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CRISTINA ROCHA. JOHN OF GOD: THE GLOBALIZATION OF BRAZILIAN FAITH HEALING. NEW YORK: OXFORD UNIVERSITY PRESS, 2017, 269 PP
Carlos Alberto Steil
Carlos Alberto Steil
CRISTINA ROCHA. JOHN OF GOD: THE GLOBALIZATION OF BRAZILIAN FAITH HEALING. NEW YORK: OXFORD UNIVERSITY PRESS, 2017, 269 PP
Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 22, pp. 1-3, 2020
Universidade Estadual de Campinas
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Editorial

CRISTINA ROCHA. JOHN OF GOD: THE GLOBALIZATION OF BRAZILIAN FAITH HEALING. NEW YORK: OXFORD UNIVERSITY PRESS, 2017, 269 PP

Carlos Alberto Steil
Universidade Federal do Rio Grande do Sul / Universidade Federal de São Paulo, Brazil
Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 22, pp. 1-3, 2020
Universidade Estadual de Campinas

Religião e cura tem sido um binômio que atravessa a história da humanidade. Sua longa duração tem permitido que esta relação se modifique e assuma matizes e formas de expressão muito variadas nos diversos contextos históricos, sociais e políticos. É este o tema que permeia o livro John of God: The Globalization of Brazilian Faith Healing de Cristina Rocha. A autora trata desta relação no contexto da globalização da religião na modernidade tardia, articulando a ação de um médium espírita, no interior do Brasil, com a rede internacional de seguidores, que se espalha pelo mundo, com foco em países como Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos e países europeus.

O fenômeno de médiuns espíritas que realizam cirurgias espirituais, atraindo multidões, é recorrente na história recente do Brasil. No entanto, até a prisão, em 2019, de João de Deus, acusado de abusos sexuais de mulheres, atendidas por ele, nenhum outro médium brasileiro alcançou tal repercussão internacional. João de Deus, não apenas era conhecido internacionalmente, mas também deu origem a um movimento que se capilarizou no exterior por meio de círculos de meditação locais, publicação de livros, programas de TV e documentários nas grandes redes de comunicação e convites recorrentes para viagens e eventos em dezenas de países. Analisar e compreender os fatores que concorreram para este movimento é o objetivo deste livro.

Antes de destacar os fatores apresentados no livro, convém chamar a atenção do leitor para o primoroso trabalho de pesquisa que teve a duração de dez anos. A autora realiza um trabalho de observação de campo não apenas no Brasil, em Abadiânia, na Casa Dom Inácio de Loyola, entrevistando em profundida pacientes brasileiros e estrangeiros que acorrem em grande número ao local, mas também esteve na Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos, nas comunidades de seguidores de João de Deus, que se formaram nestes países. Neste sentido, o livro se fundamenta numa pesquisa multissituada em que a autora segue seus interlocutores, acompanhando-os em suas viagens ao Brasil e nos locais em que vivem.

Ouso afirmar que poucos trabalhos na antropologia enfrentaram com tanta acuidade o desafio etnográfico de produzir um olhar global sobre o local e um olhar local sobre o global. Ou seja, para muito além do tema da religião e da espiritualidade, que é o objeto empírico da pesquisa, o livro traz uma contribuição significativa para a antropologia como um todo, em termos metodológicos, transcendendo qualquer circunscrição que pretenda isolar o local ou demarcar identidades religiosas, étnicas ou políticas por meio de fronteiras rígidas e substantivas. Temos, então, uma cartografia da globalização religiosa, a partir de um personagem local que, ao adquirir um trânsito internacional, dá origem a experiências locais que se conectam numa rede global.

O que permitiu a internacionalização de João de Deus, distinguindo-o de outros médiuns, como Chico Xavier e Arigó, que tiveram grande repercussão em nível nacional, mas não ultrapassaram as fronteiras nacionais? Esta é uma das questões que Cristina Rocha procura responder neste livro, chamando a atenção do leitor para a emergência da espiritualidade, na modernidade tardia, como um campo fluido e diversificado de práticas rituais que se afirma em oposição às religiões institucionalizadas. Espiritualidade esta que atravessa e informa o heterogêneo universo de vivências e crenças que os estudiosos da religião têm chamado de Nova Era. Assim, mostra a autora que as cirurgias e curas espirituais, realizadas por João de Deus, inserem-se, no contexto internacional, como experiências espirituais traduzidas na chave de leitura da Nova Era.

O conceito de experiência, torna-se, então, o fundamento da espiritualidade. E, no caso aqui apresentado, esta espiritualidade reveste-se de uma radicalidade que se ancora no corpo, na esfera do vivido, aquém daquilo que se expressa na linguagem das narrativas religiosas e biomédicas. Submeter-se a uma cirurgia mediúnica apresenta-se, para os interlocutores que emprestam suas vozes à escrita desta etnografia, não apenas uma entrega corajosa de seus corpos à manipulação física, por meio de facas e bisturis utilizados por João de Deus em sua prática mediúnica, mas também uma jornada de transformação pessoal que tem como horizonte a superação do dualismo cartesiano da divisão absoluta entre a matéria e o espírito.

Ao situar a atuação de João de Deus e de seus seguidores no horizonte da Nova Era, Cristina Rocha oferece a possibilidade de uma outra interpretação do espiritismo, que se soma às interpretações sociológicas vigentes. Ou seja, ao ser englobado pela Nova Era, o espiritismo - que teve como matriz o racionalismo do século XIX - deixase permear por valores, crenças e visões de mundo que configuram a cosmologia Nova Era. Sua etnografia permite-nos perceber os limites das análises que se fundamentam sobre categorias classificatórias substantivas, ao mesmo tempo em que nos possibilita compreender como pessoas e grupos sociais operam, na vida cotidiana, com os recursos, rituais e conceitos que o espiritismo coloca em circulação, no contexto da globalização, por meio de João de Deus.

Outra pergunta que atravessa a narrativa etnográfica, apresentada pela autora, é a razão que leva as pessoas a buscar a cura de seus males junto de João de Deus. Ao aprofundar esta questão, Cristina Rocha vai desconstruindo um certo senso comum, baseado em argumentos utilitários e funcionalistas, que tem sido acionado como atalho nas análises sociológicas. Neste sentido, ela mostra que a busca da medicina alternativa e espiritual, praticada por João de Deus, não tem uma razão econômica, ditada pela ausência ou precariedade de sistemas públicos de saúde ou de recursos para o acesso aos sistemas privados de biomedicina. As pessoas que ela acompanha nas viagens internacionais para Abadiânia são de classe média, letradas, com condições econômicas, e que vivem em países desenvolvidos que contam com sistemas médicos de ponta. O que a leva a afirmar que a busca da cura pela fé não é uma prática residual, que desaparecerá com o avanço da biomedicina. Há, portanto, razões de outras ordens que transparecem nas falas e práticas dos seus interlocutores e que são trazidas para o texto etnográfico.

Sem pretender ser exaustivo ou esgotar o extenso elenco de razões que o livro apresenta, destaco aqui algumas que me parecem mais relevantes. Os seguidores de João de Deus demonstram uma certa desilusão com a biomedicina como resposta às suas demandas de saúde e bem-estar. Assim, mais do que a cura em si, as pessoas encontram, em Abadiânia, um contexto de solidariedade e acolhida para a doença, no qual se sentem autorizadas a falar de suas dores e de seus temores. Estabelece-se, então, um espaço de partilha de narrativas sobre as doenças vividas, que rompe com a relação vertical entre o médico especialista, único detentor do saber, e o paciente, ao qual, em sua solidão individual, só lhe resta submeter-se à prescrição médica.

Outro destaque a fazer, é o sentido de comunidade, que a autora percebe sendo forjado pelos seus interlocutores, o qual difere significativamente dos sentidos tradicionais de comunidade das religiões institucionalizadas. No caso aqui apresentado, a ênfase é posta no sentimento de um pertencimento difuso a uma comunidade imaginada transnacional, constituída por aqueles que foram tocados ou curados em seus corpos e espíritos por João de Deus. Ou seja, o sentido de comunidade, aqui, distancia-se daquele partilhado pelas religiões cristãs modernas, que se instituem como congregações ou federações, a partir de suas bases eclesiais. Por outro lado, aproxima-se de uma concepção de comunidade própria do movimento Nova Era, para a qual os grupos locais são expressões da comunidade imaginada, sem qualquer organicidade institucional.

Os acontecimentos de 2019, que conduziram João de Deus à prisão, com certeza terão repercussão sobre a rede de seus seguidores, podendo, inclusive, vir a desarticular o movimento que, por décadas, teceu os fios que interligaram Abadiânia, no coração do Brasil, com locais em diferentes países do planeta. Estes eventos, no entanto, não retiram a relevância e atualidade do livro de Cristina Rocha, uma vez que sua reflexão vai muito além da análise conjuntural. A sua contribuição transcende os fatos particulares, na medida em que nos apresenta importantes chaves de leitura para se compreender as transformações da religião com a emergência e consolidação da espiritualidade nas últimas décadas.

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