Resumo: O doce de Cosme e Damião é distribuído entre o dia 27 de setembro (Dia de Cosme e Damião) e 12 de outubro (dia das crianças). Cosme e Damião foram nas religiões afro-brasileiras sincretizados com os erês (espíritos de crianças). Esses doces são ofertados como promessas, no catolicismo popular, ou foram oferenda aos Orixás (entidades dos cultos afro). Nosso trabalho discute, a partir do conceito de fato social total e de magia de Marcel Mauss, a prática de dar o doce e suas origens e a atitude dos evangélicos, principalmente pentecostais, de recusá-lo, como também, a re-configuração dessa prática que faz a Igreja Universal do Reino de Deus ao distribuir doces consagrados, temendo que as crianças fiquem endemoninhadas ao comer os doces oferecidos nessa época.
Palavras-chave: Cosme e Damião, Ibeji, Igreja Universal do Reino de Deus, Campo Religioso Brasileiro.
Abstract: The Cosmas and Damian”s candy is distributed during 27 of September (Cosmas and Damian” day) to 12 of October (Children”s day). These saints were syncretized with eres (children” spirits) in the Afro-Brazilian religions. These candies are presented like vow, in the popular Catholicism, or they were oblation to Orishas (Afro religious divinities). Our paper discuss the practice of giving and receiving the candy and its origins, based upon the notion of total social fact and magic from Marcel Mauss, and also the attitude of refuse of evangelicals, principally Pentecostals, and still the reconfiguration made by the Universal Church of Kingdom God when it gives blessed candies, because it fears that children be possessed by evil spirits when they eat candies offered in this time.
Keywords: Cosmas and Damian, Ibeji, Universal Church of Kingdom”s God, Brazilian Religious Field.
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O DOCE DE COSME E DAMIÃO: ENTRE O SINCRETISMO AFRO-CATÓLICO E A RECUSA EVANGÉLICA1
Neste nosso trabalho3 buscamos discutir o costume de distribuir o doce de Cosme e Damião, muito popular no Brasil, em todos os seus estados, mas principalmente na Baixada Fluminense4, na cidade de Salvador - BA e na de Igarassu - PE. Essas duas cidades do nordeste brasileiro constituindo nosso campo de pesquisa. Igarassu é uma cidade litorânea do estado de Pernambuco, a 30 km de Recife, localizada na região metropolitana do Recife5, a capital do estado. “A localidade que recebeu o nome de Igarassu, corruptela de Ygara-açu, barco grande, navio, canoa grande, originário dos índios, vem do fato, como escreve Teodoro Sampaio, de ser o porto, desde os primeiros anos da colônia, visitado por barcos que o atingiam com o percurso da maré” (SILVA & ALHEIROS, 1986, p. 10). Menezes (1994, p. 64) nos informa que “O rio Igaraçú estreita-se e recebe o afluente Monjope e neste porto se encontrava, provavelmente, o trapiche onde ancoravam, no século XVI, os barcos, em lugar próximo ao da atual ponte de passagem sobre o mesmo rio junto a cidade”. Ao avistar as embarcações que ancoravam nesse trapiche, os índios se referiam a elas como YGARA-AÇU, canoa grande. Assim,
No dia 27 de setembro de 1530, dia dos Santos Cosme e Damião, com a expulsão dos índios, pelos portugueses, das terras margeantes ao Rio Igarassu, inicia-se o processo de ocupação de Pernambuco. A Construção da Vila de Igarassu é, assim, a marca original da cultura portuguesa nesta região do país (VÁRIOS AUTORES, 1979, p. 15).
Nela fica a Igreja Matriz6 dos Santos Cosme e Damião, considerada a igreja mais antiga do país ainda em funcionamento.
Já Salvador, capital da Bahia, foi a primeira capital do Brasil, é uma das cidades com maior população negra do Brasil, sendo o bairro da Liberdade, onde fica a Paróquia dos Santos Cosme e Damião, considerado o bairro mais negro do Brasil e também o bairro mais negro fora da África. Esse é um ponto que o padre Josevaldo Nascimento, ele mesmo negro, destacou e repetiu como que com orgulho quando lhe entrevistamos no dia 24 de setembro de 2014, às vésperas do dia de Cosme e Damião. Ele recebeu-nos na casa paroquial que fica por trás do templo da igreja, e cujo acesso se dá através da secretaria da paróquia. Já há quatro anos como pároco desta igreja, conta que há muitos anos atrás nem imaginava ser padre dali, mas em visita a igreja, sugeriu que as imagens dos santos que ficavam uma em cada lado do altar fossem colocadas juntas, ao lado esquerdo. Quando assumiu a paróquia o povo comentava: “aquele que juntou os santos agora veio para ficar”.
Na construção desse trabalho é preciso situar historicamente o desenvolvimento da devoção a Cosme e Damião e o surgimento e crescimento da recusa evangélica, bem como fazer com que essa investigação situe-se sempre relacionada a historicidade das religiões afro-brasileiras e de suas relações com as igrejas cristãs no Brasil. Só a partir disso, podemos prosseguir com real firmeza em nossas análises uma vez que é na história e construindo a história que se dá o discurso, já que este é sempre construído por um conjunto de relações sociais e, evidentemente, também históricas, e por meio dele (do discurso) que se atribui relevância aos fatos (BACCEGA, 2007, p. 81, 69). É necessário que façamos essa abordagem para entendermos como essa devoção surgiu e se estabeleceu no Brasil e também para demonstrar as mudanças sofridas no hábito de dar o doce no decorrer dos últimos anos, com o crescimento do número de evangélicos. Se, como Chartier (1991), entendemos o mundo como representação, devemos partir por verificar como cada grupo no campo religioso brasileiro representa a figura dos santos e o doce, e como representa a si mesmo e aos outros.
É aqui que se encaixa em nosso trabalho a lógica da comparação, uma vez que cada grupo (e a representação que faz) é visto sempre em relação ao outro. Aliás, “A comparação tem sido a operação básica da antropologia desde que ela se constituiu como disciplina” (SEGATO, 1995, p. 33), assim, quando são postos “os discursos em paralelo, eles emergem um à contraluz do outro, interpretando-se mutuamente. Os elementos de um ecoam e reverberam nos elementos do outro” (SEGATO, 1995, p. 39). As várias representações são postas em contiguidade sem que uma seja privilegiada como padrão de interpretação para a outra. Tomamos, então, “a própria religião como uma maneira de ver, uma forma de concepção de mundo” (PADEN, 2001, p. 149). Nossos esforços caminham para ser, portanto, “uma combinação da perspectiva comparada com um atento exame etnográfico e histórico” (PADEN, 2001, p. 151).
Como há várias dimensões no objeto religioso (SMART, 1995), é que ele pode ser visto de várias perspectivas (PADEN, 2001). Acatamos, então, para esse trabalho uma abordagem interdisciplinar, como é próprio da(s) Ciência(s) da Religião. Defendemos que esse seja o modo para se fugir aos reducionismos a que muitas vezes se circunscreveram os estudos de religião (ou das religiões), por isso, se é necessário ler os clássicos da intelectualidade ocidental que se deteram a prestar atenção ao mundo religioso, não devemos lê-los apenas criticamente, mas também criativamente (DIAS, 2013 a).
Como se vive no Brasil uma situação de pluralismo religioso exclusivista, esse ato que parece ser simples, distribuir um doce, pode gerar conflitos e embaraços, impossibilitando, por vezes, que se efetive a dinâmica dar-receber-distribuir, como nos ensinou Marcel Mauss no seu Ensaio Sobre a Dádiva (MAUSS, 2003). Marcel Mauss foi quem iniciou o estudo da dádiva7 e seu papel na produção e manutenção, pelo tripé Dar-receber-distribuir, do vínculo social. Allain Caillé e os colaboradores da Revue8 du MAUSS – Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais têm retomado mais recentemente o estudo do paradigma da dádiva.
O fato é que ao receber “sabemos que nos comprometemos” (MAUSS, 2003, p. 122), e há aqueles que não querem se comprometer e por isso quebram/ferem uma relação social. O que acontece, como veremos, é que o princípio de sociabilidade entra num embate com a fidelidade religiosa dos evangélicos que vivem uma forma de ascetismo intramundano9, isto é, como muitos deles dizem, “estão no mundo, mas não são do mundo”10. Esse ascetismo se manifesta na recusa de muitos deles de participar de festas como Carnaval ou São João, ou qualquer uma em que haja cigarro ou bebida, em guardar a virgindade até o casamento, no não consumo de drogas, quer lícitas ou não.
No caso do Doce de Cosme e Damião entra em jogo outro fator: a forma como os evangélicos se relacionam com outras religiões, no caso, o Catolicismo e as religiões afro-brasileiras: Candomblé e Umbanda.
Os evangélicos têm sempre se posicionado contra a prática de Cosme e Damião. Porém, no dia 10 de junho de 2009, no site do Púlpito Cristão (http://www.pulpitocristao.com/2009/06/cosme-e-damiao-em-igreja-evangelica/) foi divulgado um texto intitulado Cosme e Damião Em Igreja Evangélica? mostrando surpresa e indignação para com a prática da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) de distribuir balas consagradas/abençoadas. Prática claramente sincrética como outras dessa igreja, cujo sincretismo tem-lhe gerado a má consideração das igrejas evangélicas11.
As religiões fazem fronteira umas com as outras. Alguns ousam mesmo atravessar essas fronteiras, outros veem o mundo para além delas como perigoso (DIAS, 2013 b). A devoção a Cosme e Damião, tão antiga no Brasil, conhecida principalmente pela prática dos fiéis, de distribuírem doces como pagamentos de promessas, será objeto deste estudo que objetiva nos mostrar como as religiões se relacionam quando se vive na fronteira. Embora estejamos atentos a essa prática apenas, analisá-la nos permite ver de forma ampla as tensões presentes entre os principais atores do campo religioso brasileiro: fiéis católicos, evangélicos e das religiões afro-brasileiras
Entre o dia 27 de setembro, que é o Dia de Cosme e Damião, e 12 de outubro12, dia das crianças, algumas pessoas têm o hábito de distribuir doces para as crianças como pagamento de promessas feitas aos santos. Cosme e Damião são santos católicos que foram médicos e por isso são tidos como protetores das crianças. Eles teriam exercido a medicina sem nunca cobrar nada, por isso são chamados de anargiros, ou seja, “que não são comprados por dinheiro”. Esses santos foram sincretizados com os erês13 e por isso as festas dos erês são celebradas em setembro. O padre Michelino Roberto explica que “pelo calendário oficial da igreja, a festa é celebrada no dia 26. Mas o povo prefere 27, data da inauguração da basílica que o papa Félix IV mandou erguer para os dois em Roma, no ano 500” (O ESTADO DE SÃO PAULO, 28/09/2000).
São santos do século III cuja data de nascimento é incerta, como também não se sabe como tiveram contato com o Cristianismo. São mártires, mortos por não se curvarem diante dos deuses pagãos, tendo sido acusados de “inimigos dos deuses”. Uma tradição diz que foram alvejados por dardos, mas miraculosamente os dardos se desviaram deles, por isso depois foram decapitados. Outra tradição conta que eles foram atirados de sobre um despenhadeiro. “Seus restos mortais, segundo consta, encontramse em Ciro na Síria, repousando numa basílica a eles consagrada. Da Síria o seu culto alcançou Roma e dali se espalhou por toda a Igreja do Ocidente” (CATOLICANET).
A devoção a Cosme e Damião é antiga no Brasil. Já em 1535 foi construída a primeira14 igreja em homenagem aos gêmeos na cidade de Igarassu15, Pernambuco. Devoção trazida pelos portugueses e que se espalhou pelo litoral e depois se interiorizou com o garimpo. Os negros eram a grande “máquina” produtiva do garimpo, e reduzidos a “coisa” tinham, como forma de resistência cultural, que “sincretizar” seus orixás com os santos católicos que lhe foram impostos (ARAÚJO, 2010, p. 2). Sincretismo esse que perdurou até os dias de hoje e que faz parte da religiosidade popular do povo brasileiro.
Em Salvador a devoção aos santos é muito forte. A Igreja de São Cosme e Damião16, no bairro da Liberdade17, realiza no dia 27 de setembro várias missas e procissões em homenagem aos santos, além disso, há à noite uma celebração do Cardeal. Conforme lê-se no Jornal A Tarde:
Em 26 de setembro de 1942, a tradicional legião de devotos de São Cosme e Damião caminhava em procissão pelas ruas da Liberdade, pela primeira vez se viu ali um padre negro. Levando aquele povo de origem africana os ensinamentos sobre a vida e o martírio dos santos irmãos. Atrás centenas de católicos se misturavam aos filhos e filhas-de-santo, acompanhando a imagem sacra pela antiga Rua Lima e Silva, passando pela Lapinha, em direção à Soledade, como ainda hoje reza a tradição. No dia seguinte, 27 de setembro, dia destinado aos santos pelos devotos do candomblé, todos se reuniram novamente, em um terreno baldio, cedido por um velho imigrante espanhol, já falecido. [...] Desde então, brancos e pretos da Bahia, católicos e adeptos do Candomblé, todos passaram a festejar juntos, nas ruas da Liberdade, o dia dedicado aos santos irmãos, a São Cosme e São Damião. (JORNAL, A Tarde, Salvador, 26/09/2xxx Arquivo Biblioteca Central do Estado da Bahia)
O padre Gaspar Sadoc é indicado como um dos primeiros, quando ainda jovem (25 anos) a começar, pelos anos de 1940, a tradição dessas celebrações aos santos gêmeos. O sacerdote garante que havia respeito e tolerância para com o povo de terreiro (Candomblé):
“Foi no Calabetão lá a primeira vez que vi um batuque arrojado de candomblé. Cheguei e tava aquele povo todo no terreiro, dando santo e tudo mais. [...] Eu vivi sete anos ali, muitos felizes”. E em relação ao caruru, Sadoc admite que até gostava e chegava mesmo a se lambuzar com a comida de santo. E revela: E enquanto a Paróquia de São Cosme e São Damião seguia recebendo os fiéis na sala improvisada da Rua Lima e Silva, nº 206, os devotos de Candomblé batiam os atabaques na rua ao lado, nº208. Era lá, que a mãe de santo Xandu festejava a festa dos Ibejis, os orixás gêmeos. Quem ia lá fazer o movimento, era aquele grande pai-de-santo da Bahia, que se chamava Joãozinho da Goméia. Ele que fazia lá o preceito dele. Eu 206 e ele 208. Dava muito bem. Passava lá dias e dias batendo aquele negócio durante o dia. Quando era de noite, em atenção ao vigário que estava ali perto, ele diminuía o ritmo [...]. Ele fazia aquele São Cosme com muita comida, depois mandava aquela bandeja pra mim. Conforme afirmações, notamos que existia pacífica convivência e respeito entre os fiéis das distintas crenças, resta saber qual a realidade atual e como essas celebrações ocorrem nos dias atuais. Hoje a paróquia de São Cosme e São Damião não está sediada em uma pequena sala. Há muito já conta com uma igreja, construída em 1949. Também não há mais o terreiro da velha ialorixá ao lado (SANTOS, 2010, p. 6).
O Candomblé é forte na Bahia. No candomblé Cosme e Damião são filhos gêmeos de Xangô e Iansã. Embora os santos sejam adultos, a devoção aparece extremamente ligada a criança18. A festa é comemorada com muita comida, sobretudo com o prato favorito dos santos, como reza uma cantiga19 bem popular, o caruru20. Mas também são servidos21 acarajé22, abará, vatapá, xinxim de galinha, farofa, rapadura23, cana-de-açúcar, pipoca24... Os Ibejis, como dizia Jorge Amado (apudFolha de São Paulo, 25/09/2008), são amigos da boa mesa baiana.
Como sabemos, o Candomblé é uma religião de antepassados, e a comida aparece como um elo entre essas gerações. O caruru é oferecido primeiramente aos donos da festa, seja Cosme e Damião ou o orixá Ibejis, e depois a sete crianças escolhidas, que o recebem em uma grande tigela. Só quando terminam é que os adultos podem compartilhar o alimento. “A tradição manda que se prepare uma roda de sete meninos. (...) Não usam talheres, usam as mãos. Mas algumas mudanças já ocorrem em torno da tradição do Caruru de cosminho como misturar meninos e meninas, comer com talheres; ao final eles levantam-se e juntos cantam a música de Cosminho juntos com os outros convidados da festa” (CULTURABAIANA). São escolhidos sete meninos porque teria havido sete irmãos mabaças25: Cosme, Damião, Doum, Alabá26, Crispim, Crispiniano27e Talabi28. Às demais crianças são oferecidos doces em sacolas: o doce de Cosme e Damião.
Há, segundo Edlaine Gomes (2009, p. 174), diferentes formas de dar/receber o doce:
Na primeira forma descrita, mais identificada nos anos 1970 e 80, várias pessoas se posicionam nos portões das casas e distribuem saquinhos de papel com diversos tipos de doces (...) A maneira de “pegar doce” é sair de casa com sacolas e andar pela vizinhança com colegas ou algum adulto. A segunda maneira é ir a um Centro de Umbanda ou a casa de algum integrante dessa religião. (...) O terceiro modo é receber os doces em casa. (...) Uma outra maneira de “dar doce” surgiu com o tempo e vem ganhando espaço. O ofertante vai para a rua e expõe sua disposição de “dar doces” e espera aqueles que são receptivos se aproximarem.
'Dar doce' pode ser uma forma de conseguir e manter prestígio (PICCOLLO apudGOMES, 2009, p. 173), mas, considerando “A forte tendência exclusivista, impulsionada pela adesão religiosa às igrejas evangélicas, especialmente as pentecostais” (GOMES, 2009, p. 185), pode ser uma situação tensa e embaraçosa. Vejamos esse relato de Edlaine Gomes (2009, p. 169):
Estava em minha casa quando tocou a campainha. Era uma vizinha que sempre encontro no corredor do prédio onde moro – mas confesso nem saber seu nome – segurando um saquinho de doces de São Cosme e Damião. Numa rápida conversa e com certo constrangimento, a senhora perguntou se me incomodava que ela oferecesse doces para minha filha, pois sabia “que tem pessoas que não gostam desse tipo de coisa”.
Entre as pessoas que não gostam disso, estão os evangélicos29, principalmente pentecostais e neopentecostais. O bispo Macedo (apudGOMES, 2009, p. 179), líder maior da IURD, por exemplo, observa:
de todas as leis e mandamentos durante a Antiga Aliança com respeito aos sacrifícios, restou apenas a proibição de comer coisas que são sacrificadas aos santos, aos espíritos, aos deuses, como, por exemplo, as comidas oferecidas nos dias de Cosme e Damião, de Santo Antônio, de festas espíritas etc30.
Pensemos então, qual deveria ser a atitude de Edlaine Gomes se ela fosse evangélica? “Não aceitar e não comer, nesse contexto caracteriza uma postura religiosa exclusivista característica do campo evangélico” (GOMES, 2009, p. 171). Nós entendemos, porém, que os evangélicos podem responder de diferentes formas.
Ao serem interpelados se aceitam ou não o doce, os evangélicos podem: simplesmente recusar, como coisa do inimigo; aceitar por cortesia e não comer já que é uma comida trabalhada; aceitar por cortesia e comer, baseado ou no pensamento de que o ídolo de si mesmo nada é no mundo (1 Co 8.4), assim rejeitam a crença na magia, ou de que maior é Deus, por isso o mal contido no alimento não pode causar-lhes nada, ou comem-no após orar repreendendo todo mal que possa estar ali.
Pela atitude dos evangélicos fica claro que para eles o doce possui um mana negativo que: ou deve ser evitado; ou é inoperante, inofensivo e sem poder para eles devido a sua adesão religiosa (“maior é o que está em nós do que o que está no mundo“ 1 Jo 4.4) ou mesmo por não representar mesmo poder mágico nenhum; ou torna-se inoperante por um contra-feitiço – a oração.
No livro O Sumiço dos Doces de São Cosme e São Damião, de Cristina Fraga (2012), Guilherme e seus irmãos tentam desvendar enigmas, dentre eles: Quem teria roubado os docinhos de São Cosme e Damião? Não acredito que estejamos caminhando para um sumiço desses doces, mas é certo que em decorrência da atitude evangélica, a prática da entrega do doce vem sendo feita de forma cada vez mais discreta. A jornalista Rosiane Rodrigues, ao notar que esse costume vem se enfraquecendo, decidiu entrevistar comerciantes de doces. Um desses contou que quem compra doces para Cosme e Damião pede que se embale em bolsas pretas para que ninguém saiba de seu conteúdo, ou ainda que a entrega seja feita apenas à noite. Já outra comerciante arremata: “Antes as pessoas saíam da loja com orgulho de suas compras, faziam questão de mostrar que iam fazer a homenagem aos santos. Hoje, têm vergonha” (RODRIGUES).
Pelo que vimos, há três identificações que foram feitas de Cosme e Damião: a primeira é a do catolicismo que os identifica como santos; a segunda, a do Candomblé e a da Umbanda que assimilam esses personagens e os reinterpreta a partir de suas próprias tradições; a terceira é a visão evangélica que reinterpreta as demais também conforme a própria tradição, ou seja, a tradição cristã, vendo-os como espíritos maus, demônios. Claro que como o Diabo “se transforma em anjo de luz” (2 Co 11,14), orixás, erês ou Cosme e Damião seriam apenas formas diferentes dele se travestir. A recusa evangélica considera a celebração católica como idolatria, “adoração de santos” e a celebração afro-brasileira é considerada como “invocação de espíritos”, “coisa do diabo”.
Podemos pensar essa série de interpretações a partir da imagem de uma cebola31: camadas que se sobrepõem a camadas, cada uma se ajustando à anterior. Aliás, Para Burke (2003), em seus estudos acerca do hibridismo cultural, ao nos defrontarmos com que possivelmente diz respeito a duas tendências culturais distintas, não devemos ter a falsa impressão, muito menos devemos tentar entendê-la de forma separada, pois “não existe uma fronteira cultural nítida ou firme entre grupos, e sim, pelo contrário, um continuum cultural” (BURKE, 2003, p. 16). (Embora nós próprios optemos por ‘continuar’ pensando em termos de sincretismo, como o definiu Sanchis (1995), a mudar para ‘hibridismo’, podemos concordar perfeitamente com essa análise de Burke. Sanchis entende o sincretismo como um universal humano, “Considerado como un universal humano, el sincretismo es entendido por Pierre Sanchis como un proceso por el cual las formas de experimentar, simbolizar, conocer la realidad, a sí mismo y a los otros son afectadas por el contacto con nuevas visiones de mundo” (MARIZ, 2001, p. 192). Frise-se que ele entende sincretismo, como processo, e não como resultado. Entender assim o sincretismo é essencial para nosso trabalho, porque nos livra de imaginar o sincretismo como uma característica própria do povo brasileiro ou como algo pejorativo.).
A primeira podemos dizer que é, na verdade, a criação de um mito, pois a biografia dos dois é cheia de lacunas que foram sendo preenchidas pela devoção. A segunda tem sido de longa data denominada como sincretismo. Já a terceira, a evangélica32, denominamos de demonização33, que é quando os elementos de uma tradição religiosa concorrente são vistos unicamente como negativos e ameaçadores. Ari Oro define demonização como “um recurso simbólico posto em prática por religiões que competem entre si para arregimentar fiéis e para se impor legitimamente” (apudNERY, 1997, p. 81). Enquanto procedimento discursivo, Celi Pinto vê a demonização como estratégia que esvazia o discurso do outro de significado (NERY, 1997, p. 81). Assim, debruçar-se sobre o doce de Cosme e Damião nos permite trabalhar com os principais personagens formadores da matriz religiosa brasileira (BITTENCOURT FILHO, 2003): Catolicismo, Religiões de Matriz Africana, Evangélicos e Protestantes. Para Bittencourt Filho (2003, p. 44), “o sucesso de uma proposta no campo religioso brasileiro seria proporcional ao seu comprometimento, explícito ou implícito, com a Matriz Religiosa Brasileira”. Assim, ao fazerem diferentes interpretações do mesmo objeto, esses personagens do campo religioso se comprometem diferentemente e em diferentes graus com a matriz, o que gera tensões.
A imagem da cebola também é útil para nos lembrar que o fenômeno religioso tem várias dimensões (SMART, 1995), o que faz que “The study of worlviews is not only crosscultural but also crossdisciplinary” (SMART, 1995, p. 4). Entretanto, a imagem das camadas pode conduzir-nos ao erro de pensarmo-las como estanques, ou seja, que uma camada oferece suporte a outra, mas jamais se modifica. Entendemos de outro modo: uma primeira interpretação é atualizada sempre que surge uma interpretação conflitante. Assim que a devoção católica aos santos pode ser renovada quando incorporou a distribuição de doces, surgida no mundo afro-religioso brasileiro.
A metáfora das camadas é útil também para pensar o objeto religioso em suas dimensões (SMART, 1995), precisando ser visto em várias perspectivas (PADEN, 2001), e que sobre ele se criam diferentes representações (CHARTIER, 1991).
No Brasil, os santos Cosme e Damião foram sincretizados com os erês e por isso, nas festas desses também há farta distribuição de guloseimas. Nas igrejas neopentecostais, entre elas a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), para que as crianças não fiquem endemoninhadas pela ingestão das balas distribuídas quer por católicos ou pelo povo de santo, é feita também distribuição de balas e doces abençoados ou consagrados, ato que alguns autores já mencionaram sem, no entanto, terem se detido e se estendido sobre ele (ALMEIDA, 1996, p. 44; CAMPOS, 1997; MARIANO, 1999, p. 135; SILVA, 2005, p. 165). Cabe a nós, portanto, discorrer sobre esses casos.
Leonildo Silveira Campos (1997) menciona essa atitude iurdiana em seu livro Teatro, Templo, Mercado, aliás, baseado em sua tese, a primeira no Brasil a eleger a IURD como objeto de pesquisa, portanto, parece-nos foi ele o primeiro a notar a prática. Mariano (1996, p. 130, grifo nosso) enfatiza34 que “concorrendo com a prática umbandista de distribuição de doces aos erês”, ou seja, interpreta o ato iurdiano dentro da perspectiva de disputa no mercado religioso pelo mesmo segmento de fiéis. É um sincretismo, como tudo na IURD, marcado pela “mercantilização do sagrado” (CAMPOS, 1997, p. 165).
Ricardo Mariano também interpreta o sincretismo iurdiano como uma estratégia evangelística:
Para tirar proveito evangelístico da mentalidade e do simbolismo religiosos brasileiros, a Universal sincretiza crenças, ritos e práticas das religiões concorrentes. Faz isso de diferentes modos e em distintas ocasiões. Realiza “sessão espiritual do descarrego”, “fechamento de corpo, “corrente da mesa branca”, retira “encostos”, desfaz “mauolhado”, asperge os fiéis com galhos de arruda molhados em bacias com água benta e sal grosso, substitui fitas do Senhor do Bonfim por fitas com dizeres bíblicos, evangeliza em cemitérios durante o Finados, oferece balas e doces aos adeptos no dia de Cosme e Damião (MARIANO, 2004, p. 132-133, grifos nossos).
Adailson Bomfim descreve um momento de sua pesquisa de campo. Neste relato vemos as consequências na visão iurdiana de se comer o doce de Cosme e Damião.
Vale destacar ainda que numa dessas sessões, realizada no dia 10 de outubro de 2006, foi anunciado pelos pastores que no dia das crianças haveria um culto especial de combate às oferendas de balas e bombons “amaldiçoados” pelos encostos (Cosme e Damião) que adoecem as crianças causando, dentre outros males, diarréias, bronquites asmáticas, etc. e nesse combate será oferecido um bombom “consagrado” para curar tais enfermidades (BOMFIM, 2007, p. 67)
Oro nota como a IURD se apropria de noções do catolicismo e mesmo de seu calendário e, assim, “Também reconhece o dia de São Cosme e São Damião, ocasião que costuma oferecer ‘balas ungidas’ para as crianças que vão aos cultos” (ORO, 2007, p. 35), reconhecendo, seguindo Birman (2001, p. 60) que a forma que a IURD tem de operar é católica. Já Vagner Gonçalves da Silva (2007, p. 242-243) vai relacionar três calendários litúrgicos, o do catolicismo, das religiões afro-brasileira e o do neopentecostalismo de tipo iurdiano, ficando claro como este último é dependente e “segue” o das religiões afro-brasileiras, como se só fosse feito em razão daquele.
O tema na verdade é antigo no Cristianismo. O apóstolo Paulo discute na primeira carta35 que escreveu a igreja de Corinto (cap. 8-10) as implicações de comer carne sacrificada a ídolos. Esta era uma questão bem complexa, uma vez que os cristãos do mundo greco-romano sempre corriam o risco de comer carne sacrificada aos outros deuses. O sacrifício de animais e consumo de suas carnes fazia parte dos rituais religiosos pagãos da época.
Mas a questão é mesmo anterior ao Cristianismo. Os judeus têm várias restrições alimentares, entre elas a de comer coisas sacrificadas a deuses estranhos. A Torá36 afirma: “para que não faças aliança com os moradores da terra; não suceda que, em se prostituindo eles com os deuses e lhes sacrificando, alguém te convide, e comas dos seus sacrifícios” (Ex 34.15). Daniel, o profeta, por exemplo, com seus três companheiros, recusara-se a comer das iguarias do rei Nabucodonosor e beber de seu vinho, para não se contaminar com eles (Dn 1.8).
Para William Barclay a raiz do problema que Paulo discute é que boa parte do mundo antigo cria que os demônios estavam sempre procurando uma brecha para entrar37 no homem e destruir suas vidas (LOPES, 2001, p. 215). É esse o pensamento expresso pela IURD. Para eles os demônios podem alojasse na comida como em qualquer objeto. É por isso que em muitas de suas reuniões eles distribuem ‘óleo consagrado’, é para que a pessoa ao passar o óleo sobre o objeto o demônio seja desinstalado dali. Na Folha Universal de 24/09/1995 lemos este alerta:
Atenção, pais! No dia 27 muitas crianças serão atraídas e enganadas pelos supostos ‘santos’ conhecidos como cosme e damião (sic), em busca de doces que foram oferecidos aos demônios. Por isso durante esta semana em toda Igreja Universal será realizada a unção de proteção com a finalidade de quebrar a maldição deste dia. Pais, procurem levar seus filhos a Igreja Universal para que Jesus as abençoe.
No seu livro mais polêmico, o best-seller Orixás, Caboclos e Guias, Macedo se refere aos erês e aos espíritos de crianças: “Dizem ser exus, erês, espíritos de crianças, médicos famosos, poetas famosos etc., mas na verdade são anjos decaídos, na diabólica missão de afastar o homem de Deus e destruí-lo, sendo que, enquanto não fazem isso, se aproveitam dele” (MACEDO, 2006, p. 25, grifos nossos). Mais à frente, Macedo explica que
Quando os primeiros escravos chegaram ao Brasil, trouxeram com eles as seitas animistas e fetichistas que permeavam seus países de origem na África. (...) Para evitar atritos com a Igreja Católica, os escravos que praticavam a macumba, inspirados pelas próprias entidades demoníacas, passaram a relacionar os nomes dos seus deuses ou, para ficar mais claro, demônios, com os santos da Igreja Católica. (...) Daí, os nomes dos demônios estarem associados a santos, que na realidade nada têm a ver com eles. [Aliás] O que a maioria dos espíritas não sabe é que uma entidade pode se apresentar de diversas maneiras e usar os mais diversos nomes (MACEDO, 2006, p. 44, 45).
Assim, seguindo o pensamento de Macedo, Cosme e Damião, na verdade, são erês, mas, por sua vez, os erês, na verdade, são demônios, como numa espécie de jogo em que se coloca máscara sobre máscara. Mas não somente isso, cada demônio, segundo se prega na Igreja Universal, tem preferência por uma área ou modo de atuação, e “Na Igreja Católica, tal fenômeno é igualmente curioso, já que os santos católicos têm seus nomes também ligados às ações que lhes atribuem” (MACEDO, 2006, p. 47). Lembra Ronaldo de Almeida, em seu artigo A Guerra das Possessões, que
segundo os pregadores [da IURD], a Pombagira, por representar uma prostituta e por levar as pessoas ao homossexualismo, é a causadora da Aids; o Preto-Velho, por andar curvo causa as dores de coluna; o Exu Tranca-Rua gera miséria; os erês atingem fisicamente as crianças; o Exu da Morte, por sua vez, motiva o suicídio (ALMEIDA, 2003, p. 339, 340, grifo nosso).
Clara Mafra (1999) notara que, nas reuniões da IURD, “as lideranças orientam que os fieis mudem hábitos que contrastam com a prática rotineira na sua cultura local (...) No Rio de Janeiro, soube de orientações contra a distribuição de guloseimas no dia de Cosme e Damião”. Porém, ao oferecer, em contrapartida, seus “doces ungidos”, ou seja, reelaborando elementos de outras religiões, Bonfatti (1999) acredita que a IURD minimiza possíveis traumas decorrentes de uma ruptura:
Não existe uma inauguração de um novo sistema simbólico, mas sim um re-arranjo, e uma re-significação de elementos já re-conhecidos pelos fieis dentro do campo religioso brasileiro. O que nos remete novamente a uma vivência de sensação de totalidade e não uma construção, mas de re-construção de sentido muito grande (BONFATTI, 1999).
Pelo que vimos, há três identificações que foram feitas de Cosme e Damião: a primeira é a do catolicismo que os identifica como santos; a segunda, a do Candomblé e a da Umbanda que assimilam esses personagens e os reinterpreta a partir de suas próprias tradições; a terceira é a visão evangélica que reinterpreta as demais também conforme a própria tradição, ou seja, a tradição cristã, vendo-os como espíritos maus, demônios. A recusa evangélica considera a celebração católica como idolatria, “adoração de santos” e a celebração afro-brasileira é considerada como “invocação de espíritos”, “coisa do diabo”.
De fato, membros da IURD temem que as crianças fiquem endemoninhadas por comer o doce, então, para evitar isso, a IURD distribui balas abençoadas. Trata-se, portanto, de um contra-feitiço. Não é que a bala abençoada tenha um poder mágico em si, mas é um ponto de contato (cf. GOMES, 2009, p. 178), ou seja, é uma espécie de porta para ativação da fé.
Isso por ser a IURD, como boa parte das igrejas neopentecostais, marcada pela ideia de batalha espiritual. “Batalha Espiritual” é um movimento surgido dentro das fileiras de igrejas evangélicas, cuja ênfase maior está na luta da Igreja de Cristo contra Satanás e seus demônios, conflito de natureza espiritual quanto aos métodos, armas, estratégias e objetivos (cf. LOPES, 2001, p. 9). Essa batalha é empreendida, como mostrou Lucas Leite (2010), em sua dissertação de mestrado em Ciências da Religião, pela magia e contrafeitiços.
Para Marcel Mauss, a magia é “por definição, objeto de crença” (MAUSS, 2003, p. 126). Mauss, falando em crença, referia-se à “adesão do homem inteiro a uma idéia e, por conseguinte, estado de sentimento e ato de vontade, ao mesmo tempo que o fenômeno de ideação” (MAUSS, 2003, p. 132-133). A diferença entre magia e religião está na relação que cada uma estabelece com o mundo: “Desta forma, a magia não estabelece a relação com o mundo sobrenatural no sentido da adoração e veneração, mas, sim, visando à coação e ao controle desses poderes para a realização das vontades do executor da prática“ (LEITE, 2010, p. 19, grifo nosso).
Para Mauss, a magia possui uma lógica de funcionamento, ele denominou essa lógica de “leis da magia”, a saber: a lei da contiguidade, da similaridade e de contraste. No caso, o contra-feitiço operado pela IURD, obedece à lei da similaridade: o semelhante é usado para expelir o semelhante. Uma das características da magia é a acumulação (quanto mais, melhor!): juntam-se elementos de tradições diferentes e torna-se deste modo o feitiço mais poderoso.
A IURD segue o critério da acumulação trazendo para seus rituais um elemento que tanto faz parte do catolicismo popular como dos cultos afro-brasileiros. Mas o faz com um sentido negativo: demoniza essas tradições e se coloca como detentora exclusiva de uma tecnologia capaz de resolver os males supostamente provenientes dessas religiões. Assim, a magia aparece como elemento central dessa igreja, pois como a mecânica e medicina, a magia é também uma arte que manipula os elementos naturais com objetivos bem pragmáticos.
A distribuição de doces temos visto ter ficado cada vez mais restrita a periferia das cidades. Assim discursos católicos que buscam esclarecer os católicos sobre as “superstições” ou o discurso iurdiano de demonização visam a arregimentação ou manutenção fieis do mesmo extrato social (SILVA, 2007, p. 10). Em Salvador, a poucos metros da Igreja Matriz de Cosme e Damião, há, também na Estrada da Liberdade, um templo da Igreja Universal, e há vários pequenos terreiros de santo espalhados pelas ruas e vielas do Bairro da Liberdade, não só o mais negro do Brasil, mas também o mais negro fora da África. É nesse bairro que os diferentes atores sócio-religiosos buscam relevância. O fato de ser um bairro negro e de Salvador ser considerada a capital do Candomblé (ou da “macumbaria”, como é considerada pelos neopentecostais (SILVA, 2007, p. 12)) no país faz com que tanto a prática católica quanto a afro em relação a Cosme e Damião tenham visibilidade e relevância praticamente idênticas, muitas vezes se interpenetrando.
A escolha da IURD em atacar prioritariamente as práticas das religiões de matriz africana deve-se, a nosso ver, não só ao fato de atacar de que “quando os ataques da Iurd se dirigem diretamente aos símbolos de uma religião majoritária e hegemônica, como o catolicismo, sua eficácia é reduzida” (SILVA, 2007, p. 18), e que adeptos afrobrasileiros não se mobilizam eficientemente para reagir, mas também a própria experiência de vida do fundador da igreja, Edir Macedo, que teve passagem pela Umbanda.
Já em Igarassu a presença dos santos gêmeos está ligada a “mitos de origem”, inclusive acontecendo o aniversário da cidade no mesmo dia em que ocorre a celebração dos santos. A festa é tanto profana quanto religiosa. Nesse cenário a devoção católica ganha maior visibilidade. Não se é distribuído o caruru, como na Bahia, mas apenas o doce, e, algumas vezes, é feito um bolo com a figura dos santos mártires. Nesses dois cenários diferentes, a IURD está presente atuando praticamente da mesma forma, mantendo o mesmo discurso demonizador, que nos parece estar ligado a ideia de espíritos territoriais: cada território, seja uma cidade ou um bairro ou mesmo um país, estaria sobre o poder de um demônio específico. Pensando assim, a IURD sempre endossará seu discurso contra um elemento da cultura do lugar em que ela se instala, escolhendo-o observando que seja de certa relevância para aquele meio social.
Temos percebido e sustentamos que debruçar-se sobre o doce de Cosme e Damião nos permite trabalhar com os principais personagens formadores da matriz religiosa brasileira (BITTENCOURT FILHO, 2003): Catolicismo, Religiões de Matriz Africana, Evangélicos e Protestantes. Para Bittencourt Filho (2003, p. 44), “o sucesso de uma proposta no campo religioso brasileiro seria proporcional ao seu comprometimento, explícito ou implícito, com a Matriz Religiosa Brasileira”. Assim, ao fazerem diferentes interpretações do mesmo objeto, esses personagens do campo religioso se comprometem diferentemente e em diferentes graus com a matriz, o que gera tensões.
“Bala e cocada
Faltou trazer pra mais um
Trouxe pra cosme e damião
Esqueceu de trazer pra doum” (sic)
Considerado como um terceiro irmão mais novo. Para Doum se
canta:
“Cosme e Damião,
Damião cadê Doun?
Doun foi passear lá no cavalo de Ogum
Cosme e Damião,
Damião cadê Doun?
Doun foi passear lá no cavalo de Ogum
Dois dois sereias do mar
Dois dois mamãe Iemanjá
Dois dois sereias do mar
Dois dois mamãe Iemanjá” (sic)
Ver as letras completas em: http://letras.mus.br/estilo-moleque/868727/ e http://letras.mus.br/umbanda/1378430/
“Ê Cosme, ê Cosme
Damião mandou chamar
Que viesse nas carreiras
Para brincar com Iemanjá
Cosme e Damião
Vem comer seu caruru
Cosme e Damião
Vem que tem caruru pra tu”
Ver letra completa em: http://letras.mus.br/mariene-de-castro/633160/
Readmore:
http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=loadVerbete&palavra=maba%E7a#ixz z24f5Trhmp
Readmore:
“Cosme e Damião, ÔOOOh Doun
Crispim, Crispiniano São os filhos
de Ogum Cosme e Damião, ÔOOOh
Doun Crispim, Crispiniano
São os filhos de Ogum” (sic)
Ver letra completa em: http://letras.mus.br/umbanda/1378431/
“eu não posso, porque eu tenho que obedecer...
não posso não ( Não posso não !!!)
a minha mãe é crente, não deixa eu pegar doce
de Cosme e Damião !!! (Cosme e Damião.....)
(...)
Uma vez ela me pegou, na frente do centro de
macumba
apanhei na frente da galera, tomei chinelada na
minha
bunda
depois fui p/ casa envergonhado, olha só que
decepção
fiquei de castigo lá em casa .. no dia de cosme e
Damião” (sic)
Ver letra completa em: http://letras.mus.br/a-kombi-que-pega-criancas/1006388/#selecoes/1129788/