Artigo
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-2650.12596
Resumo: Uma lei debatida no congresso indiano por ocasião da emergência do Estado-nação, cuja intenção era expurgar elementos ambíguos entre renunciantes, inspira um debate inicial a respeito de discursos e procedimentos de registro e controle da instituição da renúncia na Índia. Este artigo argumenta que o ascetismo “não-domesticado” sofreu encapsulamento político-conceitual ao longo de situações históricas diversas, mas continua a oferecer uma retórica vivida de empoderamento e emancipação considerada legítima. A partir da análise de modelos míticos como Shiva e Dattātreya e de sujeitos etnográficos como os praticantes de austeridades entre nāgā sādhus, propõe-se uma avaliação do conceito de siddha, iogue que adquiriu poderes criativos. O artigo sugere que a trajetória do asceta heterodoxo seja vista como empoderadora, de acordo com sua matriz cognitiva siddha e tântrica, e que a performance “no mundo” do virtuose seja compreendida como linguagem dissidente.
Palavras-chave: Ascetismo indiano, política do conhecimento, performance dissidente, siddhas entre nāgā, sādhus.
Abstract: A bill moved by the Indian congress at the dawn of the rising Nationstate, intended to purge the ambiguous elements among renouncers, inspires an initial debate on discourses and procedures regarding the registration and control of the institution of renunciation in India. The article argues that “untamed” asceticism suffered political and conceptual blackboxing throughout diverse historical situations, though it continues to offer a legitimate lived rhetoric of empowerment and emancipation. Based on Shiva and Dattātreya as mythical models and on ethnographic examples among nāgā sādhus who perform austerities, the text explores the concept of siddha, a yogi who has acquired creative powers. The articles suggests that the heterodox ascetic’s trajectory be seen as empowering, in accordance to its siddha and tantric cognitive matrix, and that the virtuoso’s performance “in the word” be understood as a dissident language in its own right.
Keywords: Indian asceticism, politics of knowledge, dissident performances, siddhas among nāgā, sādhus.
Em contraste com o padre, que é pensado como aquele que incorpora a estreiteza da religião, com sua rigidez e apego ao dogma, acredita-se que o santo exemplifique as possibilidades humanas de liberação. (Kakar, 2008, p. 36) [N.E. tradução própria])
O Ato Sādhu
Em 1957, o congresso indiano votou o Ato Sādhu (Sādhu Bill) que obrigaria o registro dos estimados 600.000 sādhus esaṃnyāsīs1 da Índia. Sua intenção expressa era, nas palavras do proponente do ato, citadas por Bhagat (1972), a de “expurgar o crescente número de impostores e ovelhas negras, vestidos em cor-de-açafrão santo, de cometer atos ‘associais’”2 (Bhagat, 1976, p. xv). Seria esta uma tentativa de colocar em operação um discurso modernista de “cultura da jardinagem” (Bauman, 2003)3, caracterizada por um ethos racionalizador, ordenador e, em última instância, alijador do ambíguo4, aplicado àquela que talvez seja a dimensão mais privada da civilização indiana: a renúncia?
Segundo Gross (1993, p. 123), assim como a administração britânica havia demonstrado interesse em recensear os iogues, inflando seus números para provar a “não produtividade” indiana, “os governantes da Índia livre estavam igualmente interessados em livrar a Índia da imagem de ioguelândia” (Gross, 1993, p. 123). No entanto, como relata Bhagat (1972)5, o congresso derrubou o Ato Sādhu. O obstáculo alegado para o fracasso do projeto, segundo o autor, era de cunho prático: recensear renunciantes parecia uma tarefa impossível. Não que faltasse ao congresso confiança nos cientistas e burocratas do Estado. A Administração Nacional Indiana (IAS), cuja elite foi treinada, não raro, nas instituições acadêmicas centrais da Inglaterra, estava em processo de tornar-se uma das instituições mais prestigiosas da Índia. No entanto, mesmo entre aqueles mais encantados por utopias modernistas e socialistas de mensuração, planejamento e ordenação, a “retirada de ervas daninhas” entre renunciantes seria um grande desafio. Por um lado, havia obstáculos logísticos. De acordo com Bhagat, nem a lei obrigaria freiras (budistas, cristãs e jainistas) a fazer fila com sādhus, por exemplo. Ademais, a própria idéia de registro era alheia ao mundo daqueles que se pretendia registrar. Questionava-se: como definir (e enquadrar) sādhu ou saṃnyāsīs nos termos da lei, se, por princípio, o renunciante deixa de ter antecedentes no momento que é iniciado?
Pode-se criticar o peso dado aos obstáculos logísticos, mas o obstáculo conceitual, a porosidade das categorias, não é dificuldade metodológica negligenciável. Afinal, qual seria a categoria que deveria constar no registro? Existe uma profusão de termos que podem, de alguma maneira, ser interpretados como análogos a sādhu ou saṃnyāsīs: vānaprastha, sant, yatī, muni, yogī, jogī, tapasvī, tāntrika, paramahansa, bābā, siddha, avādhuta, entre outros. A lista de posições sociais e ontológicas parece interminável, e aqui estamos citando só termos vinculados ao Sānātana Dharma (“hinduísmo”), o que em si configura uma perspectiva reducionista, já que a Índia é berço de tradições de renúncia muçulmanas, budistas, jainistas, sikhs, cristãs, entre outras, que compartilham com sādhus e saṃnyāsīs hindus fundamentos tecno-conceituais (“traços ascéticos”).
Na prática, saṃnyāsīs (renúncia), como noção e como instituição, perpassa as fronteiras das religiões institucionalizadas na Índia. Embora em determinados contextos tenha um sentido mais específico6, o termo saṃnyāsīs também é utilizado para denotar renunciantes em geral, inclusive de outras matrizes que não as de origem védica ou sincretizadas como hinduístas. Isto significa dizer que nem sempre uma adscrição religiosa mais ampla como “muçulmano” ou “hindu”, implicada na diferença entre “sādhu” e “sufi” (qalandar), por exemplo, é a clivagem mais importante nas relações microssociais.
A porosidade das categorias adscritivas é uma realidade sociológica de origens múltiplas. Há casos em que renunciantes de denominações religiosas diferentes são identificados pelos mesmos termos porque as linhagens têm orientações cosmológicas, rituais e metodológicas comuns, como os tāntrikas (praticantes do tantrismo), que podem ser budistas e hinduístas. Entre meus interlocutores, reconhece-se prontamente alguma identidade entre tāntrikas budistas tibetanos e sādhus hinduístas, particularmente a partir da semelhança de signos diacríticos. Há reflexos dessa identificação também no discurso corrente entre sādhus de que Buddha Dharma (o ensinamento/ dever budista) e Sānātana Dharma (o ensinamento/dever hindu) são o mesmo porque Buda Shakyamuni foi avatar de Viṣnu, e, portanto, o tantrismo (budista) seria uma das possibilidades de atualização do Sānātana Dharma7.
Em outros casos, as aproximações são forçadas pelo olhar distanciado e exotizador do orientalista: sādhus (hindus) e faqirs (muçulmanos) foram categorias frequentemente sobrepostas pela semelhança dos renunciantes aos olhos dos cronistas europeus (Gross, 1993; Oman, 1905). Todavia, o engano repetido - uso intercambiável dos termos em narrativas detalhadas, embora distorcidas - carrega alguma evidência de que sādhus e faqirs tenham de fato dialogado já que compartilham técnicas corporais em comum (fixar o olhar no sol por muitas horas e o deitar em cama de pregos são exemplos que vêm à mente).
Em outros casos ainda, o borramento entre fronteiras adscritivas é intencional, parte de uma agenda político-epistemológica performatizada por um virtuose. O notório caso do poeta místico Kabir (sec. XV), um dos autores religiosos mais influentes da Índia contemporânea, é um exemplo disso. Alguns o consideraram um pīr (muçulmano), outros um guru bhakta (hindu). Segundo Eck (1983), Kabir não se deixaria classificar por nenhuma religião: “Ele ridicularizava com igual veemência os livros sagrados dos muçulmanos e dos hindus, os mullahs muçulmanos e os brâmanes hindus, a Meca muçulmana e a Kashi hindu” (Eck, 1983, p. 86).
Voltando ao debate engendrado pelo Ato Sādhu: além das dificuldades práticas e metodológicas na execução do ato, havia ainda questões de cunho ético-religioso. A proposta seria “um ataque à herança espiritual e social da Índia”, um atentado contra “esta instituição antiga [que] rendeu serviços de apoio à sociedade ao trazer um misto saudável de prosperidade material e necessidades espirituais do povo” (Bhagat, 1976, p. xv). Mesmo que essa objeção possa estar relacionada a interesses de elites representadas no congresso, que mantinham vínculos com organizações de renunciantes, em não ser investigadas, ela coloca em evidência a questão da legitimidade no julgamento de autenticidade de sādhus. Aproveito para retornar à intenção central do ato - registrar para alijar o ambíguo. Vou propor uma guinada reflexiva do discurso para colocar a questão sob novas luzes.
De fato, quem poderia legitimamente julgar a autenticidade de renunciantes sem atentar contra a herança espiritual e social da Índia, que não são as instituições de renunciantes, mas a instituição da renúncia em si, aberta como é às mais diferentes alternativas de atualização, inclusive à opção do caminho radicalmente novo e individual?
Quem é Sādhu e Quem Não é?
A origem sanscrítica do termo sādhu, “reto”, lhe confere a conotação de “pessoa que segue o caminho” na busca por moksha, a liberação do sofrimento do ciclo de vidas e mortes, a emancipação do mundo fenomênico (Gross, 1993). Como tal, designa um estado liminar (Turner, 1969) e não sua compleição, isto é, não denota uma pessoa necessariamente liberta, é indício de um processo de subjetivação soteriológico (com vistas à liberação). No entanto, como estado liminar (relativamente) permanente (Gross, 1993), já que não presume uma reincorporação a uma ordem social - os renunciantes formam communitas (Turner, 1969) também (relativamente) permanentes. Constituem, portanto, uma modalidade de relacionamento social que transcende as fronteiras normais da vida comunal e desafia a sociedade dos pais e mães de família, mas, em parte devido a essa mesma condicionalidade temporal e histórica - kāla/deśa, (nas gramáticas filosóficas hindus) não está livre de estrutura e hierarquia - e nem de vínculos importantes com instituições de não-renunciantes.
Formalmente, recebe a denominação sādhu quem é iniciado em uma ordem de renunciantes, ou sampradāya, mas conferir a autenticidade de um sādhu vai muito além de conseguir estabelecer alguma certeza de que seja um membro “coerente” de uma tal ordem. A institucionalização em um sentido forte está longe de ser a dimensão mais central da socialidade e experiência de todos os iniciados. Portanto, uma análise da dimensão formal do sadhuismo - sua doutrina e sociologia - diz pouco sobre como é praticado, em especial no caso de sādhus itinerantes ou que vivem propositalmente longe de organizações institucionais como maṭhas (organizações monásticas) ou ākhādas (organizações político-militares), cuja socialidade com outros renunciantes costuma estar restrita a uma pequena família nuclear8. O vínculo entre estes renunciantes com uma instituição centralizada só acontece durante festivais, aos quais o sādhu vai se quiser, e mesmo durante estes momentos é tênue9. Ademais, o sadhuismo informal também é uma possibilidade legítima de renúncia em muitos contextos microssociais, em especial na Índia rural (“village India”)10.
Além de pouco circunscrita a suas fronteiras institucionais, a renúncia na Índia comporta uma variedade imensa de práticas. Uma heterogeneidade que poderia ser pensada como rizomática é uma de suas especificidades mais instigantes, em particular entre as vertentes hindus. Alimentado por uma miríade de fontes míticas e místicas, tanto escritas quanto orais, provindas de diversas tradições, o “hinduísmo” pode ser descrito como um ‘amálgama’, já que estruturou-se e é estruturado pela pluralidade, sentido-valor que está manifestado de forma particularmente pronunciada na instituição da renúncia como expressão máxima de individualização. Evidência disso é que as mais diversificadas configurações filosóficas, sociais e culturais - além de trajetórias individuais - foram consideradas legítimas em alguma situação histórica ou universo microssocial, e todas lograram (algum) abrigo sob o conceito guarda-chuva de renúncia hindu.
A tradição védica, em particular sua hermenêutica bramânica, é ideologicamente dominante, mas é apenas uma cosmopercepção a nutrir a instituição da renúncia, entre incontáveis outras, como o tantrismo aborígene, popular ou folk (Eliade, 2001[72]; McDaniel, 2004) e as diversas correntes enquadradas como “caminhos de mão esquerda” (vāmāmarga) (White, 2001)11. Elas tem em comum um caráter experiencial, anti-dogmático e por vezes até antinomial, assim como o fato de darem alta valência à contextualização histórica e individual, caráter que resulta em constante reinvenção nas interpretações cosmológicas, rituais e práticas - e também sociológicas.
Muitos entre aqueles que alcançaram o status de virtuoses nas vertentes do tantrismo popular, nas tradições extáticas (em especial bhakti) ou nos “caminhos de mão esquerda” em algum momento incorreram em atos anti-sociais (“associais”) que certamente seriam condenados pelo proponente do Ato Sādhu. Vários entre os mais reputados virtuoses indianos foram tachados de loucos ou socialmente desajustados antes de serem reconhecidos como virtuoses. Isso porque o estado social e psicologicamente fronteiriço, quando avaliado como transcendência intencional das fronteiras do eu histórico-contingente e não como sua perda involuntária, é socialmente validado como sagrado. Nesse estado de indiferenciação, o virtuose transcende seus desejos e aversões e pode incorporar o abjeto à sua prática virtuosa. A trajetória de Ramakrishna, hoje considerado um dos maiores santos hindus, é um exemplo contundente. Seus estados místicos, sua ambiguidade de gênero e seu episódio coprofágico foram inicialmente percebidos como patologia ou possessão, e teriam continuado sendo assim interpretados, resultando em ostracismo, caso o contexto cultural fosse, por exemplo, a França do século XVIII e não a Índia da mesma época (Clément e Kakar, 1993).
Pretendo sugerir que, ao contrário de evidência de sua inautenticidade, a proximidade do virtuose com o abjeto possa ser pensada, de acordo com sua matriz cognitiva, como experiência subjetivadora e também como linguagem, ambas as quais têm alcance e implicações políticas. Como pretendo demonstrar ao longo to texto, a arena de poderes ontológicos é um campo político privilegiado entre os renunciantes hindus heterodoxos e, por isso, cabe pensá-los também sob o prisma da (geo)política do conhecimento.
Gostaria de inspirar minha análise dos sujeitos em pesquisa no conceito de “xamã” de Nandy (2004). O autor vê o xamã como um forte símbolo de dissidência política autêntica no cultura global contemporânea, já que “permanece o menos socializado entre as articulações de valores como liberdade, criatividade, realidades múltiplas e um futuro aberto” (Nandy, 2004, p. 447) [Tradução Própria]. Alguns virtuoses entre meus interlocutores podem ser considerados xamãs no sentido mais clássico do termo (como desenvolvido por Eliade, 2002), mas outras categorias com as quais se poderia pensá-los - santos, iogues e siddhas (“seres empoderados”) - também sugerem o mesmo potencial de dissidência.
Dissidência Política Stricto Senso
Renunciantes heterodoxos tanto incomodaram quanto atraíram as elites do subcontinente nas mais diversas situações históricas. Em consequência, a instituição da renúncia foi alvo de discursos de desambiguação, através tanto de “jardinagem” quanto de cooptação político-moralizadora, muito antes do processo de construção do Estado-nação indiano, anterior mesmo ao processo colonial e ao crescente confinamento ético e sociológico pelo qual o “hinduísmo” passou desde o século XIX (Nandy, 2004).
A instituição ascética foi vista com suspeita desde o Kautilya Arthaśāstra, texto clássico do realismo político indiano, escrito provavelmente no século III a.C., que a considerou “uma força que desequilibra a sociedade” (Bhagat, 1976, p. xv). Mas foi no século VI A.D. que a elite bramânica foi diretamente confrontada com um movimento ascético de proporção que desafiava diretamente seu monopólio no domínio do sagrado e, por consequência, seu sistema político. A análise de Olivelle (1992) sustenta que a instituição da renúncia contemporânea foi desenvolvida em grande parte como um movimento social que ativamente desafiava a dominação bramânica. Por isso, explica o autor:
Em todos os casos, o sistema de valor do mundo védico é invertido, selva sobre vila, celibatarismo sobre casamento, inatividade econômica sobre produtividade econômica, inatividade ritual sobre performance ritual, instabilidade sobre residência estável. Tanto em ideologia quanto em estilo de vida, tais inversões representam um desafio radical para o mundo védico. (Olivelle, 1992, p. 46) [Tradução própria]
A análise de Olivelle reforça a perspectiva de que a renúncia representou um desafio real ao mundo védico e ao seu sistema bramânico e que a posterior convergência simbólica e ritual entre os renunciantes e nãorenunciantes pode ser compreendida justamente como uma tentativa de apropriação deliberada - mas nunca integral - do modelo do renunciante pela sociedade bramânica de castas, desafiada pelo crescimento de um movimento ascético. Como nos mostra o autor, houve um esforço deliberado de instituições bramânicas em apropriar-se da instituição da renúncia como forma de incorporar seu poder social e influência no domínio do sagrado. Entretanto, a exegese bramânica incorporaria muito seletivamente os valores ascéticos em sua teoria dos ashramas (“estágios de vida”), tornando opaca uma dimensão central da renúncia como legitimamente pensada e vivida: a antinomialidade. De elemento central a uma tradição reflexiva e crítica, a antinomialidade passou a ser interpretada como a decadência do asceta, o renunciante falso (naqlī)12, deslocada, portanto, do âmbito da tradição para aquele do indivíduo.
Podemos reconhecer a arena de embate simbólico entre o mundo védico e aquele do ascetismo heterodoxo, seguida do encapsulamento do mundo do asceta não-domesticado, por exemplo, no contexto histórico de significação do termo iogue (yogī ou jogī)13. Segundo White (1996), o termo adquiriu uma conotação sectária e pejorativa a partir da idade média indiana, conotação que perdura até hoje. Nas palavras do autor:
“Yogi” ou “jogi” tem, por ao menos oitocentos anos, sido um termo de uso geral, empregado na designação daqueles especialistas religiosos shivaistas os quais os hindus ortodoxos consideravam suspeitos, heterodoxos e mesmo heréticos em sua doutrina e prática. Por outro lado, os iogues são definidos (como os tāntrikas de um período anterior) por sua não-conformidade a ou exclusão de categorias ortodoxas: eles são aquele agregado de grupos sectários e indivíduos cuja linguagem e comportamento subvertem os cânones da religião védica, devocional e tântrica “alta”. Por outro lado, eles são definidos por certas características de suas afiliações e práticas sectárias: herdeiros dos heterodoxos pāśupatas e kāpālikas de uma época mais longínqua, eles são devotos de Shiva (em geral Bhairava) que besuntavam-se de cinzas, deixavam seus cabelos por cortar e continuavam a aderir a práticas de tantrismo “primitivo”. Como tal, sua “yoga” é mais estreitamente identificada, nos olhos tendenciosos de seus críticos, com magia negra, feitiçaria, perversão sexual e subversão de proibições alimentares, que com a prática de yoga no sentido convencional do termo. (White, 1996, p. 8) [Tradução própria]
Que um ascetismo não domesticado tenha sido configurado como dissidência a sistemas sociais dominantes, entre eles o sistema de castas, pode ser evidenciado também a partir da análise de movimentos internos à institucionalização da renúncia. A partir do exemplo da ordem dos ramanandis da Índia do norte, Van der Veer (1987) demonstra como os estilos de renúncia - devocional ou ascético - e as organizações que engendraram estão diretamente relacionados à proeminência dada à diferença de castas na ordem. Ao menos neste caso, o estilo ascético que o autor chamou de “selvagem”, está historicamente posicionado como dissidência ao sistema de castas também na renúncia institucionalizada.
Pensando a partir de categorias estruturais, certamente essencialistas em algum grau, pode-se afirmar que, enquanto o brâmane é guardião das fronteiras, o renunciante é transgressor delas. Shulman (1984, p. 19) afirma que o brâmane também pode ser visto como ocupando um estado liminar porque deve manter a ordem, guardar as fronteiras entre pureza e impureza, mesmo quando sua tradição é clara quanto à inutilidade de impor limites. O brâmane virtuose é o especialista no sistema de reprodução biossocial, dimensão epistemologicamente de segunda ordem, enquanto o renunciante virtuose é especialista em um sistema de emancipação desta ordem. Visto por este prisma, tal ordem é de importância subordinada à (des)ordem do renunciante.
Mesmo uma análise a partir de tipos ideais, com todas os questionamentos que esta modalidade de análise enseja, pode ajudar a levantar uma crítica relevante, a do posicionamento, a priori, do sistema de castas lado-a-lado com o sistema da renúncia. Ele implica em uma horizontalidade de valência entre a religião moral (retórica sobre pureza, que fundamenta o sistema de castas) e a soteriologia empoderadora (retórica sobre poder e emancipação, que fundamenta o sistema de renúncia), quando não na subordinação da segunda pela primeira. Embora as duas retóricas sejam operacionalizáveis no nível político, em última instância, a orientação ideológica última da sociedade hindu não é dada pelo sentido-valor do não-renunciante e sim por aquele do renunciante. Evidência disso, na minha pesquisa de campo, está na leitura popular dos puruśārthas, citados como sistema fundamental de classificação de valores igualmente entre interlocutores renunciantes e não-renunciantes. Nela, os dharmas (“deveres” ou “papéis sociais”) dos não-renunciantes são consistentemente citados como hierarquicamente inferiores àquele do renunciante. Seria legítimo sugerir, portanto, que o sistema de castas, entre outros sistemas político-sociais, seja investigado a partir dos sentido-valor do sistema de renúncia e não o contrário.
Finalmente, embora a retórica da emancipação dos renunciantes possa ter sido incorporada como doutrina salvífica pela religião hindu ortodoxa em seu processo de institucionalização, tendo sido deslocada, portanto, da arena política para a arena transcendental, é preciso ressalvar que este processo de incorporação e transcendentalização não foi integral. Um expoente ascético não domesticável da renúncia, cujo campo de ação é, entre outros, um campo político, continuou compondo parte do panorama hindu. Isto significa dizer que a retórica de empoderamento e emancipação vivida no mundo por renunciantes virtuoses continua a oferecer possibilidade de dissidência política a retóricas de opressão como, entre outros, o sistema de caastas.
Onde está o Paradoxo no Estudo da Renúncia?
Segundo Ghurye (1995[53]), o grande paradoxo do ascetismo é a institucionalização em sociedades de ascetas daqueles que renunciaram às relações sociais e às vontades individuais. Peço licença para discordar deste que é um dos primeiros estudiosos indianos de peso sobre o tema. O paradoxo do ascetismo só existe porque sobre ele é lançado um olhar que: 1) qualifica, a priori, a instituição da renúncia a partir de normatizações do fenômeno religioso reduzidos à dimensão moral/social; 2) utiliza uma linguagem que não alcança a experiência ou a sociológica das retóricas contra-hegemônicas; 3) voltou-se exclusivamente para o asceta ‘domesticado’ como sujeito privilegiado de estudo.
Não acredito ser necessário reproduzir em detalhes as principais críticas à perspectiva canônica sobre a renúncia de Dumont e sua escola, estruturadas como estão em concepções estáticas de sociedade (Gellner, 2001apudHausner, 2007) e em modelos teóricos onde a hierarquia e a divisão entre sagrado e profano obscurecem as variações da realidade social e as formas em que pessoas agem contra sistemas combinando elementos de sistemas opostos (Raheja, 1988apudHausner, 2007). Meu intuito aqui é apenas percorrer brevemente a trajetória de pesquisa sobre renunciantes para compreender quais entre os diversos estilos de renúncia deram o tom às narrativas acadêmicas sobre sādhus e saṃnyāsīs, e, mais importantemente, quais entre eles foram encapsulados. Pergunto, então: será que temos fundamento para pensar que, também no tratamento acadêmico da renúncia, houve algum grau de alijamento do ambíguo?
Inspirados em filosofias bramânicas, autores como Dumont chegaram a uma descrição dos renunciantes hindus como indivíduos fora do mundo em oposição direta aos não-renunciantes. Neste esquema de “concomitância espantosa”, como pensou Dumont, entre o sistema da renúncia e o sistema de castas, a instituição da renúncia ganharia sentido como anti-estrutura que afirma a estrutura, isto é, na medida em que negaria as castas, permitiria um equilíbrio ao próprio sistema de castas.
Entretanto, como nos mostra Das (1977), embora a oposição entre renúncia e casta forme um esquema teórico elegante, seu binarismo é simplificador já que ilumina os padrões mais amplos enquanto obscurece as variações do mundo da vida. Talvez por isso Dumont tenha demonstrado especial dificuldade em incorporar os tāntrikas a seu esquema classificatório. Como Das demonstraria, um renunciante que aceita de bom grado a “impureza” seria imediatamente confrontado por uma perspectiva dicotômica que opõe “yoga” (neste sentido, “disciplina ascética”) e “bhoga” (algo como “aproveitamento sensual da vida”). Respondendo às percepções de Dumont sobre tantrismo como a ambiguidade do asceta hindu, ela afirma:
O ponto importante aqui não é que [o Tantrismo] aceita idéias que derivam do ascetismo e, ao mesmo tempo, as rejeita, mas que [o Tantrismo] rejeita a divisão categórica entre yoga e bhoga - os valores do sannyasi e os valores do homem-no-mundo - e por isto nega a gramática estrutural do Hinduísmo. (Das, 1977, p. 56) [Tradução própria]
O fascínio ocidental pelo caráter extra-mundano, o asceta “fora do mundo” dos estudos ocidentais clássicos, deu vazão a uma compreensível reação, entre os acadêmicos indianos, de focar sādhus mais institucionalizados através de abordagens sociológicas (Sharma, 1998; Narayan, 1992; Triparthi, 1978; Ghurye, 1953). Tal “virada sociológica” (em contraste com uma perspectiva que pensa o sadhuismo com bases em um ideal transcendente) resultou na escolha de sādhus mais domesticados, vistos como mais representativos da instituição da renúncia: aqueles em funções de serviço religioso à sociedade, moradores de sedes monásticas abertas a não-renunciantes e, não-raro, pertencentes a ordens com os quais os acadêmicos indianos já nutriam laços.
Das (2003), mais contemporaneamente, ressalta a importância de repensar o que chamou de “conceitos guardadores de fronteiras” na teoria social sobre a Índia, como casta e comunalismo (religioso). Segundo a autora, embora tenha mostrado a dificuldade da ideologia moderna na leitura de outras sociedades, Dumont ignorou a implicação do projeto colonial e seus aliados “internos” na construção da casta como categoria explicativa central para sua análise da sociedade indiana. Entre outras categorias através das quais a sociedade indiana tornou-se “conhecível” para a governância, como nos mostra a autora, a idéia de casta emergiu da interação entre diferentes tipos de conhecimentos locais, panoramas imaginários sobre outras sociedades mantidos pelo ocidente e as novas idéias de governabilidade. Uma compreensão multifacetada do sistema de castas repercute na complexificação também da análise da renúncia e seus enfoques privilegiados de estudo, abrindo a arena para outras sociologias passíveis de elucidar o lugar da renúncia.
Porque renunciantes e suas instituições também foram seduzidos por desejos e subjetividades vinculados ao projeto colonial e seus aliados, estudos imbuídos de preconcepções bramânicas, calvinistas, capitalistas, nacionalistas e cientificistas, entre outras, podem de fato contribuir para descrever uma tendência moralizadora da instituição da renúncia, por um lado, e desencantada e até perversa, por outro. Neste sentido, pesquisas sobre renunciantes milicianos, ascetas mercadores, falsos gurus e sādhus com envolvimento político em nível local e nacional (Van der Veer, 2005; Pinch, 2006; Khandelwal, 2004; Parry, 1994; Bouez, 1992) promoveram uma complexificação na compreensão etnográfica, historiográfica e sociológica dos renunciantes hindus. No entanto, a trajetória de estudos ocidentais de ascetas “abstraídos do mundo” a sujeitos políticos (“no mundo” como o racionalismo humanista o vê), não significou a inclusão das facetas do ascetismo informadas por desejos e subjetividades não-bramânicos, nãomodernos e híbridos, que operam em um campo político e semântico mais amplo que o sociológico.
Shiva/ Pārvatī e Dattātreya: Modelos Míticos de Renunciante Antinomial Empoderado
O asceta empoderado, pessoa “neste mundo”, mas “não como qualquer um”, é o herói mítico de uma retórica de emancipação humana particularmente eficaz na contemporaneidade14 e figura central nas diversas histórias (mythos e logos) paralelas ao bramanismo. Ele é comum a várias tradições do subcontinente, políticas inclusive, como exemplifica o mito Gandhi na configuração do Estado Indiano moderno (Nandy, 2004). A agência social esperada do renunciante heterodoxo no mundo, como já aludido, pode envolver dissidência social, corpórea e até ontológica às retóricas opressivas. Assim, vale buscar construir um olhar sobre o renunciante empoderado no mundo a partir de uma perspectiva de mundo e de jogo social sensível a essa diferença. É com este intuito que apresento os modelos míticos de renunciantes empoderados aos quais se vinculam meus sujeitos de pesquisa: Shiva/Pārvatī e Dattātreya.
Acredito que um olhar renovado sobre Shiva, considerado istadeva (deidade pessoal) de meus sujeitos de pesquisa, possa iluminar a leitura acadêmica sobre a ambiguidade do asceta. Shiva é figura mediadora que ilustra a concomitância aparentemente irreconciliável, como coloca Doniger O’Flaherty (1973): “entre ascetas, ele é o libertino, entre libertinos ele é asceta”. Segundo a autora, a figura de Shiva sempre foi um enigma na academia ocidental, em especial por sua qualidade ambígua de asceta erótico, sugerida em sua manifestação como Shiva/Pārvatī, unidade composta da relação de Shiva em seu aspecto de grande asceta e sua consorte Pārvatī. O ‘paradoxo’ foi incorporado à interpretação de Shiva como coincidentia oppositorum - ele é Criador e Destruidor - e pensado como consistente com o pensamento metafísico indiano e com a história de assimilação de diferentes tradições na configuração do Shivaismo. Entretanto, ainda de acordo com a autora, a presença do asceta erótico em textos como os Purānas e o Mahābhārata sugere outras leituras. Entre elas, a de que seus dois aspectos contraditórios, Shiva protótipo de iogue/asceta e marido/amante, sejam intercambiáveis ao ponto em que os fazedores de mito os confundirem sem que o sentido do mito mude. Doniger O’Flaherty (1973, p. 7) dá o exemplo de duas versões de um trecho do Matsya Purāna: “Os Sete Sábios dizem a Pārvatī, ‘Como é que você pode aproveitar os prazeres do corpo com um asceta/marido [yati/ pati] como ele [Shiva], tão aterrorizante quanto repulsivo?” Em uma versão, Shiva é yati (asceta), em outra, é pati (marido), mas em ambas ele é o abjeto.
Outro modelo mítico de renunciante empoderado que habita interstícios de relevância central para esta pesquisa é Dattātreya, considerado deidade tutelar dos nāgā sādhus com quem estudo. Sua representação dominante no grupo é a de um sādhu-deidade com três cabeças, simbolizando a convergência dos três aspectos da criação, manutenção e destruição do cosmos manifestado, aspectos estes “personificados” pelas deidades Brahmā, Viṣnu e Shiva, respectivamente, acompanhado de quatro cachorros que simbolizariam os Vedas (cabe notar a ironia de que os Vedas sejam representados por um animal considerado submisso e impuro).
Segundo White (1996, p. 2), Dattātreya é figura mítica cuja origem está relacionada aos lendários oitenta e quatro Mahasiddhas e sua tradição de “sabedoria louca” (na expressão de Sudhir Kakar, 2008), mas também é figura histórica, tendo diversas obras creditadas a ele que versam sobre temas como hatha yoga e alquimia (o que, para White, o vincula à tradição dos siddhas medievais). Rigopoulos (2000) também destaca a longa presença de Dattātreya nos textos e no imaginário indiano, como figura nas fronteiras entre deidade e humano; ele é siddha (“ser empoderado”), avatar e guruimortal. Menções a Dattātreya aparecem no Mahābhārata, no Bhāgavata Purāna e no Mārkandeya Purāna, em relatos que o conformariam à imagem tanto de um avatar iogue com muito poder criativo quanto de um amante dos prazeres mundanos, do álcool, do luxo e da vida despreocupada.
Segundo Rigopoulos (2000), no Mārkandeya Purāna, Dattātreya é convidado pelos deuses a empreender em uma batalha enquanto estava embriagado por vinho e pela luxúria. Na perspectiva dos deuses, sua pureza seria intocável pelo contato com a impureza, a embriaguez e o desejo sexual, porque sua contingência não afetaria sua força criativa. Dattātreya foi à luta e logrou vitória. Este mesmo Dattātreya, que transcende a condição humana e divina, sob um olhar cínico, poderia ser sumariamente julgado como mais um charlatão ou parasita social, interessado, como “pessoa do mundo”, em poder, intoxicantes e prazer sexual.
Se tentarmos lançar um olhar meta-realista (Bhaskar, 2002) e nãodualista sobre Dattātreya é possível interpretar seu “ser histórico” como um “ser em māyā” (plano fenomênico) e não “de māyā”, isto é, não-contingente ao plano onto-epistemológico inferior de māyā. Sob esta perspectiva, a performance do renunciante heterodoxo no mundo é vista como constituída de atos pedagógicos deliberados. O mundo é palco de sua “aparessência” (Maluf, 2000), uma essência não-dual que ‘aparece’ na fenomenalidade, manifestando intencionalmente contradições e paradoxos. A performance no mundo do virtuose heterodoxo compreende a transgressão e reconstrução criativa intencional de normatividades. Quando faz de sua trajetória uma meta-narrativa relativizadora do mundo fenomênico, no mundo fenomênico, ele é protagonista, entre outras, de uma dissidência política.
Uma leitura de uma performance antinomial de Dattātreya aparece como prefácio a uma das edições contemporâneas da obra Avādhuta Gīta, creditada ao próprio Dattātreya. No relato de Swami Chetananda (Chetananda In: Dattātreya, 1988, p. xix), o iogui desfilara em público com uma mulher luxuriosa, no auge da sua fama como renunciante. Na interpretação de Chetananda, Dattātreya estaria encenando um līlā (“jogo cósmico”) com a ajuda da deidade Lakshmi em forma humana. Sua performance antinomial era uma estratégia pedagógica: julgado e condenado a charlatão no auge da sua fama, conseguiu o que Chetananda leu como seu objetivo: que o deixassem sozinho para meditar e guiar seus discípulos, escolhidos entre aqueles que conseguissem ler os deslizamentos de sua linguagem. Como já anteriormente aludido, o que pode parecer uma ambiguidade do ser empoderado no mundo, na perspectiva de meus interlocutores é a “linguagem vivida”, fundalmentalmente deslizante, através da qual o siddha verdadeiramente comunica.
Nāgā sādhus e seus Virtuoses
Os questionamentos neste artigo foram levantados a partir da minha experiência etnográfica com os nāgā sādhus da ordem “sectária”15Daśanāmī Jūnā Ākhāda Sampradāya, e refletem particularmente minha dificuldade inicial de encontrar uma categoria profícua à análise da complexa diversidade com a qual me deparei. Tenho o privilégio de ter como interlocutor principal Maharaj Amar Bharti ūrdhva-bahū tapasvī (praticante da austeridade de manter o braço levantado há décadas), assim como sua família de renunciantes e comunidade leiga de discípulos e/ou “congregantes”, tanto em um nível local (habitantes da vila Jarad e redondezas, em Himachal Pradesh, onde o guru fica) quanto nacional e internacional (‘comunidade’ formada nas ocasiões periódicas do festival Kumbha Mela).
Conhecidos como ascetas militantes, os nāgā sādhus fornecem um exemplo particularmente interessante para pensar o renunciante empoderado no mundo. Segundo aponta Gross (1993) a presença de iogues guerreiros no imaginário é anterior à penetração muçulmana no norte da Índia, remontando ao século VII, tendo sido identificados como tāntrikas de orientação shivaistas e shaktas nas fontes literárias antigas. A emergência de grupos organizados, “sectários”, no entanto, mudou significativamente a natureza da organização ascética a partir do século XIII, como sugere o estudos de Ghurye (1953), levando-a a afastar-se da orientação tradicional “individualista” e “negadora de mundo” e a organizar-se politica, econômica e militarmente com orientações fundamentalmente diferentes. Essa “virada sociológica”, já anteriormente aludida, foi, em larga escala, interpretada positivamente (inclusive pelo sociólogo Ghurye) como uma ativação do expoente ascético na defesa do hinduísmo da invasão muçulmana e posteriormente também da britânica. Gross (1993) e Pinch (2006) indicam outras interpretações para as motivações da organização de um ascetismo miliciano. Como destaca Gross:
Eu argumentaria que a emergência de um ascetismo miliciano - abertamente em defesa do hinduísmo, mas de fato baseada em uma política competitiva de aquisição territorial, e sua supressão pelos britânicos nos séculos dezoito e dezenove, provavelmente mais do que qualquer outro fator isolado, influenciou o caráter medieval e, em última instância, contemporâneo do asceticismo e da organização ascética. (Gross, 1993, p. 62) [Tradução própria]
De acordo com Pinch (2006), nāgā sādhus ajudaram a formar os contingentes milicianos sul-asiáticos dos reis da Idade Média e do início da Idade Moderna na Índia e mantinham intricadas redes de comércio. Eles constituiriam aliados também no império mongol e, posteriormente, teriam contribuído para a ascenção do império britânico. Contemporaneamente, eles têm construido vínculos importantes com a política partidária na Índia, inclusive com o movimento fundamentalista hindu (Van der Veer, 2005). Não obstante, em muitos setores do imaginário sobre a Índia hindu, os nāgā sādhus de hoje continuam sendo posicionados no lugar de heróis-míticos, defensores do hinduísmo contra invasões estrangeiras (vide a opinião de oficiais do Serviço de Administração Indiana in: Nandan & Nandan, 2006). Concomitantemente, continuam posicionados também no lugar de iogues, xamãs tântricos e siddhas. É relevante destacar que todas as categorias em que constumam ser posicionados são categorias de poder.
Não há como negar que os nāgā sādhus organizados tenham sido, em algum grau, orientados por desejos e subjetividades das hegemonias locais e nacionais na Índia, mas se a instituição foi historicamente moldada por tendências militaristas, utilitaristas e materialistas, não se pode dizer que estas tenham de fato capturado a instituição como um todo. As organizações de nāgā sādhus comportam um expoente ascético pouco institucionalizado, mas essencial à persona da organização. Isto porque, como foi detalhado acima, a figura do iogue antinomial compõe significativamente o imaginário sobre o santo Shivaista na Índia, e este imaginário continua sendo vivido pelos nāgā sādhus. Quero argumentar que, justamente pela distância que mantiveram dos centros de poder, o expoente ascético nao domesticado na organização dos nāgās foi pouco historiografado e etnografado. Entretanto, é dele o lócus privilegiado de carisma do grupo, e por isso interessa particularmente pensá-los também politicamente.
O Kumbha Mela está entre os momentos mais interessantes para perceber a linguagem vivida do expoente não domesticado entre estes ascetas e considerar o sentido de sua performance. Seus acampamentos concorrem com os rios sagrados como epicentro deste que é o maior festival religioso já documentado no mundo. Segundo meus interlocutores nāgās, embora as iniciações sejam feitas durante o Kumbha, entre aqueles já iniciados, o festival é pensado primordialmente como um “festival (para o) público”, para onde vão com a intenção de estar disponível para sātsang (congregação) e para darśan (a visão de sua presença empoderada) e receber dāna (doações). É significativo que durante o festival atitudes antinomiais sejam itensificadas, como a belicosidade jocosa, o “erotismo ascético” e o uso do haxixe.
O expoente “não domesticado” entre os nāgās se veem e são vistos como os herdeiros contemporâneos dos iogues extremos icônicos na Índia, cuja presença na historiografia e no imaginário é anterior à hegemonia barmânica. Não obstante, operam também com códigos védicos de virtuosismo. O celibatarismo e a ênfase na prática de austeridades poderia vinculá-los a um ethos brâmane na construção da pessoa (masculina) ideal (retirada do mundo e que retém seu sêmen). Sua proximidade com a violência e a vida política sugere vínculo dos nāgās também a um ethos kshatrya, da casta guerreira. Todavia, a jocosidade “ampliadora de fronteiras” com a qual esses códigos são utilizados sugere que a exegese primordial de sua linguagem deva ser siddha ou tântrica.
Um evento periódico que evidencia o uso jocoso de códigos do ethos brâmane e kshatrya, e, portanto, a subversão de suas fronteiras, é a procissão de nāgās para ablução ritual no Ganges, que acontece nos dias mais auspiciosos durante o Kumbha Mela. À frente dos líderes políticos da ordem, sob seus carro alegóricos e elefantes, o expoente ascético-guerreiro vai à pé, desfilando desordenamente, “vestido de céu” (nu) e brandindo armas. Alguns fazem demonstrações de virtuosismo ascético (“bramânico”) como o chabi tapasya (austeridade chave), em que um sādhu enrola o pênis em um bastão e o torce duas ou três vezes, como quem fecha uma porta. Numa variação ainda mais espetacular da mesma performance, o asceta passa o bastão para trás do corpo, por entre as pernas, e pede a dois outros que subam de cada lado para lhe conferir peso. Outros fazem demonstrações de virtuosismo “kshatrya” em longas rodadas de lutas ritualizadas, mas nada formais, ao som de percussão e banda de fanfarra. Outros, ainda, apenas assistem, caminham de mãos dadas com seus irmãos ou fumam cachimbos e cigarros.
O uso quase intermitente de haxixe pelos sādhus é um dos maiores motivos de estranhamento moral entre sādhus e não-sādhus durante o festival. É relevante lembrar que o haxixe é criminalizado na Índia, mas os nāgās (entre outros ascetas) conseguiram legitimar seu consumo na prática, apoiados no uso que Shiva fazia de bhang, pasta de cannabis. O uso público de haxixe pelos nāgās é uma performance que explicita a diferença que eles comandam do mundo moral dos não-renunciantes. Um episódio em campo acontecido durante o Kumbha Mela de 2001, logo no início do meu primeiro campo, me ajudou a compreender essa questão. Estava sentada em volta do fogo sagrado com um sādhu considerado um guru, que fumava seu cachimbo de haxixe, e observei que havia um policial nas redondezas. Aproveitei para perguntar ao guru como é que ele podia fumar haxixe sem ser importunado pela polícia. Ele rapidamente retrucou, rindo: “quem manda aqui sou eu”. Diante da minha incredulidade, chamou o policial e o mandou buscar um copo d’água. O policial não pestanejou. Buscou o copo d’água e o entregou, com reverência, ao sādhu, que me lançava olhares de vitória.
Como a arena de poderes ontológicos é uma arena política ampliada, o empoderamento dos renunciantes virtuoses pode também ser instrumentalizado no campo político no sentido mais estrito do termo. Um exemplo, repetidamente citado entre meus interlocutores, de um siddha (ser empoderado), cujos poderes ontológicos “vazam” para o domínio político-social, é Devaraha Baba. Este nāgā foi reconhecido como siddha por sua longa prática de austeridades, como a de não pisar o pé no chão e não comer, que lhe garantiram enorme longevidade. Embora os relatos sobre sua idade variassem significativamente - entre um pouco mais de uma cententa de anos vividos a um milênio deles16 - em todo caso, o sādhu tinha certamente mais de 100 anos, configurando claramente o que White considerou “imortalidade simbólica” (White, 1996). Seu reconhecimento como siddha lhe conferia estatuto diferenciado no domínio político: como pessoa empoderada, era visto como dono de uma perspectiva mais ampla de jogo cósmico, do qual o jogo político é uma dimensão subordinada. Assim, era capaz de orientar membros do alto escalão do governo em momentos decisivos da história indiana.
Sujeitos Ontológicos como Sujeitos Etnográficos
Como a academia havia circunscrito ‘seu’ renunciante com bases mais doutrinárias e sociológicas que etnográficas, muitos renunciantes contemporâneos ficaram irreconhecíveis ‘na prática’. Este é o caso especificamente dos nāgā sādhus que estudei. Ao longo de dois anos em campo, fui percebendo que a circunscrição institucional e doutrinária de meus sujeitos etnográficos, em muitos casos, tinha relevância relativa, frequentemente subordinada à circunscrição tecno-ontológica do renunciante17.
Portanto, quero explorar a categoria que acredito ser mais adequada à pesquisa, a de siddha, virtuose em técnicas de produção de poderes criativos (siddhis) que garantem ao praticante um estatuto ontológico diferenciado, de maior autonomia de ação na dimensão biossocial. Tal força criativa é ortodoxamente pensada como tendo uma só função legítima, a de emancipar o praticante das fronteiras perceptivas e ontológicas de segunda ordem, a ordem fenomênica, mas pode também ser origem de transformações nesta mesma ordem.
Siddha significa “ser realizado, aperfeiçoado” (White, 1996, p. 2) e é termo utilizado em um espectro amplo de apelações sectárias, como título de adscrição ou como qualificador individual. O termo tem várias referências históricas e sociológicas, já que um grande número de indivíduos de escolas, seitas e tradições hindus e budistas identificaram-se ou foram identificados pelo termo desde o periodo Gupta (320-550 d.C., aproximadamente), considerado o período medieval da historiografia indiana. Como complementa White (1996), siddha é “um termo geralmente adscrito a um praticante (sādhaka, sādhu) que, através de sua prática (sādhana), atingiu o objetivo duplo de poderes superhumanos (siddhis) e imortalidade corpórea (jīvanmukti)” (White, 1996, p. 2).18
Como destaca White (1996), embora intimamente relacionada ao tantrismo, a tradição dos siddhas o antecede. Todavia, ao contrário do tantrismo, a tradição institucionalizou-se em comunidades religiosas apenas a partir dos séculos XII e XIII e, mesmo assim, de maneira frouxamente estruturada. Malgrado a ausência de estrutura em um sentido forte, de acordo com o autor, a tradição siddha mostrou maior potencial de “permanência” que a tântrica, e continua a formar uma parte visível do panorama religioso indiano. Como categoria trans-sociológica, manteve significativa valência simbólica ao longo de aproximadamente oito séculos. Por isso, não é descabido sustentar a hipótese de que a circunscrição sociológica de seus praticantes seja menos relevante à compreensão do conceito que uma perspectiva tecno-ontológica, em que siddha é qualificador individual.
Nesta pesquisa, portanto, o conceito é utilizado fundalmentalmente como categoria tecno-ontológica, na companhia de Eliade (2001[72]). Com base no yoga clássico de Patanjali e seus comentadores, em especial a partir do terceiro livro dos Yoga-sūtra, Eliade apresenta sua idéia de siddha, o yogin que, ao percorrer uma etapa substancial do itinerário ascético, adquire siddhis, “poderes miraculosos”. Através da trajetória ascética, o praticante ganha acesso a “poderes ocultos relativos ao ou aos objetos experimentados” (Eliade, 2001[72], p. 83) e, eventualmente, transmuta o “conhecimento” em “posse”, transmutando também seu estado ontológico.
Frente a tal perspectiva, cabe problematizar a escolha do qualificador “miraculoso”, carregado como está de valoração sobrenaturalista. Afinal, o esforço argumentativo de Eliade trabalha justamente com a idéia contrária àquela que o adjetivo miraculoso conota, de que tais poderes são teorizados no Yoga clássico como um dos efeitos esperados da busca pela “penetração nas regiões inacessíveis à experiência normal e a posse das zonas da consciência e dos setores da realidade que, até então, tinham permanecido invulneráveis” (Eliade, 2001[72]: 82-3).
Detenho-me um pouco mais na definição de siddhis como milagres porque esta carrega uma idéia de sobrenatural fundamentalmente inadequada para qualificar os poderes de siddhas, mas tem sido a noção principal com a qual eles tem sido percebidos. Quero sugerir com este debate que a linguagem cientificista e os pressupostos realistas imbuídos na sua construção das noções de natureza e realidade encapsulam teorias e experiências como aquelas relativas à produção e sentido dos siddhis. De acordo com Bowker (2005), em seu Oxford Concise Dictionary of World Religions, milagre é: “um evento espantoso, protagonizado (geralmente por Deus) com uma motivação religiosa, contra o curso usual da natureza” (Bowker, 2005, p. 278). Entretanto, o mesmo autor acrescenta:
Em religiões orientais, milagres são vistos como extremamente comuns - tanto que eles quase deixam de ser objeto de espanto [Lat., miraculum]. Eles estão envolvidos no nascimento de professores e pessoas santas, e estão associados, em particular, aos poderes siddhi e iddhi. Tais poderes seriam esperados de manifestações vivas do divino (avatara) (Bowker, 2995, p. 278). [Tradução própria e ênfase minha].
Como eventos extremamente comuns e poderes esperados de seres ontologicamente superiores, os siddhis não podem ser categorizados como milagres, pois não desafiam o curso da natureza, ao contrário, confirmam seus designios mais essenciais. Erudito que foi, o caráter “natural” (ou supranatural) dos siddhis não passou desapercebido para Eliade, mesmo que o autor tenha escolhido uma gramática sobrenaturalista para compreendê-los. Prova disso é que o autor destaca que a explicação de Patanjali e seus comentadores para os siddhis como fenômenos exclui qualquer intervenção sobrenatural, e, em casos específicos, como no comentário de Miśra sobre o poder da invisibilidade, está claramente fundamentado em uma teoria da percepção.
Assim, segundo Eliade, o yoga clássico reconhece os siddhis como poderes efetivos, mas os descreve frequentemente como obstáculos que detém o iogue frente a seu objetivo final, a liberação. São poderes perigosos porque carregam a marca da impermanência do estado liberado dos deuses. A potencialidade humana para a liberação total - estado de jīvanmukta - é superior ao estado divino ou deificado do siddha pois é atemporal. Na racionalidade do yoga clássico, portanto, o ser humano empoderado pelas técnicas ióguicas não deve sentir-se tentado pelo estado divino.
Ao contrário do yoga e tantra clássicos, o tantra popular dá valor central aos siddhis. Como resume McDaniel:
Embora o tantra clássico (tanto na tradição hinduísta quanto budista) os ignora como perda de tempo e energia e tentações morais, o tantra folk valoriza muito esses poderes. Eles são justificados como aceleradores da evolução espiritual e por ser passíveis de gerar conhecimento de outros mundos e seus habitantes, assim como por satisfazer os desejos nesta vida para que a pessoa não precise renascer para satisfazer qualquer frustração. (McDaniel, 2004, p. 87)
Assim, para nāgā sādhus, ao lado de renunciantes de outras escolas e “grupos sectários” que compartilham da mesma matriz tradicional, a aspiração de tornar-se siddha é motivador legítimo de suas trajetórias ascéticas.
Vale mencionar, na companhia de White (1996), que o tantrismo desapareceu como fenômeno sectário de importância há séculos. Segundo o autor, ele foi vítima de seus próprios excessos: a má-publicidade decorrente das práticas de violação da pureza, coprofagia, antropofagia e comportamento antissocial, por um lado, e a elitização da teoria e prática tântrica, por outro. Enquanto o tantrismo bramanizado, cada vez mais intento em oferecer a transcedência deste mundo, afastava-se das preocupações e das experiências da maioria, o tantrismo popular (folk) ao contrário, continuava oferecendo um caminho relativamente acessível e concreto ao poder no mundo. Como explicita Davidson (2002), em seu desenvolvimento da categoria siddha, vinculado ao tantrismo popular:
(...) a categoria “siddha” é uma consequência lógica de uma civilização cuja expressão medieval é uma preocupação com (e algumas vezes obsessão por) status, hierarquia, poder político, autoridade religiosa e indulgência pessoal. Desta mesma forma, o objetivo de tornar-se siddha frequentemente se torna a aspiração daqueles que são excluídos de status e hierarquia, seja por nascimento ou por acidente. (Davidson, 2002, p. 187). [Tradução própria]
Esta análise de Davidson corrobora a afirmação de White (1996) de que siddhas sejam “técnicos do concreto”. No caso dos nāth siddhas estudados pelo autor, este lugar lhes rendeu a condição de “power brokers” (agenciadores de poder) da Índia medieval, e hoje, devido à notoriedade que adquiriram como praticantes de alquimia e hatha yoga, podem ser descritos como “especialistas na transmutação concreta de metais básicos em ouro e da transformação concreta do homem mortal e que envelhece em um superhumano imortal, mestre dos processos naturais ao invés de vítima e testemunha passiva deles.” (White, 1996, p. 7). No caso dos meus sujeitos de pesquisa, os nāgā sādhus, a produção de siddhis se dá preponderantemente através da prática de tapasya (austeridade que produz calor alquímico), mas tem ênfase e alvo similar àquela dos nāths: a produção de um estado ontológico empoderado, de intencionalidade frente à “natureza” (prakṛti, noção de natureza que inclui processos sociais).
À Guisa de Conclusão, Uma Proposta
A cosmogonia do pensamento moderno tem em seu primeiro ato o que acredito ser um grande potencial de dissidência e genuína intenção de exploração das fronteiras do conhecível. Ao centralizar a racionalidade como valor no contexto da política do conhecimento no Iluminismo, abriase possibilidades para discursos de emancipação dissidentes às perspectivas dogmáticas religiosas da época. Entretanto, pode-se argumentar que o Iluminismo projetou um discurso único de emancipação pela razão (Gadamer, 1997) e, mais do que isso, que o projeto de emancipação humanista proposto pelo iluminismo acabou encapsulado na teia de aliados do projeto moderno de colonização do mundo: a (tecno)ciência, a nação militarista, o Estado Penal e a indústria capitalista (Latour, 2000). Colocada a serviço de poucos e contra a Vida, uma razão colonizadora, cada vez mais desregulada, sequestrou a própria racionalidade que lhe deu origem
Diante disso, é importante lembrar que, em seus fundamentos, a concepção de razão - assim como todas as outras concepções acessíveis através dela - estava em disputa. Assim, em sua situação histórica de origem, a razão era um conceito ampliador e não “guardador fronteiras” (Das, 2003). Quero finalizar este artigo com a proposta de resgatar o potencial ampliador de fronteiras da noção aberta de razão dos primórdios do iluminismo e contribuir, assim, para descolonizar o imaginário sobre a emancipação. Com base nela, em vez de submetidas a um Tribunal da Razão (Latour, 2000), racionalidades outras poderão participar em uma arena discursiva mais ampla, de exploração mais livre nas fronteiras do conhecível. Desta forma, pode-se recuperar teoricamente não apenas as racionalidades como discursos, mas também as práticas e aspectos de práticas vinculadas a elas que ficaram atenuadas ou esquecidas.
Quanto à contribuição deste artigo para um debate mais especificamente relacionado a meus interlocutores, quis mostrar que a renúncia como classicamente compreendida não é a única dimensão adequada à análise dos virtuoses entre os ascetas hindus heterodoxos. A dimensão relativa a técnicas e retóricas de empoderamento e emancipação parece especialmente profícua na tentativa de compreender esses sujeitos. Desencapsulados das teias de significação moralistas, (apenas) racionalistas, (apenas) transcendentais ou (apenas) sociológicas, acredito que os virtuoses entre os ascetas heterodoxos possam ser evocados como agentes de dissidência legítima às retóricas hegemônicas de empoderamento, tanto as bramânicas (através da “pureza”, do ritual e da conformidade ao dever e à hierarquia), quanto as consideradas “modernas” (através da razão, da organização políticoeconômica e do progresso técnico-científico). Por comportarem, ademais, uma teoria da desordem, podem oferecer dissidência também a retóricas pós-modernas.
Quis sugerir, enfim, que autores contemporâneos, circunscritos pela linguagem racionalista moderna, limitaram as possibilidades de compreensão do potencial de dissidência do asceta no mundo no tocante às suas noções ontológicas, de poder e de mundo social. Nessa linguagem, ‘o jogo’ é pensado como o humanismo racionalista o vê, entre seres humanos ontologicamente iguais, cujo sentido é construído primordialmente na dimensão social. Quero concluir indicando que, assim como o esquema evolucionista impedia a antropologia do início do século passado de ver outros grupos humanos como seres coetâneos (Fabian, 1983), o racionalismo humanista remete todos necessariamente ao mesmo estado ontológico e mundo social. Se continuarmos os naturalizando, permaneceremos impossibilitados de travar verdadeira interlocução com outros humanos cuja ontologia e campo de ação destoem desse padrão - e encerraremos qualquer diálogo com virtuoses entre nossos interlocutores, como os “deuses e jaguares” de Viveiros de Castro (2002) e os siddhas desta pesquisa.
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Notas