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REAÇÕES RELIGIOSAS À COVID-19 NA AMÉRICA LATINA
Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 22, pp. 1-5, 2020
Universidade Estadual de Campinas

A pandemia da Covid-19 enquanto fenômeno global, mas com dimensões e efeitos locais, submeteu milhões de pessoas a mudanças em seu cotidiano e a incertezas provocadas por situações pouco ou nada controladas. O novo coronavírus, por seu alto grau de disseminação, impôs o distanciamento e o isolamento social como principais medidas de proteção, provocando as mais diversas reações locais. Em alguns casos, o agente da crise epidêmica coronavírus, suscitou diferentes manifestações de negacionismo, tanto por parte de pessoas quanto de governos, como os dos Estados Unidos e do Brasil. Esses últimos ainda insistem em relativizar a gravidade da doença, negligenciar a urgência de políticas públicas de prevenção e atendimento, além de estabelecer mecanismos ineficazes de dotação orçamentária e auxílio às populações mais vulneráveis da sociedade. Entretanto, essa não foi a tendência latino-americana, onde a maior parte dos países, diferentemente do Brasil, seguiu as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Em contextos de crise, é comum vermos ressurgir o debate sobre o protagonismo das instituições religiosas na vida em sociedade. Não foi diferente na pandemia. Mas a pergunta que se faz é: qual o lugar da religião neste contexto?

Observa-se que as respostas religiosas à pandemia combinaram distintos repertórios simbólicos e explicações racionais, de cunho científico, na procura da organização do caos que a iminente presença da morte desencadeou. Do México à Argentina, a religiosidade popular católica acionou seu repositório iconográfico e material, com as bênçãos de santos e da Virgem Maria derramadas de helicópteros ou aspergidas nas cidades. A longa tradição do catolicismo acionou os dispositivos que muitas vezes se mostraram eficazes para dar respostas às demandas religiosas durante as epidemias. De outro lado, ainda no cristianismo, lideranças evangélicas e fiéis tentaram desvendar teológica e pastoralmente as razões do flagelo trazido pelo coronavírus, apresentando uma série de explicações: desde aquelas minoritárias, que buscaram os possíveis responsáveis por desencadear a ira divina entre as comunidades LGBTQ+, os movimentos negros, feministas e outros movimentos sociais, àquelas explicações que mostraram a pandemia como uma oportunidade que Deus daria ao mundo para o fortalecimento da fé cristã. Ao mesmo tempo, nas respostas à pandemia, foi enfatizada a ótica sacrificial que incentiva a realização de dias nacionais de oração, jejum e abstinência.

Em outra direção, as religiões afro-brasileiras também ofereceram uma etiologia da pandemia, na qual a Terra, castigada pela ação humana, estaria cansada e a doença ofereceria a possibilidade de resgatar ecológica e existencialmente a vida. Ampliando o escopo, perspectivas espirituais desatreladas dos sistemas religiosos tradicionais, convencionalmente denominadas de movimento Nova Era, fizeram da pandemia um caminho pedagógico de autoconhecimento espiritual como oportunidade de evolução pessoal para se sair melhor da situação.

Na contramão das orientações da OMS, algumas comunidades cristãs, sobretudo no Brasil, se posicionaram contra o fechamento dos templos, alegando a essencialidade dos serviços religiosos. Reação diferente foi verificada entre as comunidades judaicas, sobretudo ultraortodoxas, que se recusaram à abertura das sinagogas e persistiram na prática dos rituais familiares. Na Argentina, fiéis muçulmanos acionaram dispositivos doutrinais prescritos pelo Profeta em outras situações de epidemias para incentivar os seus seguidores, contribuindo no cumprimento das medidas governamentais de isolamento e higiene durante a Covid-19.

Perceber as nuanças dessas respostas foi um dos objetivos do seminário Reações Religiosas à Covid-19 na América Latina, promovido pelo Laboratório de Antropologia da Religião (LAR) da Unicamp, em parceria com a revista Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião da Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Na tentativa de identificar os movimentos sugeridos pelas respostas religiosas, delinearam-se três eixos para aglutinar as tendências analíticas das interações das religiões com a pandemia. O primeiro referiu-se à reinvenção das práticas religiosas e espirituais e o reforço ou surgimento de novos sentidos e novas moralidades. O segundo focou nas mudanças, desafios e oportunidades que a mediação tecnológica trouxe para as práticas e os sistemas religiosos, ao obrigá-los a se adaptarem a plataformas e recursos digitais. Por último, o terceiro eixo abordou o envolvimento da religião nas controvérsias públicas suscitadas pela crise sanitária mundial.

Na direção da reinvenção de práticas e moralidades, o seminário discutiu os sentidos da pandemia e a maneira como cada sistema religioso a conduziu e teceu um emaranhado complexo que poderíamos denominar de uma “pedagogia pandêmica”. Percebemos que as interpretações da etiologia e da finalidade da epidemia encontraramse intimamente ligadas à concepção de mundo e ao leque de orientações morais que os sistemas religiosos e espirituais disponibilizam. Assim, no cristianismo, a pandemia pode assumir caráter muito diferente: sinal apocalíptico do fim dos tempos, como interpretado por algumas lideranças e denominações cristãs, ou a oportunidade de redenção ética segundo práticas sócio-caritativas, de solidariedade e afastamento do consumismo desenfreado do capitalismo, como sugerido pelo Papa Francisco. Mas, tanto no catolicismo quanto no protestantismo e no pentecostalismo, a pandemia tornou-se um momento de fortalecimento da institucionalidade, uma vez que as lideranças pastorais ofereceram uma diversidade de mecanismos rituais (oração, cultos e missas em família, diálogo entre casais, pais e filhos) não apenas para afastar “a angústia e o medo” provocados pela Covid-19, como também para amenizar os conflitos familiares e conjugais em situação de confinamento.

Já na cosmovisão indígena Pan-amazônica, por exemplo, a Covid-19 representou um ajuste de trajetória de vida para a humanidade em relação ao avanço predatório de interesses econômicos e um reajuste civilizatório com a natureza. Como sabemos, o paradigma neoliberal negligência os conhecimentos ancestrais e a interação naturezaespiritualidade nos itinerários pessoais e coletivos. Tal caráter das novas moralidades que a pandemia impôs se estende à relação com o sistema biomédico e a saúde das populações, nos quais as explicações causais da pandemia estabelecem relações com a ação da religião que não pode prescindir da ciência como veículo eficaz perante a epidemia. Ainda que exista uma tensão entre sistemas de cura que as religiões e espiritualidades holísticas possuem face aos sistemas médicos, umas compreendem holisticamente a cura como integração corpo-mente-natureza e outros como uma intervenção para suprimir a doença. Mesmo que essa disputa de entendimentos se instale, será o Estado laico, impondo políticas sanitárias que, via de regra, tende a gerenciar o conflito.

Outras controvérsias públicas atravessaram as relações entre religião e Estado no enfrentamento da Covid-19, marcando a presença na esfera política das instituições religiosas. Na Argentina, Chile, Peru, México, Colômbia e Uruguai, por exemplo, observou-se certa laicidade colaborativa por parte dos sistemas religiosos ao endossar as políticas sanitárias do Estado que, por sua vez, estiveram sintonizadas com a OMS, mas que em alguns casos enfrentaram dificuldades de implementação devido aos problemas enfrentados pelos sistemas públicos de saúde. Por isso, a facilidade logística, a perícia institucional e a territorialização de assistência social por parte de instituições religiosas representam um capital de conhecimento que se torna um aliado para o Estado. Consequentemente, as lideranças religiosas puderam traduzir para as populações mais vulneráveis as medidas sanitárias e incentivá-las a aderir às medidas sanitárias. Tal atuação resultou em ganhos de visibilidade religiosa perante a sociedade e os fiéis, bem como a troca de favores entre igrejas e Estado que, oportunamente, renderão seus frutos mútuos.

Situação diferente notamos no Brasil que, além de enfrentar problemas de desigualdade no acesso ao sistema de saúde, ainda se viu diante de um governo negacionista, alinhado à política trumpista, como se disse acima, na qual setores evangélicos endossaram, sob a reivindicação do status de essencialidade dos serviços religiosos, a abertura presencial de seus templos ao grande público. No entanto, constatouse que a pluralidade interna do campo religioso produziu o acirramento ideológico entre conservadores e progressistas. Estes intensificaram também sua presença no debate público para cobrar do governo medidas eficazes contra o vírus e se diferenciarem das correntes conservadoras que apoiaram as ações de Bolsonaro. Em paralelo, viu-se uma ascensão de bandeiras autoritárias e pró-Estado de Israel, que em certa medida aproximaram ainda mais alguns setores evangélicos conservadores de alas conservadoras do judaísmo.

Outra relação que foi objeto de análise no seminário é a dos processos de virtualização das atividades religiosas, suscitando a necessidade de outros paradigmas teóricos e metodológicos para a compreensão das experiências com o sagrado. Pesquisadores/as do Uruguai, Argentina e Brasil verificaram que os sistemas religiosos institucionalizados migraram maciçamente para as plataformas digitais, apostando no seu arsenal simbólico e ritualístico para oferecer práticas individuais e/ou coletivas nos espaços virtuais. Assim, a ambiência digital inundou-se de orações, leituras estudos bíblicos, missas, pregações, meditação, yoga, mantras, consultas a tarôs, médiuns, lives de orientação religiosa e espiritual, entre outras. O universo religioso passou a reverberar em aplicativos, blogs, sites, canais de Youtube e sites institucionais. Embora muitas dessas práticas já vinham sendo realizadas por agentes religiosos, na pandemia multiplicaram exponencialmente a produção cibercultural. Concomitantemente, em nome da ética e da ordem moral em tempos de crise sanitária, lideranças religiosas realizaram o chamado, pelas plataformas de internet, de seus fiéis, para engrossar ações assistenciais e caritativas, mantendo-os ligados aos templos, ação que tendeu a reforçar os vínculos institucionais.

Somam-se os diálogos entre religião, arte e universo pandêmico utilizados recorrentemente por agentes religiosos, apoiados ou não por instituições, os quais promoveram as edições e disseminação de fotografias, ilustrações, memes, grafites e projeções de imagem em prédios urbanos, fazendo o apelo ao uso de máscaras e do distanciamento social. Essas iniciativas no seu conjunto, retrataram cenas religiosas ligadas à Covid-19 e associaram a iconografia religiosa à doença. Mais ainda, no campo musical a produção de eventos virtuais gospel explodiu ao favorecer a visibilidade social de lideranças midiáticas consagradas e oportunizar a projeção de artistas religiosos menos conhecidos. Certamente, as experiências religiosas mediatizadas por linguagens cênicas e espetaculares repõem as fronteiras entre lazer, entretenimento e experiências religiosas como campo analítico. Em sendo assim, a intensificação do uso tecnológico nos faz questionar um novo “bios” midiático que parece se tornar chave para compreender as mediações do sagrado.

No entanto, ressalva-se que o confinamento social também revelou as desigualdades no acesso e na expertise no uso das tecnologias digitais entre os agentes religiosos. Isto é: entre as instituições, quem melhor está se saindo é aquela que tem maiores recursos econômicos e know-how no domínio on-line, como as chamadas igrejas online, além do domínio de múltiplos canais de mídia (TV, rádio, jornal, internet), como acontece com denominações evangélicas no Brasil. Do lado da prática dos fiéis, podemos observar que a desigualdade ao acesso ao mundo digital delimita, a própria produção e vivência das experiências religiosas.

Essas e outras chaves de leitura se encontram registradas, na íntegra, nas exposições de: Joanildo Burity (Fundaj/Brasil), Cristina Zúñiga Gutiérrez (El Colégio de Jalisco/ México), Renée de la Torre (CIESAS-Ocidente/México), Magali Cunha (Bereia/Brasil), César Ceriani (FLACSO/Argentina), Nadège Mézié (UNIICAMP/Brasil), Florencia Chapini (UNICAMP/Brasil), Alejandro Frigerio (UCA-CONICET/Argentina), Ronaldo Almeida (UNICAMP/Brasil), Felipe dos Anjos (UFPE/Brasil), Paulo Barrera (UNIMESP/Brasil), Michel Gherman (UFRJ/Brasil), Verónica Gimenez Béliveau (UBA/Argentina), Néstor da Costa (UCA/ Uruguay), Clayton Guerreiro (UNICAMP/Brasil), Eva Scheliga (UFPR/Brasil), Lívia Reis (Museu Nacional/UFRJ/Brasil), Renata Menezes (Museu Nacional/UFRJ/Brasil), Rodrigo Toniol (UNICAMP/Brasil), Mariela Mosqueira (UBA/ Argentina), Luis Bahamondes (Universidad de Chile - Universidad Alberto Hurtado/Chile), Gustavo de Oliveira (UFPE/Brasil), Regina Novais (UNI-Rio/Brasil), Luis Alonso Hernández (UNSAM/Argentina/UC/Venezuela), Alhena Caicedo (Universidad de los Andes/Colômbia), Paulo Fernando Carneiro (PUC-RIO/Brasil). Do mesmo modo, estão disponíveis as crônicas realizadas por pesquisadores e pesquisadoras do LAR/Unicamp que oferecem mapas interpretativos do evento. Todo o material está disponível no site do LAR ( https://www.larunicamp.com.br/) e em sua página de Facebook ( https://www facebook.com/LARunicamp).



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