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CORPUS PAGANUS: SENSIBILIDADES, PERCEPÇÕES, HABILIDADES E CANALIZAÇÕES EM UM RITUAL NEOPAGÃO
CUERPOS PAGANOS: SENSIBILIDADES, PERCEPCIONES, HABILIDADES Y CANALIZACIONES EN UN RITUAL NEOPAGANO
CORPUS PAGANUS: SENSIBILITIES, PERCEPTIONS, HABILITIES AND POSSESSIONS IN A NEO-PAGAN RITUAL
CORPUS PAGANUS: SENSIBILIDADES, PERCEPÇÕES, HABILIDADES E CANALIZAÇÕES EM UM RITUAL NEOPAGÃO
Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 22, pp. 1-23, 2020
Universidade Estadual de Campinas
RESUMO: O trabalho tem por objetivo central analisar o fenômeno de canalização de divindades em um clã do neopaganismo celta no Brasil, situado Juiz de Fora (MG), enquanto fenômeno capaz de incitar discussões acerca da “realidade” de tais fenômenos. Nesse sentido os questionamentos centrais tangenciam as possibilidades analíticas de fenômenos desta natureza -sugeridas aqui por um recorte vinculado à antropologia fenomenológica- e as possíveis formas de análise sobre a expressão existencial das divindades, buscando se questionar sobre a possibilidade de tratar tais fenômenos como reais. A pesquisa foi realizada no primeiro fim de semana de novembro de 2018, complementada com conversas informais posteriores. Entre as conclusões, destacamos a constituição do contexto ritual como ambiente propício para o acontecimento do fenômeno, que se expressa em termos existenciais através de expressões corporais (sendo aqui o corpo um vetor existencial fenomênico), apresentando a realidade da divindade, ou seus modos de existência, pra citar o termo de Latour (2012), através do corpo no processo de canalização.
Palavras-chave: Neopaganismo, canalização, samhain, corpo.
RESUMEN: El objetivo principal de este trabajo es analizar el fenómeno de la canalización de deidades en un clan del neopaganismo celta en Brasil, ubicado en Juiz de Fora (MG), como un fenómeno capaz de incitar discusiones sobre la “realidad” de tales fenómenos. En este sentido, las preguntas centrales abordan las posibilidades analíticas de fenómenos de esta naturaleza -sugeridas aquí en un apartado vinculado a la antropología fenomenológica- y las posibles formas de análisis sobre la expresión existencial de las deidades, buscando cuestionar la posibilidad de tratar tales fenómenos como reales. La investigación se realizó durante el primer fin de semana de noviembre de 2018, complementándose con conversaciones informales posteriores. Entre las conclusiones, destacamos la constitución del contexto ritual como un entorno propicio para que ocurra el fenómeno, que se expresa en términos existenciales a través de expresiones corporales (aquí el cuerpo es un vector existencial fenoménico), presentando la realidad de la divinidad, o sus modos de existencia ( Latour, 2012) a través del cuerpo en el proceso de canalización.
Palabras clave: Neopaganismo, canalización, samhain, cuerpo.
ABSTRACT: The main objective of this work is to analyze the phenomenon of channeling deities in a clan of Celtic Neopaganism in Brazil, located in Juiz de Fora (MG), as a phenomenon capable of inciting discussions that circumscribe themes about the “reality” of such phenomena. In this sense, the central questions touch on the analytical possibilities of phenomena of this nature -suggested here by an approach linked to phenomenological anthropology- and the possible forms of analysis on the existential expression of the deities, seeking to question the possibility of treating such phenomena as real. The survey was conducted on the first weekend of November 2018, complemented with later informal conversations, as an informative supplement. Among the conclusions, we highlight the constitution of the ritual context as a favorable environment for the phenomenon to happen, which is expressed in existential terms through body expressions (here the body is a phenomenal existential vector), presenting the reality of divinity, or its modes of existence, to quote the term of Latour (2012), through the body in the channeling process.
Keywords: Neopaganism, possession, samhain, body.
Introdução
O tema do ritual em âmbito religioso permite a construção de uma miríade de possíveis reflexões em variadas linhas teóricas na Antropologia, entre outras ciências. Para o presente caso, analisar-se-á um ritual conhecido como Samhain, realizado por povos celtas (entre outros) na Antiguidade europeia e atualmente revivido por grupos neopagãos de todo o mundo, inclusive no Brasil. Desta forma, o presente trabalho tem como propósito geral realizar uma análise de um dos rituais que compõem o corpo de práticas de um clã neopagão com ênfase celta, localizado em Juiz de Fora (MG), dando especial atenção ao fenômeno da canalização de uma divindade pelo líder do grupo.
O trabalho se desenvolveu a partir de uma etnografia realizada na cidade de Juiz de Fora (MG) no primeiro fim de semana de novembro de 2018, englobando o acontecimento do ritual de Samhain, o ano novo celta, se estendendo para o presente recorte em algumas conversas realizadas após o ritual. Assim, em termos metodológicos, a etnografia do ritual é o tema central, tendo as conversas posteriores uma função de complementação informativa que busca situar membros, eventos e trajetórias que justifiquem o recorte proposto. Ainda que o recorte diminuto da presente pesquisa difira em demasia de propostas como as de Vagner Gonçalves da Silva em “O Antropólogo e sua Magia” ( 2000), certo paralelo permite aqui ser traçado. Se sua proposta é problematizar questões sobre o trabalho de campo e a relação entre antropólogos e interlocutores, oferecendo uma presença aos sujeitos por meio de uma opção de escrita em primeira pessoa que busca pontos de vista, acima de tudo, minha proposição é apresentar as formas de existência de certos não-humanos no ritual em questão a partir de um recorte teórico que os situa enquanto sujeitos ativos nas teias relacionais, actantes nas palavras de Latour (2008), não meros objetos ou elementos que delineiam características religiosas particulares. Assim, a ênfase nas relações esboçadas pelos nativos é aqui apresentada não como característica religiosa, mas acima de tudo um processo de relação entre diferentes sujeitos, uma forma de situar não-humanos de forma mais plana.
Neste ritual, além de uma breve análise sobre o contexto da data, do ritual, sua relação com o ambiente cosmológico de espíritos e divindades e da forma como se realiza o ritual neste clã, a ênfase do trabalho recai num evento particular mais vinculado à prática do grupo em questão: a canalização de uma divindade por um dos membros do clã. A partir deste evento, o objetivo do trabalho é analisar em termos fenomenológicos as manifestações corporais envolvidas no processo e como estas se relacionam com o ambiente ritual deste período e a construção de corpos que dispõem de sensibilidades, percepções e habilidades variadas e desenvolvidas num contexto neopagão, fundando a análise em pressupostos teóricos que permitem aprofundar as possibilidades relacionais entre humanos e não-humanos. Isto é, a ênfase analítica recai essencialmente na temática do corpo e em suas formas de manifestação de fenômenos ligados ao contexto ritual e as habilidades desenvolvidas.
Em termos teóricos, mobiliza-se aqui argumentações em torno da virada ontológica e o novo animismo de Graham Harvey (2014) como pano de fundo, permitindo um aprofundamento da perspectiva relacional entre humanos e não-humanos como um processo prático desenvolvido contextualmente. A partir daí, a análise busca pensar a construção do contexto ritual como um “ambiente comportamental”, termo este inspirado no pensamento de Irving Hallowell (1974) que envolve sujeitos humanos e não-humanos. Tal contexto permite, por sua vez, a realização de fenômenos como a canalização de uma divindade, que aqui é analisada tanto sob uma perspectiva fenomenológica do “paradigma da corporeidade” de Csordas (2008) quanto em relação às “habilidades” e “afetações” necessárias para a prática, estas vistas sob o olhar de Bruno Latour (2008), que também é uma referência central, através de seu conceito de “modos de existência” ( Latour, 2012), para pensar em termos ontológicos a forma de construção existencial da divindade em questão. Assim, o presente texto se compõe, inicialmente, de uma breve discussão que busca definir o neopaganismo celta enquanto um movimento de resgate de uma religiosidade celta da Antiguidade, desembocando posteriormente numa reflexão acerca da composição clã juiz-forano e suas características. Posteriormente busca-se contextualizar o ambiente formado a partir do ritual analisado, Samhain, para enfim analisar a constituição do fenômeno de canalização de uma divindade em termos fenomenológicos e existenciais.
A saga Celta: uma breve discussão sobre o (Neo)paganismo Celta
Abordar uma perspectiva de transformação religiosa celta ao longo da História em suas diversas ramificações e movimentos exigiria um amplo esforço que estenderia em excesso o presente trabalho. Em vias de sua limitação, o presente tópico tem por objetivo apresentar algumas curtas discussões que situem o neopaganismo celta em termos históricos.
O neopaganismo celta pode se definir como vertente independente de uma matriz religiosa plural -o neopaganismo- que caracteriza-se pelo culto moderno e contemporâneo de perspectivas religiosas europeias no período prévio à expansão do Cristianismo, possuindo diversas subdivisões que se distinguem pela origem e expansão geográfica, tal como pela característica do panteão: nórdico, celta, romano, grego, entre outros. O termo “pagão” remete à região rural romana de pagus, derivando daí o termo paganus (homem do campo), só adquirindo caráter pejorativo após a cristianização europeia, passando a designar pessoas não adeptas ao cristianismo urbano, como afirma Bezerra (2019: 14): “o termo só veio a ter conotação religiosa com a utilização pejorativa, utilizada pelos cristãos”. Oliveira (2004), em seu estudo sobre o neopaganismo no Brasil, aponta que apesar da multiplicidade constitutiva das religiosidades neopagãs variarem por panteão, ritos e festividades, a sacralização da natureza e hierofanização da mesma são aspectos que aproximam a diversidade neopagã:
percepção da sacralidade da natureza constitui a característica básica do Neopaganismo, uma espécie de parâmetro que permite delimitar o tronco comum em torno da qual se unem as diferentes manifestações modernas ( Oliveira, 2004: 43).
Por sua vez, Michael York (2003) pensa o (neo)paganismo como um guardachuva identitário-religioso que abarca uma série de designações religiosas remetentes aos contextos Antigo e Medieval europeu pré-cristão, reconstruídas na contemporaneidade. Em paralelo com Oliveira (2004), Bezerra (2019) aponta que dentre as inúmeras dicotomias e diferenciações que marcam os movimentos neopagãos, a defesa da natureza em termos de sua centralização e celebração no culto é a base de definição do neopaganismo: “A ideia de religião da natureza ou religião centrada na celebração da natureza é o tema que une a gama de religiões sobre o guarda-chuva paganismo contemporâneo” ( Bezerra, 2019: 18).
Ao enfatizar no presente trabalho a designação “celta” na contextualização do fenômeno da canalização de uma divindade em um ritual realizado por um clã neopagão, cabe designar um pequeno resumo sobre os grupos celtas que dão origem e inspiração à constituição desta vertente. A nomenclatura celta, segundo Lopes (2008), designa um conjunto de povos que se expandiram pela Europa a partir de 2.000 a.C., sendo um dos povos responsáveis pela introdução da metalurgia no Continente. Dividindo-se entre gauleses, bretões, caledônios, escotos entre outros, a cultura celta alcançou diversos territórios europeus, como a Grã-Bretanha; França; Bélgica e Península Ibérica. Sua religião era baseada num politeísmo com elementos animistas e as festividades, segundo Oliveira (2004) e Bezerra (2019), eram organizadas em função das estações do ano e o ciclo de plantio e colheita de alimentos, estando também suas divindades associadas à vida prática destes povos, seja na relação com plantações e comércio, como na vida espiritual amorosa e na guerra.
Neste sentido, o funcionamento do aspecto religioso dilui-se na variedade de atividades e vivências socioculturais, permitindo um processo de hierofanização da natureza e de seus elementos que possuem ligação direta ou indireta com divindades (árvores, plantas, tipos de pedras, rios e mares). No que tange ainda ao aspecto das práticas ritualísticas, as sociedades celtas tinham na figura do sacerdote (druida), uma grande centralidade. Segundo Donnard (2006), os druidas eram sacerdotes versados em conhecimentos mágicos sobre plantas, oráculos, rituais, festivais, entre outros aspectos. Possuíam certa centralidade hierárquica nas sociedades celtas por conta de suas relativas proximidades com o variado panteão de deuses e deusas. O conhecimento druídico era transmitido de geração em geração, de forma oral, sendo que as fontes disponíveis sobre o período da antiguidade celta e dos próprios druidas tem origem em relatos romanos.
Se as guerras com Roma e a posterior ascensão do Cristianismo na Europa deram fim ao paganismo celta em termos de uma identificação coletiva com tal perspectiva politeísta, só no século XX, a partir da década de 1930 autores como Philéas Lebesgue e Paul Bouchet, franceses, tomam conhecimentos históricos e arqueológicos sobre os druidas para escreverem livros acerca do conhecimento de ervas e magias. Com tais bases de estudos e práticas, apenas nos anos 1950 o Neodruidismo ( Lopes, 2008) toma formas mais contemporâneas. Ross Nichols ou Nuinn, diácono da Igreja Católica Céltica - um movimento histórico que buscou sincretizar elementos das religiosidades pagãs célticas com tradições cristãs - ingressa na Ancient Druid Order em 1954, propiciando mudanças estruturais em seus ritos ao resgatar cerimônias de solstícios e equinócios, tal como outras festividades e ritos. Ross Nichols, então, criou e popularizou livros, apostilas, reuniões, diversificou aparatos ritualísticos, entre outros aspectos que dinamizaram a prática druídica, adequando-a à vida moderna ( Lopes, 2008). A partir de então, o Neodruidismo se expande para diversos países do mundo através da disseminação de conhecimento das ordens para além de suas fronteiras geográficas.
No caso brasileiro, a gênese do neopaganismo celta e neodruidismo se dá a partir da década de 1970 com o alagoano Savu Septimus de Morosini, primeiro brasileiro a se filiar ao Colégio Internacional de Estudos Celtodruídicos (CIDECD), fundado por Paul Bouchet em 1942 na França, segundo aponta Bezerra (2019). A partir de então, ao longo das décadas seguintes, Bezerra (2019) destaca a criação de diversos grupos e ordens, como o Colégio Druídico do Brasil (CDB) nos anos 1980, a Assembleia da Tradição Druídica no Brasil, o Colégio Internacional de Estudos Celto-Druídicos, Sociedade Druida Alohanai de estudos Célticos (SDAEC), entre outras, todas nos anos 2000.
Já em 2010 cria-se o “Conselho Brasileiro de Druidismo e Reconstrucionismo Céltico” (designado pela sigla CBDRC) para unir os diversos grupos em torno de discussões que propiciem tanto a construção estrutural da corrente religiosa no Brasil, quanto discussões e disseminação de informações sobre as práticas vinculadas ao meio religioso, sendo então um movimento de ampla relevância sobre o tema. Desde então, o Conselho realiza anualmente o Encontro Brasileiro de Druidismo e Reconstrucionismo Celta (EBDRC) de forma itinerante, oferecendo cursos, palestras e discussões sobre o neopaganismo celta para grupos e praticantes individuais. Aqui situa-se o clã juiz-forano, filiado ao CBDRC.
Neopagãos na Zona da Mata: o clã de Juiz de Fora
Estando na esteira de tal desenvolvimento histórico a nível mundial e nacional, o clã 1 de Juiz de Fora “Leanai an Ghealach Clann” (Clã dos Filhos da Lua), fundado em 2012, se autodenomina como pertencente ao Neodruidismo e Reconstrucionismo Celta, por desenvolver cultos e rituais aos deuses celtas. A adoção do termo “clã” se dá, como relatado pelo druida, por expressar uma forma de organização presente entre os celtas históricos em torno da família e vizinhos. A adoção do termo atualmente indica um tipo de organização grupal com finalidades ritualísticas em que os membros se designam como parte de uma família, em termos espirituais. Dentre os membros, o sacerdote e druida líder do clã é participante ativo do CBDRC, oferecendo palestras sobre temas variados em cada ano, consultas oraculares, cursos de iniciação ao Druidismo ( on line) e leitura oracular de ogham2 (online), sendo então figura central no clã, justamente por sua posição enquanto druida: “os druidas eram aqueles que estavam ligados às práticas legais, fisiólogos e filósofos” ( Lopes, 2008: 88). O clã possui uma estrutura hierárquica relativamente definida, vinculada às funções de cada posição e ao tempo e participação de cada membro. O druida do clã juiz-forano é um homem, na época com 27 anos, praticante do Neopaganismo celta desde os 13 anos.
A organização interna vincula-se às habilidades e pré-disposições de seus membros em desenvolver certos conhecimentos e sensibilidades. O druida e líder do clã, além de organizar as celebrações e ser o principal transmissor da tradição, da mitologia e do aspecto histórico dos povos celtas, é o responsável por trabalhar com oráculos, além de estar suscetível a processos de canalização em que uma divindade se manifesta em seu corpo. Além do druida oficiante dos rituais, pode-se destacar a centralidade de duas outras mulheres integrantes do clã: uma mulher de 37 anos, responsável por sentir, controlar, chamar e expulsar certas energias dos ambientes rituais, possuindo maior sensibilidade perceptiva para a realização de tal função, sendo também responsável por estudar e preparar poções usadas em rituais que podem aguçar certas faculdades perceptivas nos participantes. A outra, uma mulher de 44 anos, que possui um canal de abertura com o mundo espiritual bastante apurado, sendo um oráculo que recebe e transmite mensagens de divindades e espíritos aos praticantes e visitantes do ritual. Estes três sujeitos são os principais responsáveis pela organização e execução dos rituais.
Tal organização centrada nestes três membros evoca também uma dupla via de relação com habilidades desenvolvidas e já vinculadas aos sujeitos. Como a nós narrado pelo druida e pelas mulheres acima citadas, tais “disposições”, ainda que necessitem de desenvolvimento por meio de estudos, meditações e rituais, já se esboçam nos sujeitos como “facilidades” que indicam pré-disposições a um melhor desenvolvimento de habilidades. A mulher responsável pelo controle energético do ambiente nos narrou, certa vez, que desde jovem tendia a se sentir demasiadamente bem ou mal fisicamente a partir da variação de ambientes e de pessoas, apenas entendendo melhor essas percepções após adentrar no mundo neopagão, fazendo com que estudos e práticas propiciassem maior controle físico desta afetação energética em benefício de si e dos participantes do ritual. Semelhante experiência também foi apresentada pela mulher que possui maior contato com mundos espirituais, revelando que sua “pré-disposição” se dá ao receber mensagens de divindades e, ainda que reconheça a centralidade do neopaganismo nesse desenvolvimento, sempre sentiu conexões com seres que antes não era capaz de explicar.
O druida ocupa posição central no clã exatamente pela função de organização e realização dos rituais, além de iniciar outros membros, e também desenvolver a prática de canalização de uma divindade, a deusa celta da guerra Morrigan. A canalização é uma prática que, segundo ele, ainda gera discussões no EBDRC sobre sua legitimidade entre diversos praticantes, dividindo adeptos que consideram a prática como válida e possivelmente existente entre os druidas originais (mesmo com a falta de embasamento histórico) e aqueles que sustentam a prática como vinculada à certas tradições de matriz africana e/ou espíritas, portanto, inválidas para a constituição da religiosidade celta contemporânea, centrada na reconstrução de práticas antigas e medievais.
Observamos, contudo, que este processo de autoafirmação do neopaganismo celta e suas práticas -em especial a canalização- pode ser considerado como a constituição de um particularismo religioso. Tal prática é envolta de discussões sobre sua legitimidade, tanto pela carência de evidências e/ou historiográficas que sustentem a canalização entre os povos celtas, quanto pelo fato de seus usos serem diretamente correlacionados às incorporações recorrentes em religiões afro-brasileiras e indígenas. Ao que foi possível notar, a tendência ao “reconstrucionismo” tende a colocar certas práticas sem fundamentação histórico-arqueológica em questão, justamente pela possibilidade destas serem derivadas de tradições outras (algo plausível, haja vista a influência histórica de tradições afro-brasileiras e indígenas). Porém, como será possível notar mais adiante, há um uso pouco problematizado da Jurema, planta comum no Brasil e largamente utilizada nas mesmas tradições citadas, caracterizada por sua indução ao relaxamento que facilita o transe mediúnico. Não apenas a presença da planta, mas sua maneira de uso indica proximidade a utilização feita por estas tradições indígenas e afro-brasileiras. Inevitavelmente, este “reconstrucionismo” se envolve e, de alguma forma, se relaciona com outras tradições religiosas, ainda que suas práticas pretendam fundar legitimidade e respaldo pela diferenciação de outras tradições e fundamentações históricas.
Conceituar processos de canalização e diferenciá-los de incorporação é uma tarefa complexa e que divide adeptos de variadas matrizes religiosas. Para o presente caso, utilizo a conceituação fornecida pelo próprio druida, que é capaz não apenas de dar sentido à prática, mas nortear o entendimento constitutivo do próprio fenômeno. Segundo este, no processo de incorporação os espíritos e/ou entidades tomam o corpo do médium (sujeito suscetível à prática, com relativa sensibilidade para seu exercício). Isto é, o corpo físico constitui-se neste processo enquanto invólucro do espirito que o anima e caracteriza seus movimentos. Aqui, a língua falada, os trejeitos corporais e o linguajar se associam ao espírito que incorpora aquele corpo. Já a canalização possui diferentes níveis e formas de manifestação, segundo a atividade e meio religioso envolvido. O médium torna-se um portal pelo qual o espírito se manifesta, não estando totalmente alheio ao processo, já que a necessidade de manter a mente originária ativa é imperativo para que manifeste o ser espiritual. Segundo nos relatou o druida, a capacidade de canalização é algo que qualquer pessoa poderia desenvolver, não havendo uma pré-disposição anterior. Os fatores centrais que envolvem a canalização são ligados à boa relação do sujeito com a divindade em questão, a vontade desta se manifestar por tal via e à capacidade deste sujeito desenvolver práticas meditativas e de transe que permitam tal fenômeno.
No caso presente de neopaganismo, a canalização do druida envolve a manifestação da deusa celta Morrigan, que “toma” certa parte do corpo deste sujeito, ainda que a mente ativa do mesmo permita com que a divindade utilize o português como fala de comunicação (além do gaélico antigo, sua língua de origem) e, eventualmente, compadeça também de alguma limitação, dor ou condição física que afete o druida. Na canalização acompanhada e descrita no subtítulo seguinte, a manifestação de Morrigan se dá através da utilização do corpo e mente do médium druida, ainda que esta última fique ativa, permitindo com que a divindade seja capaz de utilizar elementos culturais (língua, por exemplo) vinculados a vivência do sujeito originário.
Tais habilidades e disposições que circundam não apenas tais sujeitos, mas são de plena relevância para a construção do clã, suas práticas e características, ecoando em análises como as de Bruno Latour (2008) acerca do desenvolvimento de habilidades e percepções corporais a partir de contextos de “afetação”. Este autor destaca o corpo como um projeto em aberto a ser construído no processo relacional com o mundo em volta. Sua definição de corpo dá-se a partir do campo relacional tecido, seja com outros sujeitos humanos e/ou não-humanos. Trata-se de investigar o corpo na ação de sua existência, nos aprendizados tecidos e nas novas possibilidades de construção perceptiva do ambiente em que se insere. Em seu trabalho, Latour (2008) explora os processos de construção de corpos através de treinamentos desenvolvidos por “kits de odores”, elementos que permitem desenvolver percepções e diferenciações de fragrâncias e cheiros antes pouco ou não perceptíveis. A partir de tal treinamento, os indivíduos “adquirem” um novo corpo, um novo nariz, desenvolvendo novas relações com o mundo (através de cheiros), através da diferenciação de aspectos e da construção de novas possibilidades:
Tudo se passa como se pela prática ela tivesse adquirido um órgão que define a sua capacidade de detectar diferenças químicas ou outras: pelo treino, aprendeu a ter um nariz que lhe permite habitar num mundo odorífero amplamente diferenciado. As partes do corpo, portanto, são adquiridas progressivamente ao mesmo tempo que as ‘contrapartidas do mundo’ vão sendo registadas de nova forma. ( Latour, 2008: 40)
O sujeito “articulado” é aquele aberto à construção de relações variadas que o permitem adquirir um corpo e se afetar por diferenças amplamente variáveis.
Em relação aos três membros centrais do clã, é possível traçar paralelos e pensar suas práticas em relação ao pensamento de Latour (2008). Suas habilidades, sejam de sensibilidade energética, canalização ou comunicação com espíritos e divindades, possuem caráter de desenvolvimento a partir de um contexto prático de estudos, rituais e meditações. Porém, se a proposição latouriana sugere exatamente a ênfase na prática como elemento constitutivo, no caso das duas mulheres com habilidades de percepção, prática energética e de comunicação com divindades, destaca-se uma pré-disposição que as acompanha desde antes do neopaganismo celta, e que pode ser desenvolvida pela prática, ou ao menos ser mais facilmente desenvolvida em sua trajetória no neopaganismo, estando já dada anteriormente.
Além dos três membros citados e sua centralização ligada às predisposições e habilidades desenvolvidas e utilizadas nos contextos rituais, o clã ainda inclui mais dois membros iniciados que participam de forma mais esporádica nos rituais, ambos cumprindo o papel de bardos, mais vinculados à função de busca histórica das tradições pagãs antigas e medievais. Todos os cinco sujeitos acima mencionados compõem o clã, sendo identificáveis nos rituais por envergarem vestimentas específicas de cores variadas, que representam suas ligações com divindades mais próximas, além do uso de pulseiras e colares com símbolos religiosos (pentagramas, triskles3, mjölnir4, dentre outros).
Por fim, ainda cabe especificar o posicionamento de outros três membros que passam atualmente pelo processo de entrada no clã, dois homens e uma mulher, sendo esta última a mais ativa entre os três, cumprindo a função de bardisa e tocando instrumentos medievais nas celebrações e rituais. O processo de entrada no clã possui duração mínima de um ano, pois se exige que os postulantes tenham participação ativa na vida ritualística e nas celebrações do clã neste tempo, a fim de legitimar seu interesse em fazer parte do meio. O processo de entrada torna-se aberto apenas no período de Samhain (fim de outubro e início de novembro) pois esta data marca o início de um novo ano entre os neopagãos celtas, fazendo com que o neófito participe dos rituais ao longo de todo o ano, necessitando da aprovação prévia dos membros ativos e das divindades, manifestadas através do ogham, o oráculo celta. Neste período, é obrigado a utilizar em rituais uma túnica preta simples, sem adereços ou identificações, vestindo apenas roupas íntimas por baixo.
No que se refere às celebrações, o clã comemora as festividades e rituais descritas em livros nativos como centrais no calendário celta, acompanhando ciclos de plantio e colheita nas sociedades celtas da Antiguidade, tal como as diferentes estações do ano. As celebrações são: Samhain, Yule, Imbolc, Ostara, Beltan, Litha, Lammas e Mabon. Diferentemente de outros clãs que adaptam esta “roda do ano” às estações do hemisfério Sul, o clã de Juiz de Fora mantém-se fiel às datas originais. Além disso, o clã possui celebrações voltadas aos membros iniciados, em que se celebram datas comemorativas vinculadas às divindades adotadas como matronas ou patronos do clã, deuses que refletem as preferências dos membros e, entre estes, destacam-se os celtas Morrigan, Lugh, Dagda e Brigit, a grega Hékate e a nórdica Frigga, demonstrando que a celebração e culto aos deuses é algo fluido e não se limita a apenas um panteão. Tendo traçado um panorama geral da estrutura, caracterização e atividades do “Leanai an Ghealach Clann”, cabe voltar a atenção ao tema aqui proposto: o processo de canalização de uma divindade em um ritual.
De maneira geral, o clã se reúne quinzenalmente para preparar e realizar rituais da roda do ano ou rituais dedicados a alguma divindade específica, discutir entrada de novos membros, entre outras razões. O local de encontro é em uma casa de uma das mulheres membro, que possui uma grande área externa arborizada, permitindo a realização de rituais para dezenas de pessoas, se necessário. Com exceção de alguns rituais restritos aos membros do clã, citados acima, as celebrações recebem pessoas não vinculadas ao clã, variando entre 5 e 15 em cada ritual.
Samhain: a construção de um ambiente ritual
O evento a ser descrito faz parte do festival celta comemorado com mais afinco no “Leanai an Ghealach Clann”, Samhain. Marcando o fim do ano e começo de um novo, representa a aurora do inverno e dos tempos de maior dificuldade, tendo em vista o rigor da estação no mundo europeu e a baixa fertilidade das terras, o que significava para os povos celtas um período de risco e escassez. É comemorado entre 31 de outubro e 02 de novembro. Neste período, a tradição neopagã celta e neodruídica afirma que o véu (os limites) que separa o mundo material em que vivemos dos mundos espirituais tornase mais tênue, aproximando seus habitantes. Isto é, ao conceberem o tempo de forma cíclica e não-linear, eventos que implicam mudanças no tempo, nos ciclos de plantação e colheita, entre outros aspectos, também possuem implicações nas relações com planos espirituais. A cosmologia neopagã celta aponta para existência de dimensões espirituais em que divindades, espíritos e seres sobrenaturais (como fadas, por exemplo) habitam, sendo capazes de exercer certa influência sobre sujeitos e acontecimentos em nosso mundo material, manifestando-se preferencialmente a partir de processos variados, sejam rituais, viagens astrais ou invocações. Por mais que o acesso para tais planos existenciais sejam limitados em situações normais, ao longo do ano, no período de Samhain o trânsito entre estes mundos torna-se mais fácil, pois segundo o druida, neste período os limites entre os mundos torna-se mais sutil por conta de Samhain ser o fim de um ciclo e início de outro, ou seja, é uma característica deste período do ano. Esta data também marca as comemorações para Cailleach, a deusa celta primordial da Terra, um dos seres mais antigos descritos na cosmologia. Sendo uma anciã de pele pálida, azulada e fina, com um só olho na testa e dentes de urso, usa um avental cinzento, velho e rasgado. Cailleach é vista como uma Deusa que venceu as barreiras do tempo superando a própria morte, vaga pelo mundo a partir de Samhain, trazendo consigo o frio, a neve, a escuridão, a morte e a desolação.
A demanda de pessoas dispostas a participar deste festival no clã costuma ser significativamente maior comparado às outras celebrações, portanto torna-se imperativo recorrer ao aluguel de uma granja para que os participantes se hospedem e participem das festividades iniciadas sempre no sábado e que avançam a madrugada. A escolha do local da celebração jamais é ocasional, sempre seguindo critérios essenciais, tais como: 1) presença de um espaço aberto e gramado para a realização do ritual; 2) existência de árvores para que as oferendas aos deuses, seres sobrenaturais e mortos sejam depositadas; 3) casa espaçosa para abrigar de 15 à 25 pessoas. O lugar selecionado no ano pesquisado localiza-se em um bairro relativamente afastado do centro da cidade. A casa de grande porte possui aspectos arquitetônicos relativamente semelhantes a um castelo renascentista. O proprietário era sutilmente inclinado a práticas alternativas e -new-age afirmando ter encontrado quadros com divindades e símbolos pagãos no momento da compra da casa (provavelmente pertencentes aos antigos donos)- elemento este significativo para que fosse o local selecionado. A propriedade também possui em sua parte posterior uma pequena mata com árvores de diversas espécies.
Sendo um evento central para o clã e para o neopaganismo de forma geral, o ritual se inicia ainda no início da noite, por volta das dezoito horas. O início dos rituais se deu ainda na tarde de sábado, contando com 15 pessoas. Sendo um ritual considerado simples no início, seu andamento envolveu o cântico de algumas músicas feitas por druidas de outros clãs e uma pequena meditação guiada, para que as energias de cada sujeito fossem preparadas para a celebração principal. Neste momento, os participantes se reuniam na área externa da granja, em meio a grama, formando um círculo. Os primeiros cânticos e a meditação, focados em equilibrar energias e pensamentos dos participantes, direcionando a atenção para o contexto do ritual, em que seres espirituais e divindades estariam presentes neste período, necessitando uma postura mais introspectiva. Os cantos e meditação se estendem por cerca de uma hora e quinze minutos. Após este tempo, parte do clã responsável pela organização do ritual inicia o preparo do jantar, servido por volta das vinte e duas horas. Terminado o jantar, inicia-se um período de silêncio absoluto em que os participantes fazem uso de um chá à base de Jurema, que auxilia no relaxamento e possibilidade de envolvimento com as energias do ritual. Este período segue até meianoite, quando o ritual de Samhain, propriamente dito, começa. O ritual de Samhain inicia-se num ambiente gramado e a céu aberto, com as pessoas presentes formando um círculo em volta de um caldeirão aceso. Este caldeirão permanece aceso por horas após o fim do ritual pela alta quantidade de álcool misturado a ervas de cheiro. Os primeiros procedimentos do ritual envolvem cânticos específicos para que haja o banimento de espíritos e seres telúricos que possam atrapalhar não apenas o andamento do ritual, mas influenciar energicamente as pessoas presentes. Estes cânticos fazem-se necessários pela fronteira entre os mundos tornar-se mais tênue, pois se espíritos podem se aproximar do ambiente, então os cantos de banimento são importantes. São acompanhados de batidas ritmadas de tambor xamânico, facilitando a concentração dos sujeitos para o objetivo de banimento dos espíritos. A partir de então, cada presente deve entrelaçar três fitas coloridas (cores à escolha de cada um) concentrando-se em três objetivos para serem cumpridos até o fim do ano seguinte. Neste momento, os 9 participantes presentes no ritual de Samhain do ano anterior tiveram de queimar suas fitas entrelaçadas, pois os objetivos do ano anterior, sendo realizados ou não, devem ser queimados para dar espaço a novos objetivos. Em sequência, coube ao druida invocar os nomes de cerca de 300 divindades celtas para que se juntem às festividades e abençoem o ritual. Ao longo do ritual, a mulher com maior percepção energética desenvolvida torna-se encarregada de perceber se há energias dissonantes entre participantes e seres espirituais, para que energias ruins não interfiram no ambiente do ritual e prejudiquem os participantes de alguma maneira, produzindo sensações corporais desagradáveis. Já a mulher responsável pela maior proximidade com o mundo espiritual fica atenta para que o convite de divindades e espíritos não atraia também seres telúricos que possam prejudicar as energias do ritual ou até possuir os participantes. Por fim, com mais alguns cânticos escritos por diferentes compositores brasileiros sobre a deusa Cailleach e Samhain, o druida dá fim ao ritual e convida a todos para uma ceia. Esta ceia exige que cada pessoa guarde a última parte de cada alimento consumido para que seja entregue como oferenda aos antepassados já mortos.
No que tange a questão da construção de significado e das práticas envolvidas tanto no ritual analisado como nas demais vivências neopagãs célticas, cabe frisar que partimos da problematização do fenômeno como construção de realidade e das formas de ação ligadas ao contexto. Para tanto, toma-se aqui a proposição de Graham Harvey (2014) sobre o novo animismo, que enfatiza a construção de um contexto relacional de humanos e não-humanos de maneira engajada, como problemáticas existenciais ligadas ao contexto:
Esse animismo refere-se a modos de vida que pressupõem que o mundo é uma comunidade de pessoas vivas, todas merecedoras de respeito e, portanto, de maneiras de inculcar boas relações entre pessoas de diferentes espécies” ( Harvey, 2014: 4; tradução nossa).
Tal perspectiva permite pensar e contextualizar o neopaganismo celta e, mais especificadamente, o evento de Samhain a partir de uma proposição animista, menos no sentido de atribuição de vida ( anima) a algo e mais no sentido relacional, em que os participantes do evento se envolvem com espíritos, seres sobrenaturais e, em particular, com divindades, sendo o presente trabalho uma proposição de análise da constituição relacional entre humanos e uma divindade celta, Morrigan. O novo animismo de Harvey ressoa, por sua vez, na proposição esboçada por diversos autores ligados ao movimento da virada ontológica. Holbraad e Pedersen (2017) especificam que este movimento parte da problematização das questões etnográficas em seus próprios termos, negando a possiblidade de aplicação de conceitos ocidentais externamente. Longe de buscar uma reificação do conceito de “ontologia”, mimetizando as proposições de atribuição de “cultura” a outros contextos, a virada ontológica propõe que as problematizações nativas não envolveriam formas interpretativas de uma natureza externa cuja ciência teria acesso privilegiado, mas são de caráter existencial (ontológicas) que diferem de dicotomias que tomamos como universais - natureza e cultura; sujeito e objeto; entre outras. Para tanto, a linguagem ontológica no plural (ontologias), faz-se necessário.
Ao utilizar o novo animismo associado à proposição da virada ontológica, isto é, propor que a construção de comunidades relacionais contextuais que envolvem humanos e não-humanos deva ter caráter analítico ontológico, a problemática do ritual de Samhain torna-se posta num plano onde sujeitos humanos participam de um contexto ritual em que se relacionam com espíritos e deuses, desenvolvendo percepções e habilidades corporais específicas. O que se propõe aqui não é afirmar a existência unívoca e inegável de mundos espirituais e deuses, mas pensar a realidade como construção vinculada a um contexto particular a partir de práticas que permitem o desenvolvimento de sensibilidades, percepções e habilidades corporais utilizadas e significadas neste meio, sustentando que o contexto temporal de Samhain permite que estas relações entre humanos e não-humanos, em especial com divindades, tenham maior expressividade.
No âmbito ritualístico, Rabelo (1994) destaca a possibilidade de pensar o ritual sob o aspecto performativo. Um elemento central desta linha de pensamento é o recorrente uso de ferramentas variadas (cantos, danças, invocações e movimentos corporais) para a (re)orientação da atenção para contextos particulares: “A utilização de determinados meios durante a performance facilita a construção de certos cenários, contribuindo para persuadir os indivíduos a reorientarem sua ação em função dos novos contextos construídos”. ( Rabelo, 1994: 49)
Sobre a estrutura de Samhain, ao utilizar variados cânticos ao longo do ritual, o druida não apenas seleciona aqueles com o conteúdo lírico que dizem respeito a temática da celebração, mas pauta o andamento do ritual por cânticos que remetem à recriação da própria estruturação cosmológica “ontogênica” dos povos celtas por meio da performance ritual. Segundo os mitos celtas contados em reuniões do clã, o “Oran Mor” (Grande Melodia) é o que de mais próximo existe de um mito de criação. Pois, quando ainda nada existia, o “Oran Mor” iniciou-se no silêncio e tocou a melodia que deu início a toda existência 5. Esta concepção da gênese da existência atrelada ao início de uma canção de criação permeia a sacralidade da música entre estes povos celtas, sendo revivida entre neopagãos modernos. Portanto, a presença da música é central na constituição ritualística por remeter tanto à criação do universo quanto à sua intrínseca sacralidade, além de indicar seu conteúdo lírico à data selecionada.
O contexto de Samhain não se associa simplesmente ao conteúdo do ritual e as possíveis performances, mas, remete-se a própria essencialidade energética e característica ontológica deste período do ano, haja vista a concepção cíclica do tempo. No período de Samhain, como já dito, o “véu” que separa o mundo material dos mundos espirituais torna-se mais sutil, permitindo o trânsito entre seres e a influência de espíritos no mundo material. Ao celebrar tais presenças convidando os espíritos ancestrais dos participantes do ritual, divindades e seres sobrenaturais, o ato de invocação característico de Samhain envolve-se essencialmente com a característica “natural” do período do ano e suas implicações cosmológicas.
Sobre tal perspectiva que une a constituição daquilo que se faz com o meio circundante, cabe resgatar o conceito de “ambiente comportamental”, de Irving Hallowell (1974). Para este autor, a constituição de um ambiente implica em uma reciprocidade relacional com o sujeito nele inserido, englobando além dos objetos ditos “naturais”, os culturalmente reificados. O termo alude à constituição do ambiente a partir das potencialidades de desenvolvimento perceptivo dos sujeitos:
Evidências de culturas humanas em todos os lugares também indicam que o homem tipicamente responde a objetos em seu ambiente comportamental que, para a mente sofisticada, são simbolicamente constituídos, isto é, seres espirituais de várias classes. Tais objetos, de alguma forma experimentados, claramente conceituados e reificados, podem ocupar um alto nível no ambiente comportamental, embora, de um ponto de vista ocidental sofisticado, sejam nitidamente distintos dos objetos naturais do ambiente físico. ( Hallowell, 1974: 89; tradução nossa)
Na terminologia de Hallowell (1974), a separação entre objetos naturais e reificados se dá a partir da naturalização de uma realidade externa e objetiva, acessível a todos, opondo-se à existência de seres espirituais vinculados à construção psicológica dos indivíduos, ainda que estas construções sejam “variáveis relevantes” (Halloweel, 1974: 89) para o estudo do comportamento. Para o presente trabalho, abrimos mão de tal dicotomia por ser falha no exercício de alteridade, reforçando divisões que apenas fazem sentido inseridas em um modus operandi moderno e científico. Porém, desvinculado da consequência de tal dicotomização, o conceito de “ambiente comportamental” que envolve a delimitação espaço-temporal de um contexto em que as percepções de certos sujeitos se vinculam aos objetos do lugar a partir de uma perspectiva internamente significada, pode ser rentável. Relacionando a virada ontológica e o novo animismo à questão do “ambiente comportamental” de Hallowell (1974), pode-se pensar o ambiente de Samhain enquanto espaço temporal que envolve variáveis graus de relação entre aquilo que se faz nos rituais e o que se concebe e se constrói como “natural”. Ou seja, Samhain se torna um evento que envolve invocação de divindades e espíritos a partir de rituais celebrados e intimamente vinculados a temporalidade da estrutura cosmológica. Este seria o “ambiente comportamental” de Hallowell (1974) revisitado sob a ótica da virada ontológica, dando o gancho necessário para pensar o fenômeno da canalização, analisado a seguir.
A Canalização Divina: Morrgan em Juiz de Fora
Cabe agora, enfim, descrever e analisar o processo de canalização em sua inserção no ambiente de Samhain. Após o ritual se findar, os participantes dirigem-se à mesa localizada na ampla varanda da granja para que iniciem o banquete da noite, no qual o último pedaço de cada alimento consumido deve ser reservado e entregue posteriormente em uma vasilha deixada no pé de alguma árvore, a fim de dedicar a oferenda aos ancestrais que no ritual estavam presentes.
Após este evento, terminam-se os rituais e eventos formalizados pelo clã, estando o resto da noite -nesta altura, duas horas da manhã- livre para que todos os participantes conversem, bebam vinho, cerveja e/ou hidromel e continuem consumindo os alimentos do banquete. Após cerca de uma hora, o druida oficiante senta-se em uma cadeira e tornase mais reservado. Este é o momento em que comumente a divindade tem o costume de se manifestar. Quando perguntado sobre o que ocorria, o druida apenas descreve certo malestar geral e formigamento no corpo, algo que pode ocorrer com qualquer presente, em especial aqueles que possuem certas habilidades sensitivas mais apuradas, afinal Samhain é a noite em que os espíritos dividem mais espaço com os seres vivos, sendo que aqueles com certo grau de mediunidade desenvolvido, terminam por sentir desconforto em relação a presença de energias extremamente variadas. O elemento que permite com que os outros membros do clã logo percebam que não se trata de uma “sobrecarga energética”, é o fato do druida também ouvir sussurros pronunciados em língua gaélica. O último fato denota uma aproximação de Morrigan, deusa mais próxima do druida e considerada por este como sua “mãe”. Ao longo de dez minutos, certos sintomas tornam-se mais aparentes, sendo possível notar uma respiração mais ofegante, mãos trêmulas e olhos fechados, fazendo com que outros membros do clã se reúnam próximos ao druida com a finalidade de fornecer alguma ajuda. É possível perceber que, com o início do evento, os demais membros do clã iniciam a organização do espaço para receber a divindade, preparando o vinho (bebida preferida da divindade) e pedaços de carne de porco para que a divindade também banqueteie com os convidados. Perguntadas posteriormente, as duas mulheres membras do clã apontam que o fato de uma deusa celta se predispor a estar em uma noite de ritual significa ser honrado com uma presença divina, portanto é necessário garantir que todos os cuidados sejam assegurados, isto é, preparar um assento confortável, comida e bebida para se servir e buscar concentrar a atenção e presença dos participantes ao evento.
Quando estes sintomas se tornam mais aparentes, um dos membros seleciona a música Morrigan, do grupo de música celta/medieval Omnia, em que o uso de tambores e cantos em forma de invocação ajudam o próprio druida a permitir que a divindade se manifeste. No ápice da música, em que os cânticos e tambores estão mais intensos e os citados sintomas mais fortes, a deusa marca sua chegada com um estridente grito de seu próprio nome, fazendo-se ouvir por todos os presentes, até os mais afastados. Como participantes, estávamos próximos e pudemos presenciar a rapidez com que todos os participantes se reúnem em volta do local, por conta do grito. Mesmo os novatos já são avisados ao longo do dia sobre a possibilidade, mesmo que não exata, de tal manifestação ocorrer. Quando indagados em conversas posteriores e informais, alguns dos participantes relatam que o ambiente de descontração se torna mais sério e respeitoso, já que as atenções se direcionam à chegada de Morrigan. Sendo então um processo de canalização, a deusa é capaz de se comunicar em português, apesar de, esporadicamente, utilizar a língua gaulesa. Os trejeitos do druida tornam-se relativamente pouco mais suaves e o tom de sua voz mais agudo. Um dos membros do clã rapidamente serve uma taça que transborda vinho até então guardado para a Deusa.
O primeiro passo dos membros do clã é reunir todos os participantes no centro da sala de estar, que conta com grandes sofás e um tapete de pele de boi em que todos terminam por se acomodar. O primeiro pedido da Deusa é que a bardisa em processo de entrada no clã toque o tambor segundo um ritmo por ela descrito para que cante algumas canções celtas tradicionais na língua gaulesa. Todos os participantes ficam atentos aos cantos neste momento. Após 4 músicas cantadas, a deusa abre-se para que os participantes tirem dúvidas das mais variadas, englobando principalmente questionamentos pessoais acerca de caminhos religiosos e proximidades com certas divindades. Neste ponto, os participantes novatos são os mais participantes perguntando se possuem proximidade com divindades pagãs e quem são elas. Em todos os casos, Morrigan revela que não é possível definir com certeza tal aspecto, já que nem ela é capaz de dar respostas assertivas sobre o assunto, pois a relação destes sujeitos com outras divindades diferentes dela e, principalmente, do panteão celta, estão além de sua alçada. Foi possível notar, a partir da observação das perguntas, que a linha de raciocínio dos participantes segue-se partindo de um interesse em tornar-se, de fato, neopagão, ainda que o direcionamento do caminho, do panteão e das preferências, seja um tanto “obscuro”, por isso a presença de Morrigan é central, pois enquanto divindade, poderia aconselhar melhor que qualquer ser humano, como nos relatou um participante. Neste sentido, Morrigan seria uma divindade a quem os participantes normalmente recorrem para ajuda em questões existenciais ligadas, principalmente, ao âmbito religioso. A proximidade com certos deuses particulares, segundo a própria Morrigan, torna-se mais clara a partir de um processo de introspecção e autoconhecimento no qual cada sujeito torna-se mais capaz de se conhecer e, a partir daí, notar com qual panteão e divindade possui mais proximidade. A partir desta busca a divindade se revelará ao sujeito com indicativos sutis, acontecimentos inesperados, revelações em sonhos ou meditações, entre outros aspectos que necessitam de uma atenção constante de cada um. Mas, além de tais perguntas, a deusa também manifesta conselhos de forma um tanto “obscura” e metafórica aos membros do clã, para que o conteúdo da mensagem seja entendido apenas pelo sujeito a quem se direciona.
Após as perguntas e conselhos, a deusa sugere que todos se dirijam à área externa para que ensine passos tradicionais de dança celta e cânticos. Nesta altura, após mais de uma hora de danças, boa parte dos participantes dispersa-se pelo cansaço, optando por dormir algumas poucas horas até a metade da manhã. A própria Morrigan permanece dançando apenas enquanto há participantes para compartilhar do momento, que se estende até perto da aurora. Sendo uma divindade associada à guerra e magia, caracterizase por sua predileção noturna, deixando o corpo do druida logo com os primeiros raios de sol, despedindo-se de todos os presentes. Assim que deixa o corpo do druida, este, visivelmente cansado, opta por dormir algumas horas. Por fim, antes das onze da manhã, todos os participantes auxiliam na limpeza da granja, no recolhimento dos materiais usados no ritual e vão embora.
Sobre este aspecto relacionado ao processo de canalização, cabem algumas reflexões que tangenciam principalmente os momentos que antecedem a manifestação, o acontecimento de sua chegada e a capacidade de desenvolver habilidades e conhecimentos para o exercício de tal prática. Neste sentido, Thomas Csordas (2008) fornece o “paradigma da corporeidade” como ferramenta teórico-metodológica para compreensão de fenômenos perceptivos que extrapolam os processos de objetificação a partir de manifestações espontâneas, tomando o corpo como égide de construção perceptiva e base existencial da cultura, englobando o que se sente e o que se reflete. Sua base teórica relaciona o conceito de “pré-objetivo” de Merleau-Ponty (1999) e o “habitus” de Bourdieu (1989; 2002). Em Merleau-Ponty (1999) o conceito de “pré-objetivo” surge como elemento de identificação do início da percepção, localizada não nos objetos, mas no corpo. Partindo desta premissa, o autor destaca que a objetificação daquilo que se percebe é posterior ao próprio processo de percepção corporal:
Quando fazemos um esforço especial para ver duas linhas aparentemente desiguais numa ilusão de ótica como realmente iguais, ou para ver que o triângulo não passa realmente de três linhas relacionadas por certas propriedades geométricas, estamos fazendo uma abstração, não descobrindo o que realmente percebemos e depois chamamos de triângulo ou ilusão. Aquilo que “realmente” percebemos é, no primeiro caso, uma linha sendo mais longa do que outra, e no segundo, o triângulo. Começar do ponto de vista objetivo (o triângulo como objeto geométrico e as linhas de comprimentos objetivamente paralelos) e retroceder analiticamente ao sujeito perceptivo não apreende precisamente a percepção como um processo constitutivo. ( Csordas, 2008: 106)
Isso também implica dizer que, por mais que a percepção anteceda a abstração e objetificação da coisa, ela é pré-objetiva, não pré-cultural. Nas palavras de MerleauPonty (1999): “a consciência se projeta num mundo físico e possui um corpo, enquanto ele se projeta num mundo cultural e possui seus hábitos: pois não pode ser consciência sem jogar com significações dadas” ( Merleau-Ponty, 1999: 137). Aqui, se a percepção antecede a própria abstração mental sobre o que se percebe, o exercício da percepção está ligada ao elemento cultural. Para estender tal posicionamento, Csordas (2008) recorre ao “habitus” de Bourdieu (1989; 2002) para destaca-lo como princípio gerador e unificador das práticas, visão de mundo e estrutura social. O corpo passa a ser “socialmente informado” ( Bourdieu, 2002: 124), vinculando seus sentidos à estruturação social, tal como “[...] o senso de dever, o senso de direção e o senso de realidade [...] o senso comum e o senso de sagrado” ( Bourdieu, 2002: 124). A ideia de “habitus” engloba a estruturação de práticas segundo princípios sociais comuns e compartilhados, destacando “os esquemas de percepção e apreciação sedimentados na linguagem são produtos de lutas anteriores, exprimindo forças simbólicas.” ( Bourdieu, 1989: 139). Csordas (2008) vale-se de tal perspectiva para destacar certos padrões comportamentais e perceptivos a partir da experiência culturalmente construída e compartilhada.
Unindo estes dois autores, Csordas (2008) elabora o “paradigma da corporeidade” para dar conta de analisar fenômenos em que a ênfase recai sobre os processos de construção perceptiva vinculados às formas comuns e compartilhadas de manifestação. Entre os exemplos etnográficos citados estão as manifestações demoníacas entre grupos religiosos nos EUA. O autor explora a percepção de comportamentos compulsivos (masturbação, ódio e tristeza, por exemplo) e sua ligação com seres demoníacos a partir da manifestação de comportamentos e fenômenos comuns (por exemplo vômitos, crises choro, risadas). A percepção de um comportamento como compulsivo localiza-se na préobjetividade, ao passo que objetificação da influência demoníaca é a posteriori de uma análise de especialistas (pastores), ao passo que a expulsão de demônios segue padrões de manifestação segundo processos habituais e socialmente localizáveis:
A prática religiosa explora o pré-objetivo para produzir objetificações novas, sagradas, e explora o habitus para transformar as próprias disposições de que é constituída. O locus do sagrado é o corpo, pois o corpo é a base existencial da cultura. ( Csordas, 2008: 145)
Para o caso do fenômeno da canalização, o aspecto pré-objetivo localiza-se no momento que antecede a chegada da deusa. A percepção de um mal-estar e formigamento no corpo é o aspecto “pré-objetivo” no contexto em questão, ainda que a objetivação de sua razão seja incerta, já que a condicionalidade da data de Samhain implica na possibilidade das energias de outros espíritos e seres afetarem o padrão de normalidade do druida. A objetificação posterior das razões que implicam na manifestação deste mal-estar apenas se confirma minutos mais tarde, com a tremulação das mãos e em especial as vozes ouvidas pelo druida. As vozes são o aspecto “pré-objetivo” manifestado, possibilitando o entendimento das razões que a levam, vistas agora como sintomas. Os indicativos que antecipam a chegada da Deusa se dão através das experimentações sensitivas e perceptivas do corpo do druida, são aspectos espontâneos de uma vivência interna significada como prelúdio da manifestação de Morrigan. Os primeiros sintomas são definidos pelos membros do clã como não plenamente confiáveis para atestar o indicativo de canalização, ainda que o contexto possa indicar, já que a canalização de Morrigan em Samhain é algo recorrente na vivência do clã. Porém, é só com a percepção de vozes que o indicativo é mais assertivo, pois trata-se da própria Deusa indicando sua vindoura manifestação. Quando se dá o derradeiro momento da canalização, a manifestação do grito estridente indica uma forma comum e internamente compartilhada de experimentação corporal que denota a passagem de Morrigan ao corpo do druida. Como relatado, o grito estridente em que se pronuncia o nome da divindade é algo também presente em outros episódios de canalização experimentados pelo próprio druida em celebrações ritualísticas.
Porém, cabe frisar um elemento central de tal processo a partir de uma reflexão em torno de possíveis questões a serem levantadas sobre o fenômeno: se o “paradigma da corporeidade” de Csordas (2008) permite indicar a base existencial da experiência neopagã celta a partir de manifestações corporais e suas formas de significação posterior, indicando os processos perceptivos ligados à canalização de uma divindade em datas especiais para o calendário celta, certos aspectos ligados ao desenvolvimento destas manifestações ainda necessitam de maiores aprofundamentos.
Cabe-nos ainda apontar o contexto de existência de Morrigan a partir de sua forma de manifestação, inserida num contexto ontológico neopagão e expressa fenomenologicamente no corpo do druida. Novamente Bruno Latour (2012), fornecendo o conceito de “modos de existência”, que parte da crítica à pretensão moderna de universalização ontológica de seus pressupostos como verdades ligadas a um contexto externo, localizando o status de “verdade” às proposições mais regionalizadas:
nosso método não implica afirmar que ‘tudo é verdade’, que todas as versões da existência devem coabitar sem nos preocuparmos mais em classificá-las. Mas apenas essa classificação terá que ser feita, a partir de agora, em igualdade de condições. ( Latour, 2012: 150; tradução nossa).
Compreendendo então a Antropologia como uma maneira de fazer da diferença, instrumento de conhecimento, e não saber a ser classificado segundo modelos prédispostos, Latour (2012) enfatiza que a ideia de ontologia como operador do Ser tem por principal razão a especificação das formas com que se pode classificar algo como ente. Este pressuposto totalmente consonante com a virada ontológica ainda destaca que o Ser não é algo feito e externo, mas algo em eterna via de formação existencial. Para o caso aqui analisado, podemos então especificar que no contexto de Samhain e do clã, a forma ontológica e existencial de Morrigan é dada pela expressão corporal de sua chegada e de seus trejeitos. Essas falas e atos se manifestam no corpo do druida, ou seja, seu “modo de existência” ( Latour, 2012) no contexto neopagão é a expressão fenomenológica de sua manifestação por meio da canalização. Esta implica uma série de eventos e práticas, que envolvem desde a construção do ambiente ritual, a data em si, o desenvolvimento de habilidades do druida e sua relação com a própria divindade.
Por fim e em resumo, sobre a questão da canalização, os indícios perceptivos e a forma contextual de manifestação, estas refletidas através do “paradigma da corporeidade” de Csordas (2008) - que possui forte corte fenomenológico associado ao corpo e suas manifestações - além da relação com o modo de existência ( Latour, 2012) da deusa Morrigan, só é possível de ocorrer no presente caso tendo em vista a ligação com o contexto em questão esboçado no subtítulo anterior. O engajamento processual do druida no contexto neopagão, remetendo às construções de habilidades específicas a partir da capacidade de afetação ( Latour, 2008) pelas energias e pela divindade, desenvolvendo as capacidades de canalização externalizadas fenomenologicamente. Por sua vez, ao tratar do contexto ritual de Samhain, nos fazemos valer de um aprofundamento geral por vias ontológicas calcadas tanto no movimento da virada ontológica, como na proposição do novo animismo de Graham Harvey (2014), em que a formação de um contexto - ou nas palavras revisitadas e reanalisadas de Hallowell (1974), um “ambiente comportamental” - não envolve uma percepção do espaço como externo e objetivo, mas uma construção ontológica contínua de engajamentos relacionais de humanos, deuses e espíritos (no caso neopagão) e não apenas de humanos. Por esta via, enfim, podemos pensar a existência de uma deusa ( Morrigan) expressa por um “modo de existência” ( Latour, 2012) particular, atrelada às manifestações corporais desenvolvidas no contexto ritual a partir de um engajamento prévio do druida.
Considerações finais
Tendo como pano de fundo uma discussão acerca da virada ontológica e o novo animismo de Harvey (2014), é possível postular a construção de um contexto relacional que envolve sujeitos humanos e não-humanos a partir de um evento ritual. Desta maneira e a partir destes pressupostos, a tentativa de explorar o fenômeno da canalização por via fenomenológica, dando atenção às expressões corporais ao longo do fenômeno, desenvolvidas por meio de construções de habilidades específicas e firmando a existência da divindade por tal via enquanto seu modo de existência ( Latour, 2012) particular. Tratase de partir de uma linha de pensamento que reconhece a diversidade existencial a partir de bases localmente contextualizadas que incitam exercícios práticos e diversos e, acima de tudo, construções de corpos variados que dispõem de potencialidades múltiplas na relação com seu meio.
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Notas