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DOI: https://doi.org/10.20396/csr.v22i00.13420
RESUMO: O Brasil tem se tornado um dos países que mais recebem imigrantes nos últimos anos e as redes evangélicas têm sido agentes fundamentais na colaboração ao processo de imigração. Entretanto, a mediação realizada pelas igrejas junto à burocracia estatal não ocorre na perspectiva da laicidade e da universalidade, onde todos os migrantes ou refugiados de qualquer religião seriam igualmente acolhidos. Cristãos evangélicos são assim agraciados com um privilégio considerável na luta por obtenção de direitos e cidadania. Neste artigo, busco problematizar essas fronteiras entre universalismo de direitos e o particularismo de pertença ao cristianismo evangélico, com foco nas dinâmicas entre imigração e religião envolvendo a Primeira Igreja Batista de Curitiba, no bairro do Batel, a Organização Mais No Mundo e outras associações evangélicas na cidade de Curitiba, meu universo de análise.
PALAVRAS-CHAVE: Migração, evangélicos, redes.
ABSTRACT: Brazil has become one of the countries that receive most migrants in the last few years, and evangelical networks have been essential agents on helping the immigration process. However, these support actions are often given on boundaries of a religion’s perspective, where evangelical Christians would be priorized in a milestone of human rights. Mediation between church and state bureaucracy does not happen under a secularism perspective, where every migrant or refugee from any religion is sheltered. In this article, we want to problematize those borders between universalism of rights and belonging particularism to evangelical Christianity, focusing on the dynamics between migration and religion involving Primeira Igreja Batista de Curitiba, in the neighborhood of Batel, Organização Mais no Mundo and other evangelical associations in the city of Curitiba, our universe of analysis.
KEYWORDS: Migration, evangelical, networks.
Introdução
Outro dia, Marta 1 retornou. Era sua mensagem no WhatsApp numa prosa bastante “abrasileirada”, com palavras afetivas e muitos emojis. Afinal, são quatro anos no Brasil. Chegou por aqui em 2015, sendo recebida como refugiada síria pela organização evangélica Mais No Mundo - Missão em Apoio à Igreja Sofredora 2, na cidade de Curitiba. Muitos dos sírios vieram ao Brasil a partir do movimento emigratório causado pelo conflito que assola aquele país desde 2011 3. Dados divulgados em 2019 pelo ACNUR 4 (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) apontam que o número de sírios em situação de deslocamento interno ultrapassa o número de seis milhões, enquanto o número daqueles em situação de imigração 5 ou refúgio 6 internacional chega à casa de cinco milhões.
Segundo o relatório “Refúgio no Brasil: caracterização dos perfis sociodemográficos dos refugiados” divulgado pelo IPEA, de 2014 a 2017 o aumento de refugiados sírios no país se deve, em grande parte, à medida tomada pelo governo brasileiro em 2013, que implementou a possibilidade de imigração para a população síria através do visto humanitário. Essa medida, que permite uma imigração com menos trâmites burocráticos, tornou o Brasil um dos grandes destinos para esses imigrantes. Outros fatores, como o investimento econômico em países com outra moeda que não seja o euro ou o dólar, e a possibilidade de emprego formal 7, estão entre os motivos que podem conduzir estrangeiros à trajetória de migração para o Brasil.
Neste artigo, busco considerar o papel desenvolvido pela religião cristã e suas estratégias de oferta de acolhimento e condições de cidadania diante dos desafios da jornada migratória. As reflexões têm por base levantamentos etnográficos entre 2018 e 2020 realizados na cidade de Curitiba, campo de observação de minha pesquisa sobre a atuação do megatemplo 8 Primeira Igreja Batista do Batel (PIB Curitiba) e seus aliados -associações e ONGs- considerando a conduta desses agentes na realização de jornadas junto aos migrantes de diferentes origens. No corpo do texto realço, enquanto recurso metodológico, algumas narrativas da personagem migrante Marta -interlocutora síria em Curitiba- para trazer uma aproximação e compreensão dessa realidade que descrevo. Destaco a atuação das redes de cristianismo evangélico enquanto agentes fundamentais na colaboração ao processo de imigração, favorecendo a inclusão social e profissional de imigrantes homens e mulheres e colaborando grandemente para que estes estabeleçam laços com a nova sociedade em que tentam se inserir, “confiantes em suas próprias identidades, engajando-se como cidadãos/ãs na nova comunidade” ( Barbosa e Bernardo, 2017). Entretanto, problematizo que tais ações de apoio se dão frequentemente nos limites de uma perspectiva da religião, onde os cristãos evangélicos seriam priorizados em um marco de direitos humanos. A mediação entre igreja e a burocracia estatal não ocorre numa perspectiva da laicidade, onde todos os migrantes ou refugiados de quaisquer religiões são acolhidos. Discuto, portanto, a respeito dessas fronteiras entre universalismo de direitos e o particularismo de pertença à religião.
A religiosidade como recurso simbólico no contexto de migração
De janeiro a junho de 2019, o Centro de Informação para Migrantes, Refugiados e Apátridas, órgão vinculado à Secretaria da Justiça, Família e Trabalho do Governo do Paraná, registrou mais de 1,2 mil atendimentos para mais de 30 nacionalidades, entre sírios, haitianos, venezuelanos, cubanos e marroquinos. Curitiba está entre as cinco principais cidades que mais recebe trabalhadores migrantes no país, segundo levantamento do IPARDES (Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social), com base nas informações socioeconômicas do Ministério do Trabalho. São cerca de 15.000 pessoas com carteira assinada na cidade. O adensamento industrial, com a implantação de novas unidades de multinacionais e novas empresas do setor de serviços tem fomentado o trânsito de estrangeiros para a metrópole curitibana.
Na dinâmica da imigração as religiões são instâncias que também possuem um papel muito forte, já que o ato de migrar de um país para outro se torna um empreendimento custoso - tanto do ponto de vista econômico quanto psicológico. O migrante sempre precisará de uma rede que o sustente, e os evangélicos têm adquirido papel importante nesse processo - seja para pessoas que já tinham alguma ligação religiosa desde no seu país de origem ou para aquelas que aderem ao cristianismo evangélico no Brasil. A lógica da “teologia da prosperidade”, sedutora aos olhos de quem busca vencer em outro país, se encaixa convenientemente nessa dinâmica. As redes evangélicas compostas por igrejas, organizações e lideranças pastorais são agentes fundamentais no financiamento desse processo.
Uma das referências na literatura sobre essa perspectiva é Hagan e Ebaugh (2003), em estudo realizado junto aos maias guatemaltecos pentecostais que migraram para a cidade de Houston. As autoras afirmam que a dimensão religiosa para esses migrantes tem um papel fundamental em seis estágios do projeto migratório: na decisão de migrar, na preparação da viagem, na travessia, no ingresso na terra de chegada, no processo de integração e no estabelecimento de relações transnacionais. Para estas autoras, muitos aspectos sobre a decisão de migrar dependem de conselhos e premonições do pastor. E mesmo após a tomada de decisão, a liderança tem influência sobre os fluxos e contrafluxos transcorridos na viagem. Em outros termos, a “anuência e a proteção do sagrado são condições sine qua non do começo da travessia” ( Hagan e Ebaugh, 2003: 145).
A proteção do sagrado se concretiza também no apoio e refúgio oferecidos pelas próprias comunidades religiosas na terra de chegada. Mariz (2009: 175) afirma que o apoio evangélico, “além de legitimar e motivar um deslocamento duradouro, ajuda o indivíduo a obter apoio material de alguma igreja ou comunidade”. Muitas vezes, o migrante com cosmovisão religiosa é levado a buscar e frequentar lugares de culto, celebrações ou outras atividades promovidas por alguma denominação. Desta maneira, a pessoa é inserida numa comunidade que, com frequência, exerce um importante papel de amparo. A proteção de Deus, nesta ótica, não se dá apenas pela consulta da vontade divina, mas também pelo suporte da comunidade dos fiéis. Nas comunidades religiosas os migrantes podem reviver aquelas relações primárias, típicas do contexto familiar, recebendo conforto espiritual e, inclusive, social e material.
Marta - minha interlocutora síria em Curitiba - gosta, por exemplo, de compartilhar com frequência mensagens cristãs no WhatsApp, e também de testemunhar o quanto os evangélicos continuam sendo uma importante rede de apoio para sua permanência no Brasil. Ela chegou ao país em 2014, e relata que desde o início do conflito armado na Síria sua situação econômica e de sua família complicou-se gravemente. Como os pais de Marta faleceram, ela havia se tornado a principal colaboradora para o sustento de seus dois irmãos e sobrinhos. Para ela, não havia outra escolha a não ser emigrar para outro país.
Marta tem quase 60 anos, é solteira e sem filhos, formada em Literatura Inglesa pela Universidade de Damasco, com vasta experiência no campo da educação em escolas públicas e privadas. Sempre conciliou a formação em línguas com sua atividade enquanto educadora e professora nos setores evangélicos, tanto na Síria quanto nos Emirados Árabes. A rede evangélica promovia-lhe o acolhimento em todas as arenas deste “horizonte cívico”. Ela se orgulha em dizer: “Nunca precisei procurar ajuda em outro lugar. Eles me ajudaram em tudo”. Este “tudo” denota uma carga semântica que envolve desde questões sobre cidadania até amparo financeiro, hospitalar e de moradia, bem como apoio emocional/afetivo. Um pastor sírio fez a ponte para que a Organização Mais no Mundo recebesse famílias refugiadas dos conflitos armados, orientando essas famílias nos trâmites institucionais junto à embaixada brasileira no Líbano para obter o visto. Marta chegou no país com a certeza de que teria a empregabilidade como professora de línguas e tradutora de pastores e líderes em eventos ministeriais, o que favoreceu sua estadia no país. Assim, em cerca de um ano ela conseguiu documentos e moradia, bem como trazer os demais familiares que haviam ficado na Síria.
O percurso de Marta é um exemplo que revela a importante simbiose entre a malha institucional evangélica e a concepção de participação e vínculo dos/as imigrantes nessa comunidade religiosa e política. Os evangélicos valorizam um leque amplo de possibilidades de cidadania que vai muito além do âmbito religioso. Ação social, educação, música, esportes, artes, cuidados com a saúde, amparo a deficientes físicos, financiamento ao aluguel e à casa própria, bem-estar nos relacionamentos - tudo isso está dentro de um guarda-chuva mais amplo que engloba o que seja a prosperidade e dignidade política dentro da teologia cristã. Destaca-se ainda a importância dada pelas igrejas em promover o encontro para que as pessoas se conheçam, vençam a solidão, criem grupos. O objetivo dessas programações e formatos de ação política é multiplicar as formas de atendimento e as chances de encontro, oferecendo novas possibilidades de coesão social. Busca-se valorizar uma organicidade da comunidade, na qual cada um participa da unidade espacial, religiosa e cultural.
Outro caminho de ação política passa pela conscientização dos migrantes em relação a seus direitos fundamentais, onde a religiosidade do imigrante pode ser um caminho de retradução da própria dignidade caso seja fonte de conscientização em relação aos mecanismos que geram injustiças e exploração ( Maduro, 2009). No caso do cristianismo evangélico em Curitiba, o protagonismo de ações políticas no contexto é conferido às instituições Primeira Igreja Batista do Batel (PIB Curitiba), Organização Mais no Mundo e ABASC - Associação Batista de Ação Social (órgão que pertence à PIB Curitiba). Essas entidades desenvolvem atividades de advocacy, orientação sobre direitos e deveres e atividades de organização popular.
No campo jurídico, outras organizações evangélicas - como a Junta de Missões Nacionais (JMN) - realizam todo o acompanhamento legal para que seja possível regularizar o status migratório, distribuição de informações sobre o acesso à justiça gratuita, regularização documental, tipos de vistos, autorização de residência e solicitação de refúgio. Exemplos dessas ações são os projetos Povos Imigrantes9 da Junta de Missões Nacionais, o Programa Refugiados10 e o projeto Microcrédito e Empreendedorismo11, estes últimos promovidos Organização Mais No Mundo. Na assistência social, são prestados atendimentos com a interlocução entre órgãos públicos como Centros de Referência e Centros Especializados de Assistência Social (CRAS e CREAS); com entidades da sociedade civil referente a casos de acolhimento e recepção de migrantes, encaminhamentos para a realização do Cadastro Único -CadÚnico- para verificação de benefícios eventuais e a intermediação de acolhimento institucional.
Essas ações podem ser entendidas como estratégias políticas de inclusão dos fiéis a um determinado exercício de “civismo”. O conceito também alimenta a noção de “comunitarismo”: práticas que atendem “ao apelo das virtudes cívicas, às metas comuns e à responsabilidade coletiva” ( Reis, 1998: 40). Essa função de mediação das igrejas junto a instituições publicas se insere num conjunto de atos concebidos como responsabilidade social. Líderes e fiéis das igrejas tratam de participar dos arranjos da produção e da circulação de práticas de bem-estar social e de fortalecimento do comum. Todavia, esta vivência “comum” parte da ideia de que há um público delimitável -os imigrantes evangélicos e suas redes de assistência social- a quem se confere o reconhecimento de serem, estes, os “sujeitos de direitos”.
Integração social e singularidades religiosas
Um ponto crucial na trajetória do/a imigrante é o momento da incorporação na sociedade de chegada. É quando os sonhos, as expectativas -não raramente idílicas- esbarram com a complexidade, as dificuldades e os sofrimentos da realidade. É também o momento da negociação identitária, em que o/a migrante é chamado a reconfigurar seus costumes e práticas culturais. Neste contexto, a religiosidade representa um recurso simbólico para enfrentar o desafio da inserção na terra de chegada. Todavia este campo, na realidade, é um pouco controvertido, carregado de ambiguidades e potencialidades distintas.
Para entendermos é importante retomar o significado de laicidade, cujo princípio político permite separar o domínio público (ou civil) do domínio das religiões: pela laicidade vislumbra-se, igualmente, o exercício das liberdades individuais -de pensamento, de consciência, de convicção- e a coexistência das diferenças - biológicas, sociais, culturais ( Outhwaite e Bottomore, 1996). A laicidade tem sua legitimidade em todo o povo, ou seja, na soberania popular, sendo, portanto, imparcial em matéria de religião. O acesso aos direitos fundamentais também deve ser considerado sob a perspectiva da laicidade. Ele se aplica a todos, e isto não pode ser diferente com imigrantes, refugiados e solicitantes de refúgio, uma vez que ter acesso a regularizações de documentos, moradia e emprego ao indivíduo migrante abre portas para uma série de outros direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Esses direitos são consagrados na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu Protocolo de 1971, que foram ratificados por 147 Estados, dentre estes, o Brasil. A Convenção explicitamente cria obrigações aos países signatários para que permitam aos refugiados e solicitantes de refúgios, por exemplo, o trabalho legal e a vivência segura no país receptor.
Em média, refugiados irão passar 20 anos fora de seus países de origem ( ACNUR/CARITAS/MPT, 2016). Migrantes e refugiados têm o potencial de desempenhar um papel importante no desenvolvimento de seus países de acolhida. Eles se envolvem em mercados locais e contribuem com a expansão de mercados já existentes, criam novos e são parte relevante no fortalecimento do comércio doméstico e transfronteiriço. A resposta tradicional a essa questão tem sido majoritariamente de cunho humanitário e, a despeito do grande valor na proteção física do refugiado e solicitante de refúgio, a ajuda humanitária não consegue, sozinha, possibilitar uma continuidade integral de vida ao imigrante e ao refugiado. A cidadania, para Mezzadra (2005), invoca um ordenamento específico à identidade e à participação em direitos e deveres, para garantir o funcionamento da “qualidade da vida pública”. Neste sentido, é reconhecido que os evangélicos e suas redes são agentes capazes promover esta continuidade integral de vida para os que vêm de fora. Contudo, o protagonismo dos crentes pode ser problematizado se olharmos para as necessidades, interesses e desejos entrecruzados que tecem a rede de apoio à migração no seio cristão evangélico. Michel-Rolph Trouillot (2006) defende que a construção analítica do Estado não está restrita apenas ao aparelho estatal. Para ele, o poder do Estado “não tem fixação institucional em bases teóricas ou históricas”; neste sentido, seus efeitos -isto é, seus processos e práticas- “nunca são obtidos apenas através de instituições nacionais ou em locais governamentais” ( Trouillot, 2006: 126). Os “efeitos de Estado” -a igreja atuando enquanto mediador 12 da burocracia estatal- se dão frequentemente nos limites de uma perspectiva evangélica, e não numa perspectiva da laicidade, onde todos/as migrantes e/ou refugiados de quaisquer religiões são acolhidos. Uma vez que a garantia de cidadania ocorre dentro de certos limites, abre-se uma perspectiva de investigação interessante sobre a relação entre “universalismo de direitos” e “particularismo de pertença” ( Mezzadra, 2005: 95). Um debate confrontante à declaração da Convenção das Nações Unidas de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados, que dispõe que sejam aplicadas a proteção aos refugiados “sem discriminação quanto à raça, à religião ou ao país de origem” (ACNUR, 1954).
Pertencimento, afetos e direitos: transversalidades
Quando penso atualmente na relação indivíduo-sociedade e no problema do acesso a direitos, nos vemos sempre às voltas com uma tensão entre dois polos: igualdade abstrata versus identidades particulares 13, universalismo versus comunitarismo 14. A gramática política atual parece reduzida à polarização entre optar pelo pertencimento identitário -particularismo- ou pela constituição de processos de individuação refratários a qualquer pertença ( Assy, 2019; 2012) - universalismo. Mas o que se observa no enredo das gramáticas de direitos humanos é uma gama de possibilidades de novas articulações do sujeito político para além do sujeito do multiculturalismo identitário ou do sujeito abstrato dos direitos humanos ( Assy, 2019).
Veremos, nos exemplos que seguem, como os evangélicos exploram noções como performatividade, afetividade e cidadania partilhada enquanto chaves para a construção de uma gramática dos processos de subjetivação política, de modo a desenvolver os repertórios de pensamento e da ação política sob uma perspectiva de pertença religiosa afetiva - que se traduz no desenvolvimento de relações. Importa salientar que, para Lefort (1991), a condição de direitos não é natural, e sim produzida - de acordo com determinados interesses e agendas históricas, sendo tais concepções reelaboradas ao longo dos tempos. Neste sentido, não se pode perder do horizonte que, no Brasil, diferentemente das formações históricas tipicamente individualistas, a condição de direitos não estaria “preliminarmente” fundada nos indivíduos-cidadãos, mas em relações ( Da Matta, 1979). No Brasil, “o indivíduo isolado é negativo, pois a relação é o elemento central do sistema” ( Vaitsman, 2002: 39). Compõem instrumentos conscientes e positivamente valorizados de estratégia social, pois aí convivem éticas diferenciadas, existindo códigos específicos para cada esfera de atuação. Neste sentido, o dilema entre universalismo/particularismo seria estruturante de nossas cultura e instituições, perpassando práticas e expressando-se nas representações sociais ( Vaitsman, 2002: 39). Formaria, igualmente, um dos substratos de nossa cultura política, permitindo explicar muitos dos padrões de relações entre Estado e sociedade em diferentes níveis. A forma como se construiu nossa cidadania política explicaria, também, certos comportamentos do nosso cotidiano usados tanto para se conseguir acesso a direitos que na letra da lei são universais.
Procurando identificar certas condições para a ação coletiva diante do padrão de desigualdade na sociedade brasileira, Reis (1998; 2000) argumenta que a formação de um sentimento de pertencimento foi crucial para a possibilidade de uma ação coletiva no plano político brasileiro, permitindo muitas vezes ultrapassar as fronteiras do particularismo em direção ao universalismo. A construção do cidadão moderno brasileiro implicou “um tipo de orientação cognitiva, valorativa e afetiva, um substrato simbólico” ( Vaitsman, 2002: 41), permitindo estabelecer uma base comum de igualdade entre as pessoas, de forma a que estas passassem a se reconhecer como parte de uma mesma sociedade. Nesse campo os evangélicos no Brasil, dotados de um amplo sentimento corporativo - funcionamento de um corpo de “iguais” ( Stevens, 2008) - têm sido protagonistas de novo modelo de responsabilidade mútua, autoridade estruturada e participação na vida de imigrantes e refugiados, no qual a igreja tem adotado performances que a caracterizam como um “negócio corporativo”.
Tendo em vista que o cristianismo fornece uma gramática de reconhecimento para as pessoas estrangeiras evangélicas que solicitam integrar-se às estruturas sociais do país receptor, a constituição de práticas que legitimam esse fazer cristão pode criar um lugar diferenciado e mais ativo aos migrantes. Isto significa que, conforme apontam as observações de campo na pesquisa, o privilégio à integração e à inserção social será dado ao migrante já evangélico, ao migrante recém-convertido ou àquele que pretende se engajar em “compromissos” com as organizações evangélicas supracitadas - especialmente o templo da PIB Curitiba. Homens e mulheres imigrantes e refugiados são completamente atraídos a se tornarem membros e/ou participantes ativos do megatemplo curitibano. As atividades que evangélicos empreendem para ajudar homens e mulheres nas situações cotidianas da dinâmica migratória constituem-se em novas “tecnologias de governo” dos homens ( Mbembe, 2016: 137) - se inserem nesses processos como um conjunto de atos através dos quais tratam de fomentar os arranjos da produção e da circulação de práticas de bem-estar social e de fortalecimento do comum, muitas vezes delimitado pelo particularismo de pertença à religião evangélica.
Um exemplo desta ação que parte da ideia de tecnologias a um público delimitável -os evangélicos imigrantes e refugiados- estaria na proposta do curso do Centro de Formação Ministerial -CFM Idiomas, promovido pela PIB Curitiba-. O CFM Idiomas é um projeto que promove o ensino de idiomas -português, inglês e francês- como parte integrante do migrante à cultura brasileira, ao mercado de trabalho qualificado e à escolarização superior (PIB CURITIBA, 2020) 15. Todavia, o curso não está isento de práticas religiosas em sua grade curricular. A proposta mescla o ensino de idiomas para imigrantes com práticas devocionais e oração com os alunos, além de realizar eventos religiosos - cultos ou passeios- em inglês e francês (alguns em árabe) e difundir atividades de capacitação ministerial e formação de lideranças de grupos.
Na observação das dinâmicas do megatemplo PIB Curitiba e das atividades de associações parceiras foi percebido que a opção religiosa -ser cristão ou tornar-se cristão- revelou-se especialmente importante para os imigrantes, uma vez ressaltado o crucial papel das redes criadas por essas instituições religiosas em seus projetos migratórios e percursos no Brasil. Apesar da possibilidade de se enfatizar a existência de um regime internacional relativo aos refugiados e de uma série de declarações voltadas à proteção dos migrantes forçados, verifica-se que, na prática, a acolhida e proteção dessas pessoas nem sempre está assegurada ( Thomaz, 2013), especialmente para nacionalidades como a haitiana, em que o movimento migratório se dá de maneira frequente devido às precárias condições de existência naquele país. Interlocutores haitianos como François 16 -contador, 37 anos, casado, Frantzdy 17- universitário, 35 anos, solteiro, e Janvier 18 -auxiliar de operações, 30 anos, casado- citaram as redes da PIB Curitiba como agentes extremamente eficazes na solução dos dois principais problemas enfrentados por qualquer imigrante: o acolhimento (acompanhado da hospedagem e da solidariedade) e a obtenção de emprego. A Primeira Igreja Batista de Curitiba, inclusive, tem se tornado o primeiro local de trabalho para muitos imigrantes, posto que ela possui funcionamento diário e abrange, em sua estrutura, diferentes departamentos. A ABASC -ONG da PIB Curitiba- semanalmente cadastra imigrantes e refugiados que desejam receber moradia ou apoio financeiro para aluguel social. De acordo com a diretora da ONG, Sra. Zimermann, há uma triagem com base em avaliação socioeconômica para demandar a distribuição dos recursos materiais de aluguel social e doação de móveis. Contudo, a continuidade ou prolongamento dessa doação dependerá “do estreitamento dos laços e do compromisso do imigrante com a obra do Senhor. Se ele não quiser se envolver, a gente passa a vez e dá a oportunidade pra outras pessoas” (Entrevista de campo, maio de 2018).
O slogan da Organização Mais No Mundo -“acolhimento, restabelecimento e desenvolvimento de cristãos em situação de refúgio” 19- também apresenta essa concepção de uma governamentalidade na migração em contextos evangélicos - entendida aqui como capacidade inventiva de formular modos de condução da conduta, capazes de responder ao sofrimento e às circunstâncias ( Mbembe, 2012). Certamente, a interseção entre religião, universalismo e particularismo no cenário da migração não constitui especificidade brasileira, mas suas configurações específicas, enquanto constitutivas do tecido social e simbólico, delimitam os contextos dentro dos quais se dão a ação coletiva e as práticas sociais. Nesta perspectiva considera-se de grande importância um aprofundamento da relação entre religião e mobilidade 20 humana, não apenas como agentes humanitários, mas especialmente como atores estratégicos no intuito de “preservar” ou “transformar a fé” dos imigrantes, compreendendo mais corretamente o papel da religiosidade no contexto determinante das dinâmicas migratórias atuais.
Conclusão
Neste trabalho destaquei como a religiosidade pode constituir um recurso simbólico que os migrantes utilizam a fim de responder a desafios biográficos em busca de proteção, sentido, dignidade e integração na sociedade de acolhida. Sob esta ótica, é determinante analisar as dinâmicas migratórias contemporâneas levando em conta o viés religioso incluído nessas operações.
No Brasil, a cidade de Curitiba -nosso campo de análise- tem se tornado uma das metrópoles que mais recebe migrantes nos últimos anos, e as redes evangélicas tem sido agentes fundamentais na colaboração ao processo de imigração -com destaque para a Primeira Igreja Batista de Curitiba e suas instituições parceiras- Organização Mais No Mundo, ABASC, Junta de Missões Nacionais. Entretanto, a mediação entre igreja e a burocracia estatal não ocorre numa perspectiva da laicidade, onde todos os migrantes ou refugiados de quaisquer religiões são acolhidos. Busquei problematizar o quanto a perspectiva de um poder urbano evangélico em Curitiba permanece ativa para tratar dos modos como populações em deslocamento são permeadas por tecnologias - desde a elaboração de documentos à produção das condições de vida na cidade, aos modos como interagem com as instituições jurídicas de proteção humanitária, traçando fronteiras entre aqueles que podem ou não ser abarcados -e por que não, privilegiados- em um marco de direitos humanos. Os pertencimentos são múltiplos, e os sujeitos, ainda que se autodefinam como membros de uma comunidade maior, fazem parte de grupos que se classificam segundo critérios de diferença - e nesta pesquisa, a pertença e/ou adesão à religião evangélica tornou-se ponto central para o acolhimento e permanência de imigrantes e refugiados em Curitiba.
Verifica-se que a questão do acesso à cidadania aos imigrantes por meio dos serviços do megatemplo Primeira Igreja Batista de Curitiba e das principais associações cristãs curitibanas sempre está associada a uma condicionante -a identidade cristã evangélica, norteada fundamentalmente pela afirmação pública de participação e pertencimento ao cristianismo evangélico-, ao contrário da perspectiva do Estado laico, que não impõe condições a ninguém, cuja cidadania é um direito de todas as pessoas. Essas sutilezas levaram-me a perceber que, ao “preencher os vazios” institucionais e afetivos de imigrantes evangélicos e/ou convertidos, a ação das redes evangélicas pode ser tida como uma estratégia apurada de conquista de fiéis e fidelização. Os princípios de solidariedade/inclusão relativamente se contradizem. Descortina-se aqui, assim, a constatação: o modo como essas diferenças -as multiplicidades de “pertencimentos” e identidades- se articulam ao funcionamento do mercado religioso e do Estado define uma das partes da equação entre universalismo e particularismo.
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Notas