições de 2018, conforme mostra Mariano y Gerardi:

Igrejas evangélicas tornaram-se bastiões antipetistas e pastores ocuparam as redes sociais para demonizar os governos petistas, o PT e seu candidato. Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, apontou seu “canhão digital” contra o petista. Acusou-o [Fernando Haddad, ex-ministro da educação do governo Lula] de ser “autor do kit gay”, “essa cartilha do inferno para destruir nossas crianças”, e ao PT “de ser a favor de erotizar crianças em escolas” (2019: 69).

É necessário, portanto, destacar que a repercussão de argumentos eleitorais e mesmo de notícias falsas não se deve apenas ao potencial polêmico dos conteúdos em si, mas dos mediadores que servem como afiançadores das informações, e, posteriormente, como se tem mostrado ao longo do artigo, do político capaz de combater as ameaças, mediante rituais de transferência espiritual, mostrando a estreita relação entre a circulação de dons, mensagens e pessoas espirituais nas dinâmicas cristãs não-cessacionistas ( Bonfim, 2012).

Conforme aludido, existem vários tipos de figuras escatológicas para além do messias, cada qual, no entanto, dependente de dinâmicas próprias para o exercício do poder dentro da configuração milenarista. O “rei do fim do mundo”, por exemplo, pode ser considerado uma liderança messiânica que, contudo, não portaria necessariamente o carisma, precisando que este o seja infundido. Conforme aponta Cohn (1972), o primeiro “rei do fim do mundo” foi o imperador Constantino, convertido após ser assinalado vencedor pela visão do signo da eucaristia. A função do “rei do fim do mundo”, na perspectiva milenarista, seria a de preparar a humanidade para o milênio trazido pelo messias. Embora divinamente comissionado, ainda estaria ligado ao século, sobretudo em termos de realizações políticas, que, se bem-sucedidas, seriam o antegozo do próprio milênio, antecipando o reinado messiânico propriamente dito. Além de Constantino, outra figura identificada como o rei escatológico seria Carlos Magno, restaurador da concepção de império romano no Ocidente em contraposição ao Oriente Bizantino.

Assim, o reinado do “rei do fim do mundo” possui propriedades messiânicas, como a longevidade. Podem ser pensados em termos de “eras”, o que permitiu a transposição das concepções joaquinistas de “era do Pai”, “era do Filho” e “era do Espírito Santo” para o plano de governanças políticas específicas, como a noção de “Reich” no mundo germânico, que depois viria a inspirar a política e a estética do nazismo 4. No caso do governo Bolsonaro, a longa duração se anuncia desde os primeiros momentos do mandato, quando o recém-empossado e seus apoiadores já antecipam a reeleição em 2022 e a fundação de dinastia a partir dos filhos do presidente. Em termos visuais, cada marco de cem dias de governo estampava o símbolo do infinito:


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Marca comemorativa de cem dias de governo. Fonte: Captura de tela do site do governo brasileiro

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Fonte: Material de Divulgação Ministério da Justiça e Segurança Pública

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Fonte: material de divulgação do Ministério da Justiça e Segurança Pública

Nas propagandas do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, a marca de infinito vem acompanhada a noção de transformação, própria da expectativa milenarista, e cifras de difícil apreensão que, coincidentemente ou não, amplia a sensação de infinito do símbolo por estar em relação matemática de múltiplo. O mal, sem rosto, está algemado, e as ações em destaque, embora se refiram a crimes do ponto de vista legal, miram as questões morais relativas ao uso de drogas. A referência ao infinito com as cores da bandeira também está na logomarca na proposta do Partido Aliança pelo Brasil, que busca o reconhecimento oficial após o rompimento de Bolsonaro e de seus principais apoiadores com o PSL. No caso, a aliança não são apenas anéis entrelaçados, mas círculos que se fundem como na fita de Moebius, em que certas propriedades de não-direcionalidade se manifestam, como a impossibilidade de determinar o que está dentro ou fora, bem como onde começa e se iniciam os círculos.


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Logomarca do Partido Aliança pelo Brasil. Fonte: Divulgação.

Outro conjunto de referências messiânico-milenaristas importante diz respeito ao papel do Messias como comandante militar que arremete contra as forças malignas. A situação histórica prototípica são as cruzadas medievais, mais especificamente a Terceira Cruzada ou Cruzada dos Reis, quando os principais monarcas da Europa se engajaram na defesa dos Estados Cruzados Orientais. Grande parte da motivação de Dom Sebastião de lutar contra os mouros no Marrocos se deve à relevância da atuação dos reis cruzados como promotores do futuro reino de Cristo na Terra, a função precípua do “rei do fim do mundo”. Bolsonaro possui passado militar sem destaque, incluindo baixa por problemas disciplinares, e a principal bandeira bélica do governo diz respeito ao porte de armas generalizada, o que de certa forma não corresponde à expectativa de liderança no combate, resumida em grande parte ao gesto de fazer armas com as mãos. Podemos recuperar aqui a imagem dos dois corpos do rei de Kantorowicz. O corpo natural diz respeito à figura regular do capitão, mas o corpo místico diz respeito diretamente à função do escolhido por vontade popular e que corporifica a voz popular ao colocar “Deus acima de todos” como divisa da nação, ou seja, submetendo vontades individuais. É como corpo místico, conformado pela agregação de expectativas dos eleitores em torno da liderança com perfil limitado, mais do que corpo natural, que Bolsonaro desponta como cruzado:


Imagem 9
templário em missão para salvar a pátria ameaçada.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2019/05/qual-e-o-tamanho-doexercito-golpista.shtml

É importante destacar que as figuras de rei cruzado ou rei paladino fazem parte das estratégias de despolitização comuns na história política, encontrando maior sustentação quando entra em operação a elaboração do corpo político do rei. Para mostrar que figuras que podem ser facilmente associadas a atributos políticos negativos (corrupção, ligação com a ditadura, milícias e repressão) possam obter sublimação a partir da estratégia de separação medieval do rei em duas instâncias somáticas, Marilena Chauí comenta sobre outro político de reputação pública controversa que, no entanto, durante muito tempo obtivera adesão para conquistar mandatos, Paulo Maluf, conforme aludido anteriormente.

As imagens medievais de campanha militar do “rei do fim do mundo” são importantes para se distinguir as múltiplas fontes do messianismo-milenarismo em torno da figura de Bolsonaro. Como afirma Della Cava (1977) a respeito de Juazeiro, fenômenos milenaristas-messiânicos costumam ser vistos primordialmente sob pontos de vistas locais e regionais, quando os conflitos ocorridos geralmente “originam-se e desenvolvem-se dentro de um contexto social definido pelas estruturas dominantes em âmbito mundial e nacional” (Cava, 1977: 20). No caso do arraial do Cariri, a hóstia convertida em sangue na boca da beata repercute diretamente as consequências para a política internacional da Igreja Católica diante da perda dos estados pontifícios, das crescentes demandas laicizantes, e, no Brasil, da reconfiguração do papel do Catolicismo no país com o fim do Padroado e a implementação dos ideais republicanos, que incluía componentes anticlericais.

No caso da eleição de Bolsonaro, a remissão ao imaginário das Cruzadas provém da chamada alt right internacional, sendo extensivamente utilizada para consagrar a vitória de Donald Trump em 2016. É do contexto americano que se origina a retomada da expressão medieval “Deus Vult” (Deus quer), o mote para o desencadeamento das cruzadas, que agora se desloca para os resultados positivos nas eleições e a possibilidade de implementação da agenda que restringe pautas liberais, sobretudo nos costumes, como aborto, direitos da população LGBTQ+, direitos das mulheres e feminismo, migração, dentre outros. A magnificação do corpo rei ocorre principalmente no aspecto cruzado, quando os apoiadores se engajam na defesa das pautas postas em instâncias governamentais, mediante manifestações públicas, mas principalmente na composição do corpo digital, como coloca Cesarino (2019).


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Deus Vult e a Militância Cibernética. Fonte: https://apublica.org/2019/04/deus-vultuma-velha-expressao-na-boca-da-extrema-direita/

Considerações Finais: a oposição Arcaico X Moderno e a questão do Pluralismo

O segundo ano de mandato do governo Bolsonaro começa com a notícia de que pela primeira vez o Brasil está citado nominalmente como responsável por adiantar o relógio do Juízo Final, dispositivo criado por cientistas em 1947 para assinalar a proximidade de catástrofes globais. A inclusão se deve à maneira como o governo brasileiro trata as questões ambientais, tendo como auge as queimadas na Amazônia. A aceleração do mecanismo de escatologia científica inclusive se coaduna com perspectivas apocalípticas da própria Antropologia, que também trabalha com noções de eras extremas, como o Antropoceno, discutido por inúmeros autores, ou o recente Chthuluceno de Donna Haraway (2016), que discute as propostas conceituais da era derradeira em voga no debate científico atual. Assim, a associação de Bolsonaro ao fim do mundo não se restringe ao movimento analítico do artigo, mas aparece nos diversos atores sociais, em escala nacional e mundial, variando em avaliações positivas e negativas da governança.

Lísias Negrão afirma que, a despeito de trabalhos comparativos como o de Maria Isaura Pereira de Queiroz, “poucos foram além das explicações dos casos concretos que estudaram. As generalizações e explicações globalizantes são escassas” (2015: 59). Se a afirmação parece verdadeira para os casos exemplares de messianismo e milenarismo comentados pelo autor, aqueles ocorridos no campo brasileiro, com maior medida vale para situações fora das configurações rústicas e que não se baseiam em localidades específicas, como as tratadas aqui. A dificuldade interpretativa para os movimentos rústicos, conforme sublinha Negrão, se deve à oposição automática entre formações arcaicas em luta com a sociedade moderna, o que deve ser excluído da situação em tela. Sobretudo porque o aporte das lideranças religiosas à figura messiânica do presidente se baseia não apenas em provisões rituais, mas igualmente em alta tecnologia em comunicação, o mesmo valendo para as principais formas de engajamento dos apoiadores mediante as mídias sociais.

O autor comenta fatos similares ao tratar de eclosões de messianismos em regiões consideradas “modernas” da sociedade brasileira, como o surgimento de lideranças messiânicas ecléticas (que não se limitam ao Catolicismo) nas grandes metrópoles, ou do mundo, como os Estados Unidos, onde expectativas de arrebatamento se combinam com noções ufológicas. Mas deve-se destacar que, a despeito das condições tecnológicas, as fontes do messianismo-milenarismo associado a Bolsonaro permanecem nos repertórios formados no contexto medieval, caso similar ao comentado por Velho (1999) ao tratar da eleição de Fernando Collor de Melo, que possuía atribuição similar de acabar com a corrupção, personificada no exótico pagão “marajá”. Assim, pode-se atestar a recorrência da discursividade não-verbal messiânica e milenarista do medievo, evidenciada pela retomada de temas visuais referentes ao campo semântico da unção e do milênio utilizadas como material de divulgação política da campanha e do mandato presidencial.

O presente trabalho destaca que o carisma do líder messiânico não é apenas percebido como socialmente inato pelo conjunto heterogêneo de apoiadores, mas deve ser produzido por outras instâncias manejadoras do influxo carismático, como a capacidade de comunicação do Espírito Santo por sacerdotes consagrados religiosamente e midiaticamente. O que abre espaço para se evitar explicações monocausais, como o arcaísmo, nos casos clássicos, ou o conservadorismo, atuante mas não suficiente para explicar os interesses particulares de cada agente transmissor de carisma ao apoiar a mudança no poder representada pela eleição de Bolsonaro, bem como garantir a continuidade do projeto milenarista que o governo dele traria no bojo (como evitar o término repentino do mandato ou a reeleição). Também ajuda a colocar em aberto os alvos e formas que vão assumir as transformações do projeto milenarista, o que se evidencia pelas crises internas ao governo que geram mais instabilidade do que as ações da oposição. Contudo, o outro lado da oposição clássica, a modernidade, parece estar mais facilmente identificada com o modelo político do pluralismo, no qual se baseia as demandas por diversidade, que assim como o constructo do secularismo, tem ganhado contornos autoevidentes que impendem o entendimento de ações políticas organizadas capazes de contestar a imagética mobilizada por figuras políticas que melhor atuam no cenário estilizado de sempiterno escathon

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Notas

1 Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Pesquisa realizada com apoio da FAPESP (2015/26464-90).
2 De acordo com Nascimento (2019), Macedo apoiava o candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, mas resolveu assumir a preferência dos fiéis por Bolsonaro. Apenas em meados do primeiro ano de mandato os dois viriam a se conhecer pessoalmente, justamente no contexto do ritual de imposição de mãos.
3 A renovação do país ensejada pela perspectiva milenarista-messiânica em torno de Bolsonaro abrange a mudança em aspectos de moral política, diante de escândalos de corrupção, e de moral social, em que a ampliação de direitos relativos à diversidade são enredados em situações de ofensa sexual e ameaça à noção de religião cristã como fundamento da nação. Os governos do Partido dos Trabalhadores, mas também as Universidades e outros setores considerados progressistas, são os considerados responsáveis pela crise moral de duplo âmbito. Para mais detalhes sobre a versão religiosa da pauta da extrema direita nas eleições de 2018 no Brasil e em outros países da América Latina, ver Mariano e Gerardi (2019) e Almeida (2017). Não se pode deixar de destacar a aliança entre lideranças religiosas e outros interesses que buscam maior espaço no Estado, como os setores armamentistas, o agronegócio, a mineração, dentre outros.
4 A discussão mais abrangente sobre os principais desdobramentos da perspectiva messiânica-milenarista, incluindo as bases que lançam para o pensamento político moderno, sobretudo as relativas ao pensamento de esquerda, estão presentes na obra de Norman Cohn (1972), “Em Busca do Milênio”, ao qual remeto o leitor que busca mais detalhes sobre as noções discutidas e tomadas para comparação no artigo.


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