APRESENTAÇÃO

Cristianismos na América do Sul

Marcelo Tadvald
Editor-Gerente, Brasil

Cristianismos na América do Sul

Ciencias Sociales y Religion/Ciências Sociais e Religião, vol. 16, núm. 20, pp. 10-12, 2014

Universidade Estadual de Campinas

Este número propõe discutir diferentes facetas do cristianismo na América do Sul, subcontinente marcado por tal matriz religiosa e ideológica desde o seu advento e do empreendimento colonial ibérico, que primeiramente inscreveu o cristianismo na região mediante o catolicismo, para, posteriormente, em especial a partir do século XIX, observar a chegada e a ascensão de diferentes grupos evangélicos, não obstante, alguns inclusive originados na região como as igrejas pentecostais e neopentecostais do século XX. A partir de contribuições de cunho histórico, sociológico e etnográfico, a experiência cristã no subcontinente é avaliada de forma múltipla, transpassando temas e discussões que avaliam desde a ideia de santidade e martírio, práticas de cura, missionarismo evangélico, grupos e organizações de cristãos, católicos e evangélicos, passando pela estética e memória cristã em uma necrópole e de avaliações históricas e contemporâneas das festas religiosas em diferentes localidades da região.

Assim, abrimos este número com o trabalho de Júlio Cesar Tavares Dias, A comunhão dos santos - notas sobre santidade e martírio. Neste texto, o autor avalia a ideia de santidade, que devido a períodos de extrema perseguição ao cristianismo, ligouse fortemente a ideia de martírio. Ademais, o autor avalia como a devoção aos santos se estabeleceu no catolicismo. Partindo do pressuposto de que o conceito de santidade não pertence somente à Igreja Católica ou ao cristianismo, portanto estando presente em muitas religiões, a santidade pode assim ser caracterizada por um sentimento de ruptura com o mundo e de uma ligação específica com o sagrado. Desta forma este trabalho pretende verificar como a santidade tem sido entendida no mundo católico, na medida em que os santos acabaram por tomar um lugar central nesta religiosidade, servindo de modelos para os fiéis que com eles são capazes de criar vínculos de familiaridade a partir de sofrimentos compartilhados, pois que percebidos de maneira comum.

A taumaturgia, ou a prática da cura de doenças e enfermidades, remete às pessoas que a exerciam, conhecidos por taumaturgos, mas também por curandeiros, pajés, xamãs assim por diante. Trata-se, portanto, de uma prática que transcende o universo cristão. Entretanto, a tradição cristã tem em alta conta a questão da cura, marcadamente uma característica própria da atividade de Jesus, seu profeta-fundador. Dentro do escopo cristão, o artigo de Marcelo Lopes, A taumaturgia na Igreja Mundial do Poder de Deus: magia e pensamento mágico?, avalia a taumaturgia a partir do universo neopentecostal de uma importante denominação brasileira que atualmente se encontra para além de seu país de origem, avaliando, primeiramente, o papel do pastor-mago no ritual de cura, no qual tais práticas são mais enfaticamente evidenciadas e, em segundo lugar, o pensamento mágico que perpassa o imaginário simbólico dos fiéis-clientes de tal denominação.

A partir de uma discussão histórica e antropológica, o artigo de Virginia Lorena Dominella, Afinidades y tensiones entre religión y política en las trayectorias de los militantes de la Juventud Obrera Católica en Bahía Blanca (1968-1975), propõe reconstruir e analisar as relações entre religião e política na experiência dos integrantes da Juventud Obrera Católica (JOC) em Bahía Blanca (Argentina), entre 1968 e 1975. No trabalho, a autora avalia de que maneira tal coletivo construiu e percebeu suas atividades relativas à ação social e à militância política e em que medida tal processo foi impulsinado por sua fé, quer dizer, de que maneira sua vinculação a grupos católicos influenciou suas trajetórias políticas e quais tensões emergiram a partir das opções políticas e religiosas assumidas.

Ainda no contexto argentino, o artigo de Mariana Esther Espinosa, Una iglesia primitiva e internacional: el perfil misionero de los Hermanos Libres en su llegada a la argentina, busca avaliar o perfil missionário do grupo evangélico conhecido por Hermanos Libres, que chegaram na região ao final do século XIX. O texto procura repensar a gênese e a evolução do passado evangélico no Cone Sul, primeiramente discutindo as preocupações doutrinárias deste grupo para assim avaliar o processo de territorialização e a composição social de suas missões e seu vínculo colaborativo com outros grupos religiosos, para enfim abordar a dinâmica de atuação evangélica, observando especialmente a centralidade da cultura escrita para o desenvolvimento deste projeto missionário e para a criação de uma comunidade de caráter internacional.

Ao longo dos tempos, percebemos diferentes maneiras das sociedades expressarem o sentimento sobre a morte, como, por exemplo, ao manterem a ideia de conservação da memória do morto pela imagem, numa tentativa de manter viva a sua identidade. Para o cristão, a fé na vida eterna representa um elo entre o mundo dos vivos (profano) e o mundo dos mortos (sagrado). Daí surge a necessidade de conservar a memória do morto, criando uma relação permanente entre o mundo profano e o mundo sagrado. Este é o argumento central do texto de Thiago Nicolau de Araújo, Hermenêutica e cemitérios: um olhar sobre o Cemitério da Santa Casa em Porto Alegre, que, a partir da necrópole em questão, localizada no Brasil, analisa as obras funerárias a partir de uma hermenêutica específica, percebendo em que medida, na diversidade de adereços que compõe a arte funerária, torna-se possível identificar as concepções religiosas historicamente presentes em determinada sociedade, como aquelas relativas ao universo cristão.

Outra faceta importante para avaliar experiências históricas e contemporâneas do cristianismo na América do Sul consiste nas festas religiosas que ensejam diferentes fenômenos, relações sociais e novas formas de fricção cultural. O trabalho de María Candela De Luca, De procesiones y cosinages: fiestas y convites en el marco de las cofradías religiosas de indios en Potosí (Alto Perú) durante el período colonial, avalia as festividades religiosas presentes naquela região desde o século XVIII, avaliando em que medida tais cerimônias favoreciam a vinculação dos diferentes sujeitos em uma sociedade onde o cristianismo pretendia se fundamentar. A partir destes acontecimientos, o texto procura compreender os diferentes conteúdos, explícitos e simbólicos, que estas práticas ensejaram.

No mesmo período do texto anterior, A entrada do bispo de Mariana e a influência do catolicismo popular, de autoria de Baltazar Astoni Sena, avalia as festas religiosas que ocorreram em Minas Gerais (Brasil) no chamado período do ouro, principalmente a partir da entrada do novo bispo de Mariana no ano de 1748 e a ligação desta festa de cunho eminentemente eclesiástico com as formas de socialização e organização festiva do catolicismo popular ligado às irmandades. O trabalho procurou compreender os jogos de relações simbólicas e de reputação que advêm desse contato entre os diversos estratos sociais, identificando os atores, suas relações e como se percebiam perante a grupos similares de “brancos”, “pardos” e “negros” dentro do universo das irmandades católicas e o jogo entre Estado, Igreja e população para a manutenção da ordem estabelecida e a capacidade de aumento deste capital simbólico.

Encerrando este número, as festas religiosas também consistem no principal objeto de análise do artigo de José Rogério Lopes, Coleções de fé, fluxos materiais e hibridismos nas festas religiosas, que, a partir de relatos etnográficos atuais de três festas religiosas que ocorrem no Brasil, avalia como tais eventos têm passado por importantes transformações contemporâneas desde a modernização dos seus modelos devocionais, os processos de organização dos rituais, até os processos de patrimonialização cultural das mesmas. Assim, os diferentes atores sociais envolvidos fazem circular referentes da cultura material local, geralmente apropriados de coleções particulares de devotos e outros sujeitos locais, em fluxos sobrepostos à dinâmica ritual das festas que produzem hibridismos nessas paisagens festivas.

Desejo-lhes uma boa leitura.

Porto Alegre, primavera de 2014.

Marcelo TadvaldEditor-Gerente

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