RESUMO: Este artigo analisa a viagem do renomado Pai-de-santo Cleon de Oxalá, de Porto Alegre, para a província africana de Cabinda, ocorrida em junho de 2012. Era, para ele, a realização do sonho de conhecer a terra dos seus ancestrais religiosos e o cumprimento da missão de trazer para a sua “casa” uma porção de terra de Cabinda, para selar simbolicamente o vínculo entre os dois espaços sagrados. Porém, a realização do sonho foi acompanhada do desencanto em relação à situação da religião “tradicional” cabinda em solo africano, o que conduziu Pai Cleon a concluir que a verdadeira religião dos seus antepassados não está mais na África, mas no Rio Grande do Sul.
Palavras-chave: Religiões afro-riograndenses, pai Cleon de Oxalá , cabinda.
ABSTRACT: This article analyes the journey of the renowned Pai-de-santo Cleon de Oxalá, from Porto Alegre to the African province of Cabinda, which took place in June 2012. For him, it was the dream of knowing the land of his religious ancestors and the accomplishment of the mission of bringing to his “home” a portion of land from Cabinda, to symbolically seal the bond between the two sacred spaces. However, the fulfillment of the dream was accompanied by disenchantment with the situation of the “traditional” Cabinda religion on African soil, which led Pai Cleon to conclude that the true religion of his ancestors is no longer in Africa but in Rio Grande do Sul.
Key-words: Afro-Riograndenses religions, father Cleon de Oxalá , cabinda.
Article
O SONHO E O DESENCANTO: A VIAGEM DE UM PAI-DE-SANTO DE PORTO ALEGRE PARA A PROVÍNCIA AFRICANA DE CABINDA
THE DREAM AND DISENCHANTMENT: THE JOURNEY OF A PAI-DE-SANTO FROM PORTO ALEGRE TO THE AFRICAN PROVINCE OF CABINDA
Este texto versa sobre um fato marcante na história das religiões de matriz africana do Rio Grande do Sul, também chamadas de religiões afro-gaúchas ou religiões afroriograndenses 1. Refere-se à viagem realizada entre os dias 8 e 22 de junho de 2012 para a província de Cabinda, na África, pelo mais importante representante da “nação” Cabinda no Rio Grande do Sul, João Cleon Melo Fonseca, conhecido como Pai Cleon de Oxalá, à época com 73 anos de idade. O resgate desse evento agora, após alguns anos do seu acontecimento, justifica-se pelo fato de se tratar da primeira viagem de um pai-de-santo deste estado para a África, mais especificamente para Cabinda, e de não ter sido ela, até o presente momento, ao que consta, objeto de nenhum trabalho acadêmico 2.
Essa viagem, embora se insira dentro da temática da “reafricanização”, não seguiu a lógica comum do movimento de peregrinação à África, de “retorno às origens”, de “busca da pureza original”, que ocorre no meio afro-religioso de algumas regiões do Brasil, mas não somente daqui, desde os anos 1960, enquanto estratégia política de legitimação social e simbólica, como alguns autores têm mostrado ( Prandi, 1991; Gonçalves da Silva, 1995; Capone, 1999; Frigerio, 2005).
A reafricanização, conforme Frigerio,
é um processo sofrido por pessoas já praticantes do candomblé, do batuque ou da santeria (…) que, insatisfeitas com o conhecimento religioso que receberam, viram-se para a África de hoje, especialmente para a região dos iorubá, como fonte verdadeira de conhecimento teológico e ritual. Por meio desse processo, a África vem a ser vista não só como a origem remota da tradição religiosa mas também como modelo contemporâneo para sua prática ( Frigerio, 2005: 141) 3.
A viagem transatlântica do pai-de-santo de Porto Alegre obedeceu a uma outra lógica. Ela consistiu, segundo o seu próprio dizer, como veremos, na realização de um sonho pessoal e no cumprimento de uma missão sacerdotal. O sonho era conhecer pessoalmente o território dos seus ancestrais religiosos; a missão era trazer para a sua “casa” 4, em Porto Alegre, uma porção de terra de Cabinda para selar simbolicamente a relação fundamental entre os dois territórios sagrados, Cabinda e sua casa religiosa 5.
A análise comparativa efetuada pelo pai-de-santo entre o que observou em Cabinda e o que vigora no Rio Grande do Sul, no que tange sobretudo ao campo religioso, constitui o foco principal desse texto 6. Iniciemos, porém, pela apresentação do protagonista, o Pai Cleon de Oxalá.
João Cleon Melo Fonseca nasceu em 1939 e se considera herdeiro de uma das mais prestigiadas “nações” do Batuque, a Cabinda 7. Afirma ter sido iniciado nesta religião pela Mãe Palmira Torres dos Santos, de Oxum, falecida em 1968, a qual, por sua vez, foi iniciada por Valdemar Antônio dos Santos, Valdemar de Xangô Camucá, considerado, segundo Pai Cleon, “o rei da nação Cabinda no estado do Rio Grande do Sul” 8. Este último era africano de Cabinda, tendo chegado inicialmente na cidade de Rio Grande, dali a Pelotas e, posteriormente, a Porto Alegre, onde faleceu em 1930 9.
Cleon de Oxalá nasceu num lar afro-religioso e se considera “religioso”, isto é, pertencente à religião de matriz africana, desde o nascimento” 10. Afirma que ao completar doze anos de idade já havia recebido todos os seus orixás. Em 1959, com vinte anos de idade, abriu a sua própria casa de religião, chamada Reino de Oxalá 11. Informa que recebeu de sua mãe-de-santo uma boa formação religiosa. Por isso, ao longo dos anos sempre atuou como sacerdote afro-religioso, sendo procurado e consultado por pessoas de diferentes camadas sociais e grupos étnicos. Entre as décadas de 1980 e 2000 atuou fortemente para a expansão das religiões afro-riograndenses para a Argentina e o Uruguai ( Pi Hugarte, 1997; Oro, 1999; Frigerio, 2001).
De fato, como se pode ler no próprio site do Reino de Oxalá 12, a atividade religiosa de Pai Cleonnão está restrita somente ao Rio Grande do Sul, mas aos Estados de Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Fortaleza e Alagoas. No exterior tem Filhos na Argentina, Chile, Estados Unidos - Nova York e Texas, Canadá, Roma, Espanha e no Japão. Em todos esses locais, seus Filhos de Santo possuem Templos religiosos sob sua orientação espiritual.
Ao longo dos anos, Pai Cleon afirmou-se como uma referência afro-religiosa no Rio Grande do Sul. Adquiriu notoriedade sendo, segundo as suas próprias palavras, “muito respeitado perante a sociedade. As autoridades todas me respeitam muito”. Pai Cleon comparece seguidamente na mídia como representante desse segmento religioso e realiza um importante trabalho assistencial, sobretudo com crianças e desabrigados. Afirma ele:
atendo o povo, atendo aquelas pessoas que têm dinheiro e mais aquelas que não têm dinheiro. Gosto muito de ajudar as pessoas. Além de ser filho de Oxalá, sou capricorniano e capricorniano gosta muito de ajudar as pessoas. Então eu ajudo muito as pessoas naquilo que eu posso, na parte espiritual e, de uma forma ou de outra, sempre procuro ajudar e dar atenção às pessoas.
Em razão do conjunto de práticas assistenciais realizadas ao longo de décadas, somadas ao prestígio adquirido não somente na comunidade afro-religiosa, mas, também, na sociedade gaúcha mais amplamente, no dia 30 de agosto de 1997 Pai Cleon de Oxalá recebeu das mãos do então governador do estado do Rio Grande do Sul, Antônio Britto, a Comenda Negrinho do Pastoreio, a mais alta distinção outorgada pelo governo estadual a um cidadão.
Pai Cleon informa que desde muito jovem alimentou o sonho de visitar a África, mais especificamente a terra dos seus antepassados religiosos, em Cabinda 13. Era “um sonho, uma ideia”, segundo as suas palavras 14.
A viagem de Pai Cleon se revestia de diferentes razões. Consistia, reitero, na realização de um desejo pessoal de não somente ir à África, mas de conhecer a região de Cabinda, posto que a sua ascendência religiosa está vinculada a este território e a esta “nação” religiosa. Mas, especialmente, a viagem possuía uma razão simbólica, qual seja, a de “buscar um pouco de terra de Cabinda para fazer um monumento no Reino de Oxalá, com uma ligação direta da África ao Reino de Oxalá”. Em outras palavras, a razão da viagem do pai-de-santo gaúcho para Cabinda não consistia simplesmente em conhecer Cabinda, como também não visava resgatar a “pureza” religiosa, ou aprimorar o seu conhecimento religioso, como tem se observado em viagens semelhantes realizadas à África por outros agentes afro-religiosos ( Frigerio, 2005). Tratava-se, fundamentalmente, de cumprir uma missão, para selar simbolicamente o vínculo da sua casa com as origens africanas. Segundo as suas palavras: “o que me interessava era isso: era ir a Cabinda buscar um pouco de terra e plantar. Essa era a minha missão. Eu queria trazer a terra”.
Obviamente que ainda no Brasil o pai-de-santo se questionou se poderia trazer terra consigo, mesmo em quantidade reduzida. Indagava-se se não seria barrado pelas autoridades alfandegárias. Para estar mais seguro, resolveu vestir durante a viagem roupa branca - uma entre as indumentárias dos sacerdotes afro-religiosos - e carregar consigo um pano branco de tecido contendo o axé do Bará (milho, pipoca, batata), envolto em duas “imperiais”, ou seja, correntes de contas e búzios. A terra de Cabinda seria inserida nesse pano e caso alguém lhe perguntasse do que se tratava diria ser “uma segurança minha, que uso quando eu viajo”.
A obtenção do visto para Angola foi uma grande dificuldade enfrentada. Eram várias as exigências: provar ser proprietário de imóvel, possuir uma boa conta bancária, além de cartões de crédito com valores expressivos. Além disso, o consulado de Angola se localiza em São Paulo, local para onde o pai-de-santo teve que se dirigir por duas vezes. No consulado a entrevista foi minuciosa, sendo indagado sobre as razões da viagem. Informou que se tratava de uma viagem de férias para Luanda. “Nós, em momento nenhum pronunciamos que queríamos ir para Cabinda”. O pai-de-santo usa o plural porque viajou para Angola com Eduardo Lopes, o pai Eduardo de Xapanã, seu amigo, secretário particular e, como afirma, “hoje tido como herdeiro do Reino de Oxalá” 15. Falaram em fazer turismo porque, segundo esclarece, imaginavam que poderiam encontrar dificuldades na obtenção do visto, caso mencionassem o interesse de ir a Cabinda e, especialmente, por motivos religiosos. A ideia era uma vez estando em Luanda se deslocarem para Cabinda. Partiram de Porto Alegre no dia 8 de junho de 2012, com destino a São Paulo, dali para Lisboa e depois para Luanda, em Angola. Confessa Pai Cleon que a chegada em Luanda ocorreu na madrugada e foi bastante impactante pela precariedade encontrada, tanto no aeroporto quanto na própria cidade. Veio-lhe inclusive na mente, segundo afirma, o desejo de retornar. “Meu Deus, me apavorei. Nós vamos embora. O aeroporto era precário. A situação era precária”.
Após alguns dias em Luanda a dupla partiu, num avião pequeno, de hélice, para Cabinda, num voo de uma hora e vinte minutos 16. Informa o pai-de-santo que ficou ainda mais surpreso com a pobreza encontrada em Cabinda. “Horrível! Deus me livre! Só via as pessoas dizendo: tenho fome. Muita pobreza, muito, muito pobre”.De fato, se, por um lado, como refere a historiadora Pereira Ramos (2005), o território de Cabinda é muito rico - pois, no seu subsolo, além do petróleo se encontram vários metais, a terra pode ser cultivada e o litoral e os rios são ricos em peixes - por outro lado, “as populações cabindenses vivem de extrema pobreza irremediável”. Por isso mesmo, pergunta-se a historiadora:
Como se pode compreender que Cabinda não tenha um porto, um aeroporto, sem estradas mesmo no centro da cidade, sem água potável, sem petróleo de iluminação e gás butano, sem combustível, sendo um produtor de mais de 75% de produção diária de crude praticado em Angola? 17
A autora prossegue afirmando que “as populações de Cabinda são vítimas de toda a poluição de exploração de petróleo e não beneficiam nada do petróleo”. Para ela, a raiz do problema radica na dependência de Cabinda ao governo de Luanda, “com absoluto desprezo pela vontade das suas populações”, de Cabinda. A solução seria, prossegue, a independência de Cabinda para deixar de engordar as contas bancárias da elite e do governo angolanos.
Tem razão, portanto, Pai Cleon em se dizer chocado com o que encontrou em Cabinda. Por isso mesmo, segundo ele, os dias passados em Cabinda foram muito difíceis. A comida era escassa e de baixa qualidade; encontraram resistências para fotografar locais, monumentos e pessoas; tiveram dificuldade em encontrar um sacerdote da religião “tradicional” 18 e ao deixarem a cidade foram minuciosamente revistados. Ou seja, na versão do pai-de-santo, “foi muito assustador. Na verdade assustou. Assustou bastante. Tudo é proibido lá. Achei estranho”.Mas, o que mais surpreendeu o pai-desanto gaúcho em terra Cabinda foi a invisibilidade, e mesmo a ausência, da religião “tradicional”. Foi informado que a polícia tem permissão para prender as pessoas que encontrar participando de cultos “tradicionais”. Por isso mesmo, esses cultos somente podem ocorrer às escondidas, conduzidos, em toda a região, “por uma meia dúzia de velhos”, segundo ouviu dizer, cujo acesso a eles é bastante difícil. Ele somente ocorre através de um agenciador, bem pago. “Tem que pagar para chegar e até para conversar com o pai de santo. Foi o que nós fizemos”.
De fato, foi por meio de um funcionário de um hotel que Pai Cleon e Eduardo chegaram até uma casa religiosa, localizada num vilarejo próximo da cidade de Cabinda. Isto ocorreu após uma negociação financeira. Dispenderam 300 dólares norte-americanos. “Nós pagamos para a pessoa que nos levou até lá. Mas claro que ele (o pai-de-santo local) deve ter ganho alguma coisa. É uma máfia”, disse Pai Cleon.
A casa era bastante simples. Pai Cleon conversou por cerca de 20 minutos com o sacerdote local. Foi uma conversa com tempo previamente estipulado. Diz Pai Cleon: “Eu conversei com ele sobre o que nós fazíamos aqui. E ele disse o que fazia lá. Porque não pode fazer mais”. Ou seja, não podem realizar rituais públicos. “Só podem cultuar o Orixá da forma deles lá, muito restrito, muito fechado”.
Além disso, Pai Cleon informa que durante a conversa que mantiveram notou o sacerdote local bastante ansioso, apreensivo e temeroso, porque, afirma: “a polícia batia toda hora. Eles são muito vigiados. A polícia estava ali toda hora. Exploram eles.” 19
Após a conversa mantida com o sacerdote local e tendo dele recebido a anuência, Pai Cleon retirou uma porção de terra do assentamento de Exu, localizado junto à casa do sacerdote. Este ato foi dotado de intensa simbologia, pois representou o coroamento da viagem do sacerdote gaúcho, uma vez que ele estava alcançando o seu principal objetivo da viagem para Cabinda: coletar a terra sagrada dos seus ancestrais.
O retorno do pai-de-santo para Porto Alegre ocorreu no dia 22 de junho de 2012. Apesar dos receios e medos supostos, não encontrou nenhum obstáculo nas alfândegas dos países pelos quais passou (Angola, Portugal, Brasil) e, assim, conseguiu trazer para casa uma porção de terra de Cabinda.
Pai Cleon e seu acompanhante foram recebidos no aeroporto de Porto Alegre por uma comitiva formada majoritariamente por seus filhos e filhas, netos e netas-de-santo. Em caravana se dirigiram para o Reino de Oxalá. No dia seguinte, ocorreu a grande solenidade, a inauguração do “Monumento Africano”, ou “Monumento Nação Cabinda”, situado na entrada do Reino de Oxalá.
De formato retangular, erguido com tijolos e revestido com pedra trabalhada em alto-relevo, o monumento porta na sua superfície uma placa de mármore branca, contendo uma porção de terra de Cabinda e ao lado os seguintes dizeres:
O Reino de Oxalá em homenagem a Pai Valdemar de Xangô, que trouxe a nação de Cabinda para o Brasil e à Mae Palmira de Oxum, que preservou e transmitiu os cultos desta Nação, ergue o “Monumento Nação Cabinda”. Aos 23 dias do mês de junho de 2012, é plantado sobre este Templo, mais um Axé da África no Brasil. “Nada detém o crescimento se a raiz é forte” Pai Cleon
A inauguração do monumento foi, como não poderia deixar de ser, um momento bastante solene e marcante na vida do Reino de Oxalá e do seu fundador, Pai Cleon, posto que, conforme consta no site da instituição, consistiu na
realização de um grande sonho, trazer para dentro do Reino de Oxalá o axé da África, especificamente o axé de Cabinda representado pela terra de onde teve início suas raízes. A festa contou com a presença de autoridades Políticas e Religiosas, toda a família do Reino de Oxalá filhos, netos e bisnetos 20.
Pai Cleon esclarece que além da terra visível na parte superior do monumento, outra porção do “axé de Cabinda” se encontra debaixo do mesmo, servindo de fundamento:
o fundamento mesmo está embaixo. Eu trouxe a terra. Ali em cima tem um pouco de terra, eu botei ali e embaixo eu fiz um fundamento para a mãe Oxum, o Pai Xangô, que é nosso rei de Camucá. A Mãe Oxum e o Pai Oxalá que estão plantados ali embaixo. Então, é eterno aquilo ali.
Ou seja, na perspectiva do pai-de-santo, o fundamento não está na superfície, mas na concretude de um “ícone”, a terra sagrada, localizada na base do monumento, singularizando neste local, hoje e amanhã, com sua intensidade, as divindades e todas as dimensões do sagrado. Neste caso, o fundamento mantém viva a circulação do axé e assegura o encadeamento simbólico entre os territórios sagrados de um e outro lado do Atlântico, ao mesmo tempo em que nele juntam-se linhas de intensidades que garantem força mística perene e segura para os membros do Reino de Oxalá 21. O jornal afro-religioso do Rio Grande do Sul denominado Grande Axé, fez uma reportagem com Pai Cleon sobre a sua viagem e o monumento erigido diante do Reino de Oxalá e assim se pronunciou:
O Reino de Oxalá foi abençoado pelos ancestrais da Nação Cabinda, pois Pai Cleon de Oxalá do Reino de Oxalá de Porto Alegre (...) traz a Rio Grande o presente mais valioso para nós umbandistas e africanistas de Rio Grande, a terra da Nação Cabinda, diretamente da África, uma parte da energia poderosa dos orixás da nação a terra dos ancestrais, para nós como a primeira casa da raiz de Cabinda pura em Rio Grande simboliza a pureza e merecimento dos orixás, onde iremos agradecer aos pais por mais esta dádiva divina 22.
O site do Reino de Oxalá, por sua vez, chama a atenção para o fato de que a iniciativa de Pai Cleon de ir buscar um axé na África e implantá-lo em sua casa constitui algo inédito no Brasil. Diz o site: “A importância deste ato estende-se a todo Brasil pois não temos registros de um Babalorixá dirigir até o berço da sua Nação e trazer um axé para confirmar aquilo que foi herdado por nossos ancestrais e vivenciado diariamente em nossos terreiros” 23.
Após realizar a proeza de retirar a terra do solo sagrado de Cabinda e entronizá-la solenemente em sua casa, Pai Cleon afirma, satisfeito: “foi o meu grande sonho. Bom, o dia que eu cheguei da África eu disse assim: ‘A minha missão, o que eu tinha que fazer eu já fiz. De hoje, daqui em diante, o que vier para mim é lucro’”.
Pai Cleon não esconde a sua decepção em relação às condições de vida encontradas em Angola e em Cabinda. Vários foram os momentos em que ele disse ter ficado chocado com a precariedade observada naquela região africana, desde os aeroportos que frequentou até as cidades visitadas. Porém, o desencanto maior se deu em relação à invisibilidade dos cultos “tradicionais” em Cabinda.
De fato, o campo religioso em Cabinda se inscreve nos dispositivos legais implementados em Angola. Lembramos que por ocasião da independência deste país, em 1975, com a instalação do governo marxista-leninista, todas as religiões “passaram a exercer as suas actividades sem reconhecimento oficial, ou seja, à margem da lei” 24. Neste contexto, as igrejas Tocoista e Kimbanguista - igrejas sincréticas lideradas por líderes messiânicos 25 - passaram a ser perseguidas. Em 1987, após várias ações conduzidas por líderes da Igreja Católica e de igrejas evangélicas, o Ministério da Justiça reconheceu e legalizou doze igrejas e organizações religiosas no país, a saber: a Igreja Evangélica do Sudoeste de Angola, a Igreja Evangélica Congregacional de Angola, Igreja Católica, Igreja Metodista Unida, Igreja Evangélica de Angola, Igreja Evangélica Reformada de Angola, Igreja de Jesus Cristo sobre a Terra (Kimbanguista), Assembleia de Deus Pentecostal, Igreja Adventista do Sétimo Dia, Convenção Baptista de Angola e União de Igrejas Evangélicas de Angola. Em 1992, o governo ampliou o reconhecimento de igrejas, chegando o seu número a 29, incluindo os Tocoistas, Testemunhas de Jeová e a Congregação Cristã de Amizade Afro-Europeia.Segundo o jornalista angolano Mateus de Lemos Rodrigues, as religiões “tradicionais” ainda vigoram em Angola, mas em zonas rurais. Diz ele: “Uma pequena parte da população rural pratica o animismo ou religiões tradicionais indígenas” 26. Ainda segundo Rodrigues, vigora hoje, oficialmente, a liberdade religiosa em Angola, mas o governo exige que os grupos religiosos requeiram a sua legalização. Para tanto, “os grupos devem fornecer informação de carácter geral sobre os seus antecedentes e ter pelo menos 100.000 fiéis adultos para se poderem registrar”.
É claro que esta exigência legal não é alcançada pelas “religiões tradicionais indígenas”, as quais, consequentemente, em Angola e em Cabinda, são tidas como não oficiais e, aparentemente, circunscritas às zonas rurais. O mais grave, porém, é a existência de uma espécie de complô movido contra tais religiões, mediante campanhas difamatórias, por parte de agências governamentais, de grupos religiosos e de organizações da sociedade civil. É o que afirma Mateus de Lemos Rodrigues:
Agências do governo, grupos religiosos e organizações da sociedade civil continuaram as campanhas contra as religiões tradicionais que envolvem, xamãs, empregam sacrifícios de animais ou foram identificadas com a prática de feitiçaria. O objectivo destas campanhas foi desencorajar práticas abusivas que possam às vezes resultar de crenças indígenas tradicionais, em particular violência associada ao exorcismo. 27
Não é difícil entender, portanto, porque neste contexto político e social os agentes religiosos e frequentadores de religiões “tradicionais” encontram resistências e dificuldades de atuarem no país, sendo inclusive perseguidos pelas autoridades policiais. Outro aspecto importante a ser salientado é este: em Angola e também em Cabinda as igrejas autorizadas a funcionar são, majoritariamente, aquelas ligadas aos colonizadores, ou seja, igrejas cristãs.
Porém, o que ocorre nessa região africana reproduz, até certo ponto, uma situação mais ampla, verificada em várias outras regiões do continente, onde, segundo o antropólogo francês André Mary (2000), a ordem colonial rompeu com os “cultos tradicionais” e tentou “domesticar a magia”, impondo uma ordem religiosa que visava queimar os fetiches e converter as pessoas ao poder de Jesus. Produziu, em consequência, “personagens híbridos”, “pastores exorcistas”, “profetismos indígenas”, “movimentos de despertar”, “religiões bricoladas”, “igrejas negras”, “cultos sincréticos” e igrejas pentecostais e neopentecostais regidas pelo paradigma da cura divina. Toda essa violência simbólica promovida pela situação colonial e pós-colonial que se espalhou pelo continente, em graus variados segundo as regiões, inaugurou um cristianismo que alimenta a acusação segundo a qual todos aqueles que praticam em segredo cultos tradicionais mantém pacto com o “diabo”, esta figura ambivalente, híbrida e sincrética, mas crucial para produzir “l´opposition dualiste du Bien et du Mal” e, desta forma, “le passage d´une logique plurielle fondée sur l´inclusion des contraires (un-multiple, intérieur-extérieur”, etc) à une logique dualiste implicant l´exclusion et la hiérarchisation des opposés…” ( Mary, 2000: 109).
É, portanto, neste contexto de intolerância religiosa e de perseguição aos cultos “tradicionais” que o sacerdote de Cabinda encontrado por Pai Cleon lhe afirmou: “o que tinha aqui em Cabinda (da religião ‘tradicional’) não existe mais”. Esta observação é reverberada por Pai Cleon, para quem, “na região de Cabinda, onde nós fomos, de onde veio a nossa nação, não existe, está extinta. A religião está escassa, não existe mais. Não tem terreiro, não tem nada”.
Assim sendo, ambos os sacerdotes coincidem na constatação de que não existindo mais a religião “tradicional” em Cabinda, ela se encontra viva no Brasil, e também no Rio Grande do Sul. Nas palavras de Pai Cleon, “da religião Cabinda o que tem está aqui. Da nação Cabinda o que tem está aqui. As raízes estão aqui. Os fundamentos estão aqui mesmo (...). Queira ou não queira, a nossa religião é aqui. Já está aqui há mais de um século” 28.Esta afirmação do pai-de-santo gaúcho reforça uma ideia recorrente na comunidade afro-religiosa do Rio Grande do Sul, segundo a qual a origem do Batuque é africana, mas a sua legitimidade foi adquirida e conquistada no próprio estado. De fato, o mito de origem do Batuque narra que teriam sido os negros africanos, ou seus filhos, vindos do continente africano e/ou de outras cidades brasileiras, que iniciaram e desenvolveram o Batuque neste estado, inicialmente na região portuária da cidade de Rio Grande, na primeira metade do século XIX ( Mello, 1994) - “talvez pelos anos 1840” ( Correa, 1998: 54) - daí se espalhando para as demais cidades do estado, inclusive para a capital. Isto significa que de forma diferente de muitas outras regiões brasileiras - como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo - onde a religião de matriz africana se implantou a partir da expansão da Bahia, no Rio Grande do Sul o Batuque firma sua origem e sua legitimidade no próprio território gaúcho. Aqui radica a “força das raízes”, segundo a expressão do africanista J. M. Gibbal (1994: 107).
Obviamente que foram inúmeras as personalidades históricas que ao longo do tempo contribuíram para o Batuque alcançar respeitabilidade e legitimidade. Neste sentido, há uma lacuna a ser preenchida, a do resgate dos nomes marcantes das linhagens religiosas, das diferentes nações que formam o Batuque. Minimamente, na galeria dos ancestrais deve figurar os nomes dos babalorixás Gululu, Waldemar do Xangô Camucá, Romário do Oxalá, Henrique da Oxum, e das ialorixás Maria Madalena de Oxum e Palmira da Oxum, da Cabinda; Paulino do Oxalá, Manozelzinho do Xapanã e Tati do Bará, do Gege-Ijexá; Idalino do Ogum, Joãozinho do Bará e a figura mítica do Príncipe Custódio de Almeida - cuja vida foi retraçada por M. H. Nunes da Silva (1999) - do “lado” Jeje; pai Antoninho, as ialorixás Emilia da Oyá Ladjá, Andrezza, Ester da Iemanjá e Moça da Oxum, do “Oió” 29, entre outros. A vida desta última mãe-de-santo, aliás, foi objeto de estudo de N. Correa no livro “Caminhos da Alma: memória afro-brasileira”, organizado por Vagner Gonçalves da Silva (2002).
Mas, é claro, em todas as regiões do país há uma memória de venerados sacerdotes e sacerdotisas do campo religioso afro-brasileiro que contribuíram para o fortalecimento dessa religião. Neste sentido, o livro coletivo acima referido, organizado por Gonçalves da Silva, apresenta relatos biográficos de lideranças religiosas de oito cidades brasileiras (São Luís, Aracaju, Salvador, Rio de Janeiro, Niterói, São Paulo, Porto Alegre e Recife), cujas trajetórias de vida se entrelaçam com o desenvolvimento desse campo religioso em suas cidades, considerando sempre a relação do contexto local com o nacional.
É na esteira da sugestão apresentada pelo antropólogo da USP que a biografia de Pai Cleon de Oxalá foi aqui sucintamente apresentada e, especialmente, a sua viagem a Cabinda foi resgatada, pois trata-se de aportes importantes não somente para se conhecer a história de vida do pai-de-santo, mas, especialmente, para se compreender melhor o “lado” Cabinda, em particular, e a própria história do Batuque no Rio Grande do Sul, mais amplamente.
Fazer a travessia do Atlântico, chegar à África e, especialmente, em Cabinda, consistiu na realização de um sonho pessoal, alimentado desde a infância, por Pai Cleon de Oxalá. Porém, segundo a sua narrativa produzida alguns anos após a viagem, esta não visou melhorar o seu prestígio pessoal, nem aprimorar os seus conhecimentos religiosos, itens comumente presentes em viagens transatlânticas semelhantes realizadas por agentes afro-religiosos do Brasil, mas não somente daqui. A viagem foi concebida pelo pai-desanto como sendo o cumprimento de uma missão, para selar simbolicamente o elo de ligação entre África e Brasil. E isto se deu mediante a retirada de uma porção de terra do solo sagrado de Cabinda e sua implantação ritualizada em sua casa em Porto Alegre.
Para Pai Cleon e os membros do Reino de Oxalá, a terra de Cabinda contém origem, tradição, potência, força vital, energia, bênção, poder sagrado, ou, numa palavra êmica que condensa tudo isto: axé. Ela foi cuidadosamente trazida e ritualisticamente depositada no monumento, na entrada do Reino de Oxalá, como seu fundamento. Por isso mesmo, após ter constatado que “em Cabinda a religião não existe mais, ela está aqui”, o sacerdote afro-religioso gaúcho aponta para o “Monumento Nação Cabinda” e, com a serenidade do dever cumprido, exclama, satisfeito e convicto: “é eterno aquilo ali”.
Como já foi referido - por exemplo, por Correa (1992) e Oro (2002; 2008) - na atualidade a grande maioria dos terreiros do Rio Grande do Sul, numa porcentagem seguramente superior a 80%, cultuaria a Linha Cruzada ocupando a Umbanda “pura” e o Batuque “puro”, lugares e espaços bem menores. No entanto, estes “tipos” precisam ser relativizados porque, como bem observou Barbosa Neto (2012), no quotidiano das casas é possível observar uma série de itens que circulam entre eles, ora aproximando-os, ora separando-os, chegando até mesmo a se desdobrarem em outras modalidades afro-religiosas. Em outro artigo ( Oro, 2012) apresento hipóteses sobre a importante incidência das religiões afro-brasileiras, em geral, e da Linha Cruzada, em particular, no Rio Grande do Sul.
Enfim, Frigerio sustenta que a reafricanização constitui um processo de independência que ocorre em ambientes de diáspora secundária, “em relação a mentores religiosos anteriores, particularmente daqueles em espaços de diáspora religiosa primária”, enquanto “um processo de constituição de uma religião mundial” (Id. Ibid.:149).
Para o Pai Adalberto Ojuobá Pernambuco (2019: 40), “os nomes das nações são apenas rótulos utilizados, talvez para marcar a origem dos fundamentos e não estes na sua pureza original”. Por sua vez, Braga (1998: 41) defende que a filiação das “casas” a um determinado “lado” “ocasiona o respeito à tradições próprias de cada raiz ancestral, como no preparo e nos ingredientes dos alimentos sagrados, nos números correspondentes dos orixás, aos próprios orixás cultuados, na música, etc”. Assim sendo, vincular-se a um ou mais “lados” significa inscrever-se numa tradição para, segundo Capone, (1999: 28) “marcar uma diferença”, o que permite “se interrogar sobre as funções políticas das tradições…”.
Assim sendo, fica claro, pelo que precede, que a ideia de “nação” não consiste numa realidade histórica ou ontológica do Batuque, mas uma construção social portadora dos significados acima referidos pelos autores nominados. Neste sentido, levando-se em conta a análise de Vivaldo Costa Lima sobre a relação entre nação e terreiro no Candomblé da Bahia, nota-se uma especificidade concernente à dinâmica que envolve o Batuque. De fato, escreveu Costa Lima: “A nação, portanto, dos antigos africanos na Bahia foi aos poucos perdendo sua conotação política para se transformar num conceito quase exclusivamente teológico. Nação passou a ser, desse modo, o padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé da Bahia estes sim, fundados por africanos angolas, congos, jejes, nagôs, - sacerdotes iniciados de seus antigos cultos, que souberam dar aos grupos que formaram a norma dos ritos e o corpo doutrinário que se vêm transmitindo através dos tempos e a mudança nos tempos.” (Costa Lima, 1976: 77). Mais informações sobre os “lados”, ou “nações”, do Batuque podem ser encontradas em Barbosa Neto (2012).
Economicamente a região foi explorada desde os tempos coloniais, com a extração de madeira e produção de café, cacau e óleo de palma. A agricultura é de subsistência e a partir de 1964 foi iniciada na região a exploração do petróleo que representa hoje cerca de 70% da exportação de petróleo da Angola.