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A DESPEDIDA ANUNCIADA: EMOÇÕES E ESPIRITUALIDADE ENTRE FAMILIARES DAS VÍTIMAS DA BOATE KISS

Priscila dos Santos Peixoto
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Zulmira Newlands Borges
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Monalisa Dias de Siqueira
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil

A DESPEDIDA ANUNCIADA: EMOÇÕES E ESPIRITUALIDADE ENTRE FAMILIARES DAS VÍTIMAS DA BOATE KISS

Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 18, núm. 24, pp. 71-89, 2016

Universidade Estadual de Campinas

Resumo: O incêndio na Boate Kiss, ocorrido em 27 de janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria-RS, vitimou 242 jovens e deixou mais de 600 feridos. Este artigo faz parte de uma pesquisa etnográfica, na qual foram acompanhados os diferentes modos de organização dos familiares das vítimas fatais. Observou-se a formação de redes múltiplas e complexas e, através de uma metodologia de análise de redes, pôde-se identificar a formação de uma rede de apoio que se dividiu em duas subredes: a de justiça e a de solidariedade, baseadas nas ações e expectativas dos integrantes. O contexto de formação dos movimentos de familiares foi cercado de tensões e disputas, e a espiritualidade foi o elo que promoveu a dinâmica da rede de apoio. Assim, analisando o luto e seus desdobramentos, o artigo trata de alguns elementos sobre a espiritualidade como construções simbólicas coletivas de explicação da ‘tragédia de Santa Maria’.

Palavras-chave: Rede de apoio, Espiritualidade, Tragédia de Santa Maria.

Abstract: The fire at Boate Kiss occurred on January 27th, 2013, in the city of Santa Maria-RS, victimized 242 youths and left more than 600 injured. This article is part of an ethnographic research, which were followed different modes of organization of the victims’ families. We observed the formation of multiple, complex networks and, through a network analysis methodology, it was possible to identify the formation of a supportive network that was divided into two subnets: of justice and solidarity, based on actions and expectations of members. The formation context of family movements was surrounded by tensions and disputes, and spirituality was the link that promoted the dynamics of the supportive network. Thus, analyzing mourning and its consequences, the article deals with some elements of spirituality and collective symbolic constructions of explanation of the 'tragedy of Santa Maria'.

Keywords: Supportive network, Spirituality, Tragedy of Santa Maria.

INTRODUÇÃO

O dia 27 de janeiro de 2013 ficou marcado na história da cidade de Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, como o dia de uma tragédia de repercussão internacional: o incêndio na Boate Kiss, que levou à morte de 242 jovens com idades entre 18 e 30 anos e deixou mais de 600 sobreviventes1.

O incêndio provocado pelo uso irregular de um material pirotécnico no interior da boate propagou-se nas espumas de isolamento acústico que revestiam o teto da boate. Essas espumas, em contato com o fogo, passaram a liberar uma fumaça tóxica, contendo cianeto e outros gases tóxicos, ocasionando as mortes, segundo os laudos médicos que constam nos atestados de óbitos e também ratificados pelo inquérito policial.

A cidade de Santa Maria, em linhas gerais, é caracterizada como um polo educacional pela presença de diferentes instituições de ensino, entre elas a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Por isso, recebe anualmente um grande número de jovens que passam a residir na cidade. Essa característica de cidade universitária mobiliza a economia local, o setor imobiliário e incentiva a criação de estabelecimentos de convivência jovem, como bares, casas noturnas e lanchonetes.

A festa na Boate Kiss do dia 26 de janeiro foi uma iniciativa organizada por estudantes universitários para arrecadar fundos para uma formatura. Das 242 vítimas fatais, 101 eram estudantes da UFSM, contudo a maioria das famílias das vítimas é oriunda de diversos municípios do Rio Grande do Sul, além dos estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Pará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e uma família do país vizinho Paraguai. Após a tragédia, nos primeiros sete dias subsequentes, um grupo de familiares começou a articular a formação de uma associação de familiares com o objetivo de reunir as famílias das vítimas da tragédia.

Nos primeiros seis meses após o incêndio da Boate Kiss, os familiares residentes em Santa Maria organizaram-se em cinco organizações distintas, com objetivos variados. Quatro dessas organizações, que serão descritas a seguir, foram acompanhadas durante a pesquisa etnográfica. A formação e o trabalho das distintas iniciativas que atuam sistematicamente nessas organizações em Santa Maria ocasionou momentos de concorrência, negociações e até atos unificados entre os movimentos. É difícil estabelecer delimitações entre os movimentos, pois as 30 famílias que atuam nessas organizações estão em constante interação. Sendo assim, para estudar a complexidades das relações entre essas redes foi necessário utilizar a abordagem de estudos de redes sociais de Barnes (2010).

A primeira inciativa de organização de familiares veio com a criação da Associação dos Pais e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), fundada em 23 de fevereiro de 2013 e considerada a organização oficial dos familiares, reunindo cerca de 1.800 associados entre familiares das vítimas e sobreviventes. A atuação dessa entidade é voltada para o apoio aos familiares das vítimas e sobreviventes tanto nos aspectos de atendimento à saúde quanto de assistência social às famílias carentes. Liderada por pais e simpatizantes, a associação foi alvo de críticas por parte de familiares que esperavam uma ação mais enérgica na luta por justiça, que foi o fator que levou ao surgimento de outras formas de organização.

O segundo movimento, Santa Maria do “Luto à Luta”, surgiu concomitantemente à criação da AVTSM. Auto intitula-se um movimento social e foi organizado por familiares e amigos de três vítimas, uma vez que a AVTSM não permitia a livre associação no primeiro estatuto ou a participação em cargos de direção para outros familiares que não fossem pai ou mãe de vítimas. Passados três anos da tragédia, esse movimento reúne cerca de 20 famílias de vítimas fatais, sobreviventes e simpatizantes que atuam sistematicamente em protestos clamando por justiça. A liderança inicial desse movimento era de uma prima de vítima fatal e sua família. No decorrer dos meses após a tragédia, uma mãe e um pai assumiram em conjunto a liderança, permanecendo até o presente momento.

O terceiro movimento, a organização não governamental Para Sempre Cinderelas, foi criada com o intuito de tentar amenizar a dor da perda através do trabalho social, prestando apoio a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Foi criada em homenagem a cinco vítimas fatais, amigas que faleceram juntas na boate e que em vida faziam um trabalho voluntário em creches carentes do município. A criação da ONG visava a reunir as cinco mães, aproximando as famílias.

O quarto movimento, Mães de Janeiro, foi criado pelas mães que atuam na ONG, na AVTSM e no Movimento Santa Maria do “Luto à Luta”, com o objetivo de atuar diretamente nos protestos relacionados ao Ministério Público, na luta por justiça. Essas mães acreditam que sua condição de mães legitima o movimento, pois as outras organizações que são lideradas por pais, segundo elas, são constantemente manipuladas por promotores, advogados e agentes públicos que tentam negociar a ação dos familiares em Santa Maria.

Embora esses movimentos tenham sido ligeiramente descritos acima, apontando seu foco de atuação e suas lideranças, na prática é difícil estabelecer os limites entre eles. Durante os protestos, homenagens e demais atos promovidos pelos familiares, essas organizações atuam juntas e os mesmos familiares participam de duas ou três organizações ao mesmo tempo.

O ponto de encontro desses familiares e das diferentes organizações é a vigília2, espaço localizado na praça principal da cidade (a Praça Saldanha Marinho), onde ocorre o momento de interação das organizações, mas principalmente dos familiares. Foi o convívio sistemático nesta Vigília que aproximou as famílias, estabelecendo vínculos e novas redes de apoio mútuo.

Mais do que um local para a memória da tragédia, para homenagear as vítimas, a Vigília tem um papel especial para o processo de luto dos familiares que ali frequentam. Amplamente discutida por Mauro Koury (2003), a experiência do luto vai depender da relação que se tem com a morte. Segundo Philippe Ariès (2010), a sociedade ocidental sofreu, ao longo dos séculos, um processo de distanciamento da morte; da mesma forma, é socialmente esperado que alguém viva a experiência do luto na privacidade de suas emoções, evitando contaminar os demais com a tristeza, a dor e a morte.

O caso da Tragédia de Santa Maria rompe com a lógica desse luto privado. Ao se tratar de um evento com mortes coletivas, houve uma comoção muito grande na cidade nos primeiros meses, mas paulatinamente os familiares sentiram um distanciamento da população, inclusive dentro da própria família, o que segundo eles justifica a necessidade de convívio com os demais familiares da tragédia. A Vigília é o momento de reunião, no qual podem falar dos filhos sem ser recriminados, manifestando emoções com aceitação e compreensão.

Contudo esse grupo de convívio efetivo, que reúne familiares de 30 vítimas, é heterogêneo, variando seus posicionamentos políticos, tendências religiosas, formação escolar, profissão e idade. Essas diferenças influenciam tanto na experiência do luto como na forma que compreendem a morte e a tragédia, e ainda na ação dos familiares em busca de justiça e memória.

Da mesma forma, neste espaço de convívio as concepções de maternidade e paternidade dos familiares direcionam suas ações em caráter motivacional, para viver além da perda e dar um novo sentido à vida. Pessoas que até então viviam no anonimato passam a ser reconhecidos como o pai de Fulano e a mãe de Fulana. A identificação é feita pelo uso de camisetas com fotografias, bótons, banners, gerando visibilidade social e politização.

Para a compreensão da dinâmica de interação do que foi chamado rede de apoio, houve a colaboração de uma informante-chave, que direcionou sua presença em diferentes momentos de criação e atuação dos movimentos citados. Este artigo tratará sobre a dinâmica da rede e os seus resultados que dizem respeito à espiritualidade.

A REDE DE APOIO

Através da formação das diferentes iniciativas de organização, famílias de 30 vítimas fatais passaram a conviver sistematicamente. Principalmente em virtude da organização da Tenda Vigília, na qual a cada dia reuniam-se para homenagear uma das vítimas, formou-se uma rede de apoio e solidariedade entre s famílias, por compartilharem uma dor comum do sofrimento pela perda dos filhos. A inserção em campo se deu através de Mary – parente, mas não genitora –, a qual, devido à sua posição como familiar de vítima fatal e sua liderança em diferentes intervenções político-sociais, facilitou a convivência com diferentes grupos de familiares. Por isso, Mary passou atuar como informante-chave e colaboradora de pesquisa.

A relação estabelecida entre Mary e a pesquisadora foi semelhante à experiência de Foote-Whyte (1990), quando em seu trabalho de campo teve um “informante chave e protetor”, conhecido como Doc, que passou a ser um “colaborador de pesquisa”. Além de contribuir com as discussões, Doc fazia relatos sobre os momentos aos quais Foote-Whyte não estava presente. Da mesma forma, Mary foi companhia constante na experiência de campo e em longas conversas e discussões sobre o modo como as redes se organizavam.

Assim, tendo Mary como ponto de partida, a organização dos familiares e suas interações passaram a ser identificadas como constituindo uma rede de apoio. Nesta rede, os familiares estabeleceram uma convivência sistemática, baseada na orientação de cada tipo de organização. Com isso, pode-se estabelecer que a rede de apoio se subdividia em duas subredes: uma de solidariedade, composta por familiares que se dedicavam às atividades de apoio social, agrega os movimentos Para Sempre Cinderelas, AVTSM e Mães de Janeiro. A outra subrede caracterizou-se pela luta por justiça, com a integração dos grupos Santa Maria “do Luto à Luta”, Mães de Janeiro, alguns membros da AVTSM e da ONG Para Sempre Cinderelas.

Optamos por trabalhar com a metodologia de redes sociais seguindo a perspectiva proposta por Barnes (2010). O autor traz a ideia de redes como sendo um conjunto de relações interpessoais que vincula indivíduos, formando grupos a partir de alguma conexão preexistente. Além disso, Barnes propõe o conceito como um instrumento de análise para determinados processos sociais e suas conexões. Para o autor, o conceito de “rede social” contribui para a análise antropológica, por se adaptar a situações de grupos em formação e também a contextos em que os indivíduos rede são continuamente requisitados para assumir uma posição de liderança.

Nesse sentido, justifica-se analisar as diferentes iniciativas de organização dos familiares, partindo da perspectiva de Barnes (2010), por se tratar de um grupo que se formou em decorrência de uma conexão preexistente, no caso a Tragédia de Santa Maria. Tal escolha metodológica possibilitou tomar como foco principal de observação as constantes interações e mobilidades das pessoas dentro das redes, incluindo momentos de divergências e convergências e as (re)articulações entre os integrantes.

Barnes (2010) desenvolve dois conceitos fundamentais para trabalhar com redes: a “rede social total” e as “redes parciais”. A “rede social total” é a de maior interação e mobilidade dos sujeitos, que consegue absorver a maior parte de informações sobre a totalidade da vida social da comunidade estudada. As “redes parciais” são extratos que ajudam a compor a rede total.

Ao analisar o contexto das redes formadas a partir da tragédia, observou-se que os grupos de familiares, apesar de suas diferentes lideranças, passaram a interagir sistematicamente devido aos encontros proporcionados pela Vigília. Essas interações aconteciam com base em algumas motivações, em especial a busca de algo que vai além das orientações formais dos grupos organizados. Os familiares procuravam um espaço de compreensão e aceitação do sentimento de luto, onde as lembranças dos filhos pudessem ser compartilhadas, com convivência e manifestação das emoções; sobretudo, buscavam apoio mútuo. Assim, tendo em vista a divisão conceitual de Barnes, passamos a denominar como rede de apoio essa rede mais complexa de familiares que tem como contexto de formação o espaço da Vigília.

A rede de apoio reúne, assim, pessoas de diferentes grupos que apresentam características bastante heterogêneas no que diz respeito aos marcadores sociais como escolaridade, gênero, religião e renda. Sendo assim, utilizamos como critério para delimitar os grupos as suas lideranças e o objetivo de atuação de cada um deles. Para esses grupos distintos, mas que estão conectados e fazem parte da rede de apoio, demos o nome de subredes.

Um aspecto importante da pesquisa foi determinar o elo que movimenta essas subredes e que estabelece a conexão com a rede de apoio. Compreendemos, no decorrer do trabalho de campo, que esse elo é a espiritualidade, ou seja, os diferentes discursos que visam ao conforto, à explicação e à orientação sobre a experiência da tragédia. Observamos que muitos discursos são movidos pela orientação religiosa, outros por superstições populares, por misticismos e também pelo senso comum. Entre eles estão sentimentos de presságios, interpretações de sonhos e de sinais do cotidiano que de certa forma estabelecem uma relação com aqueles que partiram. Esses relatos, que surgiram através da interação dos familiares na Vigília e das ações dos diferentes movimentos, formam as experiências coletivas de luto.

Essas interpretações só têm sentido dentro do contexto cultural da tragédia, mais especificamente dentro da rede de apoio. São essas trocas simbólicas que alimentam a rede e diferenciam os familiares que compartilham a experiência do luto de outros familiares que optaram por não fazer parte de organizações, ou não fazer parte ativamente, como esse grupo que interage. É dentro desse contexto que tais familiares potencializam, dramatizam e reforçam a dimensão macrossocial das emoções (Rezende; Coelho, 2010).

Sobre essa experiência coletiva do luto, Koury (2003) elucida com a sugestão de uma “nova sensibilidade”. Ao fazer um estudo no campo da Sociologia da Emoção, o autor aponta uma série de transformações culturais no Brasil a partir da década de 1980, levando a uma mudança de pensamento sobre o morrer. Até esse período, era comum a realização de velórios em casa e se tinha uma expectativa em relação à demonstração da dor dos familiares. Com a modernidade, houve certo “distanciamento” da morte, colocando o sofrimento e o luto na ordem privada, passando os velórios gradativamente a serem realizados em capelas funerárias. Nas palavras do autor:

O distanciamento em relação ao morto e aos que o perdem parece ser a característica principal da nova sensibilidade que começa a tomar forma, mais e mais nítida, na sociedade brasileira urbana dos últimos anos. A manifestação pública do sofrimento individual tende a tornar-se estranha ao cotidiano do homem comum, de classe média, embora este conviva ainda com a indignação por esse estranhamento. (Koury, 2003, p. 21)

O que caracteriza esse distanciamento é justamente a ampliação da expectativa de vida, que adia a morte e ganha suporte no discurso médico de vida saudável e duradoura. Com isso, tudo o que se relaciona a morte e luto é visto com receio de contaminação; para aqueles que perdem alguém se espera discrição, para “salvaguardar-se, evitando assim que sua perda contamine os outros com a presença da morte” (Koury, 2003, p. 23).

Dessa forma, com o distanciamento social, os familiares priorizam suas relações na rede apoio, como forma de encontrar respaldo para seus sofrimentos, compartilhar suas lembranças sem sentir constrangimento de falar dos que partiram. É nesse contexto de trocas de experiências que surgiram diferentes simbolismos, baseados nos comportamentos dos filhos antes da tragédia e em suas experiências pessoais antes e depois do episódio.

A Vigília, além de ser um espaço de homenagens e interação dos familiares, é local de disputa pela memória dos filhos que morreram. Assim, existe um esforço pela lembrança dos filhos, que se evidencia no uso constante de camisetas com fotos, banners, bótons, que contribuem tanto para a lembrança dos que partiram quanto para a identificação dos familiares que compõem o grupo de pais e mães das vítimas. Com isso, os informantes da pesquisa solicitaram a divulgação do nome dos filhos, como parte deste processo de preservação da memória. Assim, ao longo deste artigo serão apresentados discursos de familiares identificados como pai, mãe, irmã de alguma vítima fatal. Apesar de a ética de pesquisa recomendar a preservação do anonimato, neste caso a visibilidade e o não esquecimento são elementos fundamentais em todos os movimentos, tornando-se condição para a execução da pesquisa que os nomes dos jovens mortos na tragédia fossem visibilizados. Neste trabalho, optamos por honrar os acordos feitos no campo e manter os nomes verdadeiros dos jovens que perderam suas vidas na tragédia.

A figura a seguir mostra a interação desses familiares compondo as sub redes.

A Rede de Apoio
Figura 1
A Rede de Apoio

A figura busca evidenciar a rede de apoio, mostrando os diferentes grupos de familiares, informantes da pesquisa, que interagem visando, em um primeiro critério de delimitação, à justiça; ou seja, trabalham coletivamente organizando atos públicos para pressionar as instituições no andamento do processo judicial, da mesma forma que almejam estabelecer empatia com a população. O segundo critério de delimitação foi a motivação por ações de solidariedade, apoio social a pessoas carentes da cidade, campanhas de arrecadação de alimentos, roupas e material de higiene pessoal que são doados aos familiares das vítimas e sobreviventes que vivem em situação de vulnerabilidade social e para instituições de apoio a crianças e idosos. Com isso, estabeleceu-se uma subrede de solidariedade que reúne também familiares dos diferentes movimentos, porém alguns não participam das ações na busca por Justiça. O fator de aproximação das duas subredes e da dinâmica da rede de apoio é a espiritualidade.

É nesse contexto de convívio na Vigília, em protestos e ações sociais que os familiares elaboraram diferentes explicações para a perda dos filhos, além de fazerem interpretações sobre sinais de comunicação. A seguir, serão apontados discursos de familiares que juntos acabaram compondo diferentes abordagens. Essa rede de apoio é o panorama geral das relações entre os familiares; já as subredes de justiça e de solidariedade formam o contexto em que se manifestaram interpretações espirituais, sentimentos e emoções, dando vida ao elo que a espiritualidade representa, sendo o recorte deste artigo.

Ao longo desses 18 meses de pesquisa etnográfica com uso constante do diário de campo, também foram realizadas inúmeras entrevistas abertas semiestruturadas. Com relação às entrevistas, algumas mais formais e mais longas foram realizadas com 15 pessoas, sendo um voluntário que atuou no dia 27 de janeiro, nove mães, três pais, uma prima e uma irmã de vítima, totalizando 12 vítimas e 11 famílias (havia duas vítimas em uma família). No grupo de informantes havia dois casais. Com um dos casais, a entrevista foi realizada individualmente e, com o outro, marido e esposa falaram juntos. As entrevistas variavam entre meia hora e três horas, dependendo da necessidade de falar e das condições emocionais dos familiares no momento3.

O grupo de informantes é heterogêneo em termos de idade, escolaridade, religiosidade e profissão. As idades variam entre 24 e 65 anos. Em termos de escolaridade, havia apenas um informante com Ensino Fundamental; todos os outros tinham concluído o Ensino Médio e pelo menos oito chegaram a cursar o Nível Superior, sendo que cinco concluíram as suas graduações. Em termos de religião, a maioria se declarou católica, frequentando centros espíritas e umbandistas; oficialmente, apenas dois se declararam ateus. Já em relação à profissão, dois são servidores públicos de nível superior; quatro não exerciam função remunerada (donas de casa e estudantes); e quatro são prestadores de serviço (formais e informais), sendo um trabalhador com carteira assinada e um com empresa própria.

A ESPIRITUALIDADE EM QUESTÃO

Falar de espiritualidade não se trata necessariamente de abordar uma religião ou outra, mas um conjunto de crenças que orientam determinado grupo social. Durkheim (1996), ao estudar o fenômeno religioso, entende a religião como um sistema solidário de crenças comuns a uma comunidade. Além disso, vê a religião como o produto da consciência coletiva, trazendo ainda a noção de “sobrenatural”, como uma característica daquilo que é religioso, como um mistério, algo que foge de uma explicação científica.

Essa noção de “sobrenatural” é fundamental para pensarmos o sentido da espiritualidade, dentro do contexto das famílias das vítimas da tragédia ocorrida na Boate Kiss. Para diferenciar religião de espiritualidade, Silva (2008) coloca a religião como um conjunto de questões sagradas, exercidas no seio de uma instituição, ligadas às estruturas formais rígidas, dogmáticas e relacionadas às questões do além-morte. Em relação à espiritualidade, o autor coloca que ela estaria ligada a uma experiência subjetiva de busca pelo sagrado, tendo como características: a transcendência e a conexidade4.

A questão da espiritualidade, ligada às crenças do sobrenatural, é apresentada nos estudos de Damatta (1997), como uma especificidade brasileira da relação com os mortos e da crença na existência de fantasmas, almas, espíritos. Para os familiares, acreditar que existe um outro plano para os espíritos além-morte é também acreditar na possibilidade da comunicação entre os planos e, mais ainda, na comunicação entre os vivos e os mortos. Por isso, esse autor afirma:

Vivemos em um universo onde os vivos têm relações permanentes com os mortos e as almas voltam sistematicamente para pedir e ajudar, para dar lições de humildade cristã aos vivos, mostrando sua assustadora realidade. Na nossa sociedade, os espíritos retornam para assegurar a continuidade da vida mesmo depois da morte, e os fantasmas aparecem para revelar que nossa vida material é relativa e que há outra realidade permanente por trás de tudo o que julgamos saber. Aqui, os espectros estão também presos a promessas, bens materiais e emoções que só podem ser liberadas depois de serem devidamente descobertas e receberem as orações apropriadas. (Damatta, 1997, p. 146)

Essa relação com os mortos, de trocas e obrigações, descrita por Damatta (1997), é caracterizada pela variedade de credos no Brasil, que sincretizam elementos dos cultos africanos, indígenas, católicos, evangélicos e pentecostais. Contudo Arribas (2011), ao estudar a repercussão do espiritismo no Brasil, apresenta a discussão de diferentes autores sobre a forma de adaptação desse culto, que se dividia em correntes filosófica, científica e religiosa, sendo que a religiosa foi a vertente que mais prosperou em nosso país. A influência do espiritismo e das religiões afro-brasileiras seria determinantes para as ideias espiritualistas de vida após a morte estarem ainda tão presentes no imaginário brasileiro.

Segundo Marion Aubré e François Laplantine (2010), o espiritismo é uma religião que veio da França e entrou no Brasil tensionando o cenário religioso nacional, predominantemente católico, mas com importante presença das religiões de matriz africana. Para os autores, no espiritismo brasileiro se destacam alguns elementos que seriam: a religião cristã, o movimento terapêutico e o caráter familiar, seja por ter famílias espiritas, espíritos de familiares ou, ainda, a busca de comunicação entre vivos e seus entes queridos que partiram. A aceitação e crescente difusão do espiritismo no Brasil, no inicio do século XX, foi em parte favorecida pelos brasileiros que iam estudar na França e importavam a novidade, mas também, e especialmente, porque no cenário brasileiro as práticas mediúnicas já estavam socialmente disseminadas pelas religiões afro-brasileiras. O espiritismo brasileiro, segundo Stoll (1999), é uma composição original, pois incorpora na sua prática tanto elementos africanos quanto católicos, já que postula a santidade e a caridade como práticas fundamentais. O grande tema do espiritismo é de fato a comunicação entre vivos e mortos. Vale destacar que, por ter sido uma doutrina importada da França, através de Kardec, o seu criador, ela entra no Brasil por uma via escolarizada e a partir da leitura de obras espíritas. Desde seu início, o espiritismo brasileiro é composto por camadas médias escolarizadas. Também teve grande penetração nas camadas médias urbanas escolarizadas em função de seu discurso cientificista e por não se autodefinir como religião, mas como ciência. Isso persiste até hoje, pois no Censo de 2010 (IBGE) a população que se autodeclara espírita tem, proporcionalmente, os melhores indicadores de educação e renda, comparado com as demais religiões do país. Em relação aos entrevistados, identificamos que as crenças na possibilidade de comunicação com os mortos podem vir tanto do referencial espirita kardecista quanto das religiões afro, mas há um leve predomínio do referencial espiritualista, como um hibrido entre o kardecismo, a umbanda e o catolicismo.

Diante de um grupo de informantes heterogêneos em várias questões, foi compilado um conjunto de experiências relativas às questões que estamos denominando como campo da espiritualidade. Para pensar as diferentes interpretações dadas pelos familiares, foi possível estabelecer alguns temas mais recorrentes nas conversas em vigílias e reuniões coletivas que giravam em torno da ideia de premonições que antecederam a tragédia. Sendo assim, houve relatos de: 1) presságios relativos à personalidade dos filhos; 2) presságios sobre mudanças e/ou interpretação sobre o comportamento dos filhos e dos próprios familiares na semana que antecedeu a tragédia; 3) presságios proferidos por entidades/místicos (consulta em centros de umbanda, jogos de carta). Posteriormente, foi feita uma análise dos relatos dos familiares quando em contato com a morte dos seus filhos, seguida de diferentes formas de administrar a ausência física destes.

Presságios em relação à personalidade dos filhos

Esse tipo de manifestação foi caracterizado de duas formas: a) como jovens que tinham um sentimento de viver o presente, que não faziam planos para o futuro; b) sentimento de desapego dos filhos, tentativa de fazer os pais desapegar dos filhos.

Sobre as características da personalidade como o sentimento de viver o presente, segundo os relatos, os filhos tentavam aproveitar ao máximo as atividades cotidianas que lhes davam prazer. No total, seis familiares associaram a personalidade dos filhos como uma explicação para a morte abrupta. Dos seis familiares, citamos dois exemplos, uma irmã e uma mãe, como mostram os relatos abaixo:

[...] o meu irmão era muito agitado, não tinha mau tempo com ele e às vezes eu dizia: “Mano, por que tu não acalma um pouco?”, e ele dizia assim: “É que eu não tenho o mesmo tempo que vocês”, eu não entendia. E ele dizia assim: “Vocês vão ver, eu ainda vou morrer em festa, rodeado de mulher e vou estar feliz, eu não me vejo velho, eu vou fazer festa, que se eu morrer em festa, pode ter certeza que eu estou feliz”, e a gente não dava bola pra esse tipo de coisa, mas agora escutando. A mesma coisa o filho da nossa funcionária dizia “Mãe, tu não fica chateada, mas eu não vim pra criar raiz aqui”, e ela achava que era a questão de Santa Maria, de querer sair, hoje ela realmente entende que não, que ele realmente não veio criar raiz, parece que de alguma forma eles sabiam [...]. (entrevista, irmã de Silvinho, 2014)

[...] E ela não parava quieta, voava as tranças, era um entra e sai e sempre tinha coisa pra fazer, me lembro que a prima da Flávia falou que “parecia que elas tinham pressa pra fazer as coisas”, e agora a gente entende por que isso, hoje fica claro o porquê dessa pressa de viver, de correr, de fazer festa, de passear, de curtir a vida [...]. (entrevista, mãe de Gilmara, 2013)

Neste primeiro bloco de relatos dos familiares, frisamos que a primeira informante não participa ativamente das redes, mas, sim, sua mãe. Porém, mesmo não tendo uma relação direta com a rede, manifestou um discurso similar aos demais familiares. Isso ocorreu devido ao fato de os familiares terem o hábito de relembrar traços da personalidade dos filhos, pequenos eventos, situações que são compartilhadas na rede e podem ter influenciado esse contexto.

A influência desse convívio para a elaboração de explicações sobrenaturais pode ser percebida no discurso da mãe de Gilmara, quando ela afirma “agora a gente entende por que isso”. Quando ela se refere a “a gente”, não está falando apenas da sua família consanguínea, mas das conclusões tiradas a partir do compartilhamento de experiências na rede de familiares.

Sobre os presságios relativos a um sentimento de desapego dos filhos ou da tentativa de fazer os pais se desligarem dos filhos, temos os seguintes relatos:

[...] tem muitas coisas da minha filha que a gente foi entendendo o porquê. Ela era muito meiga, muito querida, mas ela não deixava as pessoas se apegar muito nela, não sei se já não era uma forma de evitar que as pessoas sofressem. Todo mundo queria bem ela, mas ela não deixava ficar um grude, exceto a amizade dela com as gurias. Então a gente acaba achando que aquilo era proposital, pelo relato feito pela mãe das meninas e de outros familiares, diz que aconteceram coisas parecidíssimas nas semanas antes de acontecer a tragédia e todas elas deixaram algum recado, falaram alguma coisa que na hora não fez sentido pra gente, mas que depois foi entendendo, talvez elas já sabiam que a missão delas já estava concluída, então só de saber que elas estão bem tu te conforma um pouco, mas quando começa a pensar que pelo menos aqui nesse plano tu nunca mais vai ver ela, isso te derruba [...]. (entrevista, pai de Andrielle, 2014)

[...] ela dizia: “Pai, tu precisa de alguém pra te ajudar”, e ela sempre me empurrava pra fazer as coisas. Só que nos últimos meses, de setembro pra cá, ela tinha uma velocidade enorme, pra fazer tudo rápido, tinha que ser tudo rápido era “pai, vamos lá”, “pai, não perde tempo, que depois tu não vai mais ter tempo pra nada” [...]. (entrevista, pai de Jenneffer, 2014)

Os relatos acima apontam para dois tipos de tentativas de desapego: no primeiro caso, o pai aponta como uma característica que sempre esteve presente na personalidade da filha, atribuindo esse certo distanciamento como uma forma de evitar um sofrimento futuro na família. A filha só demonstrava apego com as amigas que vieram a falecer com ela, como se fosse um indicativo de que algo estava premeditado. É importante a referência desse relato, pois enfoca justamente a importância da interação das redes, quando o pai diz que outros familiares relataram coisas “parecidíssimas” com eles, e que depois eles (os familiares) foram entendendo. Esse entender está dentro do contexto de construir simbolicamente e coletivamente as explicações.

O segundo caso acima, relacionado com desapego, tem relação com o trabalho. Como a filha trabalhava com o pai, seu discurso foi entendido como uma forma de prever que o pai iria assumir futuramente responsabilidades e por isso precisaria de alguém para ajudá-lo nos negócios, levando a crer que a filha não estaria por perto. A mudança na personalidade teria sido notada meses antes da tragédia.

Presságios sobre mudanças e/ou interpretação sobre o comportamento dos filhos e dos próprios familiares na semana que antecedeu a tragédia

Com relação aos presságios referentes a mudanças de comportamentos, temos os seguintes elementos: a) mudança de comportamento dos pais; b) mudança de comportamento dos filhos; c) sonhos premonitórios dos filhos ou pressentimentos maternos.

Sobre os presságios relacionados a mudanças de comportamentos dos pais, notou-se que esse tipo de presságio foi interpretado como mudanças repentinas no comportamento, como dizer adeus na porta ou cozinhar para os filhos, como mostram os relatos abaixo.

[...] então foi uma semana que a gente teve muito contato, eu cozinhei naquela semana, coisa que eu não faço [...]. (entrevista, mãe de Thanise, 2013)

[...] naquele dia eu perguntei o que ele queria de almoço e ele disse que queria só dois ovos fritos e eu disse que ia ensinar ele a fazer no micro e ele disse já tinha feito e não tinha gostado. Aí, fui pra cozinha e me entusiasmei, acabei fazendo a comida que ele mais gostava: arroz, bife e batata frita. Quando ele veio almoçar, que eu disse que sabia que ele queria ir lá na Kiss e ele sabia o que eu pensava de lá [...], (entrevista, mãe de Augusto N., 2014)

[...] na noite do dia 26 ele chegou em casa e disse que ia fazer umas pizzas em casa, que os guris iam passar lá e pediu pra eu fazer a massa pra ele e eu disse que não ia fazer, que já tinha tomado banho e estava na hora da minha novela e ensinei ele a fazer a massa, aí, lá pelas tantas eu pensei “mas que tipo de mãe eu sou, que não posso fazer uma massa de pizza pro filho?” Aí eu levantei e fui lá ajudar ele... e na segunda-feira quando chegamos do enterro, foi justamente as pizzas que sobraram feitas por ele que comemos [...]. (entrevista, mãe de Lucas, 2014)

Os relatos das mães mostram a mudança em seu próprio comportamento na semana e no dia da tragédia, como seus últimos momentos aproveitados perto dos filhos. O ato de cozinhar para os filhos e com os filhos foi compreendido como a oportunidade de vivenciar uma despedida alegre.

Nessa variável, encontram-se aspectos relativos aos pressentimentos das vítimas, dores no corpo, sentimentos de angústia, mudança de hábitos, entre outros, que serão listados abaixo.

[...] parecia que a espiritualidade já estava preparando ela, pois ela já não estava mais rendendo, estava cansada, a faculdade não estava mais rendendo o que ela queria, estava desgostosa com algumas coisas, reclamava de uma dor de barriga, uma ansiedade, ela dizia: “Mãe, acho que eu não ando bem” [...]. (entrevista, mãe de Mirela e José Manuel, 2014)

[...] no aniversário dela e ela me deu o primeiro pedaço do bolo, ela nunca tinha me dado o primeiro pedaço do bolo, sempre era o primeiro pra vó dela, o segundo pra mãe dela e o terceiro pra mim, depois que a vó morreu era o primeiro pra tia Fani e depois pra mana, no ano de 2013 ela cortou a fatia na metade e deu pra tia Fani e pra mim, aí eu fui dar pra Lisa e ela disse “não, eu quero dar pra ti”. Isso são coisas que tu fica pensado, será que ela já sabia? O que ela quis dizer com isso? Por que ela não quis deixar eu ir na Kiss? Por que ela bateu o pé pra eu não ir, foi impressionante, ela dizia “se tu for eu vou ficar de mal contigo” e aquilo permaneceu a sexta-feira inteira [...]. (entrevista, Mary, 2013)

Os relatos acima abordam as interpretações de presságios das vítimas. Os relatos mostram um sentimento de angústia, de ansiedade, de deixar as coisas organizadas, de não estar satisfeita com suas atividades. Por fim, uma ação inesperada de entregar o primeiro pedaço do bolo de aniversário para a prima foi interpretada como uma forma de transmitir uma mensagem de adeus.

Sobre os presságios por sonhos ou pressentimentos maternos, notamos que derivam de sentimentos compartilhados por familiares e vítimas.

[...] Um dia ele me gritou: “Véia, vem cá, eu quero te contar um sonho”. Cheguei no quarto e pedi o que tinha acontecido e ele disse, “Tive um sonho sinistro, tinha um ônibus e eu não sabia onde ele estava, era um lugar estranho, cheio de pessoas, eu estava lá parado e tinha um homem na porta e ele fazia assim pra mim, vem, e ele me dizia, vem que está na tua hora e eu dizia, eu não vou, não posso ir agora, olha lá a minha mãe chorando, não posso deixar ela, eu não vou, e ele disse, chegou sua hora, não há mais tempo. Mas bá, mãe, me deu até uns arrepios, eu subi no ônibus e fiquei te olhando tu chorando” [...]. (entrevista, mãe de Lucas, 2014)

Nessa temática apresentada, é possível notar que a questão dos sonhos, tão presentes entre os familiares, aparece como um presságio da própria vítima, no caso de Lucas. Sobre a questão dos sonhos, Araújo (2003, p. 2) coloca que a própria religião pode ser pensada como tendo origem na experiência onírica. O autor aborda os estudos do antropólogo Victor Turner, o qual demonstrou que os sonhos tiveram fundamental importância para os “povos primitivos”, pois criaram o caminho para a crença em espíritos e para a religião através da reflexão sobre suas próprias experiências oníricas.

Presságios proferidos por entidades/místicos

Por fim, é importante relatar as premonições a partir das crenças religiosas dos familiares e ressaltar que os familiares com inclinações espíritas e umbandistas foram os que mais apresentaram nas entrevistas as análises de presságios. Cunha (2010), ao propor uma discussão sobre a morte, coloca que existem duas abordagens para pensá-la: a filosófica e a religiosa. Para o autor, esses dois campos de reflexão se distinguem no sentido em que o da filosofia se baseia no método racional para explicar tal fenômeno, e o da religião dá respostas às inquietações do homem diante de sua finitude, principalmente na divulgação da ideia de vida após a morte.

Ainda em relação à construção simbólica de sentidos, através de presságios e formas de comunicação focadas na religiosidade, Giumbelli (2003) atenta para a questão do sincretismo de crenças, que misturam elementos primitivos, de origem das nações africanas, com filosofias espíritas, compondo o que ficou conhecido por “baixo espiritismo”5. Quando o autor estudou o surgimento do espiritismo no Brasil, existia uma necessidade de diferenciar o espiritismo científico do sobrenaturalismo, de onde provém a expressão baixo espiritismo, que envolve aspectos da cultura religiosa afro-brasileira. Entre esses aspectos da cultura afro-brasileira estão os jogos de cartas, tarô, búzios, consultas com entidades (pretos velhos, caboclos, orixás, exus), que compõem esse universo de significados.

Foram relatados pressentimentos dos familiares que frequentam tais doutrinas religiosas, de terceiros, ou seja, parentes dos familiares que tiveram algum tipo de experiência premonitória e de situações específicas de cada crença religiosa, como jogos de cartas, comunicação através de entidades espirituais ou conselho de médiuns. Destacamos algumas dessas colocações apresentadas por duas mães e um pai.

[...] A minha mãe falou, ela é de um centro de umbanda, ela, quando sonha com o meu pai, ela fica desesperada, porque ela sabe que sempre que meu pai aparece, algum problema tem, e ela fica desesperada ligando pros filhos, tem eu aqui, um em Natal, outro em Recife, e ela me falou que um mês antes ela sonhou que meu pai estava lá na frente da Kiss, ela nunca passou na Andradas, não sabe onde fica a tal da Kiss, e ela ficou desesperada, mas depois que aconteceu o fato que ela viu na televisão, ela disse que tinha sido lá na frente da Kiss, que ela viu meu pai lá na frente e era meu pai novo, jovem. Então, ela reconheceu a rua dos Andradas antes de acontecer, aí, quando ela viu na televisão, ela ficou doidinha [...]. (entrevista, pai de Augusto S., 2014)

As questões apontadas acima, que remetem novamente a interpretações sobre o destino da alma, vida após a morte, missão, em sua maioria são apresentadas pelos familiares frequentadores ou simpatizantes das doutrinas espíritas e umbandistas. Além dos relatos apresentados, outros familiares narraram exemplos de sinais deixados pelos filhos, interpretados posteriormente por eles. Sonhos, mensagens espíritas, encontros com entidades mediúnicas foram recorrentes para alimentar esse elo de espiritualidade, transpondo os limites de uma religiosidade padrão, ou de religiões conhecidas, para também se direcionar para abordagens mais místicas, como curandeiras, benzedeiras, médiuns, chamadas de druidas.

Além disso, o contato com a morte dos filhos suscitou diferentes reações nos familiares. Alguns relataram indignação com “Deus”, outros resignação à “Sua” vontade, como mostra o relato a seguir:

[...] e naquele desespero de ter ido na Kiss, de ter percorrido todos os hospitais sem encontrar nenhuma notícia deles, eu voltei pra minha casa e sozinha, lá na garagem, eu olhei pra cima e disse: “Deus, até quando o Senhor vai testar a minha a fé?”. E naquele momento eu soube que os dois estavam mortos. (discurso informal, mãe de Mirela e José Manoel, 2014)

[...] olha, eu me revoltei com todo mundo, até com Deus, porque eu perguntava e pergunto, “Por quê?” Eu pedia tanto pra Deus me dar um filho, eu pedia tanto pra Deus cuidar de meu filho, rezava tanto pra Deus encaminhar meu filho, pra ele não se perder, pra que ele fosse um rapaz responsável, mas parece que Deus não ouviu nada e quando aconteceu isso com meu filho, eu fiquei descrente de tudo, eu não aceito que era a hora dele, que seja assim, que chegou o tempo dele, eu não aceito. (entrevista, mãe de Augusto N., 2014)

Os familiares frequentadores de centros espiritualistas (espíritas, umbandistas, druidas, cartomantes), por acreditarem na imortalidade da alma e na reencarnação, conseguem projetar reencontros futuros e, mesmo diante de muita dor, entendem sua perda como parte de um plano de evolução espiritual para si e para os filhos que partiram. Os familiares que não tinham inclinações desse tipo, os evangélicos sofrem por não crer no reencontro e a ideia da separação abrupta é motivo de revolta e distanciamento da igreja.

Outro aspecto que diz respeito aos enfrentamentos vivenciados pelos familiares após a tragédia foi a difícil tarefa de administrar a ausência física dos filhos. Muitos ainda não conseguiram se desfazer dos pertences dos filhos, outros tiveram que mudar de residência, alguns falam muito dos filhos e outros têm mais dificuldade de expor seus sentimentos. A questão de aprender a viver com a ausência tornou-se chave na relação familiar de cada família de vítima fatal. As palavras do pai de Augusto S. exemplificam o sentimento compartilhado pelos familiares:

[...] O que mais me dói hoje é chegar em qualquer loja, qualquer lugar e ter que preencher um documento oficial e lá pedir o número de filhos e eu sabendo que eu tenho dois ter que responder um. Como pode de uma hora pra outra uma pessoa simplesmente deixar de existir para o mundo quando ela é e sempre será presente pra você? Ele sempre vai ser meu filho. (entrevista, pai de Augusto S., 2014)

Esse sentimento de ausência fez com que cada familiar encontrasse uma forma de mantê-los presentes no cotidiano da família: fotos espalhadas pela casa, ouvir as músicas que gostavam, cuidar de plantas que lhes pertenceram, continuar seus trabalhos voluntários, enfim, sempre que os familiares se deparam com uma coincidência, um pássaro, um símbolo que remete aos filhos, sentem conforto e interpretam como um sinal de comunicação. Com o relato a seguir, pode-se perceber uma tentativa de ligação entre os dois mundos, uma forma de manter presente quem partiu:

[...] Então eu seguia aqueles ensinamentos do espiritismo até o dia da tragédia. Porque, claro que eu quero me encontrar com meu irmão, aí eu fico pensando, e se eu desencarno e chego lá querendo ver meu irmão e ele já virou um bebê e voltou pra terra? Então quantos séculos eu vou ficar correndo atrás pra encontrar o meu irmão? Essa ideia me deu muita tristeza, então, naquele momento eu não sabia mais o que pensar da morte, porque eu nunca tinha perdido alguém tão próximo, alguém que me fizesse tanta falta ou diferença. Então, de que maneira eu pensei que eu ia homenagear o meu irmão, eu plantei uma árvore que é muito difícil de pegar aqui no Rio Grande do Sul, uma Flamboyant, porque ela sofre muito com o frio, ela precisa de um cuidado extremo, ela precisa que eu tape ela todas as noites até ela crescer, eu preciso tirar a lona dela todos os dias de manhã, eu tenho que cuidar porque as formigas gostam de ir nessa arvorezinha, eu preciso estar toda a hora aguando ela, o ano inteiro colocando água, e eu fiz isso, desde o buraco, que parece uma coisa simples mas não foi, eu passei a tarde inteira cavoucando, pra botar a minha plantinha, ela sofreu, até achei que ela tivesse morrido, e agora ela está bem, está bem pequenininha mas cheia de folhas, as formigas não atacam mais, tem que deixar o veneno pras formigas longe da árvore, porque assim, eu quero deixar aquela árvore tão exuberante como foi o Silvinho e que seja linda como ele era e que quando ela crescer eu vou ficar embaixo dela meditando e pensando nele. (entrevista, irmã de Silvinho, 2014)

Os diferentes depoimentos mostram a tentativa dos familiares de lidar com a morte, ao mesmo tempo em que lutam para manter a memória dos filhos vivos no seu cotidiano. Tais explicações derivadas de construções simbólicas evidenciam também a tentativa de entender a morte e de projetar uma vida além da morte. Como último relato, trazemos o questionamento de um pai sobre o que a ausência física de um ente querido gera de sentimentos e emoções:

[...] eu entendo assim, parece que ele veio só pra dar uma passagem por aqui, a gente não consegue entender essa tal de morte, parece que ela não existe, parece que ela só tirou da sua vista pra não saber onde ele está, mas no teu coração, parece que ele esta ali o tempo todo e tu não aceita isso de jeito nenhum, é muito complicado, é muito difícil você viver com essa história. (entrevista, pai de Augusto S., 2014)

Assim, as concepções de espiritualidade dos familiares contribuem para trocas simbólicas e construções coletivas de significados para a tragédia. Ao compartilharem lembranças, sonhos e ações de preservação da memória, o grupo de familiares que interage na rede de apoio se apropria dessas construções e alimenta uma gama de interpretações simbólicas. Existe a constante busca por mensagens espíritas, orações pedindo orientações sobre as ações que buscam justiça e o sentimento de que ações solidárias contribuem para amenizar uma dor extrema. Tais sentimentos movimentam a interação dos familiares e articulam a rede de apoio.

CONCLUSÃO

O presente artigo mostrou em linhas gerais as diferentes iniciativas de organização dos familiares das vítimas da Boate Kiss. Ao longo deste trabalho, foi mostrada a formação de quatro organizações com propósitos distintos: a Associação de Vitimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), cuja orientação é reunir os familiares de vítimas e sobreviventes, prestando apoio sistemático aos familiares em situação de vulnerabilidade social e negociando espaços destinados à saúde dos familiares e sobreviventes; o movimento Santa Maria “do Luto à Luta”, que se intitule movimento social, caracterizado por ações que visam à justiça; o movimento Mães de Janeiro busca a justiça apelando para o sentimento materno, reunindo mães das diferentes organizações e promovendo ações solidárias; e a organização não governamental Para Sempre Cinderelas, formada por cinco famílias de vítimas, que têm por objetivo a ação social junto a crianças carentes do município.

A partir da formação dessas diferentes organizações, familiares de 30 famílias de vítimas fatais passaram a conviver sistematicamente através de vigílias em homenagem às vítimas, surgindo, dessa forma, uma rede de sociabilidade que foi denominada rede de apoio. Nessa rede, os familiares compartilham a experiência do luto e constroem coletivamente diferentes significados para a tragédia e para a união dos familiares. Assim, a rede de apoio foi subdividida em duas subredes: de solidariedade e de justiça. O elo que direciona a interação desses familiares é a espiritualidade.

Com isso, através do convívio com os familiares, reuniram-se diferentes discursos referentes a questões de espiritualidade ao entrevistar/observar 11 famílias de 12 vítimas fatais. Esses discursos variam entre presságios de morte dos familiares, das vítimas e até os efeitos do contato com a morte dos filhos e seus desdobramentos. A metodologia utilizada foi baseada na análise de redes, pois contempla a complexidade de interações entre os familiares que participam de uma ou mais organizações.

Este artigo abordou tais discursos como resultados de construções coletivas de significados, dentro de análise contextualista da experiência do luto e suas emoções. Ou seja, esses discursos só têm sentido dentro da rede de apoio e no contexto da tragédia para tais familiares.

Referências

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Notas

1 Para mais informações, ver Peixoto (2014).
2 A Vigília consiste em um projeto iniciado pela AVTSM com o objetivo de não deixar “cair no esquecimento a tragédia”. A estrutura em forma de estande, ou tenda, recebe famílias em vigília desde abril de 2013. Cada dia ocorre a vigília de uma das vítimas e seus familiares ou de uma organização. Esse espaço, decorado com banners, fotos e objetos das vítimas, busca a interação dos familiares com a sociedade santa-mariense. No mesmo local é exposto um livro de assinaturas para registro dos visitantes e um abaixo-assinado, visando a pressionar a mudança da legislação do município. Em 2014, o Movimento Santa Maria “do Luto à Luta” assumiu a responsabilidade pela administração, fazendo os agendamentos para as famílias.
3 É importante enfatizar que, ao longo do processo de pesquisa, todos estiveram cientes de que havia uma pesquisadora entre eles e que pretendia transformar suas observações, anotações e entrevistas em um trabalho acadêmico. As famílias sempre acolheram e em algumas situações estimularam a participação, convidando a pesquisadora principal a participar de eventos, encontros e reuniões.
4 Transcendência estaria ligada a uma experiência fora do campo existencial do dia a dia; conexidade seria a ligação com as pessoas, com a natureza e com o cosmos, seja ela de caráter intrapessoal, interpessoal ou transpessoal (SILVA, 2008, p. 771).
5 É importante frisar que Giumbelli (2003, ao estudar o surgimento do espiritismo no Brasil, apontou as disputas religiosas do período no sentido de afirmação de religiões, sendo o espiritismo considerado uma doutrina científica e os cultos afro-brasileiros considerados curandistas, charlatanistas, por abordagens rituais e mágicas. Por isso, na hierarquia das religiões, os cultos afro-brasileiros passaram a ser chamados de baixo espiritismo.
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