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EXPERIÊNCIAS DE CONVERSÃO EM UMA COMUNIDADE TERAPÊUTICA RELIGIOSA FEMININA
Janine Targino; Wania Mesquita
Janine Targino; Wania Mesquita
EXPERIÊNCIAS DE CONVERSÃO EM UMA COMUNIDADE TERAPÊUTICA RELIGIOSA FEMININA
EXPERIENCIAS DE CONVERSIÓN EN UNA COMUNIDAD RELIGIOSA TERAPÉUTICA FEMENINA
CONVERSION EXPERIENCES IN A FEMALE RELIGIOUS THERAPEUTIC COMMUNITY
Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 22, pp. 1-19, 2020
Universidade Estadual de Campinas
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RESUMO: O presente artigo focaliza experiências de conversão em uma comunidade terapêutica religiosa feminina (CTR) localizada na cidade de Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro. A pesquisa foi realizada com mulheres em tratamento contra a dependência química, entrevistadas entre os anos de 2016 e 2018, que relataram nas situações de entrevistas as suas experiências de conversão religiosa. Também foram realizadas observações de campo e entrevistas feitas com as líderes da CTR. Os dados das entrevistas nos mostram que a conversão representa, no âmbito desta CTR, uma etapa de extrema importância para a realização do tratamento proposto.

PALAVRAS-CHAVE: Dependência Química, comunidades Terapêuticas, trajetórias femininas.

RESUMEN: Este artículo se centra en las experiencias de conversión en una comunidad religiosa terapéutica de mujeres (CTR) situada en la ciudad de Campos dos Goytacazes, Río de Janeiro. La investigación se llevó a cabo con mujeres en tratamiento contra la dependencia química, entrevistadas entre los años 2016 y 2018, quienes relatan sus experiencias de conversión religiosa. También se realizaron observaciones sobre el terreno y entrevistas con los dirigentes del CTR. Los datos de campo nos muestran que, en el contexto de este CTR, la conversión representa es una etapa de extrema importancia para la realización del tratamiento propuesto.

PALABRAS CLAVE: Dependencia química, comunidades terapéuticas, trayectorias femeninas.

ABSTRACT: This article focuses on conversion experiences in a female religious therapeutic community (CTR) located in the city of Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro. The research was carried out with women undergoing treatment for chemical dependence, interviewed between the years 2016 and 2018, who reported in the situations of interviews their experiences of religious conversion. Field observations and interviews were also made with CTR leaders. The data from the interviews show us that the conversion represents, within the scope of this CTR, an extremely important stage for carrying out the proposed treatment.

KEYWORDS: Chemical dependence, therapeutic Communities, female trajectories.

Carátula del artículo

Article

EXPERIÊNCIAS DE CONVERSÃO EM UMA COMUNIDADE TERAPÊUTICA RELIGIOSA FEMININA

EXPERIENCIAS DE CONVERSIÓN EN UNA COMUNIDAD RELIGIOSA TERAPÉUTICA FEMENINA

CONVERSION EXPERIENCES IN A FEMALE RELIGIOUS THERAPEUTIC COMMUNITY

Janine Targino
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Brazil
Wania Mesquita
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brazil
Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 22, pp. 1-19, 2020
Universidade Estadual de Campinas
Introdução

Este artigo focaliza experiências de conversão em uma comunidade terapêutica religiosa (CTR) 1 localizada na cidade de Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro. A pesquisa foi realizada com mulheres em tratamento contra a dependência química, entrevistadas entre os anos de 2016 e 2018, que relataram nas situações de entrevistas as suas experiências de conversão religiosa. Também foram realizadas observações de campo e entrevistas feitas com as líderes da CTR.

O lócus da pesquisa de campo é uma CTR vinculada à Missão Batista Cristolândia que recebe, exclusivamente, mulheres usuárias de drogas e/ou dependentes químicas de diversas cidades do Rio de Janeiro e de outros estados. A Missão Batista Cristolândia constitui uma iniciativa criada pela Igreja Batista em 2008 2 e que atualmente possui quarenta e duas CTRs, entre unidades masculinas e femininas, espalhadas por nove estados brasileiros, além do Distrito Federal. Tal como nos é apresentado na página mantida pela instituição na internet, 3

A Cristolândia oferece um programa permanente de prevenção, recuperação e assistência a dependentes químicos e codependentes. Atuamos alinhados às políticas públicas contra a dependência química, focando nossas ações na abordagem de rua, atendimentos presenciais, encaminhamentos para a rede socioassistencial, convivência em longa duração e processo de ressocialização do indivíduo.

O trabalho realizado pela Missão Batista Cristolândia é baseado numa abordagem que contempla o uso de recursos medicamentosos, disciplina, espiritualidade e total abstinência de substâncias psicoativas. No que tange especificamente à esfera da espiritualidade é possível identificarmos, no plano de ação das CTRs desta instituição, a presença constante de princípios religiosos apregoados pela Igreja Batista. Além disso, o método aplicado por estas CTRs inclui o convívio entre pares - que, neste caso, são indivíduos usuários e/ou dependentes de drogas - em espaços de isolamento. O tratamento proposto pela Missão Batista Cristolândia estabelece o período de nove meses para a duração do tratamento. No entanto, este período pode ser estendido por mais três meses, caso o (a) interno (a) precise de mais tempo para encontrar recursos e apoio que o possibilitem retomar a vida fora da instituição. Há, inclusive, casos em que os (as) internos (as) podem permanecer na CTR por mais de doze meses, especialmente quando se trata de indivíduos que não possuem uma rede de apoio que possa os acolher após o tratamento.

A rotina dentro da CTR onde realizamos o trabalho de campo é bastante regrada, com a realização diária de atividades de trabalho por parte das internas. Tais atividades consistem, sobretudo, na manutenção, organização e limpeza dos espaços físicos da instituição. Ao mesmo tempo, a rotina estabelecida para as internas abarca a participação em cultos religiosos e outras atividades de conotação religiosa, reuniões de partilha e sentimentos e atendimento terapêutico.

Ainda, no que diz respeito à caracterização desta CTR - ou das comunidades terapêuticas numa perspectiva mais abrangente - enfatizamos os mesmos elementos descritos por De Leon (2003), onde este autor nos diz que:

Quando caracterizada amplamente em termos antropológicos culturais, a CT tem características semelhantes a outras comunidades, como as religiosas e as seculares, as pequenas cidades, os bairros, as prisões, os hospitais, as clínicas, os quartéis militares, as escolas e até as corporações. Ela tem um propósito geral, uma estrutura organizacional, regras formais e normas informalmente partilhadas, valores, crenças, costumes específicos de sua própria “cultura”. Tal como outras comunidades, as CTs dependem da adesão, dos investimentos e da lealdade de seus participantes para ter comunidade. ( De Leon, 2003: 93)

Importante destacar que a percepção a respeito do uso de drogas compartilhada internamente pela instituição transita entre as concepções de pecado e de doença. Ambas as concepções são extremamente importantes para compreendermos a atuação da CTR nesse contexto, visto que tanto em uma como na outra a dependência química é classificada apenas como uma questão do indivíduo. Seguindo os apontamentos feitos por Loeck (2018):

Não obstante, ambos os paradigmas parecem nutrir uma base comum para as percepções morais que as instituições detêm sobre seus clientes. Seja a partir da ideia de pecado ou de doença incurável, o uso problemático de drogas é percebido como um problema do indivíduo - independente do contexto social em que vive - e que só por ele pode ser enfrentado. ( Loeck, 2018: 81)

Justamente por ser categorizada como um problema de ordem individual, na CTR observada a dependência química é vista como um fenômeno que precisa do envolvimento e dedicação do indivíduo para ser controlado. E, entre os esforços a serem empregados pelo dependente químico, o processo de conversão religiosa aparece como algo indispensável para melhor compreendermos a maneira como o tratamento proposto pela CTR é realizado.

A conversão, enquanto parte estruturante do tratamento para a dependência química em determinadas instituições de perfil religioso, fora abordada em pesquisas feitas por Teixeira (2016, 2013), Targino (2017a, 2017b) e Ribeiro e Minayo (2015), que informam ser esse processo composto por dois elementos distintos: a crença e o engajamento. Ou seja, para que um indivíduo possa ser considerado por seus pares como plenamente convertido, ele precisa estar engajado nas práticas religiosas e demonstrar que acredita na eficácia de tais práticas. Resumidamente, acreditar e praticar são essenciais para a conversão.

Tendo em vista a relevância que a conversão possui dentro do escopo do tratamento para a dependência química nas CTRs, neste artigo nos dedicaremos ao exame de como esta experiência é relatada por mulheres em tratamento. Acreditamos que, por meio dos apontamentos apresentados a seguir, poderemos apreender com mais propriedade a maneira como as CTRs atingem a sociedade mais abrangente, atuando, paulatinamente, no sentido de arregimentar fiéis para os grupos religiosos que as mantém. Somado a isso, pensamos ser indispensável a análise em profundidade dos relatos destas mulheres para que seja possível compreendermos a maneira como elas desenvolvem ou não suas crenças e pertencimentos religiosos e como eles figuram em suas subjetividades.

Conversão como parte do tratamento

A respeito dos protocolos seguidos nos cuidados com as internas, existem alguns elementos que devem ser destacados. Madalena, 4 coordenadora da CTR, ao falar sobre os primeiros dias de tratamento das mulheres recebidas, indicou que o processo de abstinência da droga acontece na maioria dos casos. Para lidar com essa questão tão delicada, ela afirmou que todas as internas são acompanhadas por médicos e psicólogos, 5 tornando o uso da terapia e de recursos medicamentosos instrumentos basilares de todo o processo. Dessa forma, ainda que o modelo de tratamento oferecido pela CTR tenha como norteador principal a adoção de uma perspectiva religiosa, o uso de medicamentos e terapia agrega a abordagem médico-científica ao tratamento proposto.

Além disso, segundo Madalena, por utilizar terapia e recurso medicamentoso, o tratamento pode ser personalizado segundo as necessidades de cada uma das internas. Uma vez que esta CTR recebe mulheres usuárias e dependentes das mais variadas substâncias, a preocupação da instituição em adaptar o tratamento a cada caso específico é algo veemente. Nas situações em que, por exemplo, o processo de abstinência da droga é capaz de provocar alucinações, a interna recebe medicamentos destinados a controlar especificamente esse sintoma. Já nos casos em que o uso constate de drogas afeta a capacidade do indivíduo se alimentar satisfatoriamente, suplementos vitamínicos e estimuladores do apetite são utilizados para sanar esse problema. Ao mesmo tempo, todas as internas recebem acompanhamento psicológico personalizado pelo menos uma vez por semana.

É importante salientar que a falta de interdição, seja de natureza religiosa ou terapêutica - nesse caso, para que os médicos da equipe de apoio da CTR utilizem medicamentos para tratar as internas -, está em consonância com o modo como a dependência química é observada pela instituição. Conforme os relatos que obtivemos, a compreensão compartilhada pelas internas e líderes a esse respeito se localiza entre as categorias de “pecado” e “doença”, o que justificaria, como nos diz Loeck (2018), a inserção de discursos e práticas tanto espirituais-religiosos quanto técnico-científicos. É possível, portanto, que a maneira como estas categorias, discursos e práticas são empregados corrobore o próprio entendimento institucional-religioso acerca das suas moralidades, do papel e importância da conversão e do fenômeno da dependência.

O relato de Ivy, que compõe a equipe de apoio, nos ajuda a entender melhor este ponto. Segundo ela, a CTR parte do princípio de que suas internas não devem buscar a cura definitiva para a dependência química, mas devem se esforçar para alcançar a melhor maneira de se afastar do vício de drogas, mesmo entendendo que a dependência química, em si, é uma doença incurável. Assim, a principal orientação dada às internas da CTR é que elas devem se afastar do uso de drogas dia após dia, sem alimentar a pretensão de que um dia conquistarão a cura completa para a adicção.

Segundo os relatos, o processo de conversão à Igreja Batista ocorre já nos primeiros dias de tratamento, por meio das práticas religiosas adotadas pela instituição desde a chegada das internas. Na primeira semana, todas as mulheres em tratamento são presenteadas com uma bíblia e iniciam sessões de estudos bíblicos sob a orientação das coordenadoras da instituição. Essas sessões ocorrem uma vez ao dia e podem durar alguns minutos ou mais de uma hora, o que depende do tempo disponível das coordenadoras para aplicar essa atividade. Fora recorrente nos relatos das internas a menção ao fato de que elas não sabiam manusear a bíblia, mas, depois de serem instruídas, passaram a realizar a leitura desse livro sem maiores problemas. Concomitantemente, as internas entrevistadas relatam que desde o início do tratamento foram aconselhadas pelas coordenadoras a frequentar diariamente os cultos e sessões coletivas de estudos bíblicos realizados na instituição. Inclusive, uma delas nos disse que a recusa em participar destas práticas religiosas, quando não justificada adequadamente, é passível de sanções, tais como, por exemplo, impedir que a interna participe dos passeios e atividades recreativas realizados pela coordenação da instituição em conjunto com a equipe de apoio. Ao mesmo tempo, a adoção de determinadas performances é recomendada pelas coordenadoras às internas recém-chegadas. Uma dessas recomendações trata do uso de roupas entendidas como mais adequadas à rotina da CTR, excluindo-se, por exemplo, o uso de roupas decotadas ou justas, muitas vezes associadas a um estilo de vestir e a condutas estigmatizadas ( Goffman, 2008: 14) que precisam ser redefinidas a partir da internação. Para tanto, a instituição conta com um guarda-roupas coletivo, do qual todas as internas podem usufruir de roupas, calçados e acessórios considerados apropriados pela instituição.

Para termos uma ideia do lugar de destaque que o vestuário ocupa na construção da performance incentivada pela instituição, as reflexões de Villar e Santos (2018) nos parecem cruciais. Após examinarem os dados de um survey realizado em 2015 junto a quinhentas comunidades terapêuticas (CTs) espalhadas por todas as regiões do Brasil, as autoras concluem que apenas 40% das instituições que atendiam exclusivamente ao público feminino permitiam que as internas usassem roupas de sua própria escolha, em oposição aos 65% das CTs masculinas que aderem à mesma prática. Ainda de acordo com as autoras, nas CTs que aplicam restrições ao vestuário das internas foi possível identificar que o veto é direcionado especialmente sobre as peças que “cobririam pouco o corpo das mulheres”, como blusas e vestidos decotados ou saias, vestidos e shorts acima do joelho ( Villar; Santos, 2018: 108). O exercício desta modalidade de controle sobre os corpos femininos revela que parte considerável das CTs voltadas ao atendimento exclusivo de mulheres está sobremaneira comprometida com uma perspectiva onde o pudor e o recato devem ser estimulados entre as internas. Este panorama nos serve de exemplo para melhor compreendermos os esforços empregados pelas CTs no sentido de promover a reforma moral e a construção de um novo ethos para suas internas.

Nesse ponto é importante destacar que apenas duas das internas entrevistadas relataram que sabiam que a CTR se tratava de uma instituição com perfil religioso. Todas as demais indicaram em seus relatos o “choque térmico” que tiveram ao chegar na instituição, e só então tomarem ciência de que precisariam se adaptar a uma rotina que envolveria a prática de atividades religiosas. Contudo, mesmo diante da surpresa que tiveram, decidiram permanecer no tratamento e aderir às práticas proposta pela instituição.

Ressalta-se, também, que as internas entrevistadas em momento algum disseram ter sido obrigadas a se converterem à Igreja Batista. Em seus relatos, elas sublinham que se converteram e tiveram um “encontro com Deus” sem serem pressionadas a isso.

Eu nunca pensei em seguir uma religião antes, mesmo com a minha mãe tentando me levar pra igreja quando eu era mais nova. Só que depois que eu cheguei aqui eu comecei a ter contato com Deus e eu aprendi a ler a palavra que tá na bíblia. Ai minha conversão foi natural, ninguém me obrigou a nada, não (…) Hoje eu sei que o meu vício não era só por causa da minha fraqueza, porque a gente aprende aqui que existem forças do mal que ficam tentando a gente pra fazer coisas que desagradam a Deus (…) Eu só acho que muitas meninas que saem da casa é porque elas não se converteram direito. Como é que falam mesmo? Tem gente que não se converte pelo amor, só pela dor. Eu fui um caso assim, me converti pela dor mesmo. (Marta, 33 anos)

Esta percepção das internas é reiterada pelas líderes da instituição. Quando interpeladas a respeito da importância da conversão para o tratamento proposto pela CTR, elas foram absolutamente enfáticas ao afirmarem que, em nenhuma circunstância, as internas são obrigadas a se converterem à Igreja Batista ou a participarem das atividades religiosas realizadas na instituição. Todavia, quando questionadas se seria possível uma interna prosseguir no tratamento sem se envolver nas práticas religiosas da CTR, nos deparamos com um posicionamento diferente. Isso porque, de acordo com as líderes, as internas que não participam dos cultos e dos estudos bíblicos e que não buscam a conversão aos preceitos religiosos, apregoados internamente, acabam por se sentirem “um peixe fora d’água”: passam a ser rejeitadas pelas outras mulheres em tratamento e não conseguem se adaptar ao tratamento. Essa inadaptação ao contexto da CTR seria, segundo elas, um dos motivos mais significativos para as internas descontinuarem o tratamento. Sobre este aspecto, Priscila, uma das líderes da instituição, nos diz que:

Em momento nenhum alguém chega para uma aluna 6 nossa e diz que ela é obrigada a estar no culto, a fazer o estudo bíblico. Mas o trabalho que a gente faz aqui depende muito da dedicação delas. Nós somos um centro de formação cristã, então, se elas querem receber nossos cuidados, eu preciso que elas também se esforcem. Todas elas já tentaram largar as drogas sozinhas e não conseguiram e no momento que elas colocam os pés aqui elas ficam cientes de que o apoio da religião é fundamental para conseguir controlar o vício.

Expressando opinião semelhante à de Priscila, Luana, 24 anos, interna recém chegada à CTR, no momento da entrevista explicita a sua impressão acerca da importância de se dedicar às práticas religiosas para se sentir plenamente incluída na instituição:

Fica difícil eu dizer pra você que uma menina que não gosta de ler a bíblia e que não quer assistir o culto vai ser feliz aqui. O apoio que elas dão pra gente aqui é muito importante, só que não adianta nada você tá aqui e não caminhar com Deus, sabe? Melhor voltar pra rua logo. Se é pra estar aqui, tem que ser de verdade, seguindo o caminho certo, caminhando certinho. Ai, respondendo sua pergunta, eu acho que se a menina não se converter de verdade ela não consegue ficar aqui, não.

Nota-se que nas falas de Marta, Priscila e Luana ocorre frequentemente o acionamento das categorias crença e engajamento. 7 Percebemos que, em determinados momentos, o apelo é para que as internas estejam engajadas às atividades rotineiras da instituição, como ler a bíblia e participar dos cultos. Mas, para além deste engajamento, vemos que a crença, simbolizada pela expressão “conversão de verdade”, usada por Luana, também constitui um elemento central para que a interna consiga permanecer na instituição. Desse modo, é possível dizer que para internas e líderes da CTR, crença e engajamento são basilares para o sucesso do tratamento. Da mesma forma, para elas, a conversão trata-se de um fenômeno promovido pela união desses dois elementos. 8

Interessante notar que o processo de conversão observado sob a ótica das internas e das líderes figura à maneira de um marco cronológico que divide o antes e depois do tratamento. Neste seguimento, voltar-se para a doutrina religiosa e seguir seus preceitos possibilita a construção de uma nova subjetividade onde o passado nas drogas ganha outro sentido e o futuro recebe os contornos de uma nova trajetória a ser seguida longe do vício e comprometida com as moralidades valorizadas pela CTR. Souza, Nunes e Santos (2018), ao tratarem sobre o reposicionamento subjetivo dentro de CTs, enfatizam que:

A transformação subjetiva pretendida pelo modelo das CTs requer, ainda, a ruptura dos residentes com o seu passado de uso de drogas. Se no passado eles ou elas viviam no ritmo do consumo de drogas - associado à sujeira, à doença e ao pecado -, no presente vivem no ritmo da CT. No decurso dessa fase são estimulados a projetar o futuro: um futuro pautado pelos princípios e valores do mundo do trabalho, da família e da religiosidade - tudo o que supostamente não tinham ou perderam, devido ao uso de substâncias psicoativas. ( Souza; Nunes; Santos, 2018: 73)

Além de todos os elementos envolvidos na conversão já mencionados, temos nos relatos das internas o apontamento de que a inserção na CTR as levou à construção de uma nova compreensão acerca da dependência química e dos efeitos que ela provoca. Posto isso, podemos dizer que a interna, ao ingressar na CTR, inicia um processo de “mudanças radicais em sua ‘carreira moral’, uma carreira composta por progressivas mudanças que ocorrem nas crenças que tem a seu respeito e a respeito dos outros que são significativos” para elas ( Goffman, 2001: 24). Através desta nova compreensão, as internas passam a observar o vício em drogas como um problema que ultrapassa a esfera física ou orgânica. O relato de Sara, interna da instituição, nos serve para ilustrar essa questão.

Eu sabia que eu tinha muita vontade de cheirar o tempo todo e que meu vício tava me matando aos poucos todo dia. Só que eu não tinha noção de que o problema não era só meu corpo que tava ali pedindo a droga todo dia, porque eu também tinha um vazio por dentro que droga nenhuma ia preencher. Como é que você explica que uma pessoa tá o tempo todo drogada e sempre se sentindo triste, pra baixo? Era falta de uma coisa que eu não tinha, né? Quando eu cheguei aqui eu entendi que eu buscava na droga um jeito de preencher meu vazio, que hoje eu sei que só Jesus pode preencher. E eu sou muito mais feliz hoje, sabia? Eu já acordo feliz só de saber que Jesus me ama. (Sara, 27 anos)

Assim, o vício em drogas, anteriormente percebido como apenas de ordem física, passa a ser compreendido com um fenômeno também de ordem emocional e espiritual. Neste sentido, a conversão relatada pelas internas pode ser compreendida como um processo de ajustamento pessoal ( Goffman, 2001), no qual elas ressignificam suas experiências com as drogas. Além disso, elas também são instrumentalizadas para serem capazes de atribuir determinados significados ao processo de afastamento do uso de drogas através do tratamento realizado na CTR.

Referências religiosas e processo de conversão na CTR

O “choque térmico” relatado pelas internas entrevistadas ao saberem que a instituição onde buscaram atendimento para tratar dependência química tratava-se de uma inciativa vinculada a uma igreja evangélica nos mostra que, a princípio, não era essa modalidade de tratamento que elas buscavam. No entanto, como demonstramos acima, a surpresa gerada pelo primeiro contato com a instituição não fez com que as entrevistadas pensassem em desistir do tratamento.

Notamos ao longo das entrevistas que as referências religiosas trazidas por essas mulheres foram determinantes no processo de adaptação delas na CTR. Aquelas que já haviam estabelecido algum tipo de contato com o universo evangélico, seja através de familiares seguidores de denominações evangélicas ou por meio de iniciativa própria, relataram certa familiaridade com as práticas religiosas e demais protocolos empregados pela instituição. Este é caso de Adele, 32 anos, internada há três meses no momento da entrevista. Em sua entrevista ela nos contou que sua mãe era seguidora da Assembleia de Deus e que, por influência dela, frequentou esta igreja por alguns momentos ao longo da juventude. Entre idas e vindas, Adele diz que frequentava os cultos durante um ou dois meses, e depois se afastava da igreja por longos períodos. Quando interpelada sobre a religião que seguia antes de ingressar na CTR, ela foi enfática ao dizer que era uma “evangélica desviada”, mas que agora estava convicta de sua conversão.

Vamos dizer assim, eu já sabia como era o sistema, sabe? O que eu vivo aqui não é muita novidade porque eu já vivi isso lá fora. Ai, quando eu cheguei aqui eu já sabia que não podia fazer várias coisas. Eu aprendi muita coisa na igreja, só que eu não tinha a cabeça boa que eu tenho hoje pra entender, né? Se eu tivesse ficado na igreja lá trás eu não tinha acabado com a minha vida.

Situação semelhante nos foi trazida por Adriana, 26 anos, interna há dois meses no momento da entrevista. Ela conta que sua avó, com quem vivia em um bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, atuava como obreira da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) há muitos anos. Por insistência dela, Adriana passou a frequentar a IURD, onde fez parte do grupo de jovens por um breve período durante sua adolescência. E, apesar da IURD se tratar de uma denominação neopentecostal, a entrevistada identifica que sua experiência nesta igreja a ajudou na adaptação à rotina da CTR.

A diferença é que lá [na IURD] tinha muita gritaria, isso me incomodava. Aqui o culto é diferente, traz paz para o coração da gente. Assim, são duas igrejas muito diferentes, você sabe, né? Mas algumas coisas são parecidas, tipo as roupas que pode usar, não pode falar palavras, né, de baixo (…) como diz mesmo? Palavrão. Tem jejum, tem oração, isso é igual ( grifo nosso).

Por outro lado, as internas que não traziam consigo referências anteriores que as aproximassem desta vertente religiosa evangélica encontraram, a princípio, mais dificuldade em aderir à rotina da CTR. Júlia, 34 anos, internada há aproximadamente quatro meses no momento da entrevista, nos oferece um relato bastante ilustrativo:

Eu nunca me quis saber de igreja nenhuma, eu queria só curtir minha vida e ser feliz do meio jeito. Pra mim, os pastores eram tudo ladrão que só queriam o dinheiro do povo aí eu pensava comigo, “meu dinheiro mesmo que eles não vão pegar” (…). [E]u nunca segui nada de igreja, nem de macumba, nada. Só o pai da minha filha ia num centro de macumba e quando eu tava com ele eu ia junto, mas experiência com Deus mesmo eu nunca tive (…). Quando eu cheguei aqui e me falaram “cristolândia”, eu arregalei o olho assustada. Que é isso, um monte de crente? (risos). Demorou foi tempo pra eu me acostumar com isso aqui, porque isso aqui, pra mim, era um mundo desconhecido.

Marcela, 21 anos, internada há dois meses no momento da entrevista, também descreve a dificuldade encontrada ao chegar na CTR:

Eu quase não fiquei (risos). Me deu pânico, irmã. Eu que nunca fui de ir pra igreja quando tava lá fora ia ter que fazer isso aqui dentro? Do dia pra noite eu tava lendo a Bíblia, orando, jejuando, assistindo à pregação do pastor. Tudo isso eu tive que aprender aos poucos. Foi como se a minha vida tivesse mudado da água pro vinho porque eu tive que fazer coisas que eu nunca tinha feito na minha vida.

Diante dos dados expostos, percebemos que ocorrem dois processos. No primeiro, vemos que a identificação ampliada com o universo evangélico permite às internas uma adesão mais facilitada às práticas religiosas realizadas pela CTR. No outro, notamos que ocorre mais resistência por parte das internas que não possuem essa identificação com a retórica evangélica. No entanto, para além das questões referentes a adaptação à rotina institucional, é notável que a transmissão religiosa proporcionada por vínculos de parentesco, ou seja, pelas referências religiosas herdadas, exerça influência incontestável sobre algumas internas. Ainda que diversos autores demonstrem que a transmissão religiosa promovida pela família esteja cada vez mais fraca na atualidade ( Duarte et al., 2006 ; Machado, 1996; Almeida; Barbosa, 2013; etc), é importante observarmos que este fenômeno ainda encontra espaço, especialmente quando tratamos das referências mais gerais acerca da vertente evangélica, que podem ser acionadas a todo momento pelo indivíduo que possui uma trajetória religiosa interdenominacional.

“Eu e minha casa serviremos ao Senhor”

A mulher sábia edifica a sua casa, mas com as próprias mãos a insensata derruba a sua (Provérbios, 14:1)

Os contextos apresentados até aqui nos revelam que conversão e tratamento contra a dependência química andam juntos, posto que, segundo as elaborações das internas e líderes da CTR, dificilmente pode-se concluir o tratamento sem que a interna esteja convertida à Igreja Batista. Ou seja, pode-se dizer que, para as entrevistadas, o tratamento não funciona sem a conversão. Por outro lado, também encontramos nos relatos coletados a percepção de que, quando uma interna descontinua o tratamento, isso significa que ela não estava plenamente convertida.

Por isso, é fundamental que entendamos os principais motivos apontados nas entrevistas como capazes de provocar a interrupção do tratamento e abalar o processo de conversão das internas. O primeiro deles trata-se das expectativas mantidas pelas mulheres em tratamento de que seus companheiros também se convertam à Igreja Batista ou a outra denominação evangélica. Segundo os dados obtidos através das entrevistas, recorrentemente as internas indicaram que seria difícil prosseguir com o tratamento e continuar seguindo os preceitos apregoados pela Igreja Batista, caso seus companheiros não se convertessem como elas. Aqui, a principal preocupação das internas era que, ao terminarem o tratamento e retornarem para suas casas, não fosse possível encontrar em seus companheiros o suporte necessário para permanecerem afastadas do uso de drogas. Essa preocupação apontada pelas internas torna-se compreensível quando elas relatam que seus companheiros também são usuários de drogas e/ou dependentes químicos. Nesse sentido, a conversão de seus parceiros é vista como a única forma de fazê-los abandonar o consumo de entorpecentes e, assim, assegurá-las de que não serão novamente colocadas em circunstâncias similares às que viviam antes de ingressar na CTR. Compreende-se, então, que o maior receio destas mulheres é que, ao reencontrarem seus companheiros, eles acabem atuando como vetores que as levarão em direção aos seus velhos hábitos.

O temor registrado pelas internas em relação ao reencontro com seus companheiros é confirmado pelas evidências trazidas por autores como Leamon, Wright e Myrick (2012). Segundo eles, as relações afetivas ou amorosas podem exercer forte influência para que mulheres se tornem usuárias ou dependentes de drogas. Dessa forma, os autores mostram que mulheres dependentes de álcool são atingidas pela maior probabilidade de combinarem seus hábitos de consumo de bebidas alcoólicas com o padrão de consumo de álcool de seus companheiros. Em função disso, é possível dizer que a probabilidade de que as mulheres desenvolvam o alcoolismo através de relacionamentos amorosos com parceiros dependentes de álcool é sobremaneira maior, se comparada às mulheres que não estão em relacionamentos amorosos ou que às mulheres que se relacionam com parceiros que não consomem bebidas alcoólicas de maneira problemática.

Da mesma forma, Leamon, Wright e Myrick (2012) demonstram que a parcela feminina está mais sujeita a desenvolver dependência de substâncias como cocaína e heroína quando colocada sob a influência direta de namorados ou maridos usuários e/ou dependentes destas substâncias. Por isso, pode-se dizer também que há maior tendência para que mulheres usuárias e/ou dependentes de drogas convivam com parceiros do mesmo perfil. O dado que registra a influência direta de parceiros dependentes químicos sobre o desenvolvimento do uso problemático de drogas entre mulheres é bastante interessante, sobretudo porque não existem registros acadêmicos que apontem a prevalência da relação contrária neste binômio.

A esse respeito, um caso emblemático encontrado na CTR nos oferece um exemplo bastante ilustrativo. Marta, em tratamento há 5 meses na CTR quando da realização da entrevista, nos apresenta um perfil que pode ser considerado atípico entre as demais mulheres em tratamento, visto que em sua maioria as internas se declararam dependentes de maconha, cocaína e crack, enquanto Marta nos diz que sua dependência química se concentra em anestésicos de uso veterinário. Em seu relato, Marta revela que já fez uso de outras drogas, mas nunca se sentiu verdadeiramente dependente delas. No entanto, sua relação com entorpecentes mudou quando passou a trabalhar como assistente em um consultório veterinário numa cidade do interior do estado de Minas Gerais. Através do incentivo de outro funcionário do consultório, Marta experimentou pela primeira vez a substância chamada ketamina, conhecida por ser utilizada como anestésico para cavalos.

A experiência de Marta com a substância foi descrita como algo “de outro mundo” e, a partir de então, começou a usá-la frequentemente. Sabendo que era fácil subtrair essa droga do consultório e até mesmo forjar receitas para comprá-la em farmácias especializadas, Marta pôde alimentar sua dependência sem grandes dificuldades nos meses subsequentes. Contudo, a entrevistada relata que seu vício em ketamina se intensificou quando conheceu seu atual companheiro que, coincidentemente, fazia uso sistemático da mesma substância há dois anos. Marta aponta que esse relacionamento amoroso funcionou como uma motivação para que ela passasse a usar a substância todos os dias junto ao seu parceiro. Inclusive, por ser a responsável por conseguir a substância para si e seu companheiro, Marta passou por sérias dificuldades financeiras. O uso diário de Ketamina e a consequente queda no desempenho no trabalho provocaram a demissão de Marta e impediram sua reinserção no mercado de trabalho. Sobre a influência de seu companheiro no desenvolvimento de sua dependência química e o receio de reencontrá-lo após o tratamento, Marta nos diz que:

Eu pensava em parar de usar (entorpecentes) todo dia, mas ele (o companheiro) nunca me dava uma chance pra mim parar de usar. Todo dia era a mesma coisa e a gente sempre fazia tudo igual, todo dia. Se eu há 5 meses sem usar nada é porque eu longe dele, a gente só se fala por telefone, sabe. Mas eu tenho medo de voltar pra casa e ele me obrigar a fazer tudo de novo. (Marta, 33 anos)

Marta, assim como outras internas nas mesmas circunstâncias, se concentra em pedir pela conversão de seu companheiro em suas orações. Para essas mulheres, tal como foi registrado ao longo das entrevistas, é importante “lutar” pela salvação daqueles que amam, mesmo que esta luta seja silenciosa e à distância. Há, nesse contexto, a compreensão de que essas mulheres, ao se converterem, se tornam responsáveis pela busca da conversão de seus companheiros. Encontramos, aqui, um ponto de convergência importante com as observações feitas por Machado (1996) acerca das mulheres pentecostais e sua busca pela “libertação” de seus familiares alcoólicos:

Assim, nos momentos de dificuldade, são as mulheres ou mães dos viciados que buscam ajuda nas igrejas, e é por meio delas que os pastores tentarão atingir os cônjuges “endemoniados”, libertando-os da interferência maligna. Afinal convertida, a mulher pentecostal adquire um novo estilo de vida que facilita o convívio com o dependente do álcool, na medida em que se torna mais tolerante e compreensiva. E, ao mesmo tempo, ela passa a se sentir responsável pela salvação de seus familiares, ou seja, por sua alma e saúde. ( Machado, 1996: 111)

Embora na presente pesquisa tenhamos nos debruçado sobre mulheres recémconvertidas a uma igreja que não pertence ao escopo pentecostal, é possível estabelecermos alguns paralelos com os apontamentos feitos por Machado. Em primeiro lugar, é notória a semelhança em relação à postura adotada pelas mulheres pentecostais ouvidas na pesquisa de Machado e pelas internas da CTR. Em ambos os casos, elas se veem como protetoras que precisam se colocar na linha de frente em defesa de seus companheiros e/ou demais familiares, atuando como intermediadoras entre seus entes queridos e o sagrado. Segundo, não é só através de orações e jejuns que elas buscam a intervenção divina na vida de seus entes queridos. Há também um grande apelo ao uso do exemplo como forma de sensibilizar o outro.

Ainda nesta seara, autoras como Oliveira (2012), Higino (2015) e Gouveia (1986; 1998), que também analisaram como ocorre a construção dos papéis de gênero no campo das religiões cristãs, nos trazem reflexões importantes para esta pesquisa. Para elas, as diversas vertentes do cristianismo indicam algumas distinções basilares entre as funções atribuídas às mulheres e aos homens. Nota-se, também, que estas percepções são muitas vezes atravessadas pelo entendimento de que, para além dos cuidados com a casa, marido e filhos, à mulher também cabe o papel de pilar espiritual de sua família. Neste sentido, Joana, que no momento da entrevista estava internada há 7 meses na CTR, espera que a mudança experienciada ao longo do tratamento na CTR seja visível por seu companheiro e que ele possa encontrar nela inspiração para passar pelo mesmo processo de conversão e afastamento do uso de drogas.

Eu sei que vai ser difícil ele [o companheiro] se converter e ir comigo pra igreja, mas eu vou pedir direcionamento a Deus pra que eu tenha sabedoria pra lidar com ele. A minha esperança é que ele veja o quanto eu mudei de lá pra cá, pra ele ver que com Deus a vida da gente melhora 100%. Se eu mostrar pra ele que agora eu sou uma pessoa melhor, quem sabe ele também não muda, né?

Assim sendo, segundo as expectativas alimentadas pelas internas, espera-se que seus parceiros sejam diretamente influenciados pelos seus “exemplos de vida” e sigam o mesmo caminho em direção à conversão:

Meu sonho é ver todos eles na igreja comigo, mesmo que não seja na Batista, pode ser em qualquer outra que eles gostem. Eu gostaria muito de ver todos eles seguindo o mesmo caminho que eu escolhi seguir. A minha família é o que eu tenho de mais precioso no mundo.

Nos deparamos ao longo das entrevistas com a intenção proselitista das internas que pretendem evangelizar seus filhos e demais familiares para que eles se tornem seguidores da Igreja Batista, ou, como explicitado nessa fala de Joana, qualquer outra igreja, desde que seja evangélica. Dessa forma, o desejo de ver toda a família seguindo os caminhos do evangelho parece estar alinhado às conclusões de Carbonera, Silva, Nascimento-Andre e Legal (2013), que nos informam sobre a recorrência com que mulheres internadas em CTs manifestam a vontade de resgatar e ressignificar vínculos familiares tanto da família ascendente quanto da família descendente, além de acreditarem que a religiosidade pode atuar enquanto uma propulsora de processos de mudança pessoal.

Estrutura dos relatos de conversão

Por fim, é necessário que tratemos da maneira como se constroem os relatos de conversão apresentados pelas internas. Foi possível perceber ao longo das entrevistas que as internas elaboravam seus relatos seguindo uma estrutura básica composta pela descrição de: como iniciaram o uso de entorpecentes; como as drogas as levaram ao “fundo do poço”; como chegaram à CTR; como ocorreu o “encontro com Deus”/conversão e como conseguiram controlar a dependência química através da fé.

Importante ressaltar que estas etapas são expostas seguindo uma linha cronológica que busca evidenciar o antes e depois da conversão das internas, de modo que a transformação promovida pela religião esteja explícita pela ênfase nas práticas pecaminosas que foram abandonadas - como, por exemplo, o uso de drogas, prática de crimes para conseguir recursos para compra de entorpecentes, prática da prostituição, etc. - e no novo estilo de vida adotado após a conversão, com o afastamento do uso de drogas e adesão às práticas religiosas exigidas pela doutrina apregoada no âmbito da Igreja Batista.

Embora seja indispensável que tenhamos cuidado com o “discurso do sofrimento” e os exageros retóricos que em geral são usados para ilustrar a vida pregressa ( Smilde, 2011), os marcadores usados pelas entrevistadas para demarcar o antes e depois da conversão são imprescindíveis para compreendermos as trajetórias desenhadas por estas mulheres na CTR. Isso posto, pode-se considerar que os relatos destas mulheres estão, fundamentalmente, concentrados na demonstração da destruição do eu anterior e na construção do eu atual, nos mesmos moldes usados por Goffman (2001) quando esse autor trata do ajustamento do estigmatizado em prol da mudança da concepção do seu eu.

A constituição deste novo ethos a partir da conversão foi analisada por diversos autores ( Burdick, 1998; Couto, 2002; Gouveia, 1986, 1998; Machado, 1996; Machado, Mariz, 1997; Freitas, Holanda, 2014; etc.) que demonstram a complexidade que envolve a subjetivação da experiência religiosa. Contudo, devemos sublinhar que no contexto analisado neste artigo, esse “novo” ethos não promove, de fato, uma ruptura com o padrão dominante na sociedade para o gênero feminino, dado que o ethos feminino, reelaborado após a conversão, permanece em conformidade com o padrão da sociedade mais abrangente. Em geral, as internas demonstram esse novo ethos por intermédio da performance que pretendem exercer após a finalização do tratamento. Segundo os seus relatos, por terem se tornado mulheres convertidas e se afastado do uso de drogas, elas poderão, enfim, ocupar efetivamente os papéis de esposa, mãe e cuidadora do lar, corroborando, assim, as expectativas da instituição e de determinadas condições sociais.

Outro fator recorrente nos relatos das internas trata do sentimento de pertencimento surgido no bojo do processo de conversão. Como demonstramos acima, a chegada de uma nova interna à CTR pode ser muito difícil no que tange à sua adaptação à rotina da instituição. Todavia, a conversão parece funcionar como um ritual de passagem por meio do qual a interna passa a se sentir parte do coletivo composto por outras mulheres que vivem experiências semelhantes. É o que nos conta Telma, 19 anos, interna há dois meses quando da realização da entrevista:

Depois do meu encontro com Deus, eu entendi que isso aqui, pra mim, todas essas meninas aqui, são minha família. Elas viraram minhas irmãs. Eu não tenho mais pai, minha mãe já me largou de mão tem tempo. O único irmão que eu tenho fingiu que nem lembrava de mim quando eu liguei pra ele. Só sobrou a família que eu consegui aqui.

Em diversos relatos, a construção do vínculo afetivo da interna com aquele que passa a ser seu grupo de crença é apresentada como algo possível apenas após a conversão, já que somente após convertida ela se sente “igual” às demais internas que passaram pelo mesmo processo anteriormente. Assim sendo, partindo do exposto até aqui, podemos considerar que a conversão, tal como experienciada pelas internas, está no âmago do estabelecimento das suas novas relações de afeto dentro da CTR, ao mesmo tempo em que também possibilita a constituição de um novo ethos através das alterações promovidas em sua identidade pessoal subjetiva. Isso corrobora os apontamentos de Couto (2002), nos quais a autora diz que:

O processo de conversão é vital para compreender como crescem as novas religiões, já que tal fato representa o ingresso de milhares de pessoas em novas crenças e práticas religiosas, configurando as transformações históricas do campo religioso na sociedade. Mas, para além disto, cabe salientar que é o processo de conversão que nos fala a respeito da constituição de um novo ethos, que se conforma com a entrada e permanência no novo grupo religioso. O foco de análise, então, está na subjetivação da experiência religiosa. A conversão passa a ser entendida como um processo de estabelecimento de vínculos afetivos por parte do sujeito com o grupo de crença, que, de forma paulatina, mas também muitas vezes fluida, produz modificações em sua identidade pessoal subjetiva, referentes às concepções estáveis que os sujeitos têm de si mesmo e do mundo. ( Couto, 2002: 17)

Conclusão

Destaque especial precisar ser dado à presença dos recursos religiosos acionados pela instituição, uma vez que eles são fundamentais para que possamos melhor apreender as experiências das internas no âmbito das condições de tratamento oferecidas pela CTR. De acordo com os relatos obtidos, a inserção das internas na CTR as leva a uma nova compreensão a respeito da dependência química sob o prisma do etéreo. Assim, fora recorrente encontrar em seus relatos vários elementos que corroboram o entendimento do vício em drogas enquanto um problema que assola não só a esfera física ou orgânica, mas também emocional e espiritual. Nesse sentido, para encontrar a recuperação do corpo e da alma, o tratamento proposto pela CTR torna-se de grande relevância para essas mulheres, em função das características que possui.

Os relatos de conversão das internas se mostraram atravessados por diversas experiências vivenciadas após a chegada à CTR, o que nos leva à conclusão de que os recursos mobilizados pela instituição exercem papel central no processo de conversão dessas mulheres. Da mesma maneira, tais recursos igualmente parecem ser cruciais para assegurar a permanência das internas no tratamento. Obviamente, não é possível dizer que tais recursos funcionam com todas as mulheres que chegam à CTR e prova disso são as altas taxas de abandono do tratamento que a instituição apresenta. E para de fato apreendermos melhor esta face do problema, precisaríamos também entrevistar mulheres que decidiram descontinuar o tratamento para compreendermos o porquê dos métodos utilizados pela CTR não terem sido capazes de mantê-las na internação.

Percebe-se que a experiência de conversão das mulheres em tratamento está fortemente vinculada a elementos presentes na subjetividade feminina. A compreensão a respeito do lugar da mulher na sociedade, que tende a associar a atuação feminina com o cuidado da família e a uma performance que seja condizente com o esperado dentro de uma cultura patriarcal, marcam presença em diversos momentos dos seus relatos. Isso mostra que o processo de conversão, tal como ele é vivido dentro da CTR, mobiliza uma retórica comprometida com determinados preceitos encontrados não só na doutrina religiosa, mas também na sociedade mais abrangente.

Igualmente, vemos que as internas manifestam intenções proselitistas direcionadas aos seus companheiros, filhos e demais familiares. Esse aspecto indica que o trabalho realizado pela CTR possui uma capacidade de alcance que vai além da conversão e tratamento de suas internas. A mensagem registrada pela instituição, na trajetória dessas mulheres, pode sim atingir as famílias das internas, e isso ampliaria substancialmente o poder proselitista da CTR. Isso indica que a atuação dessa CTR - e podemos considerar a possibilidade que das CTRs em geral - ultrapassa a oferta de tratamento para a dependência química para, também, funcionar como um forte instrumento proselitista.

Material suplementar
Referências bibliográficas
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Notas
Notas
1 Neste artigo optamos por usar o termo comunidade terapêutica religiosa (CTR) para nos referir à instituição em tela. Esta escolha se deve a opção que fizemos de enfatizar o caráter religioso (ou comprometido com uma doutrina religiosa) que encontramos no nosso lócus da pesquisa. Não obstante, diversos autores que se dedicam aos estudos de instituições semelhantes, preferem chamá-las apenas de comunidades terapêuticas (CTs). Em função disso, quando mencionarmos autores que usam esta nomenclatura, usaremos a sigla CT ao invés de CTR.
2 Segundo as informações disponíveis na página da Missão Batista Cristolândia na internet, “em 2008, o Diretor da Junta de Missões Nacionais, Pr. Fernando Brandão, perdeu-se no centro de São Paulo e acabou conhecendo a realidade da cracolândia. Deus o incomodou para que mobilizasse a Igreja para agir e transformar as cracolândias em Cristolândias”. Disponível em < https://www.cristolandia.org/> (Consultado em agosto de 2020).
3 Ver: < https://www.cristolandia.org/ > (Consulta realizada em agosto de 2020).
4 Nodos os nomes mencionados ao longo do texto são fictícios.
5 A inserção destes profissionais na CTR se dá de forma voluntária sem o recebimento de quaisquer tipos de pagamentos pelos serviços prestados.
6 Aluna é o termo usado internamente para designar as internas em tratamento.
7 Para uma análise mais detalhada sobre as categorias de crença e engajamento, ver Teixeira (2013) e Mafra (2002).
8 Em outras pesquisas notamos que as moralidades empregadas pelas instituições acabam sendo mais apelativas no que tange ao engajamento às práticas, sendo a crença entendida como fruto de um processo de subjetivação que deve ser experienciada pela interna ao longo da internação ( Targino, 2017b).
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