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TRANÇADO: MEMÓRIA E DEVOÇÃO AOS SANTOS DE COR NAS FESTIVIDADES A NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO E SÃO BENEDITO
TRENZADO: MEMORIA Y DEVOCIÓN A LOS SANTOS DE COLOR EN LAS FIESTAS DE NUESTRA SEÑORA DEL ROSARIO Y SAN BENITO
BRAIDED: MEMORY AND DEVOTION TO THE SAINTS OF COLOR IN THE FESTIVITIES TO NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO AND SÃO BENEDITO
Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 22, pp. 1-21, 2020
Universidade Estadual de Campinas

Article


DOI: https://doi.org/10.20396/csr.v22i00.13378

RESUMO: Este artigo descreve memórias e devoções negras em festividades no Brasil, através da observação participante e da análise comparativa. Desta forma, buscamos pensar a festa de Nossa Senhora do Rosário realizada em um pequeno vilarejo de Minas Gerais, e a festa de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, realizada no centro do Rio de Janeiro através de uma categoria analítica: o trançado. Estas festividades revelam devoções às entidades classificadas como Santos de Cor, ressignificando relações simbólicas dos negros com a escravidão e a desigualdade social. Sendo assim, procuramos demonstrar dois pontos centrais. O primeiro está baseado em como as devoções são capazes de envolver e mediar os fiéis em um círculo de relações humanas e não humanas, onde espíritos e objetos são materializados. O segundo, como um conjunto de sistemas simbólicos, se torna central para expressar o trançado, categoria de pensamento social, nas diferentes manifestações do catolicismo brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE: Memória, devoção, santos de Cor, trançado, catolicismo.

RESUMEN: Este artículo describe las memorias negras y las devociones en las festividades en Brasil, a través de la observación participante y del análisis comparativo. Por medio de la categoría analítica del trenzado se analizan, por un lado, la fiesta de Nuestra Señora del Rosario que se realiza en una pequeña región de Minas Gerais y, por el otro, la fiesta de Nuestra Señora del Rosario y San Benito que se celebra en el centro de Río de Janeiro. Ambas festividades revelan devociones a entidades clasificadas como Santos de Color, resignificando las relaciones simbólicas entre los negros con la esclavitud y la desigualdad social. En este sentido, buscamos responder a dos interrogantes centrales. La primera pregunta se basa en cómo las devociones pueden involucrar a los fieles en un círculo de relaciones humanas y no humanas, en donde se materializan espíritus y objetos. La segunda pregunta indaga en cómo un conjunto de sistemas simbólicos se convierte en un punto central para expresar el trenzado, categoría de pensamiento social en las diferentes manifestaciones del catolicismo brasileño.

PALABRAS CLAVE: Memoria, devoción, santos de Color, trenzado, catolicismo.

ABSTRACT: This paper describes black memories and devotion festivities in Brazil through participant observation and comparative analysis. In order to do so, we seek to investigate Nossa Senhora do Rosário’s festivity in a small village in Minas Gerais and Nossa Senhora do Rosário and São Benedito’s festivity in downtown Rio de Janeiro, through an analytical category: the braided. These festivities reveal devotions to entities classified as Santos de Cor, resignifying symbolic relations between black people and slavery and social inequality. Therefore, we attempt to identify two predominant issues. Firstly, how devotions can involve and mediate followers in a circle of human and nonhuman relationships, where spirits and objects are materialized. Secondly, how a set of symbolic systems becomes a central point to express the braided, a category of social thought, in the different manifestations of Brazilian Catholicism.

KEYWORDS: Memory, devotion, saints of Color, braided, catholicism.

Introdução

A partir de um estudo antropológico, o presente trabalho visa descrever os conceitos de memória e devoção a partir de uma categoria analítica: o trançado 1. Os loci de observação e comparação são as festas de Santos de Cor à Nossa Senhora do Rosário realizadas, respectivamente, em uma pequena comunidade rural mineira e no centro do Rio de Janeiro. Esta última traz, em conjunto com a santa, protetora dos escravos, a festividade religiosa a São Benedito, santo negro.

Santos de Cor é uma categoria observada nas falas de alguns fiéis quando se referiam à devoção negra. No entanto, há também uma memória histórica que atravessa a questão como analisa Mariza de Carvalho Soares em sua obra Devotos da Cor ( 2000) onde, desde o século XVIII, “a inscrição social” era feita, inicialmente, pela cor. Ou seja, trata-se de uma sociedade constituída por elites “brancas”; pelos “pretos” (escravos ou forros); e os “pardos” onde “a cor fala da condição de cada um”: “No século XVIII, a cor fala da condição de cada um e, como tudo mais nas sociedades do Antigo Regime, distingue e hierarquiza” (Ibid.: 29) 2.

Memórias e devoções aos Santos de Cor são construídas e estabelecidas pelos fiéis, simbolicamente, em relação à monarquia, à escravidão negra e à desigualdade social estabelecendo mediações com o sagrado e o profano, vida e morte, tempo e espaço 3.

Procuramos responder a duas perguntas centrais: como o trançado é capaz de envolver os fiéis em um círculo de relações humanas e não humanas, onde o espírito e objetos são materializados? Como esses sujeitos criam, constroem e ressignificam “fios do trançado”, ações de crenças, pensamento social e prática, entrelaçando memórias e devoção entre o catolicismo “institucional” e “popular”? Diante disso, como o trançado é estabelecido por um conjunto de relações internas e externas aos indivíduos que a praticam ou vivenciam? Como analisam e descrevem o mundo religioso?

Ao apresentar uma categoria analítica nova, o trançado, aos estudos sobre memória, devoção e festividades, o presente trabalho traz reflexões sobre sua definição buscando somar contribuições à Antropologia.

Os Santos de Cor: memória e devoção

Entre os anos de 2001 e 2003 realizei pesquisa sobre a festa de Nossa Senhora do Rosário em uma zona rural mineira denominada, especialmente pelos moradores mais antigos, de Buraco Escuro.

O Município de Sem-Peixe, onde está localizada a comunidade rural, traz ao centro a cidade de Sem Peixe. A localidade é banhada pelo rio Sem Peixe, afluente do rio Doce, e faz fronteira com cinco cidades: Dom Silvério, Rio Doce, Santa Cruz do Escalvado, Rio Casca e São Domingos do Prata.

É em Buraco Escuro que a festa de Nossa Senhora do Rosário foi recriada em 1994. Ela surge como promessa de um morador quando, em 1992, o padre e a população da região passam a se dedicarem à construção de uma capela, nomeada de Santo Antônio. Por intermédio dessa ação social um conjunto de memórias das devoções são praticadas pelos indivíduos: as novenas, a coroação, o banquete, as danças e as missas vão constituindo os rituais festivos.

A festa de Nossa Senhora do Rosário ganha expressão junto com ações dos moradores que se envolvem com a realização do evento. Por meio dela que memórias e narrativas dinamizam uma identidade coletiva de pertencimento comunitário e se diferencia da festividade existente na cidade.

No ano de 2005, buscamos dar continuidade à pesquisa da festa de Nossa Senhora do Rosário visando pensá-la em um centro urbano. Optamos pela escolha da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, fundada em 1640, no Rio de Janeiro. A priori, visava pensar festividades através de uma discussão entre o urbano e o rural. No entanto, a ida a campo trouxe um conjunto de fatores que dinamizaram outros olhares deslocando os objetivos iniciais da pesquisa para um estudo sobre memória e devoção presentes no Museu do Negro, que se encontrava sob os cuidados da Irmandade dos Homens Pretos, responsável pela igreja.

Esta instituição ocupa uma posição estratégica em uma das ruas principais e movimentadas no centro do Rio: a rua Uruguaiana. Na porta da igreja e em suas laterais circulam pedintes, engraxates, “cartomantes”, camelôs e serviço de mototáxi. Pedintes, moradores de rua, crianças e cachorros misturam-se aos passantes na calçada. A maioria dos que ali trabalham são mulheres negras de classe baixa. Sobre a estrutura da igreja há vários comércios e uma entrada de acesso para o Museu do Negro.

Como veremos mais adiante, relações entre devotos e santos nesse espaço operam mediando diversas categorias de pensamento social tais como: vivos e mortos, passado e presente, céu e terra, ricos e pobres, negros e brancos, sujeitos e objetos. Além disso, refletem a relação tensa entre distintas modalidades de práticas e representações religiosas apontada acima: o “catolicismo oficial” e o “catolicismo popular” 4.

Na festividade do centro do Rio de Janeiro há uma identificação com outros santos negros e os desdobramentos dessa interação com a Monarquia que se expressa na presença de membros da família real nas festividades e nas exposições do museu. Este fator está associado à forma como os sujeitos mediam as relações com os objetos sagrados, à escravidão e à santidade, diferenciando-se das festividades que ocorrem no pequeno vilarejo mineiro. Não há irmandade negra e nem museu na comunidade rural. A categoria nativa do trançado mostrou-se de extrema importância para a compreensão dos contextos social, institucional e popular do sistema religioso presentes na relação com os santos, fiéis, povo e objetos no segundo campo. A memória e devoção aos Santos de Cor constituem, na capital carioca como na pequena cidade de Minas Gerais, elementos de reflexão sobre a religiosidade católica.

Na igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, a festividade ocorre no dia 7 de outubro, data de comemoração à Santa. Por sua vez, as comemorações festivas dedicadas a São Benedito ocorrem em duas datas: 4 de abril (dia de sua morte) 5 e 5 de outubro (apontado como festa litúrgica nacional). Segundo seus membros, trata-se de ser a única igreja brasileira a celebrar o aniversário de falecimento do santo.

Nas festas de São Benedito, classificado como “santo cozinheiro”, são distribuídos pães simbolizando a não falta desse alimento nas casas dos fiéis. O grande milagre de São Benedito, segundo os devotos, foi a multiplicação dos pães. Durante a festa, o alimento é distribuído pelos padres e membros da irmandade para serem guardados pelos fiéis em potes de açúcar, arroz, café, feijão, fubá ou biscoito, visando à prosperidade. Em algumas exposições no Museu do Negro, o santo apareceu exposto com jiló, limão, laranja, banana, mandioca, dentre outros. Segundo a museóloga local (na época de realização da pesquisa), trata-se de alimentos característicos do continente africano. Ela não proibia a retirada dos alimentos, por parte dos fiéis e visitantes, contribuindo para a identificação desse espaço como um museu-devoção.

Podemos observar que as doações a São Benedito (arroz, farinha, feijão, sal, açúcar, fubá e material de higiene) entregues pelos fiéis costumam ser em maior número que as doações feitas para a santa. Mas, para alguns fiéis e para a irmandade de tradição negra, a identificação com o santo pela “cor” é relevante pela associação com suas histórias de vida. Como afirma um jovem negro e membro da irmandade, pelo sentido popular, não interessava saber se São Benedito era ou não objeto de devoção, mas sim, sua humanidade: o fato de que se tratava de um preto, trabalhador, igual a ele. Completando, aponta ainda ser uma “obrigação moral” a devoção à Nossa Senhora do Rosário. Este informante, como outros fiéis, problematiza a hierarquia dos santos presentes no espaço religioso.

A hierarquia dos santos é uma das formas de descrever como as memórias e devoções dos fiéis aos Santos de Cor constituem, circulam e envolvem trocas simbólicas, vivenciadas e capazes de refletir a noção de trançado em sua diferenciação com o sincretismo.

Inicialmente, o trançado surge no campo da pesquisa sobre o Museu do Negro e a Irmandade dos Homens Pretos como uma categoria nativa, quando em uma das festividades aos santos padroeiros ocorre um desmaio de um rapaz branco. Trata-se de um jovem que estava representando a guarda imperial simbolizando um contexto monárquico durante a festividade dos santos padroeiros. Essa guarda era composta por dez homens vestidos com trajes típicos da época, que ficavam de lado e de frente, no corredor principal que segue para o altar. Um membro do ritual litúrgico surge segurando o turíbulo, objeto litúrgico onde se queima o incenso que exala a fumaça que permite a “purificação”, como descreveu um fiel. É nesse momento que presenciamos o desmaio. Anterior a esse ocorrido eram perceptíveis os olhares, tremedeiras e suor do guarda. Uma fiel que se encontrava ao meu lado afirma ser o ocorrido um “trançado”. Ao observar o quanto o rapaz tremia questionou se o mesmo não deveria ser evangélico e sorriu. Logo em seguida, exclamou: “É!”, “Aqui é forte!””, “Viu só?!”, “É o trançado!”, “É forte!”, fazendo um balanço com as mãos me perguntou: “Você não é daqui, não? Não?” e sorriu novamente.

Tal acontecimento descreve a existência de um novo elemento no ritual na festa de Santos de Cor na cidade. Tal categoria parecia também envolver mistérios e segredos pelas ações daqueles que a praticam ou vivenciam, constituindo um imaginário de memórias, onde a devoção é o sagrado que se posiciona como um elemento da estrutura da consciência humana.

Através de entrevistas, documentos e observação participante, a pesquisa nos direcionou para a reflexão acerca dos fiéis 6 e das memórias de santidades presentes, na igreja e nos objetos do Museu do Negro, mediando simbolismos. O espaço museológico foi fundamental para observar e descrever os devotos e santos durante as idas às missas, às festividades e ao museu, fazendo assim, uma conexão entre esses três locais. Foi nesse sentido que a categoria estendeu a noção de devoção e santidade frente às imagens da Escrava Anastácia e da Princesa Isabel, em conjunto com as representações das almas dos escravos, às quais os fiéis atribuem rezas, pertencimentos e memórias.

A festa e a devoção à Nossa Senhora do Rosário

As festas populares há muito têm atraído a atenção de folcloristas, antropólogos, sociólogos e historiadores. Elas condensam a cultura de um povo “revelada” por um mosaico de etapas presentes em sua formação festiva, tais como a comida, a promessa, a procissão, as vestimentas, a memória, o dinheiro, as danças, os cantos etc., e que não se encontram independentes uma das outras ( Paiva, 2018).

As festas são meios para identificarmos símbolos, performances, categorias e sistemas de classificações. Elas se materializam pela oralidade, pelo ritual, pelo tempo e pelo espaço. Da Matta (1984: 46) já caracterizava as funções recreativas e comparativas das festas: “Para nós, brasileiros, a festa é sinônimo de alegria, o trabalho é eufemismo de castigo, dureza, suor”.

Constantemente em movimento, as festas ressignificam símbolos e revelam visões de mundo, diferenças de classes que podem significar “a destruição das diferenças entre os indivíduos e, por esta razão mesmo, associam-se à violência e ao conflito, pois são as diferenças que mantem a ordem” ( Amaral, 1998: 30). Como analisa Brandão, enquanto manifestações culturais, revelam acontecimentos sociais e uma linguagem simbólica, mas também trazem o papel da memória em sua ação:

A festa quer lembrar. Ela quer ser a memória do que os homens teimam em esquecer -e não devem- fora dela. Séria e necessária, a festa apenas quer brincar com os sentidos, o sentido e o sentimento. E não existe nada de mais gratuito e urgentemente humano do que exatamente isto ( Brandão, 2001: 17).

As realizações festivas nos inquietam a pensar sobre os sujeitos dessas ações. As festas de devoção negra focam em um passado histórico de escravidão e trazem uma visibilidade aos sujeitos marginalizados pelo contexto histórico brasileiro como analisa o historiador Flávio Gomes:

Passado 115 anos da abolição, o Brasil tem uma população negra (o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística classifica-a de pardos e pretos) de mais de setenta milhões de pessoas. Trata-se do segundo maior país de população negra do mundo; o primeiro é a Nigéria. Não obstante isso, no Brasil, a população é quase invisível ( Gomes, 2003: 13).

Sobre os Santos de Cor, o historiador Anderson de Oliveira em sua obra Devoção negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial (2008) centra nos estudos devocionais de duas santidades negras no século XVIII, Santo Elesbão e Santa Efigênia, visando mostrar a inserção dos negros no catolicismo colonial. Ao descrever seus cultos, o autor mostra a diversidade religiosa no Brasil, no período colonial, apontando para as relações entre o catolicismo e as religiões de origem africana.

As festas de Santos de Cor nos instigam a pensar os conflitos contemporâneos permitindo-nos refletir o papel de ascensão social do negro no contexto brasileiro. São formas de expressar, em seus simbolismos diversos, ressignificações quanto à estrutura do poder. Suas festividades são formas de retratar culturas, representar memórias, reforçar laços de pertencimentos étnico/racial e dimensionar a própria estrutura de poder. É nesse sentido que as festividades trazem a possibilidade de observar a memória como categoria socialmente construída.

Nosso ponto de discussão teórica sobre as festividades pesquisadas parte de uma perspectiva de estudos interdisciplinares sobre o conceito de memória, centrando-a como uma construção contínua no presente ( Halbwachs, 1990). Pensada como categoria socialmente construída, a memória de uma festa se materializa como um fenômeno social capaz de unir os devotos da santa em nome de uma suposta “solidariedade religiosa”, existente em seu conjunto de valores, lembranças, crenças e práticas transmitidas oralmente ao longo do tempo. Mas, ela também é capaz de ressignificar, simbolicamente, o conceito de devoção e santidade.

Sobre a festa de Nossa Senhora do Rosário no Brasil muita coisa tem sido escrita em livros, artigos, dissertações e anais de congressos. No livro Reis Negros no Brasil Escravista: história da festa de coroação de Rei Congo ( 2002), Marina de Mello e Souza faz referências às festas de Nossa Senhora do Rosário, focando nos aspectos religiosos da formação histórica de algumas irmandades. Na produção antropológica podemos destacar o trabalho de Carlos Rodrigues Brandão em A Festa do Santo de Preto(1985), resultante de um trabalho realizado em Catalão, cidade localizada no sul de Goiás; e a dissertação de Patrícia de Araújo Brandão Couto, sobre a cidade de Bom Despacho (MG), intitulada “Festa do Rosário: iconografia e poética de um rito” ( 2001), cujo objetivo foi destacar a importância dos alimentos oferecidos na festa como um elo para unificar os pagadores de promessas (que oferecem o “banquete” à virgem) e os congadeiros (que recebem tal dádiva). Há estudos do folclorista Luis da Câmara Cascudo no Dicionário de Folclore Brasileiro(2001), de Mello Moraes Filho em Festas e Tradições Populares do Brasil(s/d) e do Frei Francisco Van Der Poel em O Rosário dos Homens Pretos ( 1981) sobre a religiosidade do povo de Araçuaí, cidade localizada no centro do Vale de Jequitinhonha (MG). Estas produções destacam a Irmandade de Homens Pretos, a festa de devoção à santa, os rituais e rezas contribuindo para pensar as expressões diversas da devoção à santa.

Nossa Senhora do Rosário é padroeira de todos os congadeiros e protetora dos escravos. No Brasil, as leituras sobre a devoção à santa atribuída à devoção negra estão associadas à relação existente entre a cultura dos missionários católicos e a população de origem africana. Segundo alguns estudos, os escravos praticavam o culto religioso como forma de evitar a punição por senhores, mantendo presentes em suas culturas os santos de origem e os integrando com os santos brancos, em uma espécie de síntese ou função sincrética. Por esta concepção, intelectuais negros, como Abdias do Nascimento (1978: 108), criticam o conceito de sincretismo, pois sugerem que este conduz a um funcionalidade natural, onde é atribuído ao negro o “privilégio” de se tornar igual ao branco em um “clima de fraterna compreensão recíproca” ocultando, desta forma, os conflitos existentes entre o catolicismo e as religiões africanas.

A Festa do Rosário está historicamente ligada aos congadeiros. Segundo Cascudo no Dicionário de Folclore Brasileiro ( 2001) compreende a grupos negros que realizam a congada, uma dança dramática que simboliza a coroação de um rei (às vezes, também, de uma rainha). Ao iniciar a pesquisa sobre a Igreja dos Homens Pretos no Rio de Janeiro, deparei-me com a ausência de congadeiros nas festividades.

No município de Sem-Peixe, os congadeiros também são denominados como “dançantes”. Utilizam vestimentas brancas (blusa, calça e tênis), saia rosa com fitas coloridas nas cores azul, vermelho, amarelo, branca em várias tonalidades. Alguns utilizam chapéu longo confeccionado com as mesmas fitas e com pedaços de espelhos colados que narram ser para “quebrar” o mau olhado, as feitiçarias feitas pelos indivíduos sem fé ou espíritos malignos.

Por sua vez, na festividade da Igreja dos Homens Pretos no Rio de Janeiro, há uma irmandade setecentista de devoção aos Santos de Cor. Nesse sentido, a cor dos santos assume um papel fundamental nas classificações das associações religiosas e no imaginário social vivenciados por aqueles fiéis que creem. O culto aos santos deriva das devoções a divindades na mediação entre um determinado deus e o fiel.

Alguns autores procuraram demonstrar como a catequese buscou construir “narrativas específicas” aos santos ( Oliveira, 2008: 181). Analisam como o ato de ir às missas, respeitar, ofertar e rezar, dentre outras ações, foi construído visando a busca da santidade como modo de vida ou formas para obter seus pedidos atendidos ( Menezes, 2006, 2004).

A festa em Buraco Escuro inicia após uma novena semanal, onde as memórias, cantos e adoração à santa são pronunciadas durante a reza do Rosário. Um dia antes da festa, meninas jovens limpam a igreja e preparam o mastro que simboliza a autorização para a festividade. Pela manhã, confeccionam a imagem de Nossa Senhora e os enfeites no mastro. À noite, cabe aos homens erguê-lo ao disparo de muitos foguetes. O dia seguinte inicia com os preparativos para o banquete que será ofertado pelo Rei e Rainha do ano. Mulheres preparam a comida no fogão à lenha e nos grandes tachos improvisados nos quintais das casas de moradores próximos à Capela de Santo Antônio. Os homens cortam a lenha e preparam a bebida. Quando os congadeiros chegam inicia uma apresentação: a dança em formato de um bailado simbolizando a saída da santa que se encontrava presa na montanha, como narrado por fiéis durante o campo 7. Após as apresentações das danças há o banquete. Crianças, jovens, adultos e dançantes se espalham fora e dentro da casa com os pratos e copos de bebida na mão. A mesa posta está farta de tutu mineiro, arroz, farofa, couve, frangos e um leitão. As bebidas servidas são: refrigerante, sucos e cachaça.

As memórias de devoção negra seguem um trabalho de subversão à medida que buscam destacar acontecimentos históricos marginalizados. Na festa de 2001, enquanto esperavam a chegada do padre, os congadeiros realizavam seus autos ao som de cantos de devoção à santa do Rosário e aos santos negros. Ressignificavam memórias e narrativas junto aos demais fiéis e recordavam da importância da cachaça que, segundo um mestre dançante, havia sido liberada pela santa devido ao sofrimento da condição devido ao sofrimento causado pelas condições impostas pela escravidão. Comparavam a festa da roça com a realizada na cidade que se apresentava mais “luxuosa” e realizada por famílias locais tradicionais. Em Buraco Escuro podiam realizá-la conforme a realidade social e econômica que viviam. Podiam ser rei e rainha do Rosário. Dentre os cantos que seguiam à santa havia muitas cantigas de roda. Uma delas era constantemente repetida:

Ô Jesus, ô Jesus Eu vim aqui rezar!

À Senhora do Rosário!

Virgem das Virgens, Rogai a Deus por nós

No Reinado, ritual que ocorre após o banquete, há o deslocamento simbólico dos congadeiros até a casa do Rei do Rosário, o festeiro do ano, de forma muito animada, cantando e dançando. O ritual é conduzido até a casa da festeira, a Rainha do Rosário, que junto com os príncipes e princesas segue com os dançantes até a Capela de Santo Antônio onde ocorrerá a Missa Festiva. De acordo com a ideologia presente no catolicismo, segundo alguns fiéis, a missa conduz à “salvação”, a transformação do fiel de “pecador”, repleto de falhas humanas, a indivíduo “puro”, rumo à salvação divina. Ela narra momentos de sofrimento e o histórico da época onde a imagem de Jesus Cristo se associa ao sofrimento e à libertação. No momento do ritual da Eucaristia quando o padre entregava aos fiéis em fila, um a um, a hóstia consagrada 8, houve uma recusa do mesmo aos congadeiros que “tropeçavam” na dança devido ao consumo exagerado de cachaça 9. Há olhares de reprovações, surpresa e risos por parte dos fiéis presentes. Essa mudança singular em coletividade ocorre na entrega da Eucaristia, ritual onde os fiéis recebem a hóstia que simboliza o corpo e sangue de Cristo no catolicismo. Por essa razão, só podem comungar (receber a hóstia dita como “santa”) os fiéis que se encontram “preparados”, “limpos”, sem “impurezas” para receber o sagrado, ou seja, aqueles que estão em acordo com a tradição e a moral institucionalizada pela Igreja Católica.

A análise de Mauss é relevante para reflexões sobre uma memória devocional quando afirma que “foram os cristãos que fizeram da pessoa moral uma entidade metafísica, depois de terem sentido sua força religiosa. Nossa própria noção de pessoa humana é ainda fundamentalmente a noção cristã” (2003: 392). A ideia de que homens religiosos possam participar da própria santidade, da divindade e se beneficiar, ao menos em certa medida, de seus atributos no cristianismo, ocorre quando a Igreja, a virgem, os apóstolos e os mártires passam a ser considerados “santos” e “venerados” pela comunidade de fiéis ( Vauchez, 1987), onde “ser “bom”, “religioso” e “milagroso” passou a ser um caminho para a santidade. O ato de definir memórias coletivas de santidades é uma tentativa em descobrir aquilo que é único e diferente para o sujeito que crê partindo de uma premissa dos seus objetos e ações.

Se por um lado há um limite institucionalizado dado às ações diversas dos indivíduos frente a sua forma de se encontrar e compreender o sagrado, por outro, os fiéis são capazes de reinventarem constantemente essas normas. Durante o ritual, após a recusa, os religiosos classificados como “impuros” dançavam em louvor à santa como se pedissem perdão ou fizessem desse ato o recebimento do sagrado, levantando as mãos para os céus. É na importância do ritual festivo em seus cantos, rezas, banquete, danças e homilia 10 que identificamos aquilo que dinamiza a esfera do poder na relação dos devotos com o “não humano”, nas percepções hierárquicas religiosas presentes no conjunto de crenças e rituais de devoção à santa.

Há um jogo de poder implícito e explícito que traz o reflexo das marcas do processo de instauração de um catolicismo que se posiciona como universalista centrando na memória institucional oficial do catolicismo cuja ação ainda se percebe atuante sobre os fiéis mediante as suas crenças e moral em oposição às ressignificações que os fiéis realizam. Burke (1989) já enfatizava que há estudos modernos sobre os portadores de tradição, onde alguns fiéis buscam conservar frases que não compreendem, enquanto outros não são dominados pela tradição e por isso sentem-se livres para reinterpretar a tradição de acordo com a sua preferência: “Na maior parte dos casos, eles não decoram a cantiga ou a estória, mas recriam-na a cada apresentação, procedimento este que dá muito espaço para as inovações” ( Burke, 1989: 137). É nesse sentido que, na zona rural, o campo conduzia a ressignificações do ritual pelas memórias coletivas e narrativas locais.

Os fios do trançado

Como descrito anteriormente, ao longo da pesquisa no Rio de Janeiro me deparei com uma categoria nativa, o trançado, que descreve uma teia de relações entre o denominado “catolicismo oficial”, representado pela hierarquia da igreja, com suas normas, e o “catolicismo popular”, presente nas festas tradicionais religiosas dedicadas aos santos e às religiões “afro-brasileiras” 11.

Ao longo da pesquisa, o trançado se mostrou como uma forma de articulação do contexto social, institucional e do sistema simbólico dos cultos de entidades ligadas à matriz afro-brasileira, ao movimento negro, à monarquia e à santidade. Ele traz a descrição e análise das práticas e representações dos fiéis. Trata-se de um conjunto de expressão das relações entre os devotos e suas crenças, um fato social total no sentido atribuído por Marcel Mauss (1974: 41) quanto às instituições religiosas, jurídicas, morais e econômicas. Segundo a antropóloga Renata Menezes, a santidade católica, como uma identidade socialmente atribuída a uma pessoa:

Implica em interpretar sua vida com um sentido religioso e conferir-lhe uma reputação de excepcionalidade, seja por sua exemplaridade, seja por sua capacidade mediadora diante de Deus ou de Jesus, seja por dons taumatúrgicos ( Menezes, 2006: 7).

A categoria do trançado envolve a lógica da igreja e dos fiéis. Constitui redes religiosas internas e externas frente às entidades humanas e não humanas. Ela também envolve um conjunto de práticas de devoção, segredo e de acusações diante das relações dos devotos com objetos e santos.

Na igreja do Rosário e São Benedito, a memória da escravidão traz a memória do sofrimento, silenciada por muitos devotos. Talvez esta seja a explicação da dimensão do culto às almas na igreja. Objetos que representam imagens de escravos ou do negro brasileiro se tornam objetos de adoração. O caminho para o céu durante as missas e festividades simbolizava o da santidade, reconstruindo, assim, a imagem dos escravos como “homens santos”, por terem construído a igreja com sua fé aos santos padroeiros.

A imagem da Princesa Isabel na igreja está associada à santidade, pela libertação dos escravos. Trata-se do culto à Princesa Isabel nas festividades e nas exposições do museu. A categoria de santidade parece atuar como um tipo ideal, um modelo de vida, conferindo o status de Redentora, pela libertação dos escravos, vista por muitos como uma atitude humanitária. No entanto, esta relação era estabelecida por uma mediação de conflito entre “santa”, por parte dos membros da irmandade, fiéis frequentadores, religiosos representantes ou ligados à monarquia brasileira; e “não santa”, por alguns praticantes dos movimentos negros 12.

De forma análoga, o conceito de santidade também era atribuído a Escrava Anastácia, uma princesa africana do povo bantu, escravizada em uma fazenda em Abaeté, na Bahia, no início do século XIX. Comumente é representada de olhos azuis e com uma máscara de ferro na boca. Algumas leituras conduziam para a interpretação de que o instrumento de tortura teria sido colocado quando trabalhava em um engenho de cana. Foi punida por ter provado a bebida que era negada aos escravos. Outra leitura diz que o castigo foi imposto por uma sinhá. Com receio de perder seu esposo para uma escrava de olhos azuis ordenou que o instrumento fosse inserido na adversária negra.

Mas, a categoria de “santa” de Anastácia media também uma “categoria marginal” para a igreja católica, para alguns membros da irmandade e para os devotos. Se para alguns não há relação devocional, pois não reconhecem a escrava como santa, para outros ela é santa. Há assim, uma relação mediada pelo conflito, ora de forma silenciada ora declarada em entrevistas e em algumas observações no campo.

Estes casos nos colocam diante de relações de poder presentes na esfera micro, frente às ações institucionais, ou daquilo que se pode denominar “memórias subterrâneas”:

Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à “Memória oficial”, no caso a memória nacional. Num primeiro momento, essa abordagem faz da empatia com os grupos dominados estudados uma regra metodológica e reabilita a periferia e a marginalidade. Ao contrário de Maurice Halbwachs, ela acentua o caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional. Por outro lado, essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória entra em disputa. Os objetos de pesquisa são escolhidos de preferência onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes ( Pollak, 1989: 3).

As pesquisas sobre santidade e devoção na Igreja do Rosário, bem como as leituras sobre a temática, conduziram para a seguinte reflexão: quando na antropologia se fala de crença, é preciso pensar a possibilidade de o “nativo” duvidar, uma vez que ele necessita de provas. É nesse sentido que a santidade e até mesmo a devoção se colocam como categorias em disputa. Nem todos concordam com a santidade atribuída a um determinado personagem, e crer em seus milagres pode tornar o sujeito um devoto ou não do santo. Como enfatiza Menezes (2004: 155), há uma necessidade de um milagre para o fiel comprovar a existência de uma divindade: “As narrativas dos milagres de um santo permitem perceber os poderes que a eles são socialmente atribuídos e as áreas da vida humana onde a sua atuação se concentra”. Mas, não necessariamente quando o santo atende ao pedido do fiel esse se torna devoto dele. Como afirma a autora, há outras relações que entram em jogo no estabelecimento de uma devoção. As pessoas podem demonstrar sua relação com o santo pelo fato de terem nascido, casado, e sido batizadas na mesma data do santo ou por terem o mesmo nome, entre outros fatores ( Menezes, 2004).

Por trás da santidade encontra-se a necessidade do milagre para o fiel, como afirmado acima por Menezes (2004) Uma das formas de comprovação da existência de um “santo” consiste na eficácia de seu “poder” em realizar “milagres” ( Menezes, 2004: 155). A santidade se encontra mediada entre o “catolicismo popular” e o “catolicismo oficial” que, em determinados momentos, se opõem e em outros não. Envolve-se esta santidade em um discurso de poder, eficácia, realismo, utilidade, legitimidade, simbolismo e eficiência.

Para Burdick (1998), Anastácia teria recebido a mordaça sobre o rosto porque suas palavras tinham o poder de influenciar os demais escravos e incentivá-los à rebelião. Segundo reportagem da revista Veja (1988), o monsenhor Guilherme Schubert, pesquisador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, teria comprovado que a “escrava venerada nunca teria existido”. Para ele, a devoção se originou em um desenho do ilustrador francês Jacques Étienne Victor Arago, que visitou o Brasil em 1817. Ele teria desenhado as duas formas mais comuns de castigo em uma só figura: o grilhão e a máscara, provavelmente observados em dois negros. Segundo Schubert, em 1971, uma ampliação dessa gravura intitulada “Castigo de Escravos no Brasil”, foi doada para o Museu do Negro, no Rio de Janeiro, com uma carta de um burocrata que explicava que a identidade da pessoa retratada era desconhecida ( Paiva, 2016).

É nesse sentido que os estudos sobre festividades na Igreja do Rosário na cidade circulam os trançados de santidades. Ao longo da história, observa-se a necessidade de criação de personagens ligados à monarquia como “santos”, que se posicionam também entre o “santo oficial” e o “não oficial” (não canonizado), entre o “herói” e o “santo”. Podemos citar o caso de São Luís IX. Como descreve Le Goff (2002), tratou-se de um rei francês que reinou por 44 anos; a princesa Margareth (1242-1270) da Hungria, que teria ingressado em um convento e, mais adiante, consagrada como Virgem e após como “santa” ( Klaniczay, 1990); a princesa Diana, na Inglaterra, falecida na década de 1990. A respeito desse último caso, embora não seja canonizada, Diana integra a versão da santidade “nãooficial” onde a morte traz o estatuto de santidade ( Watson, 1997). Estes casos possuem um ponto comum: a comprovação histórica de sua existência e a necessidade de atribuição do termo santidade a alguém que seja “bom” para o povo e para uma nação.

A respeito da devoção na comunidade mineira a expressão “tocar a festa” significa as atribuições dos “festeiros”, o Rei ou Rainha do Rosário, aqueles que irão dirigir (promover) a festa do ano, se vestir igualmente como reis, ressignificar memórias, oferecer o banquete à santa e, assim, pagar sua promessa às divindades, conduzindo para uma lógica ritualista que se diferencia e se aproxima da festa no centro do Rio.

Os festeiros na festa da roça são formados por um homem e uma mulher que não necessariamente precisam ser casados. Eles podem ser pai e filha, morarem na cidade ou na roça do município de Sem Peixe. Residentes de outros estados que apresentam algum tipo de contato com o pequeno vilarejo, seja pelo nascimento seja pela presença de familiares no local, também podem “pegar a coroa” 13. A relação com a santa está na devoção coletiva, quando os fiéis afirmam que é a comunidade que faz a festa. Segundo narrativas, a festividade realizada na comunidade rural aponta para um lugar “mais tranquilo” pelo fato de haver uma “religiosidade coletiva” (ser católico) e pelo fato de todos se conhecerem, de alguma maneira, nessa religiosidade, o que acaba então remetendo a solidariedade/coletividade.

Um ponto comum em ambas as festas está no banquete oferecido à Nossa Senhora do Rosário onde o sinônimo de festança se assemelhava à fartura de comida e bebida. Na festa do Rosário na Igreja dos Homens Pretos é servida a feijoada acompanhada de couve, laranja, farofa, arroz e cachaça.

Outro assunto em comum às duas festas está no uso da cachaça. Segundo narrativas, a santa ao ver um escravo bebendo o interrogou o porquê da ação. O mesmo respondeu apontando as dores e a situação de ser escravo. Bebia para esquecer sua posição desigual e os sofrimentos expressos no corpo. A santa, mediante ao argumento, teria dado razão e permitido o uso da bebida.

Se na festa no pequeno vilarejo rural mineiro destaca-se a memória coletiva como um motor da dinamização de um grupo, foi na observação participante na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, no centro urbano do Rio de Janeiro, que nos deparamos com a categoria do trançado. No entanto, o nosso objetivo não é afirmar a existência da memória coletiva e da tradição no espaço rural e a lógica do trançado na cidade. Pensamos que é a observação no campo, a descrição densa ( Geertz, 1989), o locus para dinamizar as presentes discussões onde cabe ao antropólogo descrever, explicar e interpretar seu objeto de estudo a partir das complexas e diversas particularidade que percorrem a vida social. Não há o objetivo de buscar leis gerais do trançado, mas os significados, relações, comparações entre festividades às devoções negras.

Sobre os cuidados da irmandade setecentista encontramos objetos de colecionamentos no Museu do Negro que se deslocam para outros locais da igreja quando ocorrem festividades, missas, cerimoniais cotidianos e durante a relação com outros grupos (Movimento Negro, família monárquica e membros de outras irmandades, por exemplo). Nestas crenças e práticas rituais dos indivíduos e seus objetos é possível perceber o trançado como categoria de pensamento social a ser vivenciada e praticada pelos fiéis. Nesse sentido, ela se torna capaz de refletir não exatamente um sincretismo religioso, mas pelo menos pensar sobre ele. Dotado de uma dimensão religiosa, o trançado, enquanto categoria de pensamento, nos permite revelar discursos, observações, dúvidas, questionamentos, novas formas de refletir e interpretar a religiosidade presente entre os indivíduos, sobretudo nas culturas de matrizes afro-brasileiras.

Há uma questão acerca do trançado que percorreu e ainda se fazem presentes em minhas primeiras indagações a respeito desta categoria: quais os seus pontos de encontros e desencontros com o sincretismo religioso?

Sanchis (2018) contribui para dinamizar a discussão através do conceito de “pluralidades”. Segundo o autor, se na contemporaneidade temos religião e religiões institucionais é porque os indivíduos vêm trazendo experiências independentes das instituições. É preciso observar as mudanças que estão ocorrendo nas relações do fiel com sua instituição religiosa. Há uma roupagem plural que ocorre pelo fato do indivíduo se tornar mais autônomo em seu campo religioso na medida em que dispõe de uma variedade maior de ofertas institucionais religiosas. Nesse sentido, o fiel parte para sua singularidade plural como também desperta e age para uma capacidade de adaptação e diversidade de crenças e práticas da fé existentes também fora do catolicismo ( Sanchis, 2018). Percebemos assim que:

[...] Como as culturas, viajam as religiões. E se encontram nos mesmos espaços, que deixa então de ostentar - ou sofrer - referências exclusivas a uma delas. A tradição não pretende mais ser, sozinha, a atribuidora do legado das identidades. Que não são mais herdadas. As identidades, também, no campo da religião, doravante são - ou são sentidas como - em boa parte construídas, pela escolha autônoma dos sujeitos sociais.

A pluralidade religiosa não constitui simplesmente o advento de uma situação quantitativa, de uma multiplicação insólita. Na sua densidade atual, ela abre qualitativamente um novo regime em muitas saudades ( Sanchis, 2018: 25-26).

Durante o campo, começamos a nos perguntar se o conceito de sincretismo dava conta de classificar o que vínhamos observando. Yvonne Maggie (2001: 16) em Guerras de Orixás analisa criticamente, em um primeiro momento, que as culturas afrobrasileiras foram sempre vistas “como um fenômeno de sincretismo religioso no qual se encontravam traços africanos associados a traços católicos”. Para esse tipo de sincretismo foi acrescentada a mistura de traços de outras religiões: católicas, espíritas e indígenas. Em conjunto com as reflexões da autora, essa definição me conduzia ao exercício do estranhamento a partir de duas razões: a tendência de cairmos em um senso comum conceitual e relacional que muitas vezes poderia nos conduzir ou se apresentar como algo já “dado”, no sentido de já pensado, já classificado. Ou seja, de nos remetermos a busca pelas origens a partir da classificação sincrética já consolidada no campo científico.

O conceito de trançado se colocava como uma nova forma de pensar a respeito. Tumultuava definições e empregos de leituras sobre o sincretismo religioso que parecia, a priori, um conceito “esvaziado” para dar conta do campo que me encontrava. O trançado surgia no campo e necessitava ser descrito nele, pois me colocava diante de variados e distintos fenômenos religiosos presentes nos rituais, nas crenças, na relação entre sujeitos e objetos, nas narrativas dos “fiéis” e do “povo” na igreja do Rosário e São Benedito. Ele traz a lógica do juntar-se, meter-se uns entre outros, entrançar, mediar, o “fazer trançar” no conjunto de memórias e práticas devocionais em suas mediações singulares e plurais com o sobre-humano e o sobrenatural, com santos e não santos. Durante a missa de Cura e Libertação, em 05 de outubro de 2006, realizada na igreja, um entrevistado que solicita sua identificação como “devoto” explica a categoria do trançado: “Não existe nesse mundo uma fé só, existe o que se vive” e completa: “Imagine os cabelos trançados de uma moça: é uma parte que é parte, mas que faz parte de um todo e é um todo que está nas partes, mas tudo vai junto, entendeu?”.

Importante apontar que nenhum conceito na ciência antropológica deve ser visto como um produto final, mas um recorte de uma ação social em observação de um determinado campo. Contudo, devemos observar que muitas vezes os conceitos no campo trazem uma potencialidade em comparação aos antropológicos e, são, em vários momentos, incorporados na pesquisa antropológica ressignificando o próprio campo de saber dessa ciência. Não se pretende aqui uma defesa pela substituição da noção de sincretismo pela expressão local “trançado”. É preciso contextualizar os empregos das categorias nativas e analíticas. É o que Sanchis (2018) faz ao pensar o termo sincretismo no catolicismo ao partir de duas modalidades, em contextos diferenciados, em Portugal e no Brasil.

Contextualizando, se na festividade mineira há um pequeno grupo religioso de moradores, delineados pelo grau de parentesco e pela religiosidade católica local, na festividade da cidade, os fiéis vêm de diferentes localizações do Estado do Rio de Janeiro e muitos expressavam suas experiências de fé com diferentes instituições ou crenças religiosas. Neste espaço, parece haver uma singularidade plural do mundo religioso contemporâneo que proporciona maior visibilidade à materialidade do trançado.

A forma como a materialidade do trançado é capaz de envolver os fiéis em seus círculos de relações humanas e não humanas pode ser observada na forma como eles estabelecem suas experiências com a religiosidade. Gonçalves já enfatizava não ser possível “falar em patrimônio sem falar de sua dimensão material” ( 2005: 22). Para o autor, os objetos são sistemas de pensamento onde é possível associar forma e materialidade como a própria substância da vida social e cultural. Por essa razão, analisa acerca dos objetos: “Eles não são apenas ‘bons para pensar’, mas igualmente fundamentais para se viver a vida cotidiana” (2005: 23).

Parafraseando o autor, analiso que não é possível falar do trançado sem pensar sua dimensão material. Nas festas analisadas, a materialidade das experiências religiosas incide na cultura material através de diversos objetos. Elas nos ajudam a pensar na complexidade de como a religião incide na cultura material constituindo um trançado de devoções e memórias. Os objetos de devoção estabelecem trocas simbólicas com divindades. Não retribuir “acarreta a perda da ‘mana’, da ‘face’’, do que decorre a necessidade do “dar” e “retribuir” ( Mauss, 2003: 195).

Se toda prática religiosa está situada em relação a uma crença, o trançado percorre, enquanto categoria analítica e de pensamento social, algumas dimensões teóricas e metodológicas. O trançado está associado à prática da acusação e denúncia no espaço sagrado de forma interna ou externa, ou seja, entre si e entre os “outros”. Ele está atrelado ao sistema de trocas ao percorrer as relações da materialização dos objetos, suas ligações com o natural, humano e não humano através das representações de santidades e devoção. Contribui para perceber as pluralidades e sociabilidades presentes nos rituais festivos analisados, visto que está dotado de simbolismos. Nesse sentido, o mesmo não deve ser dissociado do conceito de culturas. Ele pode ultrapassar os limites das crenças institucionais marcando territórios da fé. E, por fim, o trançado circula entre as categorias tempo e espaço não de uma forma simétrica. Há uma desterritorialização dinamizada pela ressignificação entre o passado e presente. O passado não é reproduzido tal como ocorreu em um tempo. Ele é uma construção contínua no presente ( Halbwachs, 1990). O trançado também liga àquilo que Sanchis denomina por “autonomização progressiva do indivíduo em relação ao que era sua recepção sistemática como herança determinante da identidade” (2018: 25).

Estas reflexões não visam o esgotamento das reflexões e definições sobre o trançado. As discussões apresentadas nos convidam para uma nova escrita fundamentada no aspecto conceitual e relacional do termo sincretismo, superando-o, visando o aprofundamento analítico das premissas apresentadas acerca da categoria do trançado.

Considerações Finais

Este artigo buscou descrever memória e devoção negra em festividades no Brasil. Através da observação participante e da análise comparativa procuramos pensar a festa de Nossa Senhora do Rosário realizada em um pequeno vilarejo de Minas Gerais; e a festa de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito realizada no Centro do Rio de Janeiro através de uma categoria analítica: o trançado. Memória e devoção são categorias analíticas e descritivas.

No caso do lugarejo mineiro, a pesquisa buscou mostrar um trabalho de memória coletiva revelado através da festa. Uma vez colocado em prática, este trabalho é portador de uma identidade local posto que a celebração é organizada e mobilizada por seus próprios agentes, em espaços e tempos que suas lembranças percorrem. Ao ocuparem papéis de “personagens festivos”, os moradores ressignificam suas devoções aos santos em coletividade e memorizam a história dos escravos dando origem, assim, à formação da “festa na roça”.

Por sua vez, as festividades na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos expressam um conjunto de elementos de crenças e práticas rituais às almas dos escravos, à princesa Isabel, à Anastácia dentre outros “sujeitos-objetos” configurando um trançado religioso que se posiciona enquanto uma categoria nativa, uma materialidade das entidades em um complexo sistema de redes, fluxos, rituais e performances. O trançado confere a esses agentes identidades religiosas à medida que entram em contato entre si com um pluralismo religioso onde descrevem visões de mundo. No entanto, essas identidades no campo da religião “são - ou são sentidas como - em boa parte construídas, pela escolha autônoma dos sujeitos sociais” ( Sanchis, 2018: 25).

É nesse sentido que o trançado é fixado como uma categoria religiosa retornando a reflexões sobre uma pergunta inicial: “Quando estamos estudando a religião, sobre o que exatamente estamos falando? O que é ‘religião’ afinal de contas?” (Eller, 2018: 217).

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Notas

1 Reflexões acerca desse trabalho foram apresentadas no Grupo de Trabalho: GT 45 - Entidades religiosas: agenciamentos, materialidades, fluxos e diásporas, na XIII Reunião de Antropologiado Mercosul realizada entre os dias 22 e 25 de julho de 2019, Porto Alegre (RS).
2 No Brasil e na América Latina, a junção de Nossa Senhora do Rosário com santos negros, como padroeiros, foi um ato comum nas associações classificadas como “irmandade de cor”. A cor dos santos assume um papel fundamental nas classificações das associações religiosas, refletindo um caráter polarizado entre grupos na sociedade colonial. A conversão das populações negras através da catequese trouxe “... o discurso sobre cor explicita de forma indubitável o caráter da mensagem que se quer transmitir e o grupo específico que se quer atingir” ( Oliveira, 2008: 181). Neste sentido, podemos perceber o quanto as cores nos colocam em uma releitura da sociedade brasileira. Elas, assim, descrevem relações e experiências experimentadas pelos homens, capazes de revelar percepção do poder e uma espécie de classificação da realidade, como analisaTurner (2005).
3 No contexto histórico há outras divindades classificadas como Santos de Cor que perpassam a intermediação da devoção e santidade no catolicismo (oficial e a popular): Santa Efigênia cuja crença foi responsável pela propagação do cristianismo na Etiópia. Essa santa é classificada como a protetora do lar contra incêndio. Carrega em uma das mãos uma casa. Santo Elesbão que atuou convertendo árabes e judeus na fé cristã segunda narrativas dos fiéis no campo de pesquisa. Santa Bakhita, padroeira do Sudão e das vítimas do tráfico humano e escravizados. Foi canonizada pelo Papa João Paulo II, em 2000. A beata Nhá Chica, primeira santa nascida no Brasil; Beata Maria Clementina, freira da República Democrática do Congo. Foi morta ao resistir tentativa de estupro. Foi declarada mártir e proclamada Beata pelo Papa João Paulo II. São Baltazar, mais conhecido como Rei Mago, representado carregando uma mirra. Santo Antônio de Categeró, nascido no continente africano. Foi escravo e, após libertação, dedicou-se ao trabalho em hospitais e vida religiosa). Em alguns sites católicos como ohttps://catolicaconect.com.br/ ehttps://www.vaticannews.va é possível encontrar outras personalidades de devoção negra.
4 A oposição entre o “catolicismo oficial” e o “catolicismo popular” está no processo de fabricações de memórias em dois cursos: aquelas que permeiam um histórico nacional e aquelas que são ressignifcadas por grupos locais.
5 A ideia da morte traz uma representação importante para a compreensão dos rituais realizados na igreja. Ela é capaz de marcar a santidade uma vez que os santos tornam mortos especiais que trazem problemas específicos ( Brown, 1982).
6 No campo, verificamos que a palavra fiel se refere a duas categorias: os “irmãos” (como eram classificados os membros da irmandade) e o “povo” (os frequentadores que não pertenciam à irmandade). Desta forma, era comum, ao longo das entrevistas, os “irmãos” se referirem aos outros fiéis como “povo” e estes os denominarem como “irmãos” demarcando os limites pelos papeis sociais.
7 Em alguns estudos e narrativas a santa parece sair do mar, onde se encontrava presa, realizando um bailado ao som dos batuques dos escravos que animou mais que os cantos litúrgicos brancos. Importante destacar como a memória é ressignificado diante de um contexto histórico e cultural. Em Buraco Escuro não há mar. A região é cercada por montanhas assim como todo o município. Ao ouvir a narrativas a respeito da origem dos dançantes, os fiéis contavam apontando para as montanhas onde afirmavam a origem do aparecimento da santa ( Paiva, 2018).
8 A Eucaristia é uma parte central do ritual da missa onde o celebrante apresenta aos fiéis a hóstia, alimento de formato redondo, de espessura sólida (nem grossa e nem fina), feita de farinha de trigo e água prensados na máquina. Simbolicamente, para os religiosos, ela significa o corpo de Cristo, “Jesus vivo”, após ser consagrada durante o ritual.
9 O ritual do banquete onde é servido comida farta e bebida estando a principal a cachaça, se prolongou no aguarde da chegada do pároco que apenas consegue estar presente para o ritual da missa.
10 Trata-se de um dos elementos do ritual da missa, onde após leitura do evangelho, texto bíblico, o celebrante se dirige a comunidade, de forma oral, em geral, e conduz o processo de explicações bíblicas relacionando ou exemplificando com a realidade social buscando reflexões sobre os ensinamentos cristãos do catolicismo.
11 As tensões entre o “catolicismo oficial” e o “catolicismo popular” nos dois campos revelam conflitos econômicos e étnicos-raciais. Os moradores de Buraco Escuro encontraram na festa a oportunidade de organizarem e realizarem a festividade da santa a sua realidade visto que na cidade era a classe dominante que gerenciava. Revelam também os conflitos raciais, pois na cidade apenas as pessoas “brancas”, segundo os fiéis, podiam ser Rei e Rainha do Rosário. Nas festas do Rosário na cidade do Rio de Janeiro, há uma tensão direta entre as narrativas e memórias da Dioceses e as novas institucionais a respeito das devoções e santidades versus a forma como os fiéis a ressignificam em seu cotidiano relações e experiências com o sagrado. O que se encontra em discussão é a cultura popular que, como observaBrandão (2007: 19): “Talvez a melhor maneira de se compreender acultura popular seja estudar areligião. Ali ela aparece viva e multiforme e, mais que em outros setores de produção de modos sociais da vida e de seus símbolos, ela existe em franco estado de luta acesa, ora por sobrevivência, ora por autonomia, e meio a enfrentarmos profano e sagrado entre odomínio erudito dos dominantes e odomínio popular dos subalternos”.
12 Na festividade de 13 de maio de 2008 o conflito entre a irmandade e representantes do Movimento Negro se apresentou na missa que ocorria em homenagem à família real Orléans e Bragança, com membros de institutos e associações monárquicas. Durante a solenidade, a irmandade foi surpreendida por uma manifestação na porta da igreja. Alguns estudantes e representantes da ONG-EDUCAFRO, com cartazes, alto-falantes, panfletos, apitos, perucas e narizes de palhaço, buscavam alertar a população sobre a existência de uma farsa da abolição. Os cartazes questionavam a santidade de Isabel, com os dizeres em vermelho: “A princesa não é santa”. Outros cartazes se referiam a Zumbi, como o real líder “vivo” da libertação do negro.
13 Antes da festa ser realizada na comunidade rural, a troca de coroa realizada na festa da cidade era, segundo os moradores locais do vilarejo, transmitida apenas para os moradores do município de renda mais elevada.


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