Artigo
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-2650.12649
Resumo: Do mesmo modo que os negros recriaram suas tradições africanas na sociedade escravista brasileira do século XVIII, certamente enxergaram as práticas rituais do catolicismo como algo que tinha seu fundamento, que lhes fazia algum sentido e que tinha sua justificação. Com efeito, é preciso considerar que a apropriação de alguns dos dogmas do catolicismo por parte de negros africanos e seus descendentes deve ser considerada como resultado da efetiva crença neles. Exemplo disto foi a existência de expressivas lideranças negras da irmandade de Santo Elesbão e de Santa Efigênia, no Rio de Janeiro Setecentista, que se apropriaram de tal modo dos preceitos católicos a ponto de regulamentarem uma devoção às almas do purgatório, em 1786, não só com o objetivo de salvar a alma dos irmãos falecidos, segundo a doutrina católica, mas também como parte de um certo projeto de disseminação da morte cristã, movido pelos próprios negros africanos. Partindo da análise deste caso, bem como do estudo de uma amostragem de registros paroquiais de óbito e testamentos de africanos e seus descendentes, relativos ao século XVIII, proponho através desta comunicação discutir teoricamente a natureza das apropriações do projeto de catequese voltado para os negros, especialmente no que diz respeito às representações acerca da morte, do morrer e do além-túmulo. Para tal, buscar-se-á analisar argumentos, tais como os de John Thornton, James Sweet, Vincent Brown, João José Reis e Anderson Oliveira sobre as relações entre catolicismo e africanidade no que diz respeito às vivências da religiosidade entre africanos e seus descendentes na cidade do Rio de Janeiro Setecentista.
Palavras-chave: Catolicismo, africanidade, morte.
Abstract: In the same terms in which the Black people rebuilt their African traditions in the eighteenth century slavish society, they could certainly realize the rituals of the Catholicism as something that had its principles, made some sense to them, and also had its justification. In this way, it is relevant to consider that the appropriation of some of the Catholic dogmas by the Black Africans and their descendants must be regarded as the result of their effective faith in them. An example was the existence of significant Black leaderships from Saint Elesbão and Saint Efigênia brotherhood in Rio de Janeiro in the seventeenth century, which assumed firmly the catholic beliefs in such a way that they settled a devotion to the souls in the purgatory, in 1786, not only with the aim of saving the souls of their deceased brothers, according to the catholic doctrine, but also as a part of a project that disseminated the Christian death, which was led by the African Blacks themselves. Based on the analysis of this case, as well as, the study of a sample of parochial records concerning the death and the testaments of The Africans and their descendants relating to the eighteenth century, I propose to discuss theoretically the nature of the catechesis project appropriations aimed at the Black people, especially regarding the representations around death itself, of dying, and also the afterlife. To this end arguments will be analyzed, as for example the ones from John Thorton, James Sweet, Vincent Brown, João José Reis and Anderson Oliveira stated on the relations between Catholicism and Africanism, concerning the religious experiences among Africans and their descendants in Rio de Janeiro in the seventeenth century.
Keywords: Catholicism, africanism, death.
Partindo da identificação de algumas das formas como africanos e seus descendentes se apropriarem das representações católicas acerca da morte, do morrer e do além-túmulo, na cidade do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XVIII, a presente comunicação se propõe a discutir certos aspectos da relação entre catolicismo e africanidade no estudo da religiosidade negra na América portuguesa.
Dois aspectos serviram de ponto de partida para tal reflexão. Primeiramente, a constatação - a partir da leitura e análise de uma amostragem de testamentos redigidos por ocasião da morte, relativos à freguesia da Sé, na cidade do Rio de Janeiro, durante o século XVIII - de que os testadores de negros libertos apresentavam maior expressão de culpa e consequente pedido de perdão pelos pecados que acreditavam ter cometido em vida, no momento de fazerem sua prestação de contas para Deus antes de morrer, do que o segmento social dos “brancos” e/ou “livres”1. Em segundo lugar, o inusitado fato da criação, por um grupo de negros africanos, de uma devoção às almas do purgatório, dentro da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, mantida por negros majoritariamente de procedência africana, também na cidade do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XVIII.
Estes dois aspectos levaram-me a pensar na forma como negros africanos e seus descendentes se apropriaram de parte da escatologia católica e de como a morte foi utilizada pela Igreja como um significativo instrumento de cristianização dos escravos na América portuguesa. Aspectos que conduzem à reflexão da relação entre catolicismo e africanidade no estudo da religiosidade negra em situação de diáspora e escravidão colonial. A análise destas questões nos remete a algumas das discussões sobre a natureza da transformação cultural e da formação da cultura afro-americana, no contexto da diáspora africana e da sua inserção nas sociedades escravistas das Américas, na Época Moderna.
Dentre as pesquisas consideradas mais modernas, segundo John Thornton, a proveniente da parceria dos antropólogos Sydney Mintz e Richard Price significaram, a partir da década de 1970, uma grande inovação em relação às argumentações anteriores. Até então, predominavam duas posições dicotômicas, produzidas nos anos de 1940, sobre o tipo de cultura que se desenvolveu entre as sociedades escravas do Atlântico. Por um lado, a representada por Melville Herskovitts, que argumentava que os escravos mantiveram uma cultura africana e que a influência da África foi importante na cultura afro-americana resultante. Por outro, a representada por Frazier, argumentando que a desorganização cultural da sociedade escrava tornou-a muito mais dependente da cultura europeia ou euro-americana (Thornton, 2004, p. 253).
Diferentemente destas posições e diante das dificuldades de se encontrar resíduos africanos puros nas Américas, Mintz e Price defenderam a tese da crioulização da cultura negra no Novo Mundo. Para eles, os africanos recriaram uma cultura no Novo Mundo, através do processo de mudança cultural. Ainda que argumentassem que houve continuidades imensamente importantes com relação às civilizações ancestrais, a história da Afro-américa foi marcada por renovações destas identidades em função das condições sociais mutáveis, às quais os sistemas sociais dos africanos recém-chegados foram receptivos (Mintz e Price, 2003, pp. 70-77). Por conta disso, o sistema religioso africano não teria sobrevivido intacto e inalterado no novo contexto americano, sendo as continuidades formais diretas da África mais a exceção do que a regra em quaisquer das culturas afro-americanas, mesmo nas mais isoladas (Mintz e Price, 2003, pp. 83-86).
Segundo John Thornton, por trás desta argumentação dos dois antropólogos, estava a ideia de que as características do comércio de escravos e da escravização impediram a transmissão direta da cultura africana para as Américas. Primeiro, pois a cultura africana não seria suficientemente homogênea para se construir num único bloco, existindo diversas culturas independentes. Segundo, pois o comércio de escravos tendeu a dispersá-los, agrupando culturas diferentes, ao contrário da cultura europeia (Thornton, 2004, p. 253-254).
Diferenciando-se um pouco da análise de Mintz e Price, Thornton se questionou sobre até que ponto os africanos seriam culturalmente heterogêneos ao chegarem nas Américas, sobre quão bem-sucedidos eles teriam sido em interagir com outros africanos que partilhavam sua cultura, nas Américas, em uma situação de heterogeneidade, e sobre quais seriam as dinâmicas do desenvolvimento cultural e do processo de mudança que transformaram as várias culturas africanas em afro-americanas (Thornton, 2004, p. 254).
Contrapondo-se, de certa forma, a esta tese, Thornton defende a tese de que o comércio dos escravos e suas transferências para as propriedades agrícolas no Novo Mundo não foi um processo de dispersão, segundo o qual os africanos tiveram que recomeçar sua cultura da estaca zero, após sua chegada no Novo Mundo. Segundo ele, embora o processo de escravização, transferência, embarque e distribuição nas propriedades tenha interrompido o curso normal da vida pessoas e familiar daqueles indivíduos, seu efeito negativo em termos culturais foi menor do que muitos estudiosos sugerem. Apesar de não mais circundados por seu ambiente geográfico ou familiar, os escravos não estavam culturalmente sós quando chegavam nas Américas, encontrando com certa facilidade outros com quem falar sua língua e partilhar seus costumes, sobretudo nas grandes propriedades ou em áreas urbanas (Thornton, 2004, p. 277-278).
Para fundamentar esta sua argumentação, Thornton afirma que apesar da diversidade de procedências e línguas, por exemplo, as diferentes “nações” africanas não possuíam uma cultura inteiramente diferente entre si e seus vizinhos, havendo similaridades básicas em uma área razoavelmente grande (Thornton, 2004, p. 254). Contrapondo-se à argumentação de Mintz e Price sobre a dispersão dos africanos na travessia transatlântica, Thornton defende que os navios negreiros embarcavam toda sua “carga” de um ou dois portos na África e a descarregava em grandes lotes em seus novos lares no Atlântico. Além disso, de modo geral, muitos proprietários procuravam obter o maior número possível de escravos da mesma nação, incentivando os casamentos com indivíduos da mesma procedência na esperança de que a estabilidade da comunidade desenvolvida melhorasse a eficiência produtiva e limitasse rebeliões. Sem contar a formação de comunidades de escravos de procedência comum nas irmandades religiosas criadas na sociedade escravista. Aspectos estes que serviram de base para que muitos elementos da cultura africana fossem compartilhados, perdurassem e se desenvolvessem nas Américas, sendo transmitidos para as gerações futuras. (Thornton, 2004, p. 263-269).
No entanto, segundo o autor, ainda que tenham sido capazes de transmitir sua cultura para uma nova geração, esta não seria a mesma da África. Assim, a cultura afro-americana tornou-se muito mais homogênea do que as diversas culturas africanas que a compuseram, fundindo-as e incorporando a cultura europeia (Thornton, 2004, p. 279).
Exemplo disso pode ser visto no aspecto da religiosidade. Para ele, o resultado a nova religião afro-atlântica que se originou identificou-se com a cristã, mas se constituiu em um tipo de cristianismo que satisfazia o entendimento das religiões africanas e europeia. Para Thornton, esse cristianismo africano permitiu que a filosofia e o conhecimento de algumas religiões africanas se acomodassem em um sistema religioso europeu e expressassem uma fusão de grande importância, tornando-se algo mais do que a simples mistura de formas e ideias de uma religião com outra (Thornton, 2004, p. 312-313).
No inicio dos anos 2000, na esteira das revisões das abordagens de Mintz e Price, o trabalho de James Sweet - Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770) - enveredou por um ponto de vista mais radical do que o proposto por Thornton na busca das “sobrevivências africanas” nas Américas, ao afirmar que o impacto africano na diáspora ultrapassou em muito as “sobrevivências” culturalmente dispersas. Segundo ele, “a África foi transportada até os vários destinos do novo mundo colonial em toda a sua plenitude cultural e social, moldando as instituições criadas pelos africanos e fornecendo-lhes uma lente interpretativa, através da qual puderam compreender a sua condição enquanto escravos e enquanto libertos” (Sweet, 2007, p. 16). Segundo ele, a persistência de certas crenças e práticas especificamente africanas no mundo português demonstra a existência de patrimônios culturais comuns entre os povos, apesar da separação geográfica. Esta argumentação é a base para Sweet questionar de certa forma o conceito de catolicismo africano operado por Thornton, por acreditar que os africanos poderiam até se dizer cristãos, mas na essência não o seriam, uma vez que não teriam abandonado suas tradições religiosas africanas, ainda que pudessem adotar alguns ritos e partilhar de algumas concepções católicas.
Na recente obra - The Reaper’s Garden: death and Power in the world of Atlantic Slavery -, na qual busca analisar como as políticas mortuárias moldaram o curso da história dos grupos em disputa no mundo escravista atlântico na Jamaica,Vincent Brown procura resgatar as teses de Mintz e Price no que diz respeito à ênfase sobre a criatividade cultural dos escravizados nas Américas. Ainda que tenha buscado extrapolar a análise dos aspectos ligados às identidades culturais por não considerá-las suficientes para compreender de que modo as práticas culturais satisfizeram uma variedade importante de necessidades nas difíceis e perigosas circunstâncias da sociedade escravista colonial, Brown afirma que africanos e seus descendentes mantiveram traços de suas práticas e concepções “originais”, mesmo quando convertidos ao cristianismo e que esta conversão foi efetiva, não caindo, portanto, o autor no equívoco das interpretações que propõe a dissimulação, como é o caso da análise de James Sweet.
A partir destas argumentações, passo a considerar os dois casos que serviram de ponto de partida desta análise, na busca de refletir aspectos da relação entre africanidade e catolicismo, no âmbito de um estudo das concepções sobre a morte e o além-túmulo presentes entre parte dos negros que viviam na cidade do Rio de Janeiro no século XVIII. Neste sentido, parto para a análise da especificidade de parte dos testamentos dos negros.
Em relação aos testadores negros, é importante lembrar que, na cidade do Rio de Janeiro, desde o início da colonização até a segunda metade do século XIX, a prática testamentária tinha um sentido prioritariamente soteriológico, a ponto de até mesmo a transmissão de heranças ser conduzida com esta finalidade. Prática que, desde o período medieval, vinha sendo direcionada pelo clero católico como um dos passos na preparação para a chamada “boa morte”, considerada como aquela previamente preparada segundo os rituais católicos, na busca da salvação da alma.
Por este motivo, parte significativa dos testamentos era redigida no sentido da prestação de contas da vida terrena; do pedido de intercessão de anjos, santos e da Virgem Maria; do estabelecimento de sufrágios em forma de missas; da determinação de um funeral permeado pela simbologia católica e do estabelecimento de legados e esmolas pios. Elementos que conferiam ao documento uma parte inicial permeada de expressões escatológicas muito comuns entre os diferentes segmentos sociais. As diferenças que apareciam ficavam por conta dos valores investidos na salvação (segundo as condições econômicas do testador), dos santos invocados (de acordo com a[s] devoção[ções] de cada um) e ao peso que cada indivíduo dava à escatologia católica.
De modo geral, os testamentos do século XVIII expressavam o temor do testador em relação à morte, principalmente ao que ocorreria no alémtúmulo. Característica esta que resultou de um processo de cristianização efetivado a partir da chamada pedagogia do medo, por meio da qual - desde fins da Idade Média e ao longo da Época Moderna - as imagens da morte, do julgamento da alma e da possibilidade de condenação transitória (no Purgatório) ou eterna (no Inferno) atuaram como significativos elementos de pressão do clero sobre a consciência e o comportamento dos fiéis.
O medo provinha da crença na chamada “escatologia individual”, segundo a qual logo após a morte haveria um julgamento individual que decidiria o destino da alma: se Paraíso, Inferno ou Purgatório. Era uma ideia diferente da do Juízo Final, que afirmava que o Julgamento seria coletivo e realizado no final dos tempos. Com base nesta nova concepção escatológica, o tempo de espera entre a morte e o Juízo Final era minimizado, posto que o destino da alma seria decidido no próprio momento da morte, em um combate entre anjos e demônios. Visão esta que emprestou aos chamados “últimos instantes” uma imagem de grande dramaticidade (Áries, 1989, p. 115-116), uma vez que a salvação dependeria da vitória das forças do “bem” contra as do “mal”. A angústia em relação ao momento da agonia foi utilizada pela Igreja católica como incentivo para que os fiéis se preparassem para o momento de sua morte.
Entre os indivíduos que redigiram seus testamentos, no século XVIII, na cidade do Rio de Janeiro, pude identificar a presença deste temor em relação à morte e ao destino no além-túmulo. No entanto, foi entre testamentos de negros forros2, crioulos e africanos, que identifiquei as expressões mais atemorizadas a respeito da passagem para o outro mundo, além de grande sentimento de culpa diante do momento derradeiro. Fragmentos de testamentos destes indivíduos demonstram este aspecto.
Em fragmentos de seu testamento escrito em 30 de dezembro de 1755, uma semana antes de sua morte, Francisca de Souza Melo, parda, liberta e casada menciona que
tendo firme a esperança na misericórdia infinita de Deus de que sem embargo dos meus inumeráveis pecados me há de perdoar [...]. [...] [com a intercessão da Santíssima Virgem Maria] refúgio dos pecadores, suposto que conheço que sou a maior delas e a mais ingrata que pisa a terra, e a que merece, [que] ela não converta para mim seus olhos misericordiosos. Também espero intercedam por mim os santos anjos, principalmente os da minha guarda, sem se lembrar das minhas desatenções que com ele tenho tido toda a minha vida, [...]. [...], aos quais a todos [os santos da corte celestial] rogo humildemente que por amor daquele Deus a quem então venha interceder por mim para que me dê o que desejo, que é a boa morte. Conheço a obrigação que tenho de clamar a Deus de todo o coração sobre todas as coisas suposto que tão ingratamente venho faltado a Ele, [...]. [...] e me conformo com a sua santa vontade aceitando com a sua graça a morte e todas as adversidades que ele for servido dar-me por qualquer via oferecendo-os juntamente com os merecimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo, com satisfação de meus imensos pecados; perdoo a qualquer pessoa que de mim estiver ofendida e agravada (ACMRJ, 1746-1758, p. 328).
A crioula Maria da Conceição Matos, que era natural do Rio de Janeiro, filha de uma crioula forra, solteira e sem filhos, escreveu seu testamento em 13 de janeiro de 1778, dois meses antes da sua morte. No momento de encomendar sua alma à Virgem, a Cristo, aos santos e anjos, mencionou que:
[...] para ficar mais desembaraçada, a tratar somente da minha salvação e na hora da minha morte não ter coisa que me inquiete e me perturbe, quero fazer meu testamento na forma seguinte. Encomendo a minha alma em primeiro lugar nas mãos de Deus nosso Senhor que é trino e uno padre, filho e espírito santo, três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro [ilegível] Do bem e do mal que premia os justos falecidos em graça com a vida eterna e castiga os mais que morrem em pecado mortal com o inferno. [...] Creio nos sete sacramentos da Igreja, e tudo o mais quanto crê e ensina a Santa Madre Igreja Católica de Roma, em cuja fé e crença vivi e quero salvar a minha alma. Rogo a Virgem Santíssima Nossa Senhora que interceda por mim diante de seu unigênito filho, para que me perdoe os meus pecados e me dê a graça final santificante e me salve pelos merecimentos infinitos de sua paixão e morte. Encomendo também a Senhora Santana, São Francisco de Paula, Santo Antonio, e a nossa Senhora, como título de boa morte e ao patriarca São José para que intercedam por mim diante de Deus, que me perdoe e me salve e ao anjo da minha guarda que também me perdoe toda a falta de respeito e desobediência aos seus avisos e ofendendo-os tantas vezes a Deus na sua presença e que me assista na última hora com suas poderosas inspirações apartando longe de mim toda sugestão do demônio. (ACMRJ, 1776-1784, p. 101).
Em 24 de fevereiro de 1779, um mês antes da morte, Apolônia de Jesus, solteira, forra, filha de uma escrava, assim se referiu também no momento de encomendar sua alma:
[...] e ao Espírito Santo peço e rogo que me assista com sua divina graça porque conhecendo as ofensas que tenho cometido me arrependo delas para merecer o prêmio eterno, peço e rogo a bem aventurada Virgem Maria Nossa Senhora e a todos os anjos e santos da corte do ceu especialmente a santa de meu nome e ao anjo da minha guarda queiram por mim interceder agora e quando a minha alma deste corpo sair para livre das tentações do inimigo tentador do gênero humano naquela última agonia mereça a eterna glória, que como verdadeira cristã protesto viver, e morrer na santa fé católica e crê tudo no que tem e ensina a santa madre igreja de Roma com cuja fé pretendo salvar a minha alma, não por meus merecimentos, mas sim pelos do unigênito filho de Deus. (ACMRJ, 1776-1784, p. 148).
Através da leitura dos testamentos destes negros pude identificar, por trás do temor explicitado, vestígios daquelas representações acerca do Juízo Particular mencionados anteriormente. Temia-se de forma dramática os acontecimentos em torno do combate, no leito de morte, entre as forças celestes e as demoníacas pela possessão da alma do moribundo. Temia-se o desamparo nesta última hora; daí os clamorosos pedidos de intercessão dos santos e anjos, além da Virgem e de Cristo. A agonia e o juízo apareciam, assim, como os motivos para o medo da punição. O que me chamou a atenção, contudo, foi que esta culpabilização se fez presente principalmente em testamentos de negros. Não acreditando que isto tenha sido mera coincidência ou fruto do acaso, penso que indicam uma apropriação diferenciada, entre os negros, do discurso eclesiástico sobre a morte.
Por mais que a noção de pecado tenha estado presente na versão católica do cristianismo de um modo geral, é evidente que, no caso específico dos negros, houve uma maior intensidade do recurso a ela devido à catequese que lhes foi dirigida, como alguns autores já indicaram (Vainfas, 1986; Lima, 1990; Oliveira, 2002a), foi diferenciada daquela destinada aos “brancos” e livres. Diferença que esteve relacionada à associação que os discursos eclesiásticos passaram a fazer entre a escravidão africana e a purgação dos pecados, a partir do século XVII, no processo de construção da justificativa ideológica do cativeiro (Vainfas, 1986, p. 93).
Com base nestes discursos, a escravidão foi legitimada pela Igreja como um meio de salvação para os africanos, desde que se enquadrassem no interior da sociedade e se submetessem ao Estado e à Igreja (que se encontravam em regime de união, devido à confessionalidade do primeiro). A catequese foi o caminho para se garantir este enquadramento, cabendo à Igreja o pastoreio daquelas almas, a fim de que os escravos aceitassem a “verdadeira” fé e se resignassem à condição que lhes fora destinada. Deste modo, o discurso eclesiástico tornar-se-ia um elemento crucial no processo de cristianização e de dominação. Numa sociedade católica, escravista e de Antigo Regime, como o Brasil colonial, ele procurou legitimar e naturalizar as desigualdades e hierarquias sociais, segundo afirmou Hebe Matos (Mattos, 2001, p. 143).
Na América portuguesa, a associação entre a escravidão africana e o pecado se consubstanciou na elaboração de um catecismo específico para os negros, plasmado no texto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Promulgadas em 1707, elas tiveram como principal objetivo adaptar as decisões do Concílio de Trento para a Colônia, visando dar maior uniformidade às ações da Igreja católica no Brasil. Em seu texto, Monteiro da Vide procurou formular um compêndio especial para a catequese dos africanos, intitulado “Breve instrução nos Mistérios da Fé, acomodada ao modo de falar dos escravos do Brasil, para serem catequizados por ela” (IHGB, 1720).
O conteúdo deste compêndio torna patente o peso conferido às temáticas da morte e da salvação ou condenação da alma. Mas, muito mais forte do que a imagem sobre o destino da alma “boa”, foi a representação do Inferno como o local destinado às “almas de mau coração”. Muito embora não tenha indicado o que se passava no Ceu, o compêndio fez questão de apresentar o Inferno como o local do “fogo que não se apaga”, conferindo maior dramaticidade à possibilidade de punição. Na instrução para a confissão, fez uso, mais uma vez, da referência ao Inferno, mostrando-o como um local de destino dos pecadores. Com isso, buscava frisar as consequências para quem morresse no estado pecaminoso.
Mas o tom ameaçador não parava por aí. Além das perguntas e respostas, as Breves Instruções continuaram a sobrepesar a noção de pecado ao apresentar para os escravos um ato de contrição diferente daquele proposto para os demais fiéis. No texto destinado aos escravos, não só explicitou-se mais o termo “pecado”, como também se fez referência ao ato de o cativo ter “feito muitos pecados” - sugerindo uma propensão maior ao ato - além de sugerir uma expressão mais dolorida pelos pecados virtualmente cometidos. Enquanto o texto destinado aos demais fiéis mencionava que o arrependido estava propondo “firmemente” a se “emendar”, o destinado ao escravo indicava que ele não haveria de fazer mais pecados; reforçando o termo e a ideia da propensão ao ato, ao fazer uso do advérbio de intensidade.
Outro aspecto que reforçou a associação entre africanos e pecado foi o discurso em torno da cor preta. Discurso que, ainda no século XVIII, segundo Anderson Oliveira, não traduzia nenhuma perspectiva racial e/ou racista entendida à luz do campo discursivo das teorias científico-raciais do século XIX. Tanto em Portugal como no restante da Europa, desde a Idade Média, preto ou negro eram cores vistas como castigos impostos aos pecadores. Negro era o “desgraçado” no sentido de desprovido da graça divina, em oposição ao branco, considerado a cor dos bons e dos recompensados por Deus (Oliveira, 2002b, p. 228).
Coincidentemente, esta concepção que associava a cor à desgraça também esteve presente nas representações do Purgatório no Ocidente católico desde o século XII. Nos relatos medievais sobre a aparição de mortos aos vivos reclamando orações pela sua libertação do purgatório, a cor da vestimenta indicava a sua sorte no além. Nas primeiras aparições, o morto surgia todo preto, indicando seu estado de sofrimento. Conforme recebesse as orações do vivo, aparecia meio preto e meio branco, até aparecer todo branco, indicando estar definitivamente salvo, para fazer saber àquele que o socorrera por suas preces da sua sorte no além (Schimitt, 1981, p. 226 e Le Goff, 1981, p. 348, 356 e 358).
Assim, por meio da apresentação de um catecismo específico para os escravos e da representação da cor preta como a dos “desgraçados”, a instituição eclesiástica reforçava aquela associação entre cativeiro e pecado, a partir da qual creio ser possível compreender melhor as expressões de maior culpabilização presente em testamentos de negros.
A especificidade do conteúdo de testamentos de descendentes de escravos e libertos sugere que, em que pese a possibilidade de convivência entre representações católicas e africanas acerca da morte, parte destes indivíduos apropriou-se de elementos da doutrina católica, especialmente os escatológicos. Afinal, fizeram questão de se demonstrar contritos na iminência da morte, demonstrando que, no mínimo, tinham medo da punição e de não alcançarem a salvação. Ou seja, ainda que se encontrassem no momento derradeiro de suas vidas, não a tendo direcionado no sentido prescrito pela Igreja (como alguns dos testadores mencionaram), não arriscaram partir sem fazer sua “prestação de contas”. O que demonstra que, de certa forma, o discurso eclesiástico foi apropriado por eles, pois do contrário não demonstrariam todo aquele investimento na salvação da alma após a morte.
Mas como a representação escatológica da morte e do além-túmulo foi apropriada por escravos, libertos e seus descendentes? Tal resposta pode ser encontrada na análise da adesão de um grupo de devotos de Santo Elesbão e Santa Efigênia, no Rio de Janeiro Setecentista, a um dos pilares da doutrina escatológica católica - o culto às almas do purgatório. O que era esta doutrina?
Desenvolvida a partir de finais do século XII e início do século XIII, ela conformou várias práticas e representações perante a morte que a Igreja católica vinha até então delimitando com o objetivo de cristianizar crenças tidas por pagãs. Com efeito, instalado enquanto crença na Cristandade ocidental, o Purgatório seria compreendido como um além intermediário, entre o Paraíso e o Inferno, onde certos mortos passariam por uma provação (que podia ser abreviada pelos sufrágios dos vivos), a fim de expiar os pecados em relação aos quais a penitência não fora completamente cumprida (Le Goff, 1981, p. 18-19). Este além intermediário estaria estreitamente ligado à concepção de um tipo de pecado intermediário, ligeiro, quotidiano, que passou a ser identificado como “pecado venial”, ou seja, perdoável (Le Goff, 1981, p. 19).
O corolário desta doutrina foi a intensificação da prática dos sufrágios, que passaram a ser reforçados como meio de auxiliar na purgação das penas e na libertação das almas, não mais somente por sua boa conduta pessoal, mas por causa das intervenções exteriores dos vivos, através das orações, esmolas e, principalmente, missas celebradas pela Igreja a pedido dos parentes e amigos do morto (Le Goff, 1981, p. 253). Segundo Jacques Le Goff, este sistema do Purgatório teve dois desdobramentos importantes. O primeiro foi dar uma renovada importância ao período que precedia a morte; o segundo foi intensificar os laços de solidariedade entre vivos e mortos sob o intermédio do clero e das orações (Le Goff, 1981, p. 346-347).
No primeiro caso, implicou na intensificação do medo dos “últimos instantes” - ao qual já fiz menção - quer pelo receio de que não houvesse tempo de uma preparação para o trespasse através da penitência, quer pelo caráter doloroso das penas que a alma sofreria no Purgatório.
Será justamente associado a este medo dos últimos instantes que se intensificará a prática dos sufrágios pelas almas presas no Purgatório e que, portanto, se estabelecerão novos laços de solidariedade entre vivos e mortos. Através das orações ou esmolas realizadas em intenção de parentes ou amigos mortos, os vivos concorreriam pela abreviação das penas de quem delas se favoreceria no Purgatório. Uma vez tendo alcançado o Paraíso, os mortos passariam a rezar por aqueles (vivos) que os teriam arrancado do Purgatório (Le Goff, 1981, p. 373). Esta solidariedade reforçou laços familiares, corporativos e confraternais. Estes últimos manifestaram-se, a partir do século XIII, na criação de confrarias que teriam como uma de suas principais funções a realização dos sufrágios em intenção das almas de seus confrades.
Esta rede de solidariedade que se desenvolveu principalmente por intermédio das irmandades religiosas, manifestou-se na sociedade escravista, quando vicejaram associações voltadas para os pretos e os mulatos. Por meio da filiação a tais agremiações, buscava-se a garantia de funerais considerados dignos e sufrágios por ocasião da morte (Scarano, 1978, p. 51-59; Quintão, 1997, p. 87 e 156-163; Soares, 2000, p. 174-178; Rodrigues, 2003, p. 142143; Borges, 2005, p. 160-173). A potencialização desta busca se deu, por exemplo, quando, mesmo sendo filiados a uma irmandade religiosa, um grupo de negros residentes na cidade do Rio de Janeiro decidiu organizar, no século XVIII, uma subdivisão interna com vistas a desenvolver um culto especial aos mortos, através da realização de sufrágios.
Tratou-se da Congregação dos Pretos Minas Makis - liderada por Francisco Alves Souza, um preto forro, de procedência mina, do reino Maki ou Mahi, como afirma Mariza Soares - existente no interior da irmandade de Santo Elesbão e de Santa Efigênia, que em 1786 concluiu a redação dos estatutos para regulamentar uma devoção às almas do purgatório. Através destes estatutos, buscava-se regulamentar uma devoção3 que, ao que tudo indica, já existia na prática, reunindo os “pretos” para arrecadar esmolas a fim de sepultar e mandar rezar missas pelas almas dos seus “nacionais” e acudir aos que fossem pobres.
Dois foram os principais motivos da constituição desta devoção. O primeiro era a busca por dedicar maior atenção aos sufrágios para os irmãos falecidos, devido à negligência do capelão da irmandade na assistência religiosa e às ausências de irmãos nos funerais dos demais confrades. O segundo era a discordância da forma como alguns africanos da cidade praticavam os funerais e cultuavam os mortos, fazendo uso de “canções gentílicas e supersticiosas”, como afirmou Francisco Alves Souza no texto dos estatutos da Congregação. Muito provavelmente, as cantigas “gentílicas” e “supersticiosas” a que se referiu Francisco Souza eram os cantos africanos e os toques de instrumentos que se faziam presentes em muitos cortejos fúnebres de africanos que ocorriam pela cidade, como foi relatado por vários viajantes estrangeiros que por lá passaram (Reis, 1991, p. 159-162; Rodrigues, 1996 e 2003, p. 153-158).
Através da criação da devoção às almas do purgatório, o regente Francisco Alves Souza buscava não só doutrinar as atitudes diante da morte dos seus “nacionais”, como também desvincular a imagem de que os pretosminas makis praticassem ritos fúnebres semelhantes a outros africanos, aos quais reputava de “gentios”. Foi neste sentido que foram elaborados capítulos específicos do estatuto para regulamentar a prática dos sufrágios aos mortos entre os congregados. O capítulo quarto determinava que todos os que fossem da nação maki e estivessem no adjunto seriam acompanhados até a sepultura, independente da irmandade a que fossem filiados. O regente deveria reunir os congregados para que cada um contribuísse com sua esmola, conforme suas posses, e votar - juntamente com os demais detentores de cargos - a quantidade de missas que seriam mandadas dizer pelo defunto (BN, Souza, s/d, p. 32). Ou seja, não havia um número estipulado de missas, posto que este dependeria da quantia arrecadada.
Mas, se a importância do sufrágio das almas dos congregados não estava dada a priori pela definição de uma quantidade fixa de missas, era na assiduidade dos mesmos aos funerais e, principalmente, no estabelecimento de punição aos faltosos (por meio do pagamento de esmolas e de orações) que se procurava garantir o cumprimento das normas do grupo. O capítulo 11 estabelecia punição aos congregados que faltassem por ocasião do falecimento de um irmão. Se fosse forro e não tivesse causa legítima para a ausência, deveria pagar 60 réis “em castigo de sua rebeldia e frouxidão”. Aos que tivessem uma causa legítima, em função de suas ocupações, bastaria rezar o pai-nosso e a ave-maria, com glória-patris oferecida à Sagrada Paixão do Senhor “pela alma daquele falecido” (BN, Souza, s/d, p. 34).
Mas era no capítulo 14 que se encontrava a determinação que mais explicita e diretamente se enquadrava nas doutrinas católicas, especialmente na referente ao Purgatório. Com exceção dos trabalhadores e dos velhos, todos os congregados deveriam jejuar às segundas-feiras da Quaresma, ouvindo missa. Aos que soubessem ler, deveria ser rezada a novena “saudações de São Gregório”, vulgarmente intitulada de “novena das almas”. Para os que não o soubessem, bastaria rezar “tantos” glória-patris aplicados às almas do purgatório (BN, Souza, s/d, p. 35).
Ora, as missas de São Gregório eram tradicionalmente estabelecidas nos manuais de preparação para a morte como as mais eficazes para a intercessão daqueles que fossem se preparar catolicamente para o “passamento” (Rodrigues, 2005, p. 109-110). Os escritos do papa Gregório, o Grande (540-604), abordando a eternidade da alma, sua sorte no além, a geografia do outro mundo, bem como pequenas histórias enfocando alguns mortos enquanto expiavam seus pecados, foram utilizados nos séculos XII e XIII pelos teóricos que moldaram a doutrina do Purgatório. Ainda de São Gregório adviria a recomendação de oração e ofertas de missas pela salvação das almas (Ariès, 1981, p. 108-116; Schmitt, 1999, p. 47-48).
A especificação da segunda-feira como dia de orações pelas almas muito se devia a outra tradição católica, estabelecida também no medievo, a respeito da rotina semanal das almas no além-túmulo. Do mesmo modo que os vivos, os mortos viveriam um ritmo semanal de sofrimento, descansando no sétimo dia. Uma vez determinado o domingo como dia de repouso ou da realização de castigos menos duros, a segunda-feira marcaria, pelo contrário, o retorno dos tormentos para as almas condenadas à expiação. Sendo, portanto, considerado o dia ideal para se fazer as orações e missas em seu socorro (Ariès, 1981, p. 353; Schimitt, 1999, p. 197-198).
Com base nestas questões, é possível identificar nas determinações estabelecidas pelos Estatutos da Congregação dos Pretos Minas do Reino de Maki em relação ao sufrágio dos mortos um estreito vínculo com as doutrinas escatológicas do catolicismo. Aspectos estes que contribuíram sobremaneira para a conformação identitária do grupo. Assunto que passo a abordar a seguir.
Por trás da regulamentação da devoção às almas, Francisco Alves de Souza buscava apresentar os makis como verdadeiros católicos. Segundo Mariza Soares, a preocupação com os “gentilismos” e as “superstições” parece ter sido uma inovação não só da Congregação em relação à irmandade em questão, como também uma inovação do próprio regente, que demonstrou ter o interesse pessoal em desenvolver a espiritualidade dos congregados, tencionando converter seu povo ao catolicismo (Soares, 2000, p. 215-218).
Em diferentes passagens da primeira parte do texto dos estatutos da Congregação, Francisco e o secretário Cordeiro enunciavam sua fé, dizendo que procuravam falar “catolicamente”. Para tal, fizeram uso, inclusive, de passagens bíblicas e de citações em latim, ao mesmo tempo em que mencionaram elementos da escatologia católica, aos quais se referiram os testamentos de negros por mim identificados.
Pela leitura destes trechos, fica clara a relação que estabeleceram entre a devoção às almas e o ser católico, demonstrando ter sido a morte um significativo instrumento de catequese no universo do catolicismo. Relação esta que faz lembrar uma afirmação de Michel Vovelle, segundo a qual a devoção às almas do purgatório representou a forma de o catolicismo póstridentino cristianizar crenças tidas por pagãs (Vovelle, 1991, p. 200). Deste modo, pode-se compreender por que no texto dos estatutos, a devoção às almas vinha acompanhada do empenho de Francisco em extirpar costumes tidos por gentílicos e supersticiosos entre os africanos filiados à Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, especialmente os daomeanos.
Fica patente, portanto, que a regulamentação de uma devoção às almas do purgatório se constituiu num caminho de afirmação do catolicismo por parte de um grupo de africanos na cidade do Rio de Janeiro, nas últimas décadas do Setecentos. Ou seja, entre os africanos enunciava-se um discurso que buscava cristianizar os “pretos” por intermédio das atitudes diante da morte. Em certo momento, Francisco Alves Souza chegou a “inventar” uma dada tradição ou memória africana, principalmente, quando narrou a respeito do Reino de Maki, que seria cristão.
Segundo Mariza Soares, ao narrarem a história da origem dos makis na Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, Francisco Alves Souza e Gonçalo Cordeiro procuraram estabelecer uma linha de continuidade entre o chamado por eles de grande reino Maki da Costa da Mina e eles próprios, identificando-se como os herdeiros legítimos de seus ancestrais, aos quais eles rezavam com devoção para que salvassem suas almas. Procuraram, assim, mostrar a presença cristã na África, combatendo, também lá, as práticas gentílicas dos daomeanos, que também estavam na Irmandade (Soares, 2000, p. 226-229).
A referência a uma imagem cristianizada da África traz a tona uma questão acerca do significado da identidade de uma congregação majoritariamente africana, quando o tráfico começou a se intensificar na cidade (Florentino, 1995). Concordando com Mariza Soares, é possível afirmar que, se num primeiro momento a recusa de certas práticas culturais africanas poderia nos fazer acreditar que os congregados makis estavam renegando sua identidade étnica, uma análise mais detida de outros indícios demonstra que isso não ocorreu.
Não só o texto dos estatutos da Congregação dos Pretos Minas do Reino de Maki fez uso recorrente da expressão “parentes” e “nacionais” para se referir aos demais minas da etnia maki, como também fez uso da “língua geral da Mina” no momento em que Francisco Souza denominou os cargos e títulos dos membros da administração da Congregação. Sem falar na insistência na recuperação da História da Costa da Mina, especialmente da presença cristã na África, e na negação dos costumes “bárbaros” do Benim e dos daomeanos. Assim, a identidade maki cristã foi construída em contraste com a daomeana tida por pagã (Soares, 2000, p. 229-230). Aspecto que foi utilizado por Francisco Alves Souza para justificar a ruptura entre makis e daomeanos no interior da Irmandade de Santo Elesbão e de Santa Efigênia, atribuindo a estes parte dos “gentilismos” funerários. E, mais significativo para a discussão aqui desenvolvida, foi a explicitação do vínculo com os ancestrais que se tornaram alvo de culto através da regulamentação da devoção às almas. Como afirmou Soares, o especial cuidado com os mortos denota que ser maki longe do reino africano representava construir uma identidade voltada para o passado com base numa rede étnica geracional (Soares, 2002, p. 75).
Mas não seria esta última afirmação contraditória com o que procurei afirmar até aqui? Creio que não. O que parece ser um paradoxo - a defesa fervorosa do catolicismo e, ao mesmo tempo, da identidade étnica africana - é, na verdade, o encontro de duas culturas na partilha de um interesse comum em torno da morte, ou melhor, dos mortos. Como afirmou João José Reis, a morte e a ancestralidade mantinham-se como elementos fundamentais da identidade maki e africana, de um modo geral. A ênfase do Estatuto na devoção às almas sugere o apego a uma visão de mundo africana que privilegiava uma relação especial com o mundo dos mortos. Para Reis, que partilha da tese a respeito das sobrevivências africanas na sociedade escravista, a Congregação era uma organização mais densamente africana do que as irmandades e na qual as identidades especificamente africanas faziam-se apresentar com mais força (Reis, 1997, p. 18-19). Interessante é pensar que justamente esta organização mais africana foi se aproximar de uma das maiores preocupações católicas; ou seja, o cuidado com a morte e com o sufrágio das almas.
Por que isto foi possível? Certamente pela existência em ambos os universos culturais de uma especial preocupação com a morte. Mas também não podemos esquecer outro fator que contribuiu sobremaneira para acentuar este aspecto, qual seja a especificidade da catequese dirigida aos negros, que acentuou a dimensão escatológica do catolicismo, principalmente por meio da associação entre cativeiro, pecado e salvação da alma. Neste sentido, a combinação entre catolicismo e africanidade tornou possível a construção de novas identidades étnicas, numa espécie de celebração africana do catolicismo, como afirmou João José Reis (Reis, 1997, p. 25-26).
Hipótese que não está muito distante da argumentação de John Thornton sobre o catolicismo africano, tendo em vista que, segundo o autor, apesar de possuírem sistemas um pouco diferentes de conhecimento religioso, assim como um conjunto totalmente distinto de revelações básicas, os africanos e os europeus possuíam várias ideias importantes em comum, sem o que o desenvolvimento deste cristianismo africano não teria sido possível se eles não tivessem partilhado estas ideias. Ideias estas que concebiam o cosmos como dividido em dois mundos separados, porém intimamente ligados: o material - “esse mundo” -, no qual todos vivemos e que pode ser percebidos através dos cinco sentidos e o “outro mundo”, normalmente imperceptível exceto por alguns poucos indivíduos com dons especiais e habitado por uma variedade de seres ou entidades. Para ambas as culturas religiosas, era possível passar deste para o outro mundo pela morte, de modo que as almas dos mortos estavam entre os habitantes do outro mundo, o qual era mais do que uma morada para os mortos, sendo também um mundo superior que governava os eventos do mundo terreno (Thornton, 2004, p. 313-314).
Para Thornton, diferentemente do catolicismo, a ausência de ortodoxia e de um clero forte entre os africanos facilitou a conversão. Mas, além disso, também foi importante o fato de a conversão ao cristianismo ter começado já na África, seja através da conversão de alguns reinos - como o Congo -, seja pela atuação de missionários e mercadores cristãos, além de outros europeus (Thornton, 2004, p. 325-335). No entanto, em que pese a existência de aspectos cosmológicos comuns, o cristianismo no Novo Mundo também possuiu algumas características próprias que o separavam do africano. Isso teria ocorrido pelo fato de que pessoas de regiões mais díspares da África seriam aqui reunidas, encontrando cosmologias bastante diferentes de suas próprias que, ao serem mescladas, originaram uma nova cosmologia comum, que não era nem cristã nem semelhante a uma cosmologia africana específica; ao contrário, era composta de elementos construídos a partir de uma ampla base comum a todas as religiões africanas atlânticas (Thornton, 2004, p. 343-346).
A partir destas considerações, é possível afirmar que, se, por um lado, é inegável que elementos da religiosidade africana se faziam presentes nas práticas cotidianas de africanos e seus descendentes na cidade do Rio de Janeiro, a exemplo dos cortejos fúnebres; por outro, não se pode ignorar que dentre estes indivíduos também havia os que acreditavam nas doutrinas católicas, principalmente as escatológicas. Com efeito, acredito que a vivência do catolicismo por parte de africanos e seus descendentes não deva ser interpretada segundo as afirmações que a justificam com base na dissimulação, a exemplo da análise feita por Roger Bastide (1989, p. 157179) de que o catolicismo negro seria superficial e dissimulado. Isto significa simplificar a análise histórica e a complexidade das relações culturais.
Um dos problemas da abordagem de James Sweet é que se aproxima bastante desta concepção ao sugerir que a adoção do cristianismo pelos africanos nas Américas foi limitada ou “incompleta”, de modo que os africanos não foram católicos na essência, uma vez que se mantiveram africanos em termos religiosos e culturais. Talvez, o equívoco desta visão esteja justamente na busca da “essência” africana; algo que me parece difícil de se encontrar na situação da diáspora (onde o diálogo, as imposições e/ ou trocas culturais seriam mais a regra do que a exceção).
Da mesma forma que nunca houve um cristianismo ou catolicismo puro ou essencial em nenhum lugar/sociedade, nem na Europa, nunca haverá uma religião ou cultura africana pura, nem na África. Afinal, como interpretar o fato de um africano, no Rio de Janeiro, ter liderado a criação de uma devoção às almas do purgatório, própria da escatologia católica, em repúdio aos “gentilismos” africanos, dizendo-se firmemente católico e, ao mesmo tempo, mostrando-se preocupado com os ancestrais e com sua identidade maki? Ao fazer isso, Francisco Alves Souza não foi nem menos católico nem menos africano, mas apenas vivenciava aquilo que as duas cosmologias apresentavam de comuns.
Assim, por um lado, é possível pensar que do mesmo modo que os negros recriaram suas tradições africanas na sociedade escravista brasileira, eles certamente enxergaram as práticas rituais do catolicismo como algo que tinha seu fundamento, que lhes fazia algum sentido e que tinha sua justificação (Rodrigues, 1996, p. 21-22 e 2003, p. 161). Por outro, devemos pensar que a apropriação dos dogmas do catolicismo por parte de negros africanos e seus descendentes deve ser considerada como resultado da efetiva crença neles.
A partir destas considerações, é plausível imaginar que não tenha sido mera coincidência o fato de terem sido justamente os testamentos de negros os que apresentaram maior indício de culpabilização, muito embora esta seja uma questão que ainda mereça maiores investigações a fim de se confirmar esta hipótese. De qualquer forma, creio que, no Rio de Janeiro do século XVIII, tanto os costumes herdados da cultura africana, como os oriundos do catolicismo se faziam presentes no cotidiano das comunidades negras, uma vez que a complexidade das relações culturais era dada pela constante apropriação e reapropriação dos códigos e valores religiosos de diferentes tradições.
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Notas