Resumo: A vivência da morte evangélica é reconhecida como sendo exemplo de simplicidade ritual, de afastamento da morte e de esquecimento dos mortos. Esta classificação foi construída de forma comparativa a partir do universo funerário religioso brasileiro que é reconhecido por sua exuberância ritual. Neste artigo, proponho uma interpretação para o rito de enterro evangélico conjugando o caráter dual de sua cosmologia com a ênfase na moralidade do seu sistema doutrinário. Através da observação dos movimentos de aproximação dos (corpos) vivos entre si e de afastamento destes em relação (aos corpos) dos mortos pretendo demonstrar certas especificidades dessa vivência ritual ao mesmo tempo em que proponho uma nova forma de interpretação para a dinâmica do rito.
Palavras-chaves: Morte, ritual, evangélicos, moralidade.
Abstract: The experience of evangelical death is recognized as an example of ritual simplicity, removal of death and oblivion of the dead. This classification was built on a comparative basis from the religious universe Funeral Brazilian who is recognized for his ritual exuberance. This paper offers an interpretation of the rite of burial evangelical combining the dual character of his cosmology with emphasis on the morality of his doctrinal system. By observing the movements of approximation (bodies) of lives together and these relative remoteness (the bodies) of the dead intend to demonstrate certain specificities of this ritual while I propose a new way of interpreting the dynamics of the ritual experience.
Keywords: Death, ritual, evangelicals, morality.
Artigo
APROXIMANDO-SE DOS VIVOS E AFASTANDO-SE DOS CORPOS DOS MORTOS: O RITO DE ENTERRO EVANGÉLICO E SEU CARÁTER DE MORALIDADE
O desenvolvimento de um conjunto de ações que visam a dar conta do “corpo de um morto” é um dos grandes universais da humanidade (RODRIGUES, 1983). A partir da transformação física gradativa natural pela qual vai passando o cadáver, os vivos estabelecem procedimentos através dos quais suportam a perda e dão um destino ao defunto. No Brasil, assim como na maior parte dos países ocidentais, seguindo uma tendência que foi trazida pelos colonizadores, se opta por enterrar os mortos em cemitérios. A tradição católica europeia do enterramento foi enriquecida pelo cuidado com o defunto característico dos povos africanos que vieram para o continente durante o regime escravocrata (REIS, 1991).
Entre os evangélicos, assim como para todos nós, o enterro é a ocasião para se dizer o último adeus e para que os sobreviventes tomem consciência da nova situação daquele que partiu. O ritual de enterro valida o novo status social do morto e dos vivos mais próximos. Num período muito difícil de incerteza, aceitar as transformações que seguem à morte constitui-se um trabalho doloroso que, neste grupo social, é vivido em coletividade. A “comunidade de irmãos” é importantíssima, pois, é em grupo que eles ultrapassam as instabilidades e constroem explicações para os acontecimentos que circundam a ocorrência de um falecimento.
Contudo, apesar do caráter inigualável e da riqueza universal dos ritos terem sido apresentados como ideia central na maior parte dos estudos que trabalham os traumas decorrentes da morte, as análises feitas entre os evangélicos afirmam de maneira praticamente unânime sua “simplificação”. O principal argumento utilizado para sustentar essa ideia é a atitude evangélica de rejeição e negação da morte e dos mortos. E não foram poucos os autores que assim escreveram, chamando atenção principalmente para a contestação da intercessão pelos mortos como marca maior dessa diferença. A performance ritual funerária evangélica é marcada pela ideia “formal” de que a morte não deve ser vivida como momento de tristeza e sim como concretização do ideal da salvação (NOVAES, 1983). Os evangélicos são encorajados coletivamente a demonstrar que, ao contrário dos seus opositores, não têm motivos para se preocupar com seus mortos que já estão “julgados e justificados”. Da mesma forma, confirma esse prognóstico a abreviação dos seus rituais de sepultamento. Afinal, mesmo que o cemitério “hegemonicamente” católico persista como um local de passagem obrigatório na realização do enterramento, o percurso e a permanência no interior de seus muros foram significativamente reduzidos.
No entanto, a atitude de confronto com o catolicismo - como estratégia institucional - e a negação da influência dos vivos no destino dos mortos - como expressão da sua compreensão mais ampla do funcionamento do mundo - não foi suficiente para retirar dos meus informantes a necessidade humana de dar destino aos corpos dos seus mortos. A partir desse imperativo social primário, os evangélicos desenvolveram vários comportamentos e representações visando ultrapassar a separação provocada pela finitude humana.
Partindo desse panorama, nesta apresentação quero discutir de que forma os evangélicos realizam os “rituais de enterro”. Meu objetivo será demonstrar que, mais que um protocolo rígido de comportamentos pré-estabelecidos através dos quais se processa a passagem pela morte, entre os evangélicos, o rito de enterro leva em conta principalmente interações e compartilhamentos de emoções entre vivos que se expressam e se concretizam numa relação íntima e complexa com a estrutura social mais ampla.
Percebe-se que em sua estrutura geral, o rito de enterro evangélico possui a mesma formatação de muitas outras cerimônias funerárias. Há velório, procissão e enterro. Contudo, os conteúdos inerentes às fases distinguem-se se analisados comparativamente ao que está contido nos cerimoniais de outros grupos religiosos. As diferenças levam em consideração, sobretudo, as proibições e evitações das intercessões e contatos diretos entre vivos e mortos e a oposição ao catolicismo dominante.
A seguir apresento os pontos principais da especificidade do rito de enterro evangélico: (a) A solidão do corpo morto diz respeito a um certo distanciamento dos vivos em relação ao cadáver velado durante os ritos de enterro dos evangélicos. Esse distanciamento entre os presentes e o defunto não pode ser explicado apenas a partir da sua performance objetiva pública. Há outros elementos subjetivos imprescindíveis - como o sistema cosmológico e doutrinário - para a compreensão da postura corporal praticada durante o velório.
O segundo ponto é a (b) aproximação dos enlutados. Em qualquer enterro é muito comum a formação de grupos de conversas para relembrar detalhes da convivência com o morto e também para socialização. O enterro é um dos momentos de reencontros entre pessoas que não se veem com muita frequência. Durante o ritual de sepultamento evangélico esses encontros têm uma significação ímpar.
Ao mesmo tempo, nos ritos de enterro acontecem (c) demonstrações emocionais morais coletivas. São momentos onde os enlutados estabelecem forte foco de atenção que os fazem adotar posturas sincronizadas (COLLINS, 2004). Esses instantes envolvem grande carga de emocionalidade. Essa gramática auxilia tanto no enfrentamento dos obstáculos quanto na construção de uma identidade de grupo. Entre os evangélicos há momentos de “pico emocional” que se estabelecem principalmente a partir da vivência da morte como um “evento moral”. O primeiro instante é o de chegada do corpo morto e o segundo é o do sepultamento. Na passagem entre eles acontece a procissão em que os enlutados em trânsito fortalecem-se a partir de seu pertencimento ao grupo. (d) Diferenciando-se dos “outros”, eles entram, circulam e saem do cemitério que é o terreno da morte.
A partir deste momento, proponho dividir o ritual de enterro evangélico em etapas, nos moldes de uma etnografia clássica. No entanto, minha ênfase não estará apenas na demonstração de estruturas formais recorrentes. Minha intenção é comprovar que a ritualização é construída e reconstruída interacionalmente à medida que os indivíduos buscam respostas emocionalmente eficazes para a superação da dor e das incertezas provocadas pela perda. Neste trabalho estratégico realizado pelos evangélicos, as práticas marcadas pela informalidade, reflexividade e relacionalismo são referenciais imprescindíveis na passagem pela sensação de irrealidade causada pela morte e na transformação dos sentimentos dela decorrentes. Além disso, minha escrita está preocupada em dar sempre grande relevo às fronteiras entre religiosidades que juntas constroem o cotidiano vivo do cemitério. Estes grupos diversos se encontram no momento da realização de cada novo sepultamento. O material etnográfico utilizado para discussão foi fruto do trabalho de campo no cemitério público municipal de Praia de Mauá, Magé, no Rio de Janeiro ao longo dos anos de 2009 a 2011.
Na maioria absoluta das vezes, um velório começa antes mesmo do corpo chegar à capela e dura a noite toda. Desde o momento em que os parentes e amigos se reúnem para aguardar a chegada do carro da funerária, observam-se demonstrações de tristeza, pesar e solidariedade. Abraços e afagos, apertos de mão, olhares de condolências e palavras de carinho. Diversas são as manifestações de sentimentos.
É muito comum que os vivos se reúnam para conversar a respeito dos momentos passados onde conviveram com o morto ao longo do velório. Como alguns dos meus informantes evangélicos me relataram, muitas vezes, nessas conversas se contam acontecimentos do cotidiano. Essas discussões são momentos de grande saciedade emocional.
Recontar histórias da vida do morto é relembrar e reconstruir sua participação social. Ao contar e recontar fatos, os vivos apuram entre si o foco de atenção que é reelaborado diversas vezes durante a execução do rito. Essa sintonia do encontro se afina ainda mais com as histórias que têm como protagonistas os enlutados e o “morto como vivo”.
O momento de chegada do corpo marca uma mudança extrema no ambiente do velório. O morto é o personagem principal do rito, já que foi justamente a sua morte o evento gerador da reunião ali estabelecida. A chegada do corpo representa o primeiro grande ápice emocional coletivo do rito de enterro evangélico. Ao observar a aproximação do corpo sem vida, os vivos realmente tomam consciência do que representa a morte. Essa materialização do “não ser” é enfrentada com grande dificuldade. A dor é vivida intensamente durante todo o rito de enterro evangélico, mas a chegada do corpo representa o primeiro contato substancial com a materialidade daquela morte.
Quando o carro da funerária pára, as portas traseiras se abrem e aparece o caixão. Num movimento que remete à sincronia e coordenação, os enlutados presentes no velório caminham lenta e progressivamente ao encontro do corpo que chega. O caixão é conduzido para dentro da capela e ao seu redor segue o grupo reunido. Esse primeiro encontro é a oportunidade de visualizar o corpo morto.
Os detalhes da conduta moral do falecido são conhecidos pelos amigos e parentes justamente porque conviveram com o morto quando ainda estava vivo. E quando eles se dirigem ao interior da capela para observar a expressividade facial do defunto, o fazem a partir de algumas expectativas. Neste caso, o que se vê no semblante inerte confirma os detalhes que se preveem através de um julgamento moral feito ainda no decorrer de sua vida. Contudo, pode ser que os participantes do velório tenham julgamentos morais diferentes a respeito do morto. Se assim for, eles discutem discretamente suas hipóteses durante as conversas.
Apesar de alguns evangélicos terem me falado do hábito de buscar certas informações no rosto do defunto, - o que confirma o caráter moral de sua vivência da morte - ao aprofundar minhas conversas com os interlocutores percebi que existe outro dado ainda mais relevante no que diz respeito ao corpo do morto. Num velório evangélico, existe um marcante afastamento dos vivos em relação ao cadáver que chamarei de “solidão do corpo do morto”. Acredito que a fonte desse distanciamento está precisamente na ausência de mecanismos de representação que permitam a comunicação ou a interação entre vivos e mortos. Explico melhor. O sistema cosmológico evangélico apresenta a morte como uma dupla quebra de comunicação com os defuntos. E esse é um dos pontos de maior impacto no desenvolvimento dos hábitos rituais que cercam a vivência da morte. Embora exista a consciência da continuidade da vida propiciada pela ação divina e a possibilidade de atestar a qualidade dessa existência na corporalidade do cadáver, a morte biológica interrompe brutalmente a expressividade comunicativa ativa daquela pessoa.
Durante o velório evangélico, o choque provocado pela perda de alguém com quem se tem vínculos é reforçado por uma cosmologia que impede qualquer outra forma de interação com o morto. Por isto mesmo, o momento de encontro com o corpo é um momento limite onde o vivo deve construir-se em relação ao incomunicável. Essa impossibilidade comunicativa também ajuda a entender o sentido da criação da possibilidade de avaliar a face do morto.
Acredito que um dos efeitos diretos dessa quebra de comunicação entre vivos e mortos é a tendência dos enlutados evangélicos de se afastarem do corpo morto e se reunirem em grupos de conversa.
Durante algum tempo, refleti bastante acerca dessa minha proposta de “solidão do corpo morto”. As respostas encontradas por mim tomam como ponto de partida essa rígida cosmologia já relatada e o caráter de moralidade da morte buscado por eles. Somente a partir destes pontos é que consegui compreender porque, durante o transcorrer do velório, no momento onde o morto é o personagem principal, e ainda que seu caixão ocupe um lugar central, o seu corpo permanece por muito tempo “deslocado”.
É somente a partir do entendimento de que o morto é inacessível, não apenas do ponto de vista físico propriamente dito - como é óbvio para todos os mortos - mas também do ponto de vista subjetivo, que se pode compreender a complexidade dessa expressão. Para os evangélicos, estar perto do corpo sem vida significa estar perto daquele que duplamente “não está”. Primeiro pela morte física e depois pela separação comunicativa.
Acredito que a barreira física e comunicativa à continuidade das relações entre vivos e mortos foi uma das responsáveis pelo afastamento dos vivos dos corpos mortos. No entanto, esse afastamento do cadáver não significa despreocupação com o morto. Como todos nós, essas pessoas sentem a necessidade humana de desenvolver estratégias através das quais possam demonstrar cuidado e carinho com aqueles que amam.
De maneira surpreendente, acredito que os evangélicos demonstram seu cuidado com os mortos principalmente através da aproximação entre vivos. Se em outras religiosidades, os vivos dedicam rezas e súplicas pelas almas desencarnadas (REESINK, 2009) ou mesmo se seguem vários receituários complexos visando a deixá-los partir em segurança (CRUZ, 1995), entre os evangélicos das Igrejas Assembléias de Deus nas quais desenvolvi meu trabalho de campo, os vivos dedicam-se aos grupos de conversas nos quais questionam e avaliam a qualidade da continuidade da vida dos defuntos e recontam os momentos de convivência.
A reunião nas pequenas rodas de discussão é caracterizada por sua informalidade. Nesta modalidade interativa, os enlutados aproximam-se uns dos outros numa atitude de busca de formas através das quais possam manifestar seus sentimentos em relação aos mortos. Se com os mortos não há comunicação direta, é através dos vivos que esta sensação de ausência é aplacada. Durante as conversas observei abraços, afagos, apertos de mãos que para mim representaram não apenas a necessidade humana de cuidado, como também a busca por um padrão explicativo. Ao mesmo tempo em que o corpo morto não pode oferecer muitas respostas, o morto pode e continua reforçando laços sociais que foram criados em vida e ativados por sua partida.
Há ainda outro ponto importante. Quando falo da aproximação entre vivos e da distância em relação ao cadáver, levo em consideração a existência de duas ênfases distintas do morto: o “corpo do morto” e o “morto como vivo”. Ao mesmo tempo em que o corpo morto está sendo velado, os enlutados passam longo tempo recontando e discutindo detalhes daquela vida que acabou de ser perdida. Falam das possibilidades que se vislumbram para seu destino. Ao longo do processo de luto, o “morto como vivo” pode aparecer em sonhos e em visões. Em todos esses casos, a ênfase maior está nos momentos onde o morto aparece enquanto vivente - seja no passado ou no futuro. O olhar acurado dos vivos se fixa naquelas situações onde ele participava ativamente do círculo relacional intenso ou nos momentos futuros nos quais será possível um reencontro. Enfim, o morto que é enfatizado nas conversas é o vivo que teve ou terá qualidades interativas ativas.
A valorização da dimensão informal dos ritos de enterro evangélicos através da observação e descrição dos momentos de aproximação dos vivos e das conversas mantidas entre eles durante o velório insere nesta tese um grande desafio que é justamente considerar as conversas, as interações informais como componentes rituais (GOFFMAN, 1967). Gestos, falas, expressões, movimentos realizados durante as interações são aceitos como componentes do rito. Afinal, o ato da comunicação “face-a-face” guarda em si certas expectativas entre atores que desejam transmitir informações e, ao mesmo tempo, esperam ser ouvidos e entendidos.
Para que a comunicação seja efetiva, há um repertório possível de formas expressivas geradoras de significação. Neste sentido, tanto as emissões da fala, quanto certas respostas dadas às conversações não são obra do acaso, mas são construídas ao longo de interações rituais trabalhadas a partir de certas possibilidades. Ao se unirem, os indivíduos seguem uma linha expressiva padrão e, de acordo com Goffman (1967), essa escolha não é feita aleatoriamente, mas é socialmente motivada.
Ao analisar os rituais de enterro evangélicos, percebi que os diversos momentos informais de conversa são importantíssimos. As trocas entre vivos ajudam a criar padrões emocionais e a responder imperativos que o corpo inerte não pode solucionar. Os vivos em trabalho conjunto mantêm uma linha expressiva importante. A manutenção dessa comunicação contínua é a responsável pelo sucesso do ritual no qual os vivos se despedem e homenageiam seu morto (GOFFMAN, 1967).
Ouvindo as conversas dos enlutados evangélicos durante os velórios, percebi que eles buscam respostas para a morte em geral e para aquele morto especificamente. Algumas vezes a morte é questionada; em outras, é o destino do morto que é posto em dúvida. A qualidade existencial da pessoa humana é colocada à prova durante as conversas. Se o morto é reconhecido como um verdadeiro cristão, enfatizam-se as características de sua salvação assim como as ações comprovadoras dessa condição. Em caso negativo, inicia-se toda uma série de discussões a respeito da possibilidade daquela pessoa ter alcançado a “justificação” e das condições objetivas da aceitação ou não da verdade bíblica (VICENTE DA SILVA, 2005).
Minha aposta é que os ritos de morte evangélicos são baseados numa modalidade ritualística que intensifica mais as redes de relações em torno do morto que os protocolos socialmente rígidos em relação ao seu corpo. Por isto mesmo, é tão importante considerar o que é informal e interacional em cada uma destas ritualizações. Afinal, essa solução se desenvolveu a partir da sua cosmologia e de padrões sociais e pode nos ajudar a entender certas características de sua cultura.
A partir de agora, é importante cobrir uma diferente faceta do ritual e salientar quais são possíveis manifestações de cuidado com o corpo morto. Afinal, mesmo não havendo interlocução com o cadáver, e mesmo que o afastamento dele revele um quê de negatividade, os evangélicos mantêm com o defunto uma atitude de atenção e cuidado. Eles não abandonam o corpo morto. Ao longo da realização das minhas observações, recolhi evidências exemplificativas dessa atenção. Diversas vezes, os enlutados aproximam-se do corpo para tocar em sua face, para arrumar suas flores, para abraçá-lo, para olhá-lo ininterruptamente.
Durante muito tempo, os rituais funerários evangélicos foram considerados simplificados. De acordo com minha interpretação, o distanciamento em relação ao corpo e a aproximação informal dos enlutados foram ingredientes principais dessa interpretação. No entanto, como pretendo demonstrar aqui a formação de grupos de conversa é parte importante desse rito justamente porque representa uma estratégia de rememorar o morto sem direcionar-se a ele, além de auxiliar na criação de padrões explicativos para os acontecimentos.
No que tange a configuração ritual, quanto mais formal é uma atividade, mais facilmente será identificada como rito. Assim sendo, a atividade mais formal de uma série é considerada como sendo o momento do ritual. As conversas, como interações informais, são desconsideradas e renegadas a um estatuto de desritualização. Durante minha análise do velório evangélico, as conversas são consideradas componentes do ritual. Com essa estratégia não pretendo reforçar o abandono do morto. Muito pelo contrário, aposto na formação dessas interações informais como estratagema para construir possibilidades de comparecimento do morto. Através delas, eles buscam outras dimensões comunicativas que trarão o morto para o “centro interativo” do grupo.
A dinâmica entre o formal e o casual tal qual se apresenta nesta tese é bem interessante para pensar a constituição e a vivência do rito. Afinal, o momento de aproximação dos enlutados se caracteriza por uma maior possibilidade de improvisação, mas ainda assim exige certo tipo de performance que envolve respeito e cuidado com os gestos e palavras em uma ocasião extremamente solene.
As interações entre vivos são consideradas em meu trabalho como parte constituinte do velório evangélico. Afinal, é na situação de presença física imediata que se exige maior atenção aos estatutos sociais que regem as relações entre pessoas (GOFFMAN, 1975). Neste sentido, quando os vivos se aproximam uns dos outros e tecem considerações a respeito do morto, eles estão buscando reordenar sua rede social discutindo significados e criando coerências (DOUGLAS, 1976).
Todavia, não quero tratar esses momentos informais apenas sob o aspecto previsível dos protocolos comportamentais ordenados. Dados da pesquisa de campo comprovam que, durante o velório e mesmo no decorrer do trabalho de luto, as margens de tolerância socialmente estabelecidas para a expressividade podem ser alargadas. As regras explícitas podem ser reconsideradas. Isto acontece porque a carga emocional produzida pode se tornar incontrolável.
Com muita sensibilidade e atenção, os “irmãos” percebem que algumas vezes a exacerbação da dor dificulta o controle dos sentimentos, gestos e palavras, principalmente dos mais próximos ao morto. Exatamente por isso, muitos deles assumem o papel de ajudar e confortar aqueles que estão tão fragilizados. Adota-se, neste caso, uma postura de alargamento do que é socialmente aceito e exigido.
A atitude de alargamento dessas possibilidades e revisão das regras explícitas se torna ainda mais necessária no rito de enterro evangélico porque ele se estabelece a partir da interação informal dos enlutados. Nessa aproximação, os atores buscam respostas para os acontecimentos e trabalham ativamente na criação de padrões comunicativos. Já que o rito evangélico pressupõe a redução dos protocolos formais estabelecidos, foi necessário aumentar os momentos de proximidade dos atores para que seus objetivos fossem alcançados. A ausência de fórmulas rígidas fez com que as informalidades ganhassem muito vulto no rito o que permitiu o alargamento das margens de tolerância do que é aceito ou proibido pelo grupo na sequência ritual. Muitas vezes, os praticantes questionam pressupostos rígidos da cosmologia e da doutrina do grupo que em outros contextos não seriam discutidos. O rito de enterro evangélico se construiu a partir da aproximação dos enlutados e da intensificação da comunicação informal entre eles que exigiu maior conteúdo de improvisação e maior capacidade de negociação entre atores.
O culto funerário é a parte mais formal do rito de enterro evangélico. Durante o cerimonial, os pilares cosmológicos e doutrinários que sustentam seu entendimento da vida e da morte são enfatizados. Ao longo da cerimônia, existe a explicitação dos padrões ideais e a tentativa de convencimento do grupo da aplicabilidade dessas ideias. Valorizar a vida do morto e negativar o corpo e a morte são formas de enquadramento da situação de aflição no conjunto doutrinário formal mais amplo. Contudo, ao mesmo tempo, dados do trabalho de campo chamam atenção para o fato de que esta solenidade não envolve um formalismo invariável. Existem os componentes mínimos que são organizados e acessados dependendo de cada situação e da forma como os participantes entendem e se relacionam uns com os outros e com o morto.
A estrutura mínima do culto funerário evangélico envolve muitos cânticos, orações e palavra do pastor ou do dirigente. Contudo, a forma como essa sequência será estabelecida depende muito do contexto da morte e da possibilidade de encontrar aplicabilidade dos padrões de moralidade do grupo na trajetória daquele que morreu. Na verdade, a formatação do culto pode ser flexibilizada a cada nova situação. A disposição da família e dos participantes em relação aos padrões morais e ao morto também é fator prioritário para a decisão, além do grau de proximidade e do relacionamento entre o pastor ou dirigente e os envolvidos.
Entre todos os determinantes envolvidos na decisão de como conduzir o cerimonial do velório, a aplicabilidade dos padrões de moralidade definidos como ideais pelos crentes na vida do morto é central no culto funerário. Afinal, saber se o morto é salvo ou condenado determina o ponto de partida para sua execução. Visando a esclarecer as diferenças, falarei da estrutura mínima desses dois tipos de culto. Começo pelo culto funerário de um não crente.
É muito comum que os parentes de um não crente convidem os pastores para celebrarem o culto fúnebre de seus mortos. Em meio ao desespero provocado pela morte e a imensidão de dúvidas que surgem, os parentes se dirigem aos irmãos pedindo-lhes auxílio e consolo. O cerne do culto fúnebre de um não crente é aquilo que não é dito. O dirigente do culto deve ter muito cuidado com as palavras que usa afim de não magoar a família.
Ao mesmo tempo em que não é possível discutir a aplicabilidade dos padrões de moralidade do grupo na trajetória daquele que acabou de morrer, é importante esclarecer sobre “a verdade” - cosmológica e doutrinária - e tocar nessas questões que são essenciais para o consolo dos parentes. Por isso, no culto funerário de um não crente, o céu e as maravilhas que esperam os crentes após a morte são enfatizadas a partir do proselitismo. Convida-se a todos para dedicarem suas vidas a Deus. Neste caso, ao invés de julgar a condição póstuma do morto, os irmãos aproveitam para fazer pregação da Bíblia e desta forma falam da possibilidade de uma vida após a morte feliz. Isso não impede que os familiares e amigos continuem se questionando sobre quais são as possibilidades futuras do morto. Contudo, garante um ponto de partida e organização que inviabiliza o caos do desespero garantindo o ecumenismo do rito realizado num contexto arriscado de diferença interpretativa - de crentes e não crentes - da realidade da vida e da morte.
O contrário acontece no enterro de um crente.
Como já disse, o culto fúnebre evangélico tem alguns componentes básicos - palavra, cântico, oração. Contudo, a ordem de apresentação não é fixa. É interativa. Cada dirigente é livre para cantar, falar e orar quantas vezes decidir. Não há uma formalidade rigidamente estabelecida nem “invariância” que restrinja a sequência das fórmulas rituais. Os presentes podem participar do culto pedindo alguns hinos ou mesmo orando. Se existem algumas diretivas estas estão ligadas, sobretudo ao objetivo principal do ritual que é o de auxiliar os enlutados na aplacação dos sentimentos negativos. Isto pode envolver também a necessidade de afastamento ou aproximação das discussões que envolvam os padrões de moralidade que podem ser aplicados à condição póstuma do morto.
Desvalorizar o corpo classificando-o como pó, matéria sem vida, é uma forma de valorizar o espírito que, segundo os evangélicos, é o que permanece na eternidade. No caso do ritual de enterro evangélico, essa estratégia também desqualifica qualquer tentativa de aproximação do corpo do morto para comunicação direta. Essa reversão auxilia no desenrolar do culto fúnebre evangélico. Afinal, faz com que os enlutados direcionem sua atenção para o futuro do morto e para os seus pares e, ao mesmo tempo, os consola, demonstrando que devem pensar naquele a quem amam como alguém que continua vivendo. A vida eterna é mais plena e feliz num mundo mais perfeito que esse mundo daqui, tal como na teocidéia weberiana. (Weber, 2004).
No culto funerário de um crente, acontece afirmação taxativa e exemplificativa do que é uma “boa morte”.
Outro fator importante desse culto é a narrativa do céu e das maravilhas da vida eterna. Chamar a atenção para essa criação imaginativa é extremamente importante no contexto dessa tese já que existe a acusação de que os evangélicos não teriam criatividade e inventividade do que seria a vida após a morte. Ao contrário disso, as mansões do paraíso onde os salvos irão habitar e onde há plena felicidade são cantadas nas letras antigas repetidas. Ao cantar e contar as “delícias celestes” preparadas para os crentes fiéis, os enlutados compartilham muita emoção. Afinal, a morte é o momento da ida para esse céu tão desejável. Contudo, o enterro nunca é vivido como ocasião festiva. Logicamente há incongruência entre o que está sendo falado e o que está sendo praticado. Afinal, a morte é desoladora e todas as explicações utilizadas pelos sistemas representativos são tentativas de lidar com seus efeitos (RODRIGUES, 1983).
A morte como destruidora do corpo mostra sua faceta implacável e causa enormes instabilidades. Exacerba emocionalidade. Como solucionar o conflito entre o que se vê (o corpo morto e desfigurado) e o que se imagina (o corpo transformado)? A saída, tal como entendo acontecer nessas cerimônias, é criar um sentimento de valorização dos feitos do morto como vivo e daquilo que virá depois da morte. Assim, o ritual evangélico retira a ênfase do corpo e da morte que são considerados negativos e a coloca nos vivos e na vida que são considerados lugares de equilíbrio e positividade.
Nas narrativas do céu e da vida após a morte, sustenta-se um percurso feliz e incondicionalmente perfeito. Não é pura e simplesmente a criação de uma polaridade entre o aqui e o lá que favorece saciedade emocional para os abalos provocados pela morte. Regina Novaes (1983) explicou que, para os evangélicos, o fato de tratar a vida como um caminho e a morte como possibilidade de gozo e alegria é a exteriorização de uma equação aparentemente resolvida. Neste ponto, estaria um dos grandes trunfos do sistema evangélico. Seu principal atrativo seria justificar os sofrimentos na terra como necessários e transportar, ao mesmo tempo, um pouco do céu para a terra quando maximizam a vitória do bem sobre o mal.
Enfim, depois das palavras, dos cânticos e das orações, o culto fúnebre terminou. Os presentes que desejaram passar diante do caixão uma última vez puderam fazê-lo.
Nos velórios que presenciei, percebi que nem todos se aproximam do corpo neste momento. Em geral, os parentes mais próximos ficam alguns minutos ali, observando-o e despedindo-se. Alguns tocam no corpo. Alguns permanecem chorando em silêncio. Recarregados emocionalmente com as interações em forma de conversa e com os conteúdos formais oferecidos durante o culto, os participantes agora se sentem mais fortalecidos para a continuidade do ritual. Em seguida, o caixão é fechado e os homens seguram nas suas alças para conduzi-lo em procissão para o interior do cemitério.
Depois de sair de dentro da capela, o cortejo que conduzia o caixão seguiu em direção à sepultura. O coveiro mostrou o caminho através das ruas do cemitério. Ele conhecia seus contornos, o mapa estava em sua mente. Com passos lentos e firmes, os irmãos seguiram sua indicação. A ordem dos participantes da procissão desse enterro evangélico era a seguinte: diante da multidão, seguia o corpo no caixão conduzido por quatro homens que eram parentes próximos da morta. Logo em seguida, em meio aos demais integrantes, - primeiramente os parentes - veio a responsável pelo culto fúnebre que em outras ocasiões poderia ser um pastor ou dirigente. Todos juntos marcharam cemitério adentro para encerrar o ritual.
Não há ordem socialmente imposta para a disposição do grupo de enlutados no cortejo, embora eu acredite que as relações pessoais sejam seu parâmetro organizador. As aproximações em geral são feitas pelo grau de intimidade dos participantes. Durante o cortejo em questão, muitos se abraçavam e conversavam em tom baixo. Já outros optaram por seguir lado a lado em silêncio. Ao longo do caminho por entre as ruas do cemitério, os integrantes do cortejo demonstravam afeto uns para com os outros e se consolavam mutuamente.
O percurso da procissão do velório iniciou-se com a saída da Capela e terminou no túmulo preparado para o sepultamento onde a morta foi depositada e homenageada pela última vez. Esse caminho foi trilhado em grupo. O ponto central de qualquer procissão fúnebre é que ela sintetiza uma coletividade em ação contra a morte. O cortejo movimenta-se entrando pelo cemitério e, neste deslocamento, seus participantes entram em contato com o lugar dos mortos. Ao mesmo tempo, a formatação do bloco de pessoas que compõem a procissão maximiza e evidencia as redes de relações coordenadas que foram acionadas com o evento fúnebre. Cada um dos indivíduos que chegou para o velório e que caminha, nesta etapa, junto com a multidão, ajuda a construir a coletividade que desafia a instabilidade da morte.
Até aqui chamei atenção para a construção das redes de relações compostas pelos enlutados e da forma como estes valorizam e relembram seu morto a partir de sua união. Ao afastarem-se do corpo e aproximarem-se uns dos outros, praticantes recontam histórias e experiências que envolvem o morto. Os dois processos já discutidos são complementares e auxiliam na aplacação da dor e na construção de padrões explicativos e comunicativos para a morte.
Na continuidade do ritual de enterro evangélico, o momento de trânsito do cortejo tem uma significação simbólica ímpar. Apesar da procissão dos mortos ter objetivos explícitos já amplamente estudados e partilhados por diversos grupos da sociedade (REIS, 1991; RODRIGUES, 2008), aqui, o intervalo desse deslocamento será utilizado com a intenção de discutir especificidades do rito evangélico. A primeira singularidade diz respeito à configuração da passagem deles pela necrópole. Acredito que a abreviação do tempo de permanência no interior do cemitério equilibra a relação entre a necessidade de entrar no cemitério para enterrar o morto e a resistência evangélica de permanência naquele espaço dominado pela morte e pelos rituais aos mortos. A circulação deles pelas ruas foi reduzida ao mínimo. Ao mesmo tempo, é durante essa entrada no cemitério que o grupo tem a oportunidade de reforçar a efetividade dos seus símbolos rituais a partir do contato com o “outro”. A segunda particularidade, revelada pela procissão funerária evangélica, se evidencia quando relaciono a composição dessa etapa do rito e o contexto da sociedade mais ampla representada aqui no “microcosmo” do cemitério. Explico como e por que.
Como já salientei, os sentimentos de dor e irrealidade que se inauguraram com a morte e afloraram a partir do primeiro contato com o corpo, em seguida, foram questionados e ganharam significação simbólica específica através das aproximações entre irmãos, de suas conversas e do culto funerário. Durante esses momentos iniciais, a negatividade do corpo e a ênfase na vida do morto foram reforçados. Contudo, quando o cortejo entra no cemitério, movimentando-se em direção à sepultura, os seus participantes sofrem alguns impactos emocionais que são produzidos a partir do confronto com aquele ambiente. Ali, as expressões de consternação se tornam mais visíveis. Acredito que as instabilidades causadas pela morte se agravam imensamente a partir da passagem pelo portão. Aproxima-se o momento da despedida final. Neste sentido, a formação de uma coordenação coletiva de enlutados para a realização do rito é imprescindível. Afinal, ao mesmo tempo em que o cemitério é a morada dos mortos, é também um lugar de “predominância” católica.
Retornando ao sistema ritual instaurando para o funeral evangélico, percebe-se que a união dos enlutados tem seu início decretado a partir da tomada de conhecimento de uma morte e da divulgação do horário do velório. Num tempo breve, a notícia se espalha. Sua constituição foi voluntária e geralmente não acontece com planejamento sistemático. A reunião se forma gradativamente à medida que a informação circula pelas redes de relações. Uns e outros se mobilizam independentemente de apelos e ordens. A velocidade das interações demonstra a efetividade da sociabilidade já existente que se ativa progressivamente a partir do imperativo social urgente: o cadáver deverá desaparecer antes que apresente sinais claros de decomposição.
O conhecimento do falecimento aciona a rede de relações e a marcação do local e do horário do velório coloca os enlutados em atitude de “co-presença” (COLLINS, 2004). Durante o velório e o culto fúnebre, eles constroem consensos e criam sensações de segurança. Contudo, a necessidade de entrar no cemitério e finalizar o rito coloca, uma vez mais, a coletividade em cortejo na insegurança de ter que se movimentar pelo espaço profano. Minha aposta é que a união entre irmãos que em procissão entram e passam pelo cemitério auxilia na aplacação das instabilidades que se afloram do encontro deles com o cemitério enquanto morada dos mortos e como expressão de um contexto social mais amplo.
A entrada do grupo no cemitério é obrigatória e visa à execução completa do rito que encerra um “ciclo de vida”. Contudo, essa passagem é vivida a partir de sentimentos confusos. Uma multiplicidade de sensações. Sabe-se que o enterro representa o cumprimento de um dever coletivo. O ato de enterrar o morto deve gerar saciedade e produzir alívio pela finalização de uma obrigação. Por outro lado, o instante final de despedida é desesperador justamente por concretizar a separação absoluta daquele que parte. Juntando estas indistinções, o caminho trilhado da capela até a cova representa, ao mesmo tempo, o último fôlego dos enlutados exaustos que devem finalizar sua tarefa e, também salienta o derradeiro instante no qual o morto estará entre os vivos.
Se o aparecimento do defunto impulsionou a união do grupo e a realização do rito, será justamente o seu desaparecimento para dentro da cova que encerrará aquela conjugação cerimonial. Neste sentido, podemos dizer que a atmosfera grupal da procissão fúnebre reflete essa política de enfrentamento coletivo da morte. Nela, o coletivo engloba o indivíduo (DURKHEIM, 2000) que adquire força motriz suficiente para prosseguir até o fim. Ao observar os grupos de cortejo que cortam as ruas do cemitério percebo na face de algumas pessoas o peso, o desgaste e o cansaço provocados pelo trauma da morte e pelo longo velório. Contudo, em forma de coletividade, os enlutados enfrentam a dor e a tristeza seguindo o rito até o fim (MEDEIROS, 2008). O grupo unido tem mais possibilidades de enfrentar, justificar e vencer a morte.
Ao mesmo tempo em que a constituição do grupo fornece instrumentos mais eficazes para o enfrentamento da morte, a procissão enquanto deslocamento desse grupo trabalha simbolicamente a penetração e a transição coletiva no sistema de porosidades da estrutura mais ampla da sociedade. Para os evangélicos, penetrar no cemitério significa sempre e recorrentemente entrar no território do “outro” e enfrentá-lo. O cemitério e os atos ali realizados estão sempre marcados pelo signo do que “não-pertence”. Naquele espaço reinam a morte e os ritos em favor dos mortos. Ali é a área de atuação dos seus reconhecidos oponentes.
O fato é que o cemitério foi, ao longo do tempo, se consolidando como um espaço de predominância católica. A relação dos evangélicos com o cemitério e com os ritos ali realizados se construiu principalmente através de uma atitude de “contraposição” - o que não exclui outras possibilidades como diferenciações, continuidades, silenciamentos ou mesmo usos comuns. Eles reconhecem a predominância católica histórica e se apresentam como “opção”. Foi assim que, ao longo do tempo, eles se afastaram desse espaço e negaram as práticas rituais de intercessão pelos mortos que são realizadas ali. Ou seja, os evangélicos construíram sua imagem como um grupo que não se identifica com o que tradicionalmente “está e é” aquele local.
De toda forma, apesar de hegemonias e oposições, na morte, todos se encontram no cemitério. Por ele, todos os vivos devem passar para depositar seus mortos. Imaginemos a cena desde o início. Hora do velório marcada e cada um sai de sua casa. Ao deixar a Estrada Real de Mauá, principal rua da localidade, os enlutados entram pela Rua Nossa Senhora da Guia. Logo após passar pela Praça da Guia, adiante se pode visualizar a Igreja Católica que tem o mesmo nome e à direita a Capela Santo Antonio. Depois do velório e do culto fúnebre finalmente o cortejo se dirige para o local da sepultura. Antes, porém, será necessário passar pelo portão do cemitério e caminhar por suas ruas. A paisagem do cemitério da Praia de Mauá é marcadamente católica, como já foi discutido anteriormente. Ao penetrar em seu portão imediatamente se vêem as cruzes que estão colocadas sobre os túmulos. Adiante delas, a maior de todas é o cruzeiro onde geralmente existem velas que queimam. Ao redor do cruzeiro, fiéis fazem suas preces. Há uma grande predominância católica que se mantém ativa no interior de seus muros.
Com todo este cenário estabelecido, pode-se compreender melhor porque a adoção da forma de cortejo no caso dos evangélicos não significa apenas um coletivo contra a morte. A forma de procissão é também uma boa estratégia de enfrentamento de outros opositores. Não através de conflito aberto, mas sim em uma atitude contida. Afinal, o objetivo principal da caminhada é conduzir o corpo à sepultura.
Apesar do cenário do cemitério ser visualizado como a expressão de um sistema conflituoso, percebo nos meus observados uma postura curiosa e despretensiosa em relação ao que está contido ali. Os evangélicos acompanham o caixão do morto pelas ruas sinuosas vivendo sua profunda dor e, ao mesmo tempo, observando e analisando a composição sócio-espacial do “não-lugar”. Eles notam os atos e fatos que ali se realizam e constroem sua identidade ao mesmo tempo em que transitam pelo espaço. Após o enterro, eles podem comentar e retirar conclusões do que foi visualizado e vivido ali.
Não há como não perceber que a presença massiva do que é católico no cemitério influencia na “evolução” do cortejo fúnebre evangélico. Afinal, durante o período de despedida do morto, eles precisam transitar em uma linha muito tênue entre o que pertence e não pertence àquele lugar. Estar no interior desses muros requer muito cuidado e atenção. Afinal, a dor da morte é intensa e o momento de despedida do corpo se aproxima. O sofrimento não pode ultrapassar e alijar a formação coletiva. Cada um precisa estar atento para não transformar a dor da morte em necessidade de permanência. Afinal, ali não é o lugar dos evangélicos. Eles devem entrar e sair. O cemitério é compreendido como um lugar de passagem. Neste sentido, a marcha em cortejo auxilia no enfrentamento do lugar e das sensações que marcam essa penetração. Os cortejantes prosseguem curiosos e observam a estrutura espacial dos túmulos, os rituais de intercessão pelos mortos e os cuidados dos enlutados com suas sepulturas. Essa observação sempre me foi apresentada por eles guardando o cuidado da reprovação.
Está claro para mim que os componentes e os símbolos acessados no cemitério durante os ritos de enterro evangélicos estão muito relacionados à divisão mais ampla da sociedade mauaense. Há continuidades e rupturas em relação ao modelo pioneiro e hegemônico católico de composição do lugar. Se a entrada e a passagem pelo cemitério são obrigatórias, a forma e o tom com os quais seu percurso é desenhado pelos atores revela uma forte negação com a maior parte do que ali se estabeleceu. A passagem do cortejo evangélico pelo cemitério é rápida e singela. E da mesma maneira como o corpo do morto foi marcado pela negatividade, a permanência no interior desses muros guarda em si um “quê” de constrangimento. Se eles precisam entrar e passar, eles não precisam demorar e muito menos retornar.
No movimento do cortejo, meus entrevistados observam e recolhem elementos que serão utilizados por eles para construir idéias contrárias. O ponto central do discurso é a não identificação com o espaço cemiterial. A transitoriedade e rapidez com que eles vencem os metros que os separam da sepultura revelam o núcleo espaço temporal do rito de enterro evangélico. Passar por lá, seguir em frente, sair do cemitério. Aproximação do corpo, afastamento do corpo, abandono do corpo. No ínterim da procissão, observar o outro e dele diferenciar-se. O intervalo mínimo de chegada e de partida do intramuros expressa o entendimento do lugar. A passagem rápida por aquele espaço demonstra a essência simbólica do rito.
O cortejo fúnebre revela na sua evolução as porosidades e as oposições presentes na sociedade mais ampla que estão objetivadas no interior do cemitério. No caminho vencido pelo grupo, há que se encontrar o que é diferente e com ele se relacionar. A atitude adotada pelos evangélicos nesses encontros e desencontros revela detalhes importantes do seu rito. A passagem da procissão é a ocasião de informar-se e de formar-se a partir daquilo que não é, não está e não permanecerá. A partir desses elementos é que sua diferença se constituirá.
Após ter saído da capela e ter cruzado o cemitério em direção ao túmulo, o cortejo fúnebre chega ao local indicado para o sepultamento. Diante do túmulo uma última vez, os parentes e os amigos podem observar o corpo. Um a um eles o circundam e se revezam diante do morto.
A chegada à sepultura representa o último instante do ritual de enterro e para os evangélicos é um dos instantes de maior “emoção”. De maneira geral, para os parentes e amigos, será a última oportunidade de olhar e de se aproximar do morto. Para um evangélico, ainda mais, afinal, provavelmente, será a primeira e última oportunidade de aproximação do túmulo que será abandonado logo após o enterro. Ocasionalmente pode acontecer dos parentes e amigos dos mortos evangélicos voltarem ao túmulo alguma vez. Contudo, essa nova visita acontece por outros motivos que não para o cuidado com o corpo ou com a sepultura. Ela poderá ser realizada na ocasião de um novo enterro na mesma sepultura ou, ainda, se outro enterramento exigir que se passe próximo àquela cova. A maior parte dos meus entrevistados evangélicos me revelou não ter retornado ao cemitério para cuidar ou visitar o túmulo de um parente próximo morto.
Curiosamente, alguns me relataram possuir jazigos. Outros me explicaram que gostariam de comprá-los. É interessante atentar para o fato de que esse desejo inicial geralmente não é consolidado, ou seja, existe uma vontade que não é suficientemente forte a ponto de transformar-se em ação.
Canta-se ainda um último hino. Essa canção é balbuciada pelos enlutados em meio à tristeza, choro e dor. Os presentes se olham, contemplam o caixão e se consolam. Em seguida, o caixão é fechado e desce pela cova adentro. O coveiro inicia o enterro jogando pequenas porções de barro e cal sobre o caixão que já está no fundo da cova. O silêncio impera no ambiente e ouve-se o barulho do barro que bate sobre a madeira oca do esquife funerário. Alguns jogam flores dentro da sepultura. É interessante perceber que antes mesmo que o caixão esteja todo enterrado a maior parte dos enlutados já está se retirando.
O ritual de enterro tal como é feito pelos evangélicos é extremamente revelador das instabilidades e incertezas presentes nesse sistema que são trabalhadas num dos momentos mais marcantes da vida social e coletiva: a perda dos participantes de uma sociedade. Além disso, o rito clarifica as possibilidades de contato com a morte e com os mortos abertas a essas pessoas e quais as estratégias dos atores sociais no cotidiano dramático da vida.
O sistema evangélico nega a possibilidade de comunicação quando decreta a dualidade intransponível que separa vivos e mortos. E mais. Ao mesmo tempo em que exige dessas pessoas a manutenção da distância do cemitério reconhecido como espaço do “outro”, determina que os corpos dos seus mortos sejam lá sepultados. Efetivando a concretização da separação já decretada pela morte.
Entretanto, nem mesmo essa cosmologia e sua doutrina rígida de usos e costumes foram eficazes na tarefa de frear redes de relações tão intensamente compartilhadas. Os instantes seguintes ao sepultamento e as idéias dos meus entrevistados sobre a aquisição dos túmulos indicam dúvidas e questionamentos a respeito dos estatutos formalmente decretados.
Alguns dos meus informantes me explicaram que depois dos sepultamentos (ou quando vão ao cemitério no dia dos mortos para distribuir folhetos) aproveitam as oportunidades para procurar a sepultura de seus mortos. É um hábito muito interessante de observar. Assim que acaba o rito de enterro, o corpo é deixado na urna funerária e, em seguida, iniciam-se buscas entre as ruas do cemitério. Várias tentativas de localização são realizadas.
O cemitério é um lugar de trânsito necessário e rápido. Não é um lugar de permanência e muito menos de visitas. O retorno não acontece justamente porque “o cemitério é o lugar da morte e, nós, nós valorizamos a vida”, como bem me explicaram meus entrevistados.
O sistema ritual evangélico guarda em seus meandros uma carência recorrente. Ao buscarem abrigo nos interlocutores, os enlutados evangélicos trabalham solidariamente as angústias e as dores da morte encontrando sentidos e significados mais plenos nos instantes de informalidade, reflexividade e interacionismo. No entanto, afastar-se do corpo não significa esquecer o morto. O morto será sempre ativo através de sua vida e suas histórias. Ele reaparecerá em momentos posteriores nos quais esses mesmos crentes enfrentarão os “ritos de luto”.