Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


INTERCRUZAMENTO ENTRE RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA E O GRAFFITI: A DECISÃO DA ENTIDADE NO ATO DE PINTAR O TERREIRO DE MINA NAGÔ DEUS ESTEJA CONTIGO
INTERCROSSING BETWEEN THE AFRICAN-BRAZILIAN RELIGIONS AND GRAFFITI: THE DECISION OF THE DEITY IN TERREIRO DE MINA NAGÔ DEUS ESTEJA CONTIGO
Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 22, pp. 1-23, 2020
Universidade Estadual de Campinas

Article


DOI: https://doi.org/10.20396/csr.v22i00.13530

RESUMO: Neste artigo trago o entrelaçamento do graffiti com as religiões de matriz africana a partir de uma experiência etnográfica. Tive acesso ao graffiti durante minha pesquisa de mestrado com e sobre um coletivo de mulheres e uma pessoa trans que grafitam na cidade de Belém do Pará - norte do Brasil. Junto ao coletivo, tornei-me grafiteira, participando do grupo desde então. No universo das religiões de matriz africana, tive uma experiência que entrelaçou os dois universos. Fui convidada pelo zelador de santo para pintar uma das paredes do terreiro. Realizei e apresentei o esboço, no qual o sacerdote confirmou a pintura. Após algumas semanas, soube que a pintura foi cancelada por uma das principais entidades da casa, Maria Padilha. Portanto, a publicização da imagem foi interrompida neste diálogo. Finalmente, a arte foi realizada na casa de uma filha de santo. O episódio nos faz pensar sobre distintas sensibilidades e formas de ser visível e invisível.

Palavras-chave: Graffiti, arte, religiões afro-brasileira, Maria Padilha, agência.

ABSTRACT: In this article I present through ethnographic experience the entanglement between graffiti and afro-brazilian religions. I had acesse to the graffiti culture during my research with a group of organized artist women in the city of Belém do Pará, north of Brazil. As part of the group I become a graffiti artist and it was through this practice that I approached the universe of afro-brazilian religion when I received an invitation from a religious leader to paint the walls of a “sacred place. After the sketch was approved by the clergyman and when I was ready to paint I was informed that it was cancelled by one of the entities of the house (terreiro), called Maria Padilha. So, the publicization of the art image was interrupted in this dialogue. Finally the art was realized in the house of a filha de santo. This episode conducted an anthropological reflection about sensibilities and forms of visibility an invisibility.

Keywords: Graffiti, art, african-Brazilian Religions, Maria Padilha, agency.

No presente artigo 1 relaciono o graffiti2 e as religiões de matriz africana a partir de um acontecimento inusitado, que perpassa pela minha trajetória enquanto antropóloga e artista, mas antes disso, como frequentadora de um terreiro de Mina Nagô, localizado na região metropolitana de Belém do Pará. Maria Padilha, uma das entidades mandantes desse espaço, impediu a feitura de um graffiti na parede do terreiro, sendo que Pai Álvaro, o zelador de santo do terreiro, além de ser quem é irradiado pela Maria Padilha, desejava que a pintura fosse realizada. O objetivo desse texto é problematizar o percurso percorrido pelo esboço de graffiti até sua efetivação (não mais no terreiro e sim na casa de uma filha de santo), levando em consideração as relações sociais engendradas sob o olhar do sensível.

Minha pesquisa de mestrado em Antropologia, realizada na Universidade Federal do Pará, foi sobre um coletivo de mulheres e uma pessoa trans que grafitam na cidade de Belém ( Freitas, 2017). Entre o final de 2014 até 2016, acompanhei o coletivo não somente como pesquisadora, mas como aprendiz de graffiti. A crew se formou após uma oficina direcionada para o aprendizado de mulheres desse tipo de arte de rua. Utilizando a experimentação como metodologia de pesquisa, a partir da perspectiva apontada por Wacquant (2002) em sua experiência com o boxe, pude aprender e vivenciar, a partir do corpo as relações que foram construídas entre as novas artistas com a cena de graffiti paraense já existente.

Neste período e para além dele, tive acesso a outras formas de compreender o ato de fazer graffiti, que muitas vezes é visto como uma arte marginal, ao mesmo tempo possui um caráter social, ao trazer a perspectiva de pessoas periféricas e a transformação de suas próprias realidades. Além disso, o graffiti é capaz de alterar espaços abandonados por parte do poder público, configurando-se como uma arte política e transgressora ( Gitahy, 1999).

O graffiti também se constrói com versatilidade alcançando espaços fechados como galerias, ou pode ser cooptado pelo Estado ( Castleman, 1982) ou por outras atividades que se apropriam da técnica, como é o caso do design de interiores. Com a possibilidade de garantir o próprio sustento a partir da arte de rua, o graffiti tornou-se também fonte de renda para muitas(os) artistas, incluindo as Freedas Crew 3. Mesmo com o término da pesquisa de mestrado continuei como integrante do coletivo, participando de mutirões de graffiti, rolês e alguns trabalhos remunerados.

É importante salientar que o graffiti pode ser visto como fonte de renda para essas(es) artistas por mais que vá no sentido contrário de uma perspectiva mais histórica desse movimento. Ao ser vislumbrada a possibilidade do graffiti se tornar profissão, ele adquire características diferentes que ampliam a sua possibilidade de existência e aceitação e se reverte em uma arte vista como autorizada e remunerada. Para muitos da cena do graffiti paraense, essa arte deixa de ser graffiti e se torna muralismo ou o chamado graffiti de residência.

Esta informação é importante para que se compreenda em quais especificidades o graffiti que tratarei neste escrito está circunscrito, pois aqui não se trata de um graffiti de residência (assim reconhecido por seus pares), mas de um graffiti que dialoga diretamente com o que se compreende por uma arte que tem o social como parte de sua existência. Diante disso, pintar em um terreiro localizado em uma periferia, sem que haja uma mediação monetária para que ele aconteça, pode ainda assim, ser visto como graffiti, por contribuir à composição imagética daquela comunidade.

Ao apresentar a processualidade do desenho ao circular em espaços variados e que, mesmo após a efetivação do graffiti na parede de uma residência, reconfigurou os planos iniciais de execução no terreiro, o desenho conseguiu traçar um caminho para novas sensibilidades, interpretações e relações, não só com a arte em questão, mas com o ambiente e com as pessoas envolvidas.

Uma arte de rua historicamente construída a partir de um contexto periférico, sendo expressão de pessoas negras e/ou subalternizadas ( Magro, 2003), pode revelar uma relação próxima com a problematização que trago neste artigo. Trata-se de espaços e atividades muitas vezes renegados, sendo alvos de inúmeras perseguições, frequentado e praticado por pessoas negras e periféricas. Esses ambientes e pessoas estão circunscritos em uma lógica ocidentalizada e racista. A minha proposta é que, dentre muitas outras possibilidades de conexão, essas camadas sociais de exclusão podem se conectar a partir do desenho/ graffiti, criando perspectivas sensoriais circulares, que ora compartilha o sensível no sentido de partilha em um conjunto comum, ora o conjunto é partilhado em partes exclusivas como discute Rancière (2005), criando resistências dentro do contexto mais geral da grande partilha do sensível: entre sociedade envolvente e as comunidades de terreiro e o graffiti, assim como, mobiliza seus próprios sistemas e partilhas do sensível desde dentro dessas comunidades.

Herzfeld (2017) ao elaborar uma reflexão a respeito da estética no campo da antropologia resenha diversos estudos sobre a concepção do som e da música em povos tradicionais. Um dos interesses de Herzfeld (2017) neste processo é de evidenciar como a estética organiza relações sociais, nesse caminho, mas indo para além dele, a minha proposta é pensar não como a estética organiza as relações sociais, mas como ela traz efeitos para essas relações. Mobilizando sensibilidades dentro da elaboração conceitual que Rancière concebeu como partilha do sensível, isto é, o sensível é compartilhado em sentido de partilha, em um conjunto comum e um conjunto partilhado em partes exclusivas.

Portanto, o episódio em questão se relaciona com habilidades artísticas adquiridas durante o mestrado e de maneira processual me colocou supostamente como protagonista na etnografia. Mas como já evidenciei, não considero que seja essa a questão, e sim que trabalhei a partir do corpo, desde o corpo. Assim como minhas interlocutoras. Antes de se falar de autoetnografia (o que não é o caso, de maneira alguma), o que realizei foi uma corpografia ( Nascimento, 2016).

Os elementos fundamentais para a reflexão nesse artigo aparecem na equação-relação: desenho - terreiro de Mina Nagô - entidade - filha de santo - graffiti; enquanto a autobiografia e alguns elementos pessoais que envolvem a religião e as atividades artísticas que pratico são somente um pano de fundo. Portanto, é um recorte e uma problematização importante, mas que não traz parâmetros necessários para se enquadrar em uma investigação autoetnográfica ( Ellis et al., 2019), apesar de ser a pesquisadora que vivencia a experiência, aqui neste escrito não coloco as questões a partir de uma sensibilidade interna a mim, estou presente, mas não pretendo chegar até mim e sim nas relações que o desenho/ graffiti mobilizou e produziu externamente.

Portanto, trago a partir do diálogo sobre estética, sensibilidades e desenho, uma problematização do sensível através das ramificações interpretativas que ele pode proporcionar, principalmente no que envolve em atividades praticadas pela negritude, como as religiões de matriz africana e o graffiti, que adquirem potencialidades extras nesse encontro.

Diante disso, para que a leitora e o leitor compreendam a conexão que esboço neste escrito, é apropriado que eu aborde um pouco sobre o graffiti, o Movimento Hip Hop e o meu vínculo pessoal com esta arte e as religiões de matriz africana.

Algumas considerações sobre o graffiti e o movimento Hip Hop

Durante o texto, não pretendo emoldurar um conceito sobre graffiti que contemple todos os complexos traços dessa prática, mas é importante situá-lo dentro de um movimento cultural ao qual pertenceu, e até hoje pertence, para diversas(os) artistas. A busca por manter elementos de sua origem não impediu que esse movimento tivesse aglutinações de outros componentes que o fizessem ganhar novas características e uma identidade diferente, em cada lugar onde se consolida. Por isso, é possível afirmar que as pessoas que participam do movimento e os próprios autores que o estudaram, repetem um certo mito de origem. Esse tópico, talvez, faça o mesmo, mas é pertinente esclarecer algumas questões.

Sendo assim, inúmeros autores apresentaram em seus estudos uma abordagem histórica que remonta ao surgimento do movimento Hip Hop e, com ele, do graffiti. Em sua maioria, relembram as décadas de 1960 e 1970, na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, como propulsora da cultura Hip Hop. Craig Castleman (1982) realizou o que muitos consideram como sendo a primeira etnografia sobre o graffiti. Ele aponta que o movimento era constituído quase que totalmente por negros, latino-americanos e caribenhos, moradores das periferias de Nova York e de outras cidades.

Magro (2004) faz um panorama social que aponta os negros e hispânicos como pertencentes a um grupo que sofreu as consequências das desigualdades urbanas. Esses grupos se caracterizaram como vítimas das mazelas sociais e foram aglutinados nas zonas periféricas da cidade como, por exemplo, o South Bronx, amplamente reconhecido como principal local de surgimento do hip hop.

Diante desse quadro, contrariando as expectativas criadas pela opinião pública, em um cenário de ruínas, pobreza e falta de perspectivas, os jovens negros norteamericanos, jamaicanos, porto-riquenhos e outros imigrantes latinos, trouxeram para esses bairros pobres uma nova vitalidade, por meio de alternativas criativas, usando a arte, o som e a dança para reinventarem suas identidades e sua pertença na sociedade, em uma situação de ampla adversidade e desigualdade social: nascia dessa força jovem o movimento hip hop. (Magro, 2004: 54)

Esta cultura que tem a periferia como seu território é comumente dividida em quatro elementos: o MC (mestres de cerimônia) com as rimas; o DJ com a música; o break que é a dança; e o graffiti como arte, por meio de imagens. Alguns estudiosos (Viviane Magro, 2004; Tiago Fragoso, 2011) compreendem o hip hop como três elementos acoplando o DJ e o MC como representantes do som; o graffiti em referência à imagem e o break, à dança.

No final da década de 1970, nomes e apelidos (alguns associados com números das ruas em que moravam) passaram a ocupar diversos muros urbanos. Já em 1980, o bombardeio 4 alcançou o seu ápice como prática comum nos vagões dos trens, nos quais o graffiti ganhava maior visibilidade. Ainda na mesma década, surgiram as primeiras repressões aos graffitis espalhados pela cidade ( Ganz, 2004).

Enquanto o graffiti se desenvolvia e se expandia mundialmente, em Amsterdã e Madrid, suas influências são advindas de um movimento anterior, mais especificamente com raízes no movimento punk. No entanto, foi somente com o hip hop norte-americano (sua principal influência) que o graffiti europeu ganhou força ( Ganz, 2004).

No Brasil, na década de 1980, o hip hop encontrou em São Paulo um ambiente propício para se desenvolver, influenciado por uma forte veiculação nas mídias (revistas, televisão, filmes, publicações e publicações independentes), que rapidamente alcançou as grandes capitais do país. O movimento atraiu as juventudes da classe social média e baixa, que encontraram a oportunidade de fazerem críticas aos problemas sociais que vivenciavam nas periferias brasileiras, através dos elementos do hip hop ( Gitahy, 1999; Silva, 2012).

Estreitando a influência do hip hop para Belém do Pará, sua adesão foi semelhante às aproximações ocorridas em outros locais, a partir de uma apropriação dos elementos desta cultura, atrelada ao movimento punk ( Feliz, 2014). Da mesma maneira, encontrou nos bairros periféricos o ambiente ideal para se desenvolver, por meio de encontros juvenis, como as batalhas de MC, geralmente ocorridas em espaços públicos, como as praças.

No cenário atual do graffiti, estas(es) jovens grafiteiras(os) se articulam em grupos chamados crew 5, nos quais desenvolvem sua identidade enquanto coletivo. Existem também outras ocasiões que favorecem a construção de redes de sociabilidade, intensificadas também por meio da troca de objetos. Os chamados mutirões de graffiti que podem reunir, tanto a troca de stickers6 e blackbooks 7, quanto a venda de latinhas customizadas, camisetas pintadas à mão, feitura de trancinhas rastafáris, comidas e bebidas. É uma oportunidade também de ver e ser visto, de aprender em contato com as(os) grafiteiras(os) mais experientes, conhecer quem está atuando no graffiti. Além disso, é um ambiente de parceria entre as(os) artistas e as comunidades, porque é organizado em coletividade, a partir do diálogo entre comunidade local (cedendo o muro e muitas vezes alimentação para todos os participantes) e artistas.

Um aspecto que se mostrou comum, tanto na literatura sobre o tema quanto na observação/experimentação foi a predominância masculina no graffiti (Magro, 2004; Campos, 2007; Moreno, 2011; Feliz, 2014). Seja em quantidade numérica, seja simbólica, o graffiti apresenta uma espécie de “cultura” em performance masculina 8. A partir da década de 1990, porém, a cena do graffiti em Belém contou com a presença da grafiteira Dninja (natural de Minas Gerais), cuja participação -em um evento de graffiti promovido pela prefeitura da época- influenciou várias mulheres a iniciarem suas trajetórias na cena local ( Cortez, 2016) 9.

Ainda nesse contexto, porém já em 2014, Michele Cunha (artista visual e grafiteira) motivada pela problemática de relação de gênero inserida no graffiti, passou a ministrar oficinas de graffiti voltadas para o público feminino. Foi nesta oportunidade que eu tive acesso a prática, às regras morais e outros aspectos que moldam o ato de grafitar. No fim da oficina, formou-se as Freedas Crew, um coletivo de mulheres e uma pessoa trans, no qual faço parte como integrante até os dias atuais.

Porém, o fato etnográfico que trago para refletir neste artigo foi algo pontual e partiu da minha trajetória, por envolver o terreiro de Mina Nagô que frequento desde criança, trazendo desta maneira elementos que me deslocam do olhar mais coletivo da crew.

O Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo, a pintura interrompida e a sua realização na casa de uma filha de santo

Desde muito nova frequento o terreiro de mina Deus Esteja Contigo, não sou iniciada na religião, mas me identifico com a mesma mais do que com o catolicismo ou qualquer outra. A minha avó frequentou este terreiro, criando vínculos com o zelador de santo e a casa, fazendo parte de sua rotina semanalmente. Ela acostumava ser acompanhada por alguma filha ou netos. Mesmo não sendo iniciada, minha avó demonstrava por diversas maneiras, inclusive através da linguagem e técnicas do corpo, que possuía mediunidade sensitiva (sentia que estava sendo irradiada por entidades, tinha conhecimentos sobre as ervas medicinais e compreendia rituais de pajelança sem que tivesse passado por uma iniciação formal). Nos últimos anos tanto a minha mãe quanto eu, passamos a participar com mais frequência de atividades que requeriam nossas habilidades manuais, a minha mãe costurava para algumas filhas de santo. As lembrancinhas, que eram feitas artesanalmente, tinham sua feitura executada por nós duas juntamente com as iniciadas. Essas participações em atividades que antes eram dadas somente as filhas de santo, foram atribuídas gradativamente a nós duas.

Este terreiro está localizado em Ananindeua, cidade da região metropolitana da Grande Belém. Apesar do bairro estar presente no centro do município, estando perto da prefeitura, área comercial, bancos e praças, a sua configuração territorial é de uma periferia composta por ocupações e que não dispõe de saneamento básico. Que após longos anos puderam contar com a inserção do Estado, através da garantia de energia e pavimentação de algumas ruas, porém mesmo assim, ainda não dispõe de água encanada e saneamento básico, por exemplo, fazendo com que várias moradias precisem construir poços artesianos.

O bairro apesar de ser nomeado como centro pelos correios, é conhecido entre seus moradores como Floresta Parque. Ele é composto por duas ocupações de épocas diferentes, uma mais antiga onde se localiza o terreiro, datando aproximadamente 30 anos ou mais e a outra mais recente com 17 anos de existência. Vale ressaltar que minha moradia está localizada na ocupação mais recente e que acompanhamos ativamente (minha mãe e eu) a construção das casas e formação desta parte do bairro, o que me deixa mais próxima geograficamente do terreiro.

No terreiro existe um calendário com as atividades desenvolvidas no local, uma das mais frequentes são as giras que ocorrem em alguns sábados, nelas são cultuados orixás, caboclos, exus e encantados. As giras são alternadas pelas mesas brancas, momento influenciado pelo kardecismo, cuja atividade tem o intuito de tratar as doenças espirituais. E por fim, as festas que são distribuídas pelo decorrer do ano, sendo duas as principais, dedicadas para Maria Padilha em abril, abril e Exu Capa Preta em agosto. Cabe ressaltar que o terreiro é de Mina Nagô, nação muito conhecida e cultuada no Pará, que tem raiz no tambor de mina, umbanda, pajelança e o catolicismo popular, atravessada também pelo espiritismo kardecista ( Veras, 2015) 10.

No final do ano de 2017, durante a minha ida ao terreiro feita todos os sábados, o zelador de santo Pai Álvaro (assim como ele prefere ser chamado) 11, já sabendo da minha pesquisa de mestrado -concluída naquele an - me convidou para que eu pensasse em algum desenho para pintar nas paredes do terreiro. A preocupação do Pai Álvaro a princípio era sobre o material, o que lhe fez perguntar sobre a quantidade e os preços. Como é um lugar que tenho uma ligação espiritual e possui uma importância para a comunidade do bairro (dividindo espaço com igrejas católicas e protestantes), resolvi pintar com o meu próprio material sem cobrar também pela mão de obra. Os dias que se seguiram foram repletos de apreensão por não saber se daria certo a pintura e, principalmente, por não ter ideia do que pintar. Nos encontros posteriores ele dava indícios do que almejava algo trazendo elementos da natureza, algumas figuras que poderiam remeter as ancestralidades negras e indígenas que fazem parte do próprio terreiro.

Quando finalmente criei um esboço, pensei em não centralizar em uma determinada entidade, pois poderia aguçar descontentamentos ou possíveis disputas entre elas, o que me trazia o desafio maior de tê-las que retratá-las sem deixar nenhuma excluída, o que seria impossível. Levando em consideração que as imagens nas religiões de matriz africana são acionadas de maneira mais vívidas, criando uma relação de agenciamentos que influenciam diretamente nas vidas de seus praticantes, a elaboração desse rascunho redobrou o desafio da sua execução. Baseado nessa possibilidade, resolvi trazer a figura das filhas de santo, que possuem um papel importante no terreiro e em que sua maioria são mulheres, dialogando com o repertório imagético que sou acostumada a ilustrar. Além dos deveres habituais de manutenção do terreiro, elas têm a missão também de zelar por seus anjos de guarda.

Mesmo que a pessoa não seja uma filha ou filho de santo, caso o zelador compreenda que você precisa cuidar do seu anjo de guarda não só na sua casa, mas no espaço do terreiro, você passa a ter acesso a uma sala específica, a camarinha, na qual são acesas as velas de 7 dias e 7 noites que são enfileiradas em uma espécie de altar localizado em toda a extensão da sala. Nele é posicionado uma quartinha de barro repleta de água e a sua frente a vela é acesa. É importante que a água e a vela sejam trocadas todos os sábados para que o anjo de guarda seja iluminado e assim, possa proteger e abençoar a(o) sua filha(o).


Figura 1
Camarinha. Ilustração da própria autora

Então, para o esboço quis trazer a figura da filha de santo e sua conexão com o anjo da guarda a partir da representação da quartinha e da vela. Além disso, trouxe outras aproximações com a cosmologia das religiões de matriz africana no Pará, a partir de plantas específicas: o tajá e a espada de São Jorge, as quais ambas remetem a proteção da moradia, que neste caso seria o terreiro. O tajá é uma planta que ao ser plantada no lado esquerdo da entrada de qualquer residência, a protege de invasores, pois ao ser alimentado com sangue de carne (geralmente joga-se na planta a água das carnes que estão em preparo alimentar), ou seja, quando é curado, ele pode se personificar em um caboclo (figura ameríndia), afugentando a possível ameaça. Já a espada de São Jorge, vinda do continente africano, é amplamente difundida como uma planta que protege as moradias.

O local da pintura também foi escolhido pelo Pai Álvaro e o esboço foi adaptado às formas da parede. O rascunho pode ser visualizado logo abaixo, e na sequência, o local reservado para a pintura, que está localizado no corredor de entrada do terreiro, em uma parede branca entre duas janelas com grades azuis (conforme a seta na imagem).


Figura 2
Esboço do graffiti. Ilustração da própria autora

A ilustração está circunscrita em duas análises: a primeira como parte do processo da realização de um graffiti. É de praxe que se faça um esboço do que será pintado para se pensar nas cores que serão usadas, a disposição dos elementos, planejar como o graffiti será distribuído no espaço disponível e dentre outras questões. É um processo de pintura ( Freitas, 2017).

Para a antropologia do desenho, a ilustração aparece como um registro em diário de campo, revelando um modo de pensar como reflete Ingold (2013), surgindo como prática de observação ( Azevedo, 2016). Surge também como mediação entre pesquisadora e interlocutores, trazendo novas perspectivas e interpretações. Por fim, se apresenta como objeto de pesquisa e ao mesmo tempo como fonte de conhecimento. Para esta reflexão, a ilustração ganha protagonismo na compreensão dos percursos do interdito e da realização do graffiti.


Figura 3
Entrada do Terreiro Deus Esteja Contigo. Local escolhido para o graffiti (ver seta). Foto: Hermes Veras.

Já no início de 2018, aguardando a definição da data para executar a pintura recebo o recado de que o graffiti não seria mais realizado, pois uma das entidades considerada dona do terreiro, a Maria Padilha, havia pedido o cancelamento da pintura. O argumento foi que a entidade não queria que as paredes brancas fossem pintadas com outras cores. Não tenho mais detalhes sobre a decisão e não questionei a palavra final dada pelo zelador.

Porém, ao retornar ao terreiro em dezembro do mesmo ano, recordei o episódio com o zelador, informando também como foi minha participação em um evento científico ocorrido em Santiago do Chile 12. Aproveitei que Pai Álvaro ficou animado com as novidades e indaguei um pouco sobre como ocorreu essa decisão da entidade. Ele de maneira tranquila disse que não era necessário saber mais detalhes sobre o assunto, pois ao olhar em retrospectiva, a pintura não era para estar especificamente na parede do terreiro, mas destinada a alcançar outros ambientes. Por mais que a entidade tivesse dito que sua vontade era que as paredes do terreiro permanecessem brancas, a interpretação do zelador de santo era de que o papel deste graffiti era deixar de ser apenas para o espaço do terreiro, alcançando outros públicos, espaços e interpretações.

O que me pareceu na fala do Pai Álvaro é que inicialmente o graffiti tinha uma função que seria colorir o terreiro, que em suas paredes tem a predominância das cores branca e azul. No entanto, por algum motivo não revelado, teve esta função inicial modificada passando a compor um leque de possibilidades, que inclui a formulação de um artigo como atividade de uma disciplina na grade curricular do doutorado 13, em seguida a apresentação do segundo artigo em um evento internacional e em outras possibilidades que não foram descartadas por mim naquele momento, que seria efetuar a pintura.

A minha permanência em Belém do Pará perdurou até o mês de março, período que recomeçam as aulas no doutorado. Durante todo esse tempo pude reencontrar as integrantes da Freedas Crew e realizamos um graffiti em conjunto, mas a vontade de colocar o esboço do terreiro na parede foi tamanha que propus para uma das filhas de santo do terreiro, que o graffiti fosse realizado em sua casa.

Mostrei o rascunho para a filha de santo chamada Regina, a qual ficou muito contente com a imagem. Regina é filha de santo da casa, é iniciada e participa frequentemente das giras e mesas brancas. Regina tem como santo de cabeça, Oxóssi, orixá da mata e das florestas, conhecido também como guardião, sua imagem está sempre associada a um arco e flecha. De uma maneira inesperada o esboço continha elementos que remetiam a plantas, universo indígena e a filha de santo. Imagino que ela tenha se reconhecido na imagem não só por esses elementos, mas por ser também uma mulher negra.

O desenho surgiu como parte do processo do ato de grafitar e por este motivo, antecipa o que pode surgir enquanto pintura na parede. Sendo assim, produz sensações, interpretações, agrados e desagrados. Contribui efetivamente para compreendermos os elementos que a compõe e como eles acionam interditos e aceites para a realização da pintura.

Regina se deixou a disposição para o dia que eu escolhesse fazer o graffiti e assim foi feito. Em um domingo ensolarado, selecionei os materiais necessários para a pintura, coloquei num carrinho de feira para facilitar o transporte e cheguei na casa dela por volta das 11 horas da manhã. Todos os moradores da residência já sabiam sobre a pintura e estavam atentos à minha chegada. Ela que escolheu a parede, seria no pátio da residência em uma parte que fica ao lado de um dos portões da casa. As pessoas que passassem na rua, poderiam ver o graffiti brevemente entre as grades do portão. Para o local, eu tive que adaptar novamente o desenho. Quando percebi que as plantas que estão ao lado da personagem principal (no esboço) sufocariam a imagem, escolhi não fazê-las no primeiro momento.

Foi interessante me deparar com uma paleta de cores já existente na casa, que circulavam entre verde e azul, o espaço também se dividir em várias porções de plantas e uma pequena árvore, repleta de espadas de São Jorge, tajás e diversas plantas medicinais.

A parede era menor do que a do terreiro, então para que os elementos do graffiti não ficassem tão próximos um d o outr o, deixei a personagem sozinha em um lado enquanto as plantas (a pedido da dona da casa) foram para outra parede. De acordo com as imagens a seguir.


Figura 4
Local do graffiti na residência de D. Regina. Foto: autora.

Figura 5
Personagem principal da intervenção. Foto: autora.

Figura 6
Complemento da personagem principal. Foto: autora.

O graffiti passou por algumas alterações em relação ao esboço inicial. É uma prática comum no processo da pintura, o esboço ser diferente do resultado final, geralmente o rascunho é para planejamento, mas muitos aspectos podem interferir na execução da pintura como o estado do muro (só no cimento, com base de tinta, sem base de tinta, desgastado), o material disponível, novas ideias que podem surgir no decorrer da pintura e daí por diante ( Freitas, 2017).

No tajá eu não coloquei a personagem cabocla, como idealizei no desenho para o terreiro, pois acredito que algumas características presentes no primeiro esboço foram pensadas para aquele espaço. A troca do local também foi um agente de mudanças na pintura. Além disso, acredito que a imagem da planta por si só, traz uma construção imaginária que leva a presença do indígena, essa construção imagética tem uma relação direta com os saberes histórico-culturais amazônicos, talvez quem não tenha esse repertório imagético não consiga fazer este tipo de interpretação. No terreiro a presença indígena dialogaria não só com a sua relação com a vegetação, mas também poderia ser considerada uma entidade da mata ou cabocla no sentido do tambor de mina, ( Ferretti, 2000), isto é, os caboclos nem sempre são caboclos descendentes de diversas nações indígenas, podendo se apresentarem com outras nacionalidades e categoriais, tais como os turcos. Contudo, toda essa concepção não deixa de ser afro-brasileira e afroindígena, pois o modo de recebê-las ainda é nos modos e técnicas ancestrais de comunidades afro-brasileiras e afro-amazônicas.

Ao pensarmos na construção histórica do graffiti (apresentada no primeiro tópico) e a relação com esse episódio etnográfico é possível traçar uma relação com elementos importantes de suas composições. A presença do território periférico e suas características de abandono do poder público e a cultura negra entrelaçada ao cotidiano. O movimento hip hop como aglutinador de pessoas periféricas cria e reformula formas de socialidade, enquanto a religião de matriz africana protagonista neste contexto, mobiliza forças e ações.

É importante apresentar que o espaço físico atual do terreiro é recente em comparação com a sua história mais ampla, pois ao atravessar a rua, nos deparamos com o espaço antigo que deixou de acolher o terreiro e suas imagens. Lá, ele era composto por pinturas nas paredes que faziam alusão a paisagens naturais (cachoeiras, florestas), porém não adentravam ao salão principal, ficavam na parte externa, principalmente em construções que lembravam grutas e que acolhiam as imagens de Iemanjá, Oxóssi e o povo da mata. Sendo assim, essa informação nos oferece uma pista sobre o interdito, a falta de efemeridade não foi uma questão para a decisão final, mas os elementos apresentados, como a filha de santo e o ritual do anjo da guarda, talvez tenha sido um fator importante para a decisão.

Além disso, é bom relembrar que o convite partiu do próprio zelador, o que descarta a possibilidade de ter sido impedida por eu não ser iniciada no terreiro. O meu vínculo ao espaço se estabelece de outras formas e se reconectam com outras pessoas de minha ascendência matrilinear. Portanto, apesar de não ser iniciada formalmente, passei por ritos de passagem que me agregaram ao espaço, tornando-me uma opção de confiança para pintar o terreiro.

Quando vislumbramos a pintura em outro espaço que não a do terreiro, o graffiti mobiliza outras relações que incluem a dona da casa (Regina) e seus vínculos com a casa de santo. Ser filha de santo a fez se identificar com a imagem da personagem e sua ritualidade com o anjo da guarda. As plantas ao dialogarem ao orixá que rege sua cabeça, criou uma composição imagética que se relaciona diretamente com as cores do local e o jardim da residência, estes fatores, que envolvem representatividade e proximidades com sua realidade, foram essenciais para que Regina aceitasse a pintura.

Percepções

Sendo assim, o esboço que fiz foi apreciado pelo zelador de santo, recusado pela Maria Padilha e aceito pela filha de santo, além de ter circulado em outros territórios como em artigos acadêmicos e posteriormente a outro espaço que não foi o terreiro. Para ambas as situações, existe um aparato sensível que foi modificado de acordo com as escolhas que envolveram o graffiti em questão. Então, como Sacks (2010), percebemos que se fazer sensível é também refletir sobre a sensibilidade, e é a partir de um conjunto de autores que estou pensando nisso ( Pellini, 2016; Ingold, 2008; Herzfeld, 2017). Essas são apenas algumas das potências encontradas quando cruzamos a forma como sentimos com outros aspectos de nossa vida social.

A arte, em um contexto e espaço que remete aos terreiros e as religiões de matriz africana, nos faz pensar no uso dos sentidos para que essa arte seja organizada, produzida e alcançada. Quando penso em uma antropologia do sensível aqui, reforço que apesar da importância de se refletir a partir da diversidade humana presente em distintas formas que sociedades e culturas têm nas elaborações sensíveis ( Herzfeld, 2017), não podemos deixar de pensar como estes sentidos criam hierarquias e diferentes níveis de poder nos espaços sociais (aqui, por exemplo, em um terreiro). Perceber que um graffiti, por exemplo, para um terreiro transcende a simples imagem, materializando entidades, encantados e orixás. Sem menosprezar o poder que essa imagem tem para acionar forças. Conforme já salientei, a produção de um desenho e um graffiti dentro do contexto de um terreiro e uma filha de santo, perpassam por diversos níveis e graus do sensível partilhado, para voltarmos com Rancière (2005). Estética e política estão sempre entrelaçados, portanto, nessa figura feminina apresentada, temos uma evocação e dignificação da figura ancestral da mulher, um valor não dominante dentro de uma estrutura patriarcal e racista, que envolve as comunidades de terreiro, o graffiti e a antropologia.

Além do mais, não só a visão enquanto sentido é estimulada, mas também outros sentidos que rompem com o que é socialmente esperado e aceito são mobilizados pela imagem. O interdito da Maria Padilha e a insistência em não detalhar como tudo ocorreu, revela que o assunto alcançou outros patamares sensoriais, inclusive, o silêncio, o não dito. A criação de um graffiti nesse contexto faz ver o que não está visível ( Meyer, 2019). Não apenas o desenho está tendo efeito nas relações sociais estabelecidas dentro do terreiro, como também invocando modos de visibilidade a respeito do que é valorizado dentro de um terreiro, mas é desprezado em outros contextos. O que em um terreiro pode ser explicado como a visão mediúnica - a capacidade de ver, ouvir e sentir as entidades e guias espirituais, nos espaços fora do terreiro pode ser compreendida como distúrbio psicológico, criando classificações diferenciadas aos mesmos sentidos. Portanto, perceber um interdito a uma arte, dentro de um terreiro, a partir de uma entidade espiritual, é exatamente o que estou propondo, o encontro de duas expressões da diáspora negro-africana ( Gilroy, 2001), que compõe o que compreendemos enquanto modernidade. Afinal, terreiro, como tem sido mostrado por diversos autores, são fenômenos urbanos ( Carneiro, 1977; Silva,1993), e o graffiti, conforme já vimos, não vive sem a rua e a urbanidade.

Dando prosseguimento à reflexão, é necessário desconstruir a ideia de experiências sensoriais baseadas somente nas perspectivas ocidentais predominante que consideram a existência exclusiva dos cinco sentidos, sendo a visão o predominante (vale lembrar que mesmo no Ocidente houve discordâncias em relação a esse modelo) 14, e expandir a maneira de ver o mundo a partir de valores corporais e sensoriais ( Pellini, 2016). Sabemos que o mundo é sentido pelo corpo, e que pelo menos desde Mauss (2003) este corpo ao mesmo tempo que é técnica, é tecnologia, assim, o corpo está sempre entrelaçado ao social e ao cultural. Foi com essa proposta que desenvolvi minha pesquisa de mestrado, apontando que a etnografia, naquele contexto, só seria possível a partir do corpo ( Freitas, 2017).

Finalmente, o que fica perceptível nesta situação empírica é a presença de agenciamentos que perpassam o zelador, as entidades, a imagem produzida e a artista, que em um certo momento abrem as possibilidades para que uma arte marginalizada em outros ambientes contribuísse para a construção imagética do espaço que é o terreiro (espaço este que é utilizado para os rituais das religiões de matriz africana, historicamente perseguidas ( Figueiredo, 2008) por grupos dominantes). Ao mesmo tempo temos o agenciamento de forças e entidades que constituem aquele espaço de desenvolvimento espiritual, mas que impediram a ação artística e por fim, a artista que se coloca à disposição para a realização da pintura, cedendo tanto suas habilidades artísticas quanto seus materiais, sem incluir uma transação monetária 15, o que foi substituída por uma troca espiritual de bênçãos e proteções.

Conforme já disse, há todo um aparato sensorial para aprender com as entidades espirituais, tipos mediúnicos de visão e escuta que são valorizados nos espaços do terreiro, mas desvalorizados no contexto ocidentalizado circundante aos territórios de matriz africana. Assim, todo um aparato sensório também é mobilizado para perseguir os terreiros. Em uma visão caricata e preconceituosa, para vários contextos dominantes, os terreiros são descritos como lugar sujo, com pessoas pobres, negras e loucas, que recebem entidades falsas, bebem e fumam, sem regras e morais, assim, lugar nada sagrado, atormentado por charlatães, que não bastasse tudo isso, ainda fazem barulhos com seus tambores estrondosos. Podemos pensar essa perseguição de muitas formas. Umas das formas de explicá-la está naquilo que Herzfeld (2017) demonstrou ser próprio aos sentidos e às formas de diferenciação entre sociedades e culturas. Os terreiros fazem parte de outro tipo de materialidade e cultura visual ( Morgan, 2012; Meyer, 2015).

Encerramentos

Ainda seguindo as reflexões, é possível compreender que tanto as religiões de matriz africana quanto o graffiti estão circunscritos em um eixo histórico em comum, na qual alguns aspectos são caros da sua constituição, como a presença de uma configuração negra, a periferia como território de atuação, os movimentos diaspóricos, translocais/ transatlântico em ambos (Gilroy, 2012). Porém, ressalto que estou tratando de dois fenômenos com uma carga histórica diferentes, um que surgiu apenas na década de 1960/70 e o outro que existe há séculos. Partindo dessas reflexões, é possível compreender que a arte em questão se entrelaça e desestabiliza o público/privado e o visível/invisível, o que não significa que eu opere com essas dicotomias. Enquanto esboço, a arte circulou em espaços restritos via celular entre artista e zelador. Mas se fosse transformada em graffiti nos espaços do terreiro, estaria exposta aos usuários deste local, alcançando uma visibilidade maior, o que para o graffiti é um ponto positivo, pois ele é feito para ser visto e a partir dele construir interações que podem ir além da simples admiração ou repulsão pelo o que foi feito. E isso facilmente ocorreria, porque os frequentadores do terreiro englobam pessoas do bairro, mas também gente que vem de várias regiões, como da capital do estado, mas também dos interiores do Pará. Além do mais, Pai Álvaro tem o costume de deixar o terreiro acessível para quem o procura, ampliando a circulação de pessoas de diferentes lugares.

Porém quando o graffiti, que inicialmente foi projetado para o terreiro, é executado em outro espaço, mais especificamente em uma residência, esta imagem alcança outro público e reconfigura aquele novo espaço. Desde a execução da pintura, a dona da residência publica continuamente fotografias do graffiti e as posta em suas redes sociais digitais, como no seu perfil no Facebook. É uma maneira diferente de trazer visibilidade para a pintura, muito comum na cena do graffiti mundial. Inclusive, por ser considerada uma arte efêmera, quando está executada em via pública (por estar vulnerável a diferentes formas de interações, intervenções e desgastes), a fotografia como mídia imagética assume a função de tornar o graffiti perene e ao mesmo tempo que documenta, expande a visibilidade da pintura, rompendo fronteiras geográficas ( Diógenes, 2015; Freitas, 2017). Portanto, ao postar as imagens na internet a pintura não só atinge novas formas de ser vista, mas reconfigura o espaço que, ora se mostra privado, ora se torna público.

Já na questão do visível/invisível, penso com Meyer (2019) quando ela afirma que é possível tornar o invisível visível por meio da arte. Segundo a autora existem mídias imagéticas que trazem para o mundo das visualidades o que não é visível, pelo menos não por todos. Segundo Meyer os filmes, umas dessas mídias transformadoras, externalizam:

(...) images mentais na imaginação popular pessoal e compartilhada, os filmes reproduzem como imagens visíveis o que se imagina que aconteça no domínio espiritual. Oferecendo imagens em movimento do invisível, os filmes mediam —e assim expressam e moldam— a imaginação religiosa. ( Meyer, 2019: 236)

É possível compreender a partir do exposto por Meyer (2019) essa relação entre visível e invisível por meio do graffiti (enquanto mídia imagética) aqui tratado, pois a autora pensa essas mídias imagéticas como mediadoras desse movimento da in-visibilidade. Sendo assim, o graffiti não executado do terreiro não só poderia expor uma maneira de ver o esboço da pintura como também seria fonte de outras imagens não visíveis. Tais conglomerados de imagens surgem de um repertório imagético histórico-cultural compartilhado na região amazônica e que dialoga com as experiências afro religiosas em relação com a umbanda, pajelança e encantaria.

Ao fazer um diálogo com o esboço apresentado, a relação entre filhas de santo e o que é feito frequentemente na camarinha com a presença da água e da vela, além dos elementos que realçam as plantas e os seus poderes direcionados a proteção, é possível vislumbrá-lo como detentor de aspectos que foram evidenciados no desenho e que se caso virasse um graffiti, poderia ser fonte de reflexão para as pessoas que frequentam o terreiro. Mas além disso, fazer o esboço deixou visível um possível conflito entre as entidades que não seria visível se não fosse a imagem, neste caso, a imagem revelou questões que talvez não se materializasse se não ocorresse a proposta de pintura.

As imagens de entidades e orixás estão presentes em vários cômodos do terreiro, criando uma atmosfera que nos leva para outros espaços imagéticos e ao mesmo tempo mítico/religioso. As três princesas encantadas -Mariana, Jarina e Herondina-, estão sempre no salão principal onde ocorrem as giras, Maria Padilha em um dos lados do tambor e Oxum no lado oposto. As demais imagens são espalhadas em pequenas divisões como o povo da rua que tem seu cômodo bem delimitado, que é diferente do povo da mata que inclui o Tupinambá, Oxóssi, Pena e Folha Verde, assim como São Cosme Damião dentre outras entidades que vão além da especificada. Existe uma maneira de organizar tais imagens que vai além do meu conhecimento sobre o assunto, mas posso observar que existe um sentido para que elas estejam expostas desta maneira e que variam em espaços que ora estão mais reservados, ora estão mais expostos e públicos. Apesar da sobriedade do terreiro mantendo tonalidades de cores entre azul e branco, a composição formada pelos vultos (imagens do santo), tambores e ornamentações, cria para os diversos espaços, temporalidades, paisagens e narrativas diferentes.

Pai Álvaro tem uma relação interessante com as imagens de modo geral: pinturas, ilustrações, gravuras, ou estátuas ou os chamados vultos. Segundo ele, toda vez que ele recebeu esses itens como presente, a pessoa que o presenteou não voltou mais ao terreiro, então depois que ele chegou a essa conclusão, ele deixou de aceitar presentes desse tipo de imagens, com receio de que a pessoa não retornasse mais. Eu não sei ao certo se o meu graffiti se encaixou nesta mesma condição, mas quando articulo novamente com o que Meyer (2019) reflete sobre a possibilidade de tornar o invisível em visível, faço o exercício de compreender esse episódio etnográfico como uma experiência que não me fez ver o que o esboço trouxe como conglomerados imagéticos para o pai de santo e a entidade dona da casa, Maria Padilha, sendo assim, continua acortinada a decisão da não pintura no terreiro.

Referências bibliográficas

AZEVEDO, Aina. Um convite à antropologia desenhada. METAgraphias, 1(1), pp. 194208, 2016.

CAMPOS, Ricardo. Pintando a cidade: uma abordagem antropológica ao graffiti urbano. Tese de Doutorado em Antropologia/ Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Aberta, Lisboa, 2007.

CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

CASTLEMAN, Craig. Getting up: subway graffiti in New York. Cambridge: The MIT Press, 1982.

CORTEZ, Flavia. Lugar de Mulher. Outros 400 [Online], 8 abril. 2016. Disponível: http://www.outros400.com.br/urubuservando/3897 Acesso em: 23 de abril de 2018.

DIÓGENES, Glória. A arte urbana entre ambientes: “dobras” entre a cidade “material” e o ciberespaço. Etnográfica [Online], 19(3), pp. 537-556, 2015. Disponível em < http://etnografica.revues.org/4105>. Acesso 9 de maio de 2020.

ELLIS, Carolyn; ADMS, Tony; BOCHNER, Arthur. Una historia resumida de la metodologia. In: CALVA, Silvia (Org.). Autoetnografia. Una metodología cualitativa. Aguascalientes: Universidad Autónoma de Aguascalientes, 2019. pp. 17-41.

FELIZ, Marcely. Cely feliz: nem todo risco no muro é masculino. Monografia de Bacharelado. Faculdade de Artes Visuais, Universidade Federal do Pará, Belém, 2014.

FERRETTI, Mundicarmo. Desceu na guma: o caboclo no tambor de mina em um terreiro de São Luís: a Casa Fanti-Ashanti. São Luís: EDUFMA, 2000.

FIGUEIREDO, Aldrin. A cidade dos encantados: pajelanças, feitiçarias e religiões afro-brasileiras na Amazônia. Belém: EDUFPA, 2008.

FRAGOSO, Tiago. Convivialidade e performance na experiência estética dos jovens hip hoppers da Força Hip Hop em Fortaleza. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2011.

FREITAS, Thayanne. Pintando com elas: uma etnografia a partir do coletivo de graffiti Freedas Crew/ Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Belém, 2017.

GANZ, Nicholas. Graffiti world: street art from the five continents. London: Thames & Hudson, 2004.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo, Rio de Janeiro: 34/Universidade Cândido Mendes - Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

GITAHY, Celso. O que é graffiti. São Paulo: Brasiliense, 1999.

HERZFELD, Michael. Antropologia - Prática Teórica na Cultura e na Sociedade. Petrópolis: Vozes, 2017.

INGOLD, Tim. Pare, Olhe, Escute! Visão, Audição e Movimento Humano. Ponto Urbe [Online], 3, pp. 1-52, 2008. Disponível em: http://journals.openedition.org/pontourbe/1925 Acesso 19 de abril 2019

____. Making. Anthropology, archeology, art and architecture. London and New York: Routledge, 2013.

MACDONALD, Nancy. The Feminine Touch: The highs and lows of the female graffiti experience. In: GANZ, Nicolas. Graffiti Woman. London: Thames & Hudson, 2006. pp. 12-13.

MAGRO, Viviane. Meninas do graffiti : educação, adolescência, identidade e gênero nas culturas juvenis contemporâneas. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de Campinas, Campinas, 2003.

MAUSS, Marcel. As Técnicas do Corpo. In: MAUSS, Marcel . Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. pp. 399-422.

MEYER, Birgit. Picturing the Invisible. Visual Culture and the Study of Religion. Method & Theory in the Study of Religion, 27, pp. 333-360, 2015.

____. Como as coisas importam: uma abordagem material da religião. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2019.

MORENO, Margarida. Mulheres no muro: grafites e grafiteiras em Salvador. Dissertação de Mestrado. Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.

MORGAN, David. The Embodied Eye. Religious visual culture and the social life of feeling. Berkeley: University of California Press, 2012.

MOURA, Beatriz. “Aqui a gente tem folha”. Terreiros de religião de matriz africana como espaços de articulação de saberes. Brasília, Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade de Brasília, Brasília, 2017.

NASCIMENTO, Silvana. A cidade no corpo. Ponto Urbe [Online], 19 | 2016. Disponível em: http://pontourbe.revues.org/3316 Acesso em 09 janeiro 2017.

PELLINI, José. Arqueologia com Sentidos: Uma Introdução à Arqueologia Sensorial. Revista Arqueologia Pública, 9, (4 [14]), pp. 1-12, 2016.

PEREIRA, Anderson. A Cabocla Mariana e sua corte Ajuremada: modos de pensar e fazer festa em um Terreiro de Umbanda em Santarém, Pará. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org./Editora 34, 2005.

SACKS, Oliver. O Olhar da mente. In: SACKS, Oliver . O Olhar da Mente. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. pp. 179-210.

SILVA, Vagner. O Terreiro e a Cidade nas Etnografias Afro-Brasileiras. Revista de Antropologia, 36, pp. 33-79, 1993.

SILVA, Jerônimo da Silva. Cartografia de afetos na encantaria: narrativas de mestres da Amazônia Bragantina. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal do Pará, Belém, 2014.

SILVA, Paula. Break em Recife: hierarquias e sociabilidades. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.

VERAS, Hermes de Sousa. O sacerdote e o aprendiz: etnografia, experiência e ritual em um terreiro de Mina Nagô na Amazônia. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal do Pará, Belém, 2015.

WACQUANT, Loïc. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

Notas

1 Uma versão preliminar desse texto foi escrito na disciplina Antropologia da Modernidade - Antropologia dos Sentidos, ministrada pelo professor Emerson Giumbelli no Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da UFRGS. Agradeço as contribuições de Emerson Giumbelli, Hermes Veras, Guillermo Gómez e dos pareceristas anônimos que avaliaram esse texto.
2 Utilizo a grafia “graffiti” levando em consideração três pontos que me foram apresentados no campo de pesquisa. O primeiro diz respeito ao não uso da grafia “grafite” na cena local e nacional, sendo inclusive uma palavra que para muitas(os) artistas de rua não designa nenhuma relação com o que é feito na arte de rua brasileira, ou seja, não traz vínculo com o graffiti realizado no Brasil perdendo a sua potência quando é utilizada. Segundo, por compreender que o termo faz relação direta com o movimento hip hop americano, aproximação que muitas(os) praticantes, principalmente as(os) que fiz contato durante a pesquisa, preferem adotar, fazendo com que esta palavra faça parte de um arcabouço de termos também em inglês que cercam a prática do graffiti. E por fim, por compreender que por mais que o graffiti aqui apresentado, seja uma prática que difere da habitualmente realizada, ela se configura ainda assim como graffiti, pois em diversas situações que envolvem atividades com uma perspectiva social, como pintar em ONG ou em atividades com caráter social, fazem parte da atuação do graffiti nas comunidades e periferias do país.
3 Apesar de não ser um valor capaz de manter as integrantes economicamente, mas até o momento, o coletivo conseguiu alguns trabalhos remunerados com a arte que desenvolvem.
4 Bombardeio é deixar diversos bombs em uma superfície.
5 Crew é um grupo de artistas que assinam um nome em comum, planejando ações e painéis juntos. Muitos artistas acreditam ser uma espécie de “família”.
6 Stickers são adesivos elaborados (seja manual ou impresso) pelos próprios grafiteiras(os), apresentando seus personagens e bombs. Eles têm a função de serem espalhados pela cidade ou trocados com outras pessoas em rolês, mutirão ou em outras ocasiões nos quais eles se encontram. Situações variadas também são visíveis, como a confecção e venda dos adesivos.
7 Sketchbooks ou blackbooks são cadernos que podem ser usados pelas(os) próprias(os) grafiteiras(os) para desenvolver técnicas de desenhos, personagens -aprimoramento-, ou são trocados momentaneamente com outras(os) artistas para que sejam desenhados.
8 Apesar da cena do graffiti de âmbito mundial se mostrar majoritariamente masculina, isso não significa que não existem mulheres que resistam e pratiquem a arte, por mais que fossem em menor quantidade e invisibilizadas pela noção de que a cultura do graffiti é masculina ( Macdonald, 2006).
9 Esse relato também aparece na entrevista que realizei com Mic.
10 Embora este artigo seja referente a um terreiro específico, ao qual já foi realizado uma etnografia ( Veras, 2015), sugiro também outras pesquisas recentes a respeito da Mina e Umbanda no Pará, como os trabalhos de Pereira (2017), Moura (2017) e Silva (2014).
11 Zelador de santo é a maneira como o Pai Álvaro prefere ser chamado, por acreditar que é um termo que exprime o que ele realmente faz no terreiro, toma conta dos orixás, caboclos, anjos da guarda, por meio de louças, imagens e pontos ( Veras, 2015).
12 O evento citado é o 18º Congresso Mundial IUAES, ocorrido em julho de 2018 na cidade de Florianópolis.
13 Doutorado em Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação da UFRGS, o qual está em andamento.
14 “Mesmo no Ocidente, o modelo aristotélico não passou sem críticas. Tomkins, autor de teatro, em sua obra Lady Língua e a Batalha dos Cinco Sentidos de 1607, defendia a inclusão da fala enquanto sentido. Me debruçando nos últimos meses sobre as leis germânicas do período medieval, principalmente sobre as listas de compensação por injúria, pude perceber que, entre os povos germânicos, danos causados por terceiros à fala e ao tato resultavam em uma compensação monetária maior que a compensação destinada para a perda da visão.” (Pellini, 2015: 5).
15 Vale mencionar que para muitos interlocutores e interlocutoras, aos quais tive contato desde a pesquisa de mestrado, “a essência” do graffiti ou o “verdadeiro” graffiti é aquele que é feito com um caráter social, por isso a existência dos mutirões de graffiti, principalmente aqueles que são realizados em bairros periféricos com o intuito de revitalizar esses espaços, como em residências, escolas públicas, centros comunitários. Segundo esses interlocutores é esta forma de atrelar o graffiti a questões sociais que o torna graffiti. O grafiteiro(a) que mesmo pintando paredes em troca de pagamento monetário ainda atua nestas ações sociais nas periferias, consegue manter a sua imagem de grafiteiro diante da cena do graffiti.


Buscar:
Ir a la Página
IR
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por