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KANAIMÉ, O GRANDE MATADOR

KANAIMÉ, EL GRAN ASESINO

KANAIMÉ, THE GREAT KILLER

Caio Monticelli
Universidade Federal de São Carlos, Brazil

KANAIMÉ, O GRANDE MATADOR

Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 22, pp. 1-18, 2020

Universidade Estadual de Campinas

RESUMO: O objetivo desse trabalho é apresentar a maneira pela qual os Taurepáng, povo Carib que no Brasil vive no norte do estado de Roraima, interpretam as ações do Kanaimé. De acordo com a literatura, trata-se de uma categoria de feitiçaria que envolve técnicas específicas de mutilação e assassinato amplamente difundidas nas terras adjacentes ao Monte Roraima e, além de um fenômeno espectral, oriundo da malevolência de outsiders, também diz respeito a um agressor que pode ser cercado, agredido e morto. Diante do aumento das tensões e acusações de Kanaimé nas comunidades taurepáng que ficam na savana venezuelana, suas lideranças optaram por uma iniciativa inédita: a criação de uma prisão para Kanaimé. Porém, em vez de atenuar os conflitos entre os parentes da vítima assassinada e os parentes do Kanaimé acusado, essa medida surtiu o efeito inverso e acabou por reforçar a compreensão taurepáng de que vivem em um “lugar de morte”.

Palavras-chave: Etnologia indígena, taurepáng, roraima, kanaimé, morte.

RESUMEN: El objetivo de este trabajo es presentar la forma en que los Taurepáng, pueblo caribe que vive en el norte del estado de Roraima en Brasil, interpreta las acciones del Kanaimé. Según la literatura, es una categoría de brujería que involucra técnicas específicas de mutilación y asesinato generalizadas en las tierras adyacentes al monte Roraima. Además se trata de un fenómeno espectral, originado en la malevolencia de los forasteros y que también se refiere a un agresor que puede ser rodeado, agredido y asesinado. Ante el aumento de las tensiones y acusaciones de Kanaimé en comunidades Taurepáng en la sabana venezolana, sus líderes optaron por una iniciativa sin precedentes: la creación de una prisión para Kanaimé. Sin embargo, en lugar de mitigar los conflictos entre los familiares de la víctima asesinada y los familiares del acusado Kanaimé, esta medida tuvo el efecto contrario y terminó reforzando la comprensión de Taurepáng de que viven en un “lugar de muerte”.

Palabras clave: Etnología indígena, taurepáng, roraima, kanaimé, muerte.

ABSTRACT: The objective of this work is to present the way in which the Taurepáng, Carib people who lives in the north of the state of Roraima in Brazil, interpret the actions of the Kanaimé. According to the literature, it is a category of witchcraft that involves specific mutilation and murder techniques widespread in the lands adjacent to Mount Roraima and, in addition to a spectral phenomenon, originating from malevolence of outsiders, also concerns an aggressor who can be surrounded, assaulted and killed. In view of the increase in Kanaimé’s tensions and accusations in taurepáng communities that are in the Venezuelan savannah, their leaders chose an unprecedented initiative: the creation of a prison for Kanaimé. However, instead of mitigating the conflicts between the relatives of the murdered victim and the relatives of the accused Kanaimé, this measure had the opposite effect and ended up reinforcing taurepáng’s understanding of who lives in a “place of death”.

Keywords: Indigenous ethnology, taurepáng, roraima, kanaimé, death.

Introdução

Quando conversam entre si, os Taurepáng se dizem Pemon, mas embora todo Taurepáng seja Pemon, nem todo Pemon é Taurepáng. Pemon é uma autodenominação que significa gente, pessoa, e diz respeito a maneira pela qual os indígenas que vivem nas terras a oeste e sudoeste do Monte Roraima se reconhecem. A literatura frequentemente os trata como sendo “um grande grupo étnico” composto por três subgrupos internos: os Arekuna e os Kamarokoto, que seriam os “Pemon do norte”, e os Taurepáng, os “Pemon do sul” ( Thomas, 1982). Apesar da definição do autor, os vizinhos ao sul dos Taurepáng também se reconhecem como Pemon, embora sejam amplamente conhecidos na literatura pelo etnônimo Macuxi ( Santilli, 1994, 2000, 2002).

Os Kapon, habitantes tradicionais das terras a norte e leste do Roraima, são outro “grande grupo étnico” regional. Vizinhos dos Pemon, o termo Kapon significa povo do alto, povo do céu, e eles também possuem suas próprias subdivisões internas: os Patamona e os Ingarikó, que fora do Brasil são mais conhecidos pelo etnônimo Akawaio ( Amaral, 2019).

Pemon e Kapon conformam as duas maiores populações indígenas de língua Carib que vivem na região central do maciço guianense, habitantes por excelência das terras adjacentes ao Monte Roraima ─ a tríplice fronteira entre Brasil, Guiana e Venezuela. Na literatura, essa região é conhecida como área circum-Roraima ( Rivière, 1984; Butt Colson, 1985, 1986). Além da terminologia de parentesco do tipo dravidiano 2, Pemon e Kapon compartilham um complexo cultural bastante semelhante entre si, com destaque para um corpus mitológico que dá grande ênfase aos feitos de Makunaima, demiurgo de temperamento ambíguo que se comporta como trickster. Abandonado por seu pai, Wei (o sol), Makunaima passou a vagar faminto pelo mundo primordial ( pia daktai) até encontrar wadaka tepuy, “a árvore que todos os frutos continha”, que decidiu cortar. Um forte cataclisma com dilúvios e incêndios sucedeu esse ato imprudente, que também foi responsável por alojar os diversos seres que viviam naquele tempo em seus atuais e respectivos domínios, como serras, bosques, floresta, rios e cachoeiras. Com efeito, o Monte Roraima é o toco que restou de wadaka tepuy, e as pessoas daquele tempo são os ancestrais dos Pemon e Kapon 3.

O complexo cultural que compartilham também envolve a figura do Kanaimé. Polissêmico, trata-se de um fenômeno que abarca a um só tempo algo espectral, inesperado e inevitável, como pode ser mobilizado enquanto mecanismo de acusação de outsiders do grupo local de ego, seja uma única pessoa, uma aldeia inteira ou um coletivo maior. Não obstante, além de expressar o vingador de uma ofensa ou assassinato, alguém capaz de perseguir anos a fio seu inimigo até finalmente obter a vingança, o Kanaimé parece mobilizar uma espécie de arquétipo que condensa em si perigos aos quais os índios dizem jamais encontrar proteção suficiente ( Koch-Grünberg, 1979-1982: 187).

Condição e ato de vingança ( Farage, 1997: 85), quase toda morte é atribuída à ação do Kanaimé, até mesmo aquelas que aos olhos dos brancos se deram por “acidentes”, “câncer”, “complicações no parto” ou “velhice”. Assim, quando os ânimos no interior de uma aldeia estão exaltados por conta de repentinos adoecimentos ou mortes, certamente será afirmado que há Kanaimé por trás dessa ação. Em geral, essa suspeita raramente recai sobre um parente próximo, pois Kanaimé é majoritariamente entendido como o outro, um inimigo oculto que ataca suas vítimas quando estão sozinhas, vulneráveis. Apesar de sua definição abrangente e flexível, o Kanaimé é um fenômeno regularmente presente no interior das aldeias pemon e kapon, sobretudo por ser um “devir possível”, isto é, “um risco ao qual todos os indivíduos estão sujeitos”, mesmo os do grupo local ( Sztutman, 2005).

O objetivo desse trabalho, portanto, é apresentar a maneira pela qual os Taurepáng, povo que no Brasil vive no norte do estado de Roraima ( Andrello, 1993), interpretam a existência do Kanaimé. Para tal, busco relacionar a percepção de meus interlocutores a respeito desse fenômeno com as informações disponibilizadas por outros autores que também trabalharam na região circum-Roraima. Na literatura, o Kanaimé pode ser encontrado sob as grafias Kanaimo, Kanaima ou Canaemé, mas os Taurepáng do Bananal o chamam de Kanaimü, em seu idioma, ou apenas de rabudo ou bicho, em português. Após um trabalho de campo em 2018 na comunidade do Bananal ─ a maior comunidade taurepáng em lado brasileiro, muito próxima à fronteira com a Venezuela, localizada na parte setentrional da Terra Indígena São Marcos (TISM/RR) ─, a argumentação que se propõe é que os Taurepáng compreendem a atuação assassina do Kanaimé como um dos principais fatores que fazem do mundo que vivem um “lugar de morte” por excelência.

Sobre o Kanaimé e suas práticas

Era um fim de tarde quando ouvi a seguinte história: certa vez um garoto estava em casa e começou a reparar que um barulho estranho vinha do lado de fora. Ao sair, encontrou um grande tamanduá, de pé sobre as patas traseiras, afiando suas garras dianteiras na parede da casa. Impressionado e assustado, rapidamente o menino procurou por sua avó, mas não a encontrou. Então, pegou sua baladeira (tipo de estilingue), procurou a melhor pedra no chão, se armou e retornou silenciosamente para perto daquele grande tamanduá. Mirou e atirou. O impacto acertou exatamente o olho do animal, fazendo-o se contorcer e emitir um grunhido assustador, distinto de tudo que o garoto já ouvira. Instantes depois, sua avó apareceu, lhe deu um puxão forte pelo braço e o advertiu ─ por que você fez isso com seu avô, menino?

Explorar os pormenores da atuação do Kanaimé é um trabalho complexo. Demanda bastante intimidade com os interlocutores, pois poucos são os que se sentem confortáveis ao falar desse assunto, especialmente com desconhecidos. Ainda que essa barreira inicial seja superada, o pesquisador pode se deparar com o desconhecimento dos interlocutores a respeito de tais práticas, porque eles próprios, afinal, alegam não fazer rabudismo. Outro fator a ser levado em consideração é que, caso alguém saiba detalhar com maior profundidade o assunto, pode acabar levantando suspeitas e ser malvisto por seus parentes e vizinhos.

Apesar das dificuldades em explorar o assunto, Whitehead (2001) se destacou por detalhar preciosas análises a respeito da ação do Kanaimé. No período de 1992 a 1997, ao longo de muitos trabalhos de campo entre os Macuxi e os Patamona que vivem nas montanhas de Pacaraima, na Guiana, o autor entrevistou diretamente alguns Kanaimé e também afirmou ter etnografado nove rituais de assassinato. Com base nesse material, acredito ser importante sublinhar dois pontos.

Embora o Kanaimé seja muitas vezes compreendido como um fenômeno espectral, oriundo da malevolência de outsiders e de desconhecidos, os interlocutores de Whitehead, assim como os meus, também afirmam que ele pode ser confrontado e morto. Suas qualidades, portanto, seriam híbridas. Outra consideração de relevância que o autor comenta é que o Kanaimé concebe a si mesmo como alguém que caça por comida. Entre os Taurepáng do Bananal, diz-se que as vítimas desse assassino são por ele compreendidas como “cordeirinhos a serem abatidos”.

De fato, faz parte da performance do Kanaimé o uso de uma diversidade de plantas de poder, um recurso semelhante àquele utilizado pelos caçadores. Os Taurepáng conhecem uma diversidade de plantas de poder, classificando-as em dois grandes grupos: muran e kumi. Ao que tudo indica, o uso dessas plantas pode facilitar inúmeros afazeres da vida cotidiana, mas cada planta é específica para determinada atividade. Há aquelas, por exemplo, próprias para a pescaria, enquanto que outras favorecem a caça de veado, de mutum ou de outro animal; há igualmente as que são específicas para o deslocamento de grandes distâncias sem que a pessoa sinta muito cansaço físico, para que trabalhe na roça com bastante energia ou para que aprenda um idioma com facilidade. É importante salientar que, para meus interlocutores, as propriedades mágicas que permitem essas habilidades residem nas próprias plantas, sendo passadas apenas temporariamente para a pessoa que as utiliza.

Para que seja efetiva, cada planta demanda um método diferente de aplicação no corpo, envolvendo escarificações nos tornozelos, joelhos, genitália, tórax, axilas, pescoço, língua, testa, nuca ou nas têmporas. Após o escorrimento do sangue, a muran ou kumi deve ser esfregada apenas no local escarificado. Resguardos sexuais e alimentares também fazem parte do processo. Outra medida utilizada é jamais deixar as plantas de poder cultivadas passarem fome, pois devem ser regularmente alimentadas ─ até mesmo com sobras das refeições. Como o Kanaimé utiliza plantas de poder específicas para caçar pessoas, a alimentação de suas muran e kumi também envolve o sangue das vítimas que abate. Mas, uma vez que tenham experimentado essa substância, elas vão querê-la com frequência, e caso o Kanaimé não as sacie, ele próprio pode acabar sendo morto pelas muran e kumi que cultiva. Assim, o mais provável é que o Kanaimé se torne “escravo” de suas plantas de poder ( Levy, 2003: 2).

Pelo que registrei, o rabudo normalmente opta por plantas que fazem sua alma sair do corpo e viajar por grandes distâncias a fim de assustar suas vítimas. Eles também têm um gosto particular por plantas que possibilitam sua alma sair do corpo e “se alojar” no corpo de determinados animais, como o cachorro, pois essa é a melhor forma de rondar a casa das vítimas sem se expor. Thomas, por sua vez, relata um caso de picada de cobra onde a vítima não conseguiu se curar e faleceu, pois a cobra em questão era a própria manifestação do Kanaimé ( Thomas, 1982: 140).

Para Whitehead (2001), o ataque do Kanaimé envolve um método específico de mutilação e assassinato amplamente difundido na região circum-Roraima. Por apresentar bastante semelhança com o que me disseram os Taurepáng, reproduzo a seguir as etapas de um ataque kanaimé descritas pelo autor.

Na grande maioria das vezes, o ataque se dá quando a vítima está sozinha, de costas, seja nas proximidades de sua roça ou residência. Com uma forte pancada na parte de trás da cabeça, na nuca, ela desmaia. A partir de então, o Kanaimé mutila seu corpo em diversos lugares.

Para assegurar que, quando acordar, a pessoa desmaiada não fale sobre o ocorrido, sua língua é perfurada com dentes de cobra, procedimento que também lhe prejudica a capacidade de alimentação. Em seguida, o Kanaimé vira o corpo de sua vítima de barriga para baixo e lhe enfia um rabo de iguana, ou de tatu, no ânus. Através de sucessivas fricções, o agressor busca lesionar o reto da vítima. Virada novamente de barriga para cima, o estômago é pressionado sistematicamente para fazer com que o esfíncter seja parcialmente expelido, então o Kanaimé opera pequenas fissuras no local, a fim de prejudicar definitivamente a capacidade de defecar de sua presa ( Whitehead, 2001).

Após esses procedimentos, o Kanaimé utiliza um objeto semelhante a um fino graveto para alargar o canal do ânus da pessoa. Com ele alargado, enfia uma puçanga ─ preparado de ervas e plantas mágicas ─ no interior do corpo. Por meio dessa técnica, o Kanaimé envenena a vítima por dentro, de forma que o odor dessa puçanga, segundo os Taurepáng, é parecido com o do abacaxi. Ao mesmo tempo que esse aroma confirma uma agressão impossível de ser revertida, uma vez que, concluído o procedimento, nem mesmo os xamãs mais habilidosos conseguirão neutralizá-lo, também anuncia um evento próximo: a possibilidade de a sepultura da vítima ser remexida por seu assassino.

Ou seja, o interesse do Kanaimé por sua vítima não termina após o ataque e a mutilação de seu corpo, que provocará sua morte inevitável em poucos dias. De acordo com Whitehead, um corpo abatido dessa forma poderá ser ofertado enquanto dádiva à entidade que permitiu ao Kanaimé o sucesso em sua caçada. Assim, para realizar essa oferenda, o Kanaimé precisa permanecer rondando a residência de sua vítima agonizante a fim de descobrir o local em que será sepultada. Após três dias do óbito, quando o cadáver já se encontra em estado de putrefação, o Kanaimé revira a sepultura, desenterra parte do defunto e se alimenta do sangue putrefato do cadáver.

Whitehead afirma que em língua patamoná esse líquido é chamado de maba, e que o Kanaimé o saboreia da mesma forma que alguém saborearia o mel de uma colmeia. Para o autor, a ingestão desse líquido putrefato causaria no Kanaimé uma espécie de “efeito psicotrópico”, acalmando sua fome de morte, de modo que, após saciado, o agressor voltaria temporariamente a ter “uma vida normal”. Os Taurepáng do Bananal, por outro lado, dizem que o líquido putrefato dos cadáveres são o caxiri do Kanaimé, sendo esse o motivo dele esperar três dias para bebê-lo, que é quando o caxiri já se encontra fermentado. Apesar desse contraponto, a compreensão de Whitehead se aproxima da passagem de Levy acima mencionada, a respeito da necessidade de se satisfazer as plantas de poder quando alimentadas com sangue.

Os Taurepáng também dizem que nos primeiros dias após o óbito de uma vítima de Kanaimé, seu agressor se encontra “vulnerável”, pois provavelmente buscará acessar sorrateiramente a sepultura da pessoa que matou. Assim, não raro os parentes da vítima montam uma vigília no local da sepultura, e caso apanhem o Kanaimé, o cercam e o matam a golpes de terçado. Não obstante, registrei de um morador do Bananal que os brancos não são os principais alvos do Kanaimé, pois os corpos destes “apodrecem de um jeito diferente”, como disse, “fruto de comida industrializada”.

Ouvi algo semelhante em outra ocasião, mas a respeito dos Amayikó, seres que os Taurepáng compreendem como “mães da selva” e “donos dos minérios”. Os Amayikó fazem das profundezas da floresta sua morada, e são reconhecidos como os habitantes mais antigos da mata, anteriores aos próprios Taurepáng e qualquer outro povo. Os Amayikó são um dos inúmeros seres responsáveis por “roubar” a alma dos Taurepáng, fazendo as pessoas adoecerem e morrer. Todavia, assim como o Kanaimé não se interessa muito por matar os brancos, os Amayikó também não roubam as almas dos não-indígenas.

Além de “donos dos minérios”, os Taurepáng concebem esses seres como os “donos das onças”, de forma que caso um caçador mate alguma onça, os Amayikó se vingam e o perseguem até matá-lo ( Koch-Grünberg, 2006). Em língua taurepáng, onça é chamada de kaikusé, e em sua análise sobre os detalhes de um ataque de Kanaimé, Whitehead (2001) afirma que esse assassino oferece o corpo de suas presas enquanto dádiva a Kaikuse-yumu, entidade que o autor classifica como “ the Lord Jaguar himself”. Porém, para os Taurepáng do Bananal, os “pais” ou “donos” das onças são os Amayikó, assim, possuiria a onça mais de um “dono”? Outro incômodo que me causa a afirmação do autor a respeito do Kanaimé oferecer suas vítimas enquanto dádiva a Kaikuse-yumu é que meus interlocutores também afirmam que o Kanaimé pode tanto se vestir com couro de onça, como de tamanduá, bem como qualquer outro animal que “proteja” sua identidade. Caso o Kanaimé se vista com couro de tamanduá, ele também ofereceria sua presa à Kaikuse-yumu?

Enquanto Whitehead (2001) descreve os detalhes do ataque de Kanaimé, Butt Colson (2001) comenta algumas medidas que os Akawaio empregam para lidar com essa ameaça tão latente em seu cotidiano. Bem da verdade, a autora afirma que não há muito a ser feito além de evitar andar sozinho, especialmente nos deslocamentos para a roça, manter as portas das casas fechadas durante a noite e o fogo doméstico sempre aceso. Outra medida preventiva dos Akawaio reside nos cachorros, uma vez que eles são os primeiros a denunciar a presença de alguém que se aproxima. Contudo, tais medidas são apenas parcialmente preventivas, como diz a autora, pois “ no one can render this secret killer permanently inactive and most people eventually become his victims” ( Butt Colson, 2001).

Representação em tela do 
						Kanaimé.
Figura 1
Representação em tela do Kanaimé.
Note-se o couro de tamanduá sobreposto ao de onça. Fonte: Jaider Esbell, artista macuxi.

Conversando sobre o assunto com Lázaro, morador antigo da comunidade do Bananal, ouvi a história de seu amigo Luís, um “irmão na fé adventista”, como dizem os Taurepáng. Em dado momento, Luís foi residir entre os Macuxi que vivem na Guiana, e, de acordo com Lázaro, voltou “diferente”, com um comportamento estranho. Se antes era alegre e de riso fácil, se transformou em uma pessoa carrancuda que prefere o isolamento, e se antes, quando visitava o Bananal, estendia sua rede na casa de um de seus amigos, passou a preferir dormir sozinho ao pé da mangueira. Desconfiado, Lázaro então questionou Luís sobre o que havia acontecido. Foi quando este lhe revelou que, na Guiana, conviveu com pessoas que fazem “ rabudismo”, e acabou tendo contato com algumas práticas de Kanaimé.

Apesar de não ter conhecido Luís pessoalmente, as informações que relatou a Lázaro, e este a mim, contribuem para a melhor compreensão do fenômeno em questão. Segundo Luís, os Kanaimé que conheceu cultivam uma variedade de plantas de poder em locais específicos na floresta, pois quando precisam de alguma, vão à roça e colhem. Dentre as plantas que cultivam, há aquela que possibilita à alma do Kanaimé “entrar” no corpo de um animal, pois assim ele ronda as proximidades da casa de sua futura vítima sem se revelar. Caso, por exemplo, a alma do Kanaimé “entre” em um cachorro, os Taurepáng afirmam que o animal fica com os olhos vermelhos e um comportamento invariavelmente hostil. Há também a possibilidade da alma do Kanaimé “entrar” em uma cobra, que ficará à espreita da melhor oportunidade para picar sua vítima ( Thomas, 1982: 140).

Os cachorros pequenos são os alvos preferenciais do Kanaimé iniciante, e se diz no Bananal que quando os cachorros de uma aldeia repentinamente começam a desaparecer, é sinal de que há Kanaimé por perto. Quando o aprendiz se sente confiante, muda seu alvo para pessoas, normalmente escolhendo crianças e idosos. Lázaro contou que quando era pequeno, certa vez um Kanaimé invadiu sua casa enquanto todos dormiam, e ele quase levou seu pai, Bento, embora:

Lázaro (27/05/2018): Aí aconteceu com meu pai, uma vez que ele tava dormindo em casa. Então dormia todo mundo junto, muita rede junto né. Aí uma noite esse tal de rabudo entrou. Meu pai tava dormindo junto com minha mãe na mesma rede. Um dia rabudo entrou e fez o pessoal dormir. Aí esse rabudo entrou, colocou a mão por de baixo do meu pai, na rede, e pegou ele como criança sem minha mãe acordar nem nada. Ela nem sentiu meu pai indo embora. Aí pegou e já foi indo, quando tava passando por baixo da rede das pessoas, ninguém nem acordava. Mas quando já tava perto da porta, quando ele foi já passando da porta, aí meu pai acordou. Então segurou na porta, aí rabudo puxou ele querendo levar e papai também puxando rabudo pra ficar. E ninguém acordou! Aí rabudo soltou meu pai e saiu correndo, então papai começou a chamar pessoal e foi correndo atrás. Na hora que meu pai foi atrás dele que minha mãe acordou, mas ninguém achou ele não, bicho se enfiou na mata, sumiu. Nesse dia quase que papai morre, ficou doente no mesmo dia. Deu febre nele. Aí fizeram chá e ele melhorou. Meu pai ficou todo roxo, marca do rabudo no pescoço, no braço, garganta, mas nunca conseguiram pegar papai. Ele orava né? Orava bastante.

O relato de Lázaro revela ao menos três elementos importantes para a análise da atuação do Kanaimé. O primeiro diz respeito ao repertório mágico desses assassinos, a saber, sua notável habilidade para encantar a vítimas e fazê-las adormecer ─ “ um dia rabudo entrou e fez o pessoal dormir”. A esse domínio de conhecimento os Taurepáng dão o nome de tarén, encantações que “estragam” objetos e pessoas. Na literatura, tarén é compreendido como “invocação mágica” ( Armellada, 1972), “ verbal spells” (Thomas, 1984) ou como um “sistema de nominação ou invocação de nomes” ( Santilli, 1995). Grosso modo, traduzir tarén por “feitiçaria” não seria incorreto, mas em língua portuguesa os Taurepáng optam pelo termo “reza”. Entre os Wapichana, objetos e pessoas também são estragados pela palavra, encantações que, em seu idioma, eles chamam de pori, e de “oração” ou “remédio”, em português ( Farage, 1997: 227; ver também Farage, 2002).

Em linhas gerais, o conhecimento das encantações tarén pode ser utilizado tanto para trazer benefícios como para fazer malefícios. Como dizem os Taurepáng, quem sabe fazer tarén para curar também sabe fazer para estragar, e por ser uma prática realizada aos sussurros e em lugares reservados, a intenção do protagonista nunca está isenta de suspeitas. Apesar dessa ambiguidade, a maioria dos pais de criança pequena conhece alguns poucos tarén, pois funcionam como espécie de tratamento doméstico contra mazelas infantis, tais quais diarreia, dor de estômago, indigestão e “sustos”. Já as pessoas que conhecem um grande repertório de encantações tarén são chamadas de Tarén Esak, os “donos do tarén” (Thomas, 1984: 139-142; Levy, 2003: 41-42, Amaral, 2019: 309).

A atuação do Kanaimé, portanto, está intimamente relacionada à capacidade de desacordar suas vítimas com o auxílio das encantações tarén. Uma vez inconscientes, seus corpos ficam vulneráveis à mutilação e ao envenenamento.

O segundo elemento que o relato de Lázaro contém é a ênfase nas marcas que o Kanaimé deixa no corpo da vítima ─ “ meu pai ficou todo roxo, marca do rabudo no pescoço, no braço, garganta”. No limite, apesar de o Kanaimé ser “razão última para a morte” ( Farage, 1997: 111), a explicação de quase todo óbito, é consenso que uma prova irrefutável de morte por Kanaimé são os hematomas nas articulações e juntas do corpo da vítima, sintomas esses que também podem ser vistos na garganta, no peito e nas costas. Outra prova é que os corpos de pessoas mortas por Kanaimé apresentam uma cor escura, fazendo um contraste com os cadáveres que ficam “brancos” quando a morte é creditada a outros fenômenos, como encantações tarén ou o roubo da alma por seres sobrenaturais que vivem nas áreas adjacentes às comunidades ( Butt Colson, 2001).

Por fim, “ nesse dia quase que papai morre, ficou doente no mesmo dia. Deu febre nele. Aí fizeram chá e ele melhorou”. Bento, apesar de ter sido carregado nos braços pelo Kanaimé e com ele disputar forças, não chegou a ter seu corpo mutilado e envenenado, por isso sobreviveu, ficando apenas com hematomas e febre. Para os Taurepáng, chá de pilão é uma bebida eficaz em habilitar a vítima a falar sobre o incidente com o Kanaimé. Ao literalmente tomar a água preparada com as raspas do fundo de um pilão, dizem que a pessoa “se destrava” do “susto” causado pelo encontro com o Kanaimé e consegue verbalizar o ocorrido. Ao falar, com o passar do tempo seu estado febril se esvai, o que sugere que em um mau encontro desse tipo a saúde da pessoa “assustada” melhora apenas se conseguir falar sobre o incidente; para tal, o chá de pilão, segundo os Taurepáng, é indispensável.

Portanto, primeiramente é necessário “destravar” a pessoa “assustada”, para que fale, verbalize sobre o incidente. Em seguida, e reproduzo aqui as palavras dos Taurepáng, é necessário “fazer com que a alma assustada pare de deixar marcas por onde a pessoa passa”. Quando questionei, explicaram-me que a alma de uma pessoa “assustada” por Kanaimé deixa uma espécie de “rastro” por onde passa, de forma que é precisamente a existência desse tipo de pegada, digamos assim, que o Kanaimé irá perseguir para encontrar sua presa. Mas pode ser de anos o intervalo entre o “susto” produzido pelo encontro com um Kanaimé e a sequência de mutilações descritas acima por Whitehead ─ que só acontece quando o assassino finalmente encontra sua vítima em um local apropriado para o ataque.

Quando o Kanaimé finalmente ataca suas vítimas, derrubando-as inconscientes e manipulando seus corpos, não há mais o que fazer. Qualquer tentativa de neutralizar a caçada de um Kanaimé só é efetiva se for antes desse encontro mortal. Para neutralizar os “rastros” que a alma assustada da pessoa deixa para nortear a caçada do Kanaimé, os Taurepáng conhecem ao menos duas práticas. Uma é banhar a pessoa “assustada” com folhas de batata-roxa ou com coroas de abacaxi, e a outra é partir um cupinzeiro ao meio e fazer a pessoa “assustada” atravessá-lo, sendo que depois disso as partes do cupinzeiro devem ser unidas novamente.

Conrado (30/05/2018): Desde que o Kanaimé assuste uma pessoa, seja lá homem ou mulher, ele vai até matar né? Então precisa fazer alguma coisa para dar uma driblada neles, porque se não eles vão caçar até matar. Por exemplo, se perseguir alguém no Bonfim podem vir pegar até aqui [no Bananal], porque eles vão caçando o rastro.

Tanto o banho com folhas de batata-roxa, ou com coroas de abacaxi, como também o tratamento com o cupinzeiro, são efetivos para “driblar” o Kanaimé e fazê-lo perder o “rastro” que guia sua caçada. Com isso, o assassino precisará procurar por novas vítimas. Complementando esses tratamentos, também devemos levar em consideração outra medida protetiva que o relato de Lázaro revela, a saber, um regime intenso de orações. No trecho, “ mas nunca conseguiram pegar papai. Ele orava né? Orava bastante”, esse exercício parece adquirir grande importância.

Vale mencionar, por fim, que a comunidade do Bananal não apresenta muitas incidências desses ataques, pelo menos não os do tipo brutalmente violentos onde a morte já é certa. Mas seus moradores afirmam que em lado venezuelano esses ataques são frequentes, razão pela qual muitas pessoas já se transferiram para morar no Bananal. Com isso, chamo a atenção para a comunidade de Maurak, que fica nos vales do rio Uairén, na Venezuela. Em termos populacionais, Maurak é a maior comunidade taurepáng que se tenha notícia na história, com cerca de 2 mil moradores, e dentro de seus limites os tuxáuas da gran sabana decidiram adaptar um antigo depósito de milho e de feijão para servir de prisão para os Kanaimé capturados.

Cárcere para o “grande matador”

Independente do contexto em que se dê o ataque, os Taurepáng nunca veem a ação do Kanaimé como “legítima”, e as pessoas que matam o agressor não acabam malvistas por seus parentes e vizinhos. Como dizem, “não passa de uma boa ação” matar Kanaimé. No mês de julho de 2017, por exemplo, após ter sido identificado como Kanaimé, um homem foi assassinado com quarenta facadas enquanto bebia em um bar na Vila Raimundão I, município de Alto Alegre, Roraima. Dois anos antes, em 2015, um julgamento feito na Terra Indígena Raposa Serra do Sol inocentou duas pessoas que participaram do assassinato de outro Kanaimé 4.

Mas os parentes de um Kanaimé assassinado não se esquecem do que aconteceu, e mais cedo ou mais tarde podem buscar vingança. Se assim decidirem, a partir de então uma rixa de sangue se desenrolará entre os coletivos envolvidos: de um lado os parentes do Kanaimé assassinado, do outro os parentes da pessoa que o Kanaimé assassinou.

Seria esse tipo de espiral de vingança que as lideranças taurepáng das comunidades na savana venezuelana tentaram atenuar. Em Maurak, um grande encontro reuniu diversos tuxauas que compartilhavam o problema do crescimento das rixas de sangue em suas comunidades. Com o intuito de reduzi-las, optaram por uma estratégia inusitada: a criação de uma prisão para encarcerar os Kanaimé denunciados.

Ao adaptar um antigo depósito de milho e de feijão que se encontrava desativado, esperava-se que um local de confinamento dos acusados de ser Kanaimé fosse uma solução ante o crescimento das espirais de vingança, mas o efeito acabou não sendo como esperado. Em vez de reduzir as tensões provocadas por acusações e ataques de Kanaimé, parece que a criação da prisão as catalisou, sobretudo em meio à conjuntura do agravamento da crise venezuelana. Com efeito, os Taurepáng do Bananal são enfáticos em apontar a intensificação da exploração mineral na savana venezuelana, que prolifera com campos legais e ilegais de garimpo, como um fator de peso para o aumento de ataques de Kanaimé nos locais onde seus parentes residem. Meus interlocutores mencionam, inclusive, a existência de uma rede de assassinatos em lado venezuelano, onde matadores Kanaimé são contratados por patrões do garimpo para eliminar lideranças taurepáng contrárias à exploração mineral nas proximidades de suas comunidades.

Não obstante, como a prisão feita para Kanaimé fica em Maurak, o tuxaua dessa comunidade passou a ser fortemente pressionado e ameaçado, tanto pelas parentelas dos Kanaimé encarcerados como pelas parentelas das vítimas de Kanaimé, que preferem a morte do assassino ao seu cárcere. Temendo emboscadas ou coisa pior, o tuxaua de Maurak não possui mais residência fixa, e adotou o uso de radiotransmissores para se comunicar com parentes e apoiadores.

Sobre uma possível tradução para o termo Kanaimé, Butt Colson chama a atenção para a expressão kana-ka-nepui, presente no dicionário Pemon-Castellano de Armellada e Gutierrez (1981). Nesse caso, o significado de kana é “ cortar”, “ cessar”, “ terminar”; já o sufixo imé, variação de ima ou imü, é um superlativo, pois remete a algo “grande”, “poderoso”. Assim, conclui a autora que o nome Kanaimé, a junção de kana com imé, pode ser traduzido como o “grande exterminador” ( Butt Colson, 2001: 224).

Durante o trabalho de campo no Bananal, a maioria de meus interlocutores não soube detalhar a tradução precisa para o nome Kanaimé, mas a expressão “grande matador” me foi dita algumas vezes. Por outro lado, ao indagar um casal recém-chegado da comunidade de San Francisco de Yuruaní, que fica na savana venezuelana, ouvi pela única vez a expressão “grande exterminador”. Deste modo, seja “grande matador” ou “grande exterminador”, a conclusão de Butt Colson parece se alinhar com o que pensam os Taurepáng a respeito do Kanaimé.

Por fim, em sua excelente monografia sobre os Pemon na Venezuela, Thomas escreveu que a palavra que seus interlocutores utilizavam para designar uma pessoa atacada por Kanaimé é apichi, que o autor traduziu como “ to grasp” ( Thomas, 1982: 141). Como esse verbo significa “alcançar”, “agarrar”, “pegar”, “apertar” ou até mesmo “aferrar”, ele nos mostra sob um outro ângulo a atuação desse assassino.

Considerações finais

Em artigo intitulado Itoto (Kanaima) as Death and Anti-Structure ( Butt Colson, 2001), lemos que para os Akawaio, subgrupo Kapon vizinho dos Pemon, todo corpo vivo é habitado por uma “força vital” chamada akwalu. Para os Pemon, a autora afirma que seria ekatong. Os Taurepáng do Bananal, por sua vez, utilizam a palavra yekaton para se referir àquilo que me traduziram por alma. Segundo dizem, é a própria yekaton que o Kanaimé assusta nas pessoas e, uma vez assustada, que deixa “rastros” que guiarão a caçada do rabudo até sua vítima. Visto que os Pemon e Kapon lançam mão de diferenças dialetais como mecanismos de distinção social e geográfica entre seus diversos subgrupos, pareceme plausível que akwalu, ekatong e yekaton sejam formas particulares de expressar um fenômeno semelhante, isto é, a “força vital” que habita os seres vivos.

Quanto a essa questão, contudo, é necessário comentar que meus interlocutores insistiram em afirmar que só possuem uma única alma, a yekaton. Porém, à época de Koch-Grünberg, o autor escreveu que os Taurepáng possuíam cinco almas, de modo que todas se pareceriam com os homens, mas se comportavam como sombras. Essas cinco almas dos antigos Taurepáng seriam como as “sombras de um fogo”, onde a primeira alma é bastante escura e as demais levemente mais claras, até chegar na quarta, muito clara, e na quinta, que é a alma que fala. Essa última alma é entendida pelo autor como a “mais nobre”, e a chama justamente de yekaton ( Koch-Grünberg, 1979-1982:151-153).

David Thomas, por outro lado, escreveu que um xamã pemon lhe contou que as pessoas possuem ao menos três almas. São elas: enuto, a alma que vive no olho; kamong, a alma-sombra que deixa o corpo da pessoa após a morte para se instalar nas serras junto aos Mawarí, os espíritos que lá habitam; e tyekaton, a alma-coração ou alma-respiro. Com efeito, essa última pode ser roubada, o que faz a pessoa adoecer, bem como é tyekaton que deixa o corpo durante os momentos de sono ou estados de inconsciência ( Thomas, 1982: 142).

Diante dessa pluralidade de alternativas para a questão da alma taurepáng, é de ser perguntar o que teria levado os moradores do Bananal a subtrair, por assim dizer, seu entendimento a respeito do assunto e afirmar que só possuem uma única alma ─ yekaton. Seria uma consequência do aumento da ortodoxia da doutrina adventista no seio comunitário? De toda forma, além de “sombra”, yekaton também pode ser traduzida como “força” ou “imagem” ( Armellada; Salazar, 1981), e para uma discussão mais aprofundada sobre a noção de imagem e sua relação com a alma, duplo ou princípio vital na Amazônia indígena, remeto o leitor aos trabalhos de Carneiro de Cunha (1978), Viveiros de Castro (1986), Gow (1999), Barcelos Neto (2001) e Capiberibe (2017).

Voltando aos Akawaio, akwalu, a “força vital” que habita os seres vivos, seria composta por uma “luz radiante que vem do lugar do sol” ( Butt Colson, 2001: 223) 5, propriedade essa que a autora chama de ekwa, em língua akawaio, e de auka, em língua pemon. Para os Taurepáng do Bananal, auka possui o sentido de “algo glorioso”, “que tem luz”. Tanto que ao praticarem a religião Adventista do Sétimo Dia nessa terra, o paraíso que almejam no céu é definido como auka patá, um “lugar de glória e de luz” ao lado de Jesus Cristo ( Jeshikrai).

Ekwa, essa “luz radiante que vem do lugar do sol”, é um componente fundamental da “força vital” ( akwalu) interior aos corpos vivos, que lhes garante meruuti. Em idioma akawaio, Butt Colson afirma que meruuti pode ser traduzido como “força para viver”, algo intimamente associado à “inteligência”, “felicidade” e ao “bem-estar” das pessoas. Contudo, pequenas frações da “força vital” ( akwalu) podem ser danificadas ou removidas dos corpos vivos, subtraindo sua ekwa e provocando-lhes infelicidade, mal-estar, doenças e morte. Nessas situações, cabe ao xamã identificar a causa do problema e mobilizar as forças contrárias que podem restaurar sua saúde, isto é, fazer akwalu retornar. Segundo Butt Colson (2001), a restauração da saúde do doente consiste basicamente nesse processo de retorno de frações de sua “força vital”. Como consequência, a morte de uma pessoa ocorre quando a totalidade de sua akwalu se esvai, pois sem ela o corpo definha.

Após o Kanaimé interpelar sua vítima com um grande “susto”, parte da “força vital” ( akwalu/yekaton) da pessoa se esvai do corpo e é impedida de retornar, afinal, por meio de técnicas específicas de mutilação e com o auxílio de puçangas (preparos com plantas mágicas), o Kanaimé manipula o corpo inconsciente estendido no chão e danifica e obstrui seus orifícios: boca, ânus e narinas. Esses procedimentos impossibilitariam o retorno da “força vital” para o corpo agredido. Diante da falta de ekwa/ auka, fica sem apetite, com dificuldade de urinar e defecar, e com forte estado febril; por mais que a vítima ainda sobreviva por alguns dias, sua morte é dada como certa.

Vale notar que quando uma pessoa é “estragada” por feitiçaria ( tarén), o agressor deixa parte de sua “força vital” no corpo da vítima. Ao tratar do enfermo, o xamã consegue visualizar essa “força vital agressora”, por assim dizer, e combatê-la. Mas nos casos de ataque de Kanaimé, o xamã visualiza apenas o corpo envenenado escurecido pela ausência de sua “luz interior” ( ekwa/auka), esvaziado de sua akwalu/yekaton. Como os xamãs não conseguem desobstruir os orifícios manipulados pelo Kanaimé, não revertem os danos que foram causados à vítima. No limite, os xamãs mais habilidosos podem apenas fornecer a identidade do agressor e o local onde vive ( Butt Colson, 2001: 225).

Portanto, a especialidade do Kanaimé parece residir na capacidade de danificar o corpo de sua vítima de forma irreversível. A partir da compreensão akawaio, Butt Colson (2001) afirma que a atuação do Kanaimé pode ser entendida como a própria representação incontornável da morte. A meu ver, essa consideração também condiz com a compreensão dos Taurepáng do Bananal. Através das expressões “o grande matador” ou “o grande exterminador”, eles são enfáticos em assegurar que ninguém está completamente a salvo da ação desse assassino. Para eles, o Kanaimé é o maior responsável por separar os vivos da convivência com seus parentes, fazendo desse mundo um “lugar de morte” por excelência, um rinotok patá impróprio para se viver ( Monticelli, 2020). Algo, enfim, que os acontecimentos recentes na Venezuela só vieram a intensificar.

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Notas

1 Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos. E-mail: caio.monticelli@gmail.com
2 As terminologias de parentesco do tipo dravidiano, que são amplamente difundidas na Amazônia indígena, dividem o conjunto social das pessoas em dois conjuntos de parentes (consanguíneos e afins), distintos por gênero (homem/mulher) e por geração (-1, 0, +1). Também incorporaram a regra preferencial de casamento entre primos cruzados bilaterais, isto é, entre filhos germanos de sexo diferente ( Kopenawa; Albert, 2015: 691, nota 2). Para uma discussão mais aprofundada a respeito das particularidades do dravidianato na Amazônia, ver Viveiros de Castro (2002).
3 Sobre os mitos taurepáng que contam das relações sociais entre humanos e coletivos extra-humanos, das características dos animais e da “geografia cosmológica” de seu território, ver Koch-Grünberg (1979-1982 volume II) e Armellada (1964). Sobre a noção de “geografia cosmológica” nas narrativas de origem dos povos indígenas do rio Negro, ver Lasmar (2005) e Andrello (2012).
5Every living body contains radiant light from ‘the sun’s place’”.
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