Editorial
Como as religiões brasileiras se espalham ao redor do mundo e formam novos espaços de sociabilidade? O livro Global Trajectories of Brazilian Religion: Lusospheres, organizado por Martijn Oosterbaan, Linda van de Kamp e Joana Bahia, é o resultado de um esforço coletivo de pesquisadores brasileiros e estrangeiros para responder a essa pergunta e atentar para as diversas formas de circulação de performances culturais e religiosas, através de imaginações, práticas, objetos e mídias.
Já na introdução escrita pelos organizadores, o livro contrapõe-se aos estudos que abordam a globalização religiosa como unipolar e unidirecional, entre os quais as noções de diáspora e “globalização como um processo de homogeneização” são comuns. Isso ocorre, sobretudo, quando essas noções pressupõem a existência de um centro de tradições originais que se espalha para fora ou quando se olha para as religiões locais como respostas à “globalização, colonização e missionação” (Oosterbaan et al, 2020: 6), sem se considerar o que se produz de novo nos entrelaçamentos resultantes desses processos.
Em contrapartida, Oosterbaan, Kamp e Bahia apostam na criação de um conceito que dê conta das relações transnacionais, a noção de lusoesfera. Mesmo que o gentílico luso cause certa estranheza aos leitores, já que o livro aborda religiões que têm o Brasil como ponto em comum e não de um mundo luso propriamente dito, os autores afirmam que estão tratando do “[…] alcance colonial português histórico que é frequentemente identificado por sua pegada linguística - o chamado ‘mundo lusófono’” ou ainda “por lugares onde a expansão portuguesa exerceu influência - os chamados lusotopoi” (Oosterbaan et al, 2020: 3). Eles ainda argumentam que estamos lidando com interações culturais e sociais em uma nova configuração geopolítica, mas acentuam que não se pode desconsiderar a influência das relações coloniais e o trabalho de imaginação que desempenha um papel crucial na modelagem de uma certa concepção sobre o Brasil, qual seja, a de “um autêntico lugar tropical, espiritual e sensual, capaz de criar avenidas extraordinárias que conectam os seres humanos ao transcendental” (Oosterbaan et al, 2020: 3). Obviamente, estamos lidando aqui com concepções essencialistas, estereotipadas e que possuem fortes conexões com um mundo colonial que deu o ponto de partida para a circulação de tais imaginários, categorias e ideias sobre o Brasil no exterior. No entanto, apesar de essas imaginações serem múltiplas e variáveis, seria preciso levar em conta essa noção colonial, por ainda desempenhar certa influência na concepção geral sobre o Brasil, como os autores procuram destacar.
Os organizadores avançam teoricamente quando discutem os conceitos de butinage, assemblage e esfera, noções construídas a partir de metáforas que tentam capturar as dinâmicas da vida social. Butinage tem sua origem no trabalho de Yonatan Gez, Yvan Doz, Edio Soares e Jeanne Rey (2017) e refere-se às práticas das abelhas que sugam néctar de flor em flor, reunindo e distribuindo pólen por onde passam, tal como alguns dos processos sociais analisados no livro: redes de relações entre sujeitos religiosos, fertilizações dessas religiões e criação de novas assemblages.
Para criar a noção de lusoesfera, os organizadores dialogam com o filósofo Peter Sloterdijk e o conceito de esfera, entendida como uma espécie de bolha que se aglomera com outras bolhas e formam a imagem de uma espuma. Por outro lado, a categoria assemblage, de Deleuze e Guattari, trata de elementos não hierárquicos, heterogêneos, flexíveis e instáveis que se unem uns aos outros nas práticas sociais. Como lembram os autores, os conceitos aludidos - esfera e assemblage - geralmente são percebidos como opostos, visto que o primeiro aponta para a ênfase na imunidade, no fechamento e na interioridade, enquanto o segundo indica abertura e exterioridade.
Em lugar dessa dicotomia, a noção cunhada por Oosterbaan, Kamp e Bahia visa enquadrar as religiões brasileiras como esferas que possuem movimentos de fechamento e abertura, com intersecções e fluxos, visto que incluem “práticas que abrem entidades e criam assemblages”, mas também produzem “delimitações que criam espaços esféricos compartilhados de experiência” (Oosterbaan et al, 2020: 3).
Os capítulos do livro estão distribuídos em três partes. A primeira, que trata de mídia, turismo e peregrinação, se inicia com o texto escrito por Cristina Rocha. A autora aborda dois segmentos religiosos: o movimento dos seguidores de João de Deus e uma igreja pentecostal brasileira na Austrália. Apesar de distintos, Rocha argumenta que ambos indicam que a mobilidade religiosa depende de um trabalho de imaginação, com a circulação de um determinado imaginário sobre um Brasil “primitivo, altamente espiritual e lugar encantado”. Especificamente no segundo caso, trata-se de uma Austrália idealizada como desenvolvida, secularizada e local de novas oportunidades para imigrantes.
Matan Shapiro, por sua vez, escreve sobre o turismo religioso de igrejas e pastores brasileiros em Israel. Para o autor, esses agentes trabalham na criação de uma “lusoesfera bíblia de admiração” em que a essência divina circula através da mediação de objetos consagrados, sons, visões e palavras, com as técnicas de transferência dos pastores que trazem um passado bíblico-judaico para a realidade evangélica brasileira.
A primeira parte do livro se encerra com o capítulo escrito por Claudia Wolff Swatowiski, que examina a participação de Angola em uma rede pentecostal transnacional capitaneada pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). O nó central dessa rede é o Templo de Salomão, em São Paulo, lugar de consagração da Arca da Aliança, objeto sagrado do Antigo Testamento que circula nos templos da IURD ao redor do mundo, reivindicando autenticidade, poder e riqueza.
A segunda parte do livro trata de temas bastante caros às Ciências Sociais no mundo contemporâneo: direitos humanos, gênero e sexualidade. Aramis Luis Silva abre a seção com uma etnografia das Igrejas da Comunidade Metropolitana (ICM), comunidades entendidas pelo autor como “tecnologias sociais”, cuja atuação pública exibe o orgulho de ser uma “igreja dos direitos humanos” com uma política de “inclusão radical” de “pessoas e grupos segregados” por causa de suas identidades de gênero e práticas sexuais. Nesse capítulo, Silva analisa a atuação da ICM em Cuba, com acento para as interações discursivas entre líderes brasileiros e de outros países latinos e o entrelaçamento de discursos políticos e religiosos que formam novas subjetividades.
O papel das mulheres na Igreja Pentecostal Deus é Amor (IPDA) em Portugal e as (re)construções identitárias que elas protagonizam é o assunto abordado por Katia Téchio. O texto é fruto de uma longa pesquisa etnográfica e mostra como as obreiras da IPDA, através de seus corpos e do poder espiritual que agenciam, negociam identidades e representações, opondo-se a imaginários e estereótipos sobre mulheres brasileiras na Europa, e buscam superar as dificuldades que os imigrantes brasileiros enfrentam naquele país.
Ainda no contexto português, o texto de Joana Bahia é resultado da pesquisa realizada em templos de Candomblé e possibilita a discussão sobre as interfaces entre assemblages religiosas, migração e sexualidade pós-colonial. Para isso, Bahia analisa o caso de uma travesti transformada em mãe de santo por meio da relação ambígua com sua pomba-gira, o que a permite obter poderes sagrados, inverter papéis de gênero e agenciar relações pós-coloniais.
Já Andrea Damacena Martins trata das práticas de mulheres brasileiras ligadas à Renovação Carismática Católica (RCC) em uma paróquia lusófona na Holanda. A autora identifica um espaço transnacional formado pelas misturas de concepções e práticas “holandesas-portuguesas-brasileiras”, prestando atenção às conexões entre imagens, rituais e símbolos e às relações em um grupo de oração que se torna uma esfera de pertencimento para mulheres brasileiras.
A última seção do livro - patrimônio, corporeidade e espiritualidade - se encerra com o capítulo escrito por Jessica Greganich, que aborda dois movimentos religiosos brasileiros (União do Vegetal e Santo Daime), as quais se caracterizam pelo uso do ayahuasca em seus rituais e buscam ser reconhecidas enquanto religiões legítimas na Espanha. Para além do enfoque da autora nos processos de desterritorialização e reterritorialização, o trabalho é bom para pensar nas relações entre humanos e não humanos e na superação das estruturas religiosas através de agências e desejos que constroem novas estruturas de poder.
Em seguida, Andrés Serralta Massonnier analisa a expansão da Umbanda no Uruguai, em uma esfera transnacional formada na fronteira com o Brasil, caracterizada por dinamismo e mobilidade e pelo compartilhamento de códigos linguísticos do “Portunhol”, um dialeto falado na fronteira entre os dois países e que mistura as línguas Portuguesa e Espanhola. Além disso, o autor mostra que os movimentos fronteiriços resultam na emergência de “novas formas de Umbanda Transnacional”, quais sejam, competição religiosa, mediatização e comercialização, como no caso das disputas por autenticidade entre líderes da Umbanda no Uruguai.
O livro se encerra com um capítulo de autoria de Celso de Brito, e versa sobre a formação de uma esfera que justapõe uma religião, o Candomblé, e uma arte marcial, a Capoeira, herança cultural dos africanos no Brasil. Para tal, o autor toma como foco de observação as práticas do Grupo de Capoeira Angola Irmãos Guerreiros, que exerce atividades na Alemanha e em outros países europeus. As atividades do grupo são lideradas por um Mestre de Capoeira que se tornou Ogã - cargo dado aos homens no Candomblé, os quais exercem funções especiais dentro de um terreiro, tais como o cuidado da casa, os sacrifícios de animais e o toque de instrumentos musicais - e de um Babalorixá (sacerdote do Candomblé) que se tornou Mestre de Capoeira. Segundo o autor, isso ocorreria em uma “esfera transnacional de transcendência”, criada por materialidade e força simbólica, através de experiências multissensoriais reforçadas pela noção de mandinga, categoria usada nas religiões afro-brasileiras e entre os capoeiristas para indicar força espiritual e que exerceria um papel fundamental para o rompimento de fronteiras nacionais.
Para concluir, ressalto que um aspecto fundamental da obra é o reconhecimento de que, embora os agentes ligados às religiões brasileiras busquem estabelecer fronteiras e diferenças para delimitar suas identidades e esferas de atuação, as linhas que demarcam essas fronteiras estão sempre em movimento. Isso se dá tanto por meio das imaginações quanto através das materialidades que circulam, moldam e criam novas esferas religiosas, quase sempre caracterizadas por entrelaçamentos ou amálgamas culturais.
Referências bibliográficas
GEZ, Yonatan N.; DOZ, Yvan; SOARES, Edio; REY, Jeanne. From Converts to Itinerants: Religious Butinage as Dynamic Identity. Current Anthropology, v.58, n.2, 2017: 141-159.
Notas