Resumo: O propósito do presente artigo é considerar a afinidade entre ecologia e espiritualidade na modernidade tardia. Procuramos compreender como os conteúdos ecológicos se tornam referências fundamentais da experiência religiosa no âmbito da espiritualidade que, grosso modo, é percebida como expressão da individuação do crer no interior da paisagem religiosa contemporânea. Ao lidar com a questão ecológica, as espiritualidades produzem uma nova ética religiosa que as situam além do estereótipo do individualismo utilitarista e da trivialidade comumente atribuídos a esse fenômeno. No esteio das observações de Lorne L. Dawson (2006) e James Beckford (2003), sugerimos que o significado da religião na contemporaneidade deve ser considerado a partir da relação dialética entre a esfera religiosa e outras esferas sociais da modernidade tardia. Assim, a “virada ecológica” iniciada na década de 1970 e radicalizada em nossos dias ajudou a plasmar um novo sentido para a religião através da “ecoespiritualidade”.
Palavras-chave: Ecologia, Modernidade Tardia, Espiritualidade.
Abstract: The aim of this paper is to consider the affinity between ecology and spirituality in late modernity. We seek to understand how ecological contents become fundamental references to the religious experience in the field of spirituality that, roughly speaking, is perceived as an expression of individualization of belief within the contemporary religious landscape. Dealing with the issue ecology, the spiritualities produce a new religious ethic that leads us to understand it beyond the stereotype of utilitarian individualism and triviality commonly attributed to this phenomenon. In the wake of comments from Lorne L. Dawson (2006) and James Beckford (2003), the paper suggest that the meaning of religion in contemporary times must be consider through the dialectical relationship between the religious sphere and other social spheres of late modernity. In this sense, the "ecological turn" started in the 1970’s and radicalized today helped to shape a new direction for religion through "ecospirituality”.
Keywords: Ecology, Late Modernity, Spirituality.
Article
ECOLOGIA E ESPIRITUALIDADES NA MODERNIDADE TARDIA: DA TRIVIALIDADE À ETÍCA DA SUSTENTABILIDADE
Os estudos de novos movimentos religiosos, religiões alternativas ou espiritualidades suscitaram grandes debates entre os vários estudiosos que consideraram o significado cultural e a relevância desses fenômenos no interior da paisagem religiosa contemporânea. Autores como Bryan Wilson (1988) e Steve Bruce (2002) sugeriram que grupos e ou movimentos religiosos e espiritualidades alternativas da segunda metade do século passado eram tendências que corroboravam a teoria da secularização que, em sua forma mais dura, prognosticava o declínio da religião no espaço público e uma existência restrita, se muito, ao âmbito da vida privada. Por essa razão, toda a pletora de inovações religiosas e de espiritualidades surgidas ou popularizadas nas últimas décadas era compreendida como uma religiosidade diluída, cuja trivialidade se manifestava ora na incapacidade de manutenção de uma comunidade durável sob um dossel de sentidos apto a orientar a agência dos sujeitos, ora na apropriação de aspectos da racionalidade moderna que testificavam a perda da eficácia das explicações de mundo propriamente religiosas.
A despeito da popularidade da compreensão das espiritualidades e novas religiões a partir do estigma da trivialidade, o que acontece inclusive no interior do campo religioso, a ideia de uma religiosidade diluída é objeto de outra parte do debate sociológico que chama a atenção para o fato de que as noções de “trivialidade” ou “diluição” presumem um modelo religioso trans-histórico capaz de subsumir toda a experiência religiosa. Segundo essa perspectiva, tudo aquilo que dista desse modelo só poderá ser compreendido como resquícios da verdadeira religião que só foi “forte” e “relevante” até o advento da modernidade e de seu ímpeto secularizante.
A compreensão das espiritualidades e dos novos movimentos religiosos, enquanto expressões triviais do crer, repousa, entre outras fontes, na concepção de que somente a religião do dossel totalizante discutido por Peter Berger (2009), na década de 1960, é a religião em sua forma mais plena. Em outras palavras, isso implica que a experiência religiosa, no âmbito da espiritualidade e da crença na jornada individual, típica de vários grupos contemporâneos, é irrelevante por não comportar a experiência da comunidade tradicional sob a autoridade de uma instituição reguladora dos sentidos religiosos do mundo.
Seguimos uma leitura distinta daquela que relaciona novos movimentos e espiritualidades à trivialidade e secularização, principalmente porque ela parte de um conceito rijo do que podemos entender por religião e do pressuposto do antagonismo da religião e da modernidade. Sustentamos, a partir de James Beckford (2003), a ideia de que não só as práticas religiosas se transformam com o tempo, como também aquilo que os sujeitos – e aqui falamos não apenas da comunidade acadêmica produtora de conceitos – em seu dia-a-dia definem como religião e não-religião.
A perspectiva “construcionista” de Beckford contradita leituras essencialistas da religião. Ela nos permite então compreender que o sentido da religião e é “construído, negociado, garantido e reproduzido no curso da vida social e ao longo do tempo” (BECKFORD, 2008, p. 23)1. É a partir desse viés, que trata a religião como um fenômeno multidimensional cujo significado cotidiano é negociado, que compreendemos a ideia de espiritualidade como uma construção da experiência religiosa. Paradoxalmente, ela busca uma identidade que a distingue da religião institucional tradicional, representada como limitadora da própria transcendência, conforme sugere a expressão “Espiritual, mas não religioso”, descrita por Charles Taylor (2007) e outros. Como entendemos, a espiritualidade é uma nova forma socialmente estabelecida de experimentação e definição da experiência religiosa na modernidade tardia.
Entendemos ainda a partir de Lorne L. Dawson (2006) que as espiritualidades e os novos movimentos religiosos expressam um aspecto da relação dialética entre a modernidade tardia e a religiosidade como um todo, o que, grosso modo, significa que os vários grupos contemporâneos, mesmo aqueles que reclamam a autoridade do passado, absorvem elementos do universo cultural de um contexto marcado pelo indivíduo, pela pluralização das formas de vida e pelo misto de ansiedade e expectativa que caracteriza a vida de mulheres e homens no hodierno. Nesse sentido, novos movimentos e espiritualidades são expressões da imaginação religiosa liberadas da coação e da univocidade das narrativas autoevidentes do passado; de forma reflexiva, elas se apropriam de demandas, expectativas e mesmo das sensações de risco que, segundo Antony Giddens (1991), fazem parte da modernidade tardia.
A fim de dar materialidade a essa discussão, nos debruçaremos principalmente sobre princípios gerais da ecoespiritualidade, entendida aqui enquanto justaposição entre a busca espiritual e às demandas entorno da ecologia. Nosso itinerário consistirá em três seções onde trataremos i) novos movimentos e espiritualidades na modernidade tardia; ii) a sacralização da ecologia; iii) a ética ecoespiritual e o mundo contemporâneo. Como tentaremos esclarecer, a justaposição da espiritualidade e da ecologia produz não apenas novos sentidos de mundo, mas também uma compreensão particular da experiência religiosa.
Há pelo menos quarenta anos os temas “novos movimentos religiosos” e “espiritualidades contemporâneas” são objetos de estudo nos países do Atlântico Norte, em especial naqueles que enfrentaram o “pânico dos cultos” (cult scare) oriundos da ansiedade social provocada pela emergência de uma economia religiosa cuja pluralidade não possuía precedentes históricos. Em grande parte, esses estudos colaboram para dirimir estereótipos que estavam associados ao termo cult ou ao pânico moral encarnado pela ideia da “lavagem cerebral”. Por sua vez, esses estudos no Brasil se originaram, segundo Emerson Giumbeli (2006), nas décadas de 1980 e 1990, contexto de consolidação da diversificação da paisagem religiosa e da consolidação de uma sociedade urbana e industrializada2. Apesar do controverso termo cult não fazer parte das controvérsias do campo religioso no Brasil, a expressão seita tem o sentido semelhante por encarnar a ideia de obscuridade e heresia geralmente atribuído a novos grupos e heterodoxias religiosas3.
Em grande parte, esses estudos chamam a atenção para a individuação do crer enquanto aspecto fundamental dos novos movimentos religiosos e das espiritualidades que, na maior parte das vezes, são compreendidos como sinônimos, apesar daquele possuir uma configuração institucional semelhante às religiões estabelecidas no campo religioso enquanto o último se define a partir da ideia de uma jornada intima no âmbito de uma “filosofia de vida”, situada além de qualquer constrangimento institucional rijo que geralmente é atribuído por seus adeptos às instituições religiosas. Não obstante, a espiritualidade se caracteriza segundo a literatura sociológica (PARTRIDGE, 2005; TAYLOR, 2007) por uma religiosidade mais subjetiva e voltada para o bem-estar individual, o que, ao que nos parece, não pode ser entendido apenas pelo viés utilitarista e do concomitante mercado dos bens espirituais como se estas fossem as únicas faces do fenômeno.
Compreendemos que a espiritualidade está em afinidade com grande parte dos novos movimentos religiosos que assumem a concepção de que a “verdade” é comum a todas as tradições do passado. Em alguns casos, sujeitos preocupados com o cultivo da espiritualidade absorvem suas compreensões do mundo a partir do envolvimento, temporário ou não, com novas religiões que oportunizam o acesso a conteúdos que, até algumas décadas, estavam disponíveis a algumas sociedades específicas. Outrossim, os novos movimentos religiosos têm um papel importante na divulgação de saberes e de práticas que vão de terapias alternativa às práticas meditavas, em seu conjunto, constitutivas da atmosfera de espiritualidade sobre o qual aludimos. Por esse motivo, compreendemos os novos movimentos e as espiritualidades como partes de um único fenômeno.
Vários estudos sobre as espiritualidades e os novos movimentos religiosos identificaram principalmente na tipologia do místico de E. Troeltsch (1992) a base sociológica para a compreensão de um caminho religioso marcado pela individuação da experiência religiosa na contemporaneidade (PARTRIDGE, 2005; MELTON, 2004). Essa nuance mística que se desenrola na subjetivação é apresentada sumariamente por Troeltsch da seguinte forma:
Essa é a teologia da experiência subjetiva em contraste com a teologia da revelação objetiva (...) Ela é oposta ao espírito eclesiástico em virtude de sua tolerância, seu subjetivismo e simbolismo, sua ênfase em direção à ética e a disposição à interioridade religiosa, sua falta de normas estáveis e autoridades (TROELTSCH, 1992, p.796 - tradução nossa).
Além de Troeltsch, o alemão George Simmel nos chama a atenção para um indivíduo cuja disposição religiosa tendia à superação das formas tradicionais disponíveis. No ensaio O Problema da Situação Religiosa, publicado em 1911, Simmel faz a seguinte afirmação que nos parece salutar para conceber a espiritualidade enquanto subjetivação da religião:
(...) a mudança pela qual todo anseio e devoção suprassensível todo êxtase e rejeição, toda justiça e misericórdia não serão mais encontrados nas altas dimensões acima da vida, mas nas camadas profundas do seu ser (...) O destino da religião caminha para uma mudança radical (..) a religiosidade pode vir a recuperar o valor metafísico que a alma antes havia depositado em objetos transcendentes e que vivia nesses objetos como se fossem sua vida (SIMMEL, 2009, p.20-21).
Não deixa de ser interessante o fato de que no início do século passado a ideia da individuação e subjetivação da religião é sugerida pelos dois autores enquanto disposição da modernidade ao invés do triunfo da secularização em sua forma mais dura. Durante algum tempo, essa foi a narrativa triunfante a respeito da situação da religião na modernidade. A individuação da crença presumia que o sujeito se tornaria o principal validador da experiência religiosa e que ele, muito mais do que a instituição religiosa e seus conteúdos autoevidentes, era o autor de suas escolhas e caminhos de fé, como hoje sugerem algumas considerações contemporâneas feitas por Peter Berger (2007). Embora não possamos falar que essa disposição implique o fim da experiência religiosa mediada pelas instituições, sejam aquelas mais antigas, sejam as mais novas, é salutar reconhecer a existência de uma crise que provocou a partir da a segunda metade do século XX a emergência de “(...) um sistema de sentido pluriaberto, multicênico e em constante transformação” (BRANDÃO, 2013, p.92).
Por sua vez, Charles Taylor (2007) sugere que a religião contemporânea, no âmbito da espiritualidade, é compreendida pelos sujeitos a partir da ideia de contraste com a religião institucional. Para esses buscadores, a espiritualidade seria, portanto, um caminho pessoal alheio a qualquer tipo de limite institucional, doutrinário ou código moral que não pudesse ser validado pelo próprio sujeito. Sobre a diferença entre religião e espiritualidade na vida dos sujeitos, o autor diz:
Esse contraste reflete a rejeição de uma ‘religião institucional’, isto é, a alegação de autoridade feita por igrejas que vêm isso como mandato que precede à busca ou a mantêm no interior de certos limites e que acima de tudo dita certos códigos morais de comportamento (TAYLOR, 2007, p. 508 – tradução nossa).
Existem várias tipologias que descrevem esses movimentos e grupos religiosos que se apresentam como alternativa àqueles que constituem o establishment religioso. Para nosso trabalho, interessa-nos principalmente a reflexão que Peter B. Clarke (2006) desenvolve a respeito do que ele chama de “religião do verdadeiro eu” (True Self-Religion) que, grosso modo, diz respeito às tendências religiosas e espiritualidades que surgiram ou se tornaram populares a partir da contracultura das décadas de 1960 e 1970. Via de regra, esses movimentos, que incluem grupos diversos como Osho Sunnyas, Marahisi Maresh Yogi, Hare Krishna, Cientologia, Wica, Seicho-no-Ie, Logosofia entre outros, presumem a jornada interior como meio de alcançar o “eu verdadeiro” e sagrado que não se distingue da divindade, geralmente concebida como “energia cósmica”, “grande vida” ou simplesmente como Cosmos.
Religiões do Eu Verdadeiro insistem que é o eu interior que constitui a autoridade de crença e prática (...). Isto constitui a ideia central do último romance Damian, o qual descreve o caminho para o verdadeiro eu do indivíduo (...). Voltar para o interior reúne e harmoniza os que são superficialmente percebidos como opostos. A natureza direta da experiência religiosa que essa nova espiritualidade oferece parece ser uma das características mais atrativas. Ela cria um novo entendimento do espaço histórico entre o estado atual e o potencial de um indivíduo que, em contraste com as religiões estabelecidas mais amplas, traz a possibilidade da autorrealização interior completa ao alcance no presente. Ela torna isso constantemente disponível, sendo que que a única barreira a ser superada é da ignorância sobre a natureza do verdadeiro eu. A distinção entre terra e paraíso é nesse sentido anulada (CLARKE, 2006, p.7, tradução nossa).
A jornada da espiritualidade teria início a partir de uma nova consciência individual, deslocando a ideia de salvação da alma, que caracteriza a religiosidade cristã tradicional predominante no ocidente, para a transformação da mente ao mesmo tempo em que estabelece a interioridade, isto é, a busca pelo “sagrado interior”, enquanto via da salvação individual. É por esse motivo que muitos novos movimentos e espiritualidades estão em afinidade com saberes oriundos da psicologia, o que favorece uma concepção da espiritualidade como terapia em favor do bem-estar do indivíduo ou, como é comum, a concepção da experiência religiosa enquanto “espiritualidade” ou “filosofia de vida”.
A apropriação e tradução de conteúdos psicológicos servem, em alguns casos, para testificar a validade de práticas meditativas ou saberes heterodoxos que partem da ideia de que a mente ou a consciência é o ponto inicial da transformação do eu. Essa apropriação, é importante dizer, parece-nos muito mais do que apenas um esforço de legitimação da narrativa religiosa, ainda que esse esforço de validação não possa ser descartado. Na medida em que os estados da consciência receberam atenção não apenas da comunidade acadêmica, mas também do senso comum, a imaginação religiosa passa também a se interessar por ela. Com algum exagero, a consciência e não a alma é uma das preocupações da experiência religiosa, em especial das espiritualidades e das novas religiões do tipo psicoterapêuticas, cujo envolvimento dos sujeitos se dá a partir de uma dinâmica distinta e fluída, diferente do pertencimento exclusivo e estrito, típico principalmente daquilo que a sociologia clássica definiu pelo conceito seita.
A busca do “eu interior” assumiu várias formas, inspirando movimentos preocupados com o autoaperfeiçoamento a partir de um viés utilitarista e também movimentos cujo forte contorno romântico acolhia temas mais complexos envolvendo meio ambiente, direitos humanos e a paz mundial. Movimentos vinculados a concepção do despertar do Potencial Humano ou com o Novo Pensamento Americano possuem grande aceitação principalmente no que toca à preocupação com a ativação de capacidades individuais que permitiram o alcance do sucesso financeiro, profissional e empreendedor. Por outro lado, outras tendências concebem essa busca do “eu sagrado” enquanto via para alcançar o que julgam o equilíbrio da humanidade com o cosmos de maneira que a mudança de consciência e a realização espiritual está, segundo Cristopher Partridge (2005), vinculada a uma nova consciência planetária.
Em ambas as tendências, a transformação da consciência é parte fundamental da experiência espiritual. Ela é a via para o bem-estar individual e coletivo, para a libertação da ignorância do potencial humano inato ou de sua real natureza enquanto ser dotado do sagrado. Para ambas, a realização espiritual não diz respeito apenas a uma realidade pós-morte, mas ao bem-estar aqui e agora. Por essa razão, “a religião do verdadeiro eu” é uma religião que afirma o mundo ao invés de negá-lo4.
A reflexões de Charles Taylor (2007) a respeito do indivíduo na modernidade também lançam luzes sobre a questão religiosa contemporânea e as fontes culturais da espiritualidade. Os estudos do filosofo inglês chama a atenção para a existência de disposições românticas que desde o século XVIII plasmaram uma concepção de indivíduo como aquele sujeito disposto à procura de uma identidade autêntica. Definido por “individualismo expressivista”- em oposição ao “individualismo utilitarista” oriundo principalmente do Iluminismo radical – o sujeito moderno estaria então disposto a uma jornada em busca do “eu autêntico” mais profundo o que implicava, inclusive, a rejeição da concepção racionalista e material (i.e. mensurável) do mundo ou ainda qualquer limite à experiência religiosa que, eventualmente, era relacionado à religião institucional.
A experimentação e os valores expressivistas do autocultivo teriam assim aberto as portas do mundo moderno, sobretudo a partir do século XIX, para inovações e concepções religiosas distintas que foram rearranjadas pelos indivíduos a partir de suas demandas e de uma realidade global cada vez mais propensa à radicalização da pluralização cultural. Marcar uma distinção entre “espiritualidade”, sinônimo de autenticidade e naturalidade, e “religião”, sinônimo de austeridade, moralismo e autoridade institucional, é um desdobramento da “revolução expressivista” do romantismo que menciona Taylor (2007). Por conta dela, conteúdos provenientes de tradições pré-cristãs, indígenas ou da Ásia, em especial o Budismo e o Hinduísmo, foram realocados por gurus que atravessaram o mundo e engendraram narrativas religiosas que se adequavam às expectativas dos indivíduos preocupados com uma via religiosa distinta daquelas que prescreviam a rejeição do mundo ou um código comportamental relativamente rijo que era contrário às suas expectativas de vida.
A errância religiosa, a bricolagem e o múltiplo pertencimento religioso também são características dessa disposição experimentalista que não reconhece a autoridade absoluta das instituições, tradicionais ou não, e se desdobra por meio de uma “experiência concentrada e intesensa de um mundo e ordens múltiplas e fronteiras porosas (AMARAL, p.18, 2010). Contudo, foi a partir do movimento da contracultura de 1960 que essa disposição se expandiu, ainda que parte de seus conteúdos mais românticos tenham sido relativamente suprimidos pelo “indivíduo utilitarista” a partir da década de 1970 quando a busca espiritual passou também a se relacionar ao sucesso profissional e ao empreendedorismo. Hoje, o que chamamos de literatura de autoajuda expressa o viés utilitarista da espiritualidade cujo foco é a ampliação do potencial humano.
Outra característica das espiritualidades do tipo “religiões do verdadeiro eu” diz respeito à concepção holística da realidade. Essa imagem de mundo pressupõe que a vida em sua totalidade, e isso inclui o planeta e mesmo o cosmos, estão intimamente imbricados. Ela implica a não-separação entre o espiritual e o físico e mesmo entre a humanidade, entre seres vivos e, no caso das espiritualidades ufológicas, com supostos seres de outros planetas (PARTRIDGE, 2005). A partir dessa cosmologia, a transformação dos sujeitos que aderem à via espiritual presume a consciência de integração de toda a existência contrariando assim a dicotomia divino e criatura típica do monoteísmo abrâamico.
A concepção de uma grande vida que perpassa todo o cosmos, encontrada principalmente nos grupos da Nova Era, incide sobre a vida dos sujeitos de várias formas que incluem desde dietas particulares até o envolvimento com causas políticas diversas que incluem os direitos humanos, o veto à proliferação de armas nucleares e, como veremos na sessão seguinte, a questão ecológica. A justaposição entre seus conteúdos e a vida cotidiana, incluindo demandas que estão além da simples preocupação individual mais imediata, testemunha a existência de nuances éticas que nos ajudam a pensar as novas religiões e as espiritualidades para além do reducionismo que, ao insistir na trivialidade do fenômeno, sugere sua irrelevância social. Como a concebemos, essa justaposição, pensada a partir da concepção da relação dialética entre a esfera religiosa e as outras esferas sociais da modernidade provocam inflexões em nossa compreensão sobre a religião, sobre a experiência religiosa e sobre seu papel em nossa vida cotidiana.
Ao contestar essa concepção da irrelevância, Chistopher Partridge (2005) sugere que as novas religiões e espiritualidades erigem redes de envolvimento religioso e de partilha de conteúdos e práticas oriundas de diversas tradições além de um conjunto de preocupações que estão além da realização exclusivamente individual. Nesse sentido, redes espirituais, entendida aqui como um nicho religioso mais fluído e plástico, provocam discussão e trocas de saberes que produzem algum tipo de envolvimento coletivo em torno de questões mais abrangentes. Assim, as redes de trocas indicam que mesmo a “cultura religiosa errante”, expressão atribuída por Leila Amaral (2013) a sujeitos vinculados à Nova Era, não implica que não há algum nível de envolvimento comunitário, o que a autora enfatiza em sua obra o Carnaval da Alma (2010) ao afirmar que o ideal de comunidade não se define por um aspecto essencialista. Em última instância, essas espiritualidades pensam a humanidade como uma grande comunidade global espiritualmente conectada.
A questão ecológica recebe nas últimas décadas significativa atenção dos grupos e instituições religiosas. A recente Encíclica Papal Laudato Si é um artefato recente que sinaliza para uma nova fase do aggionramento que nos remete a autores como Thomas Berry (1914-2009), um dos precursores da ecoespiritualidade no mundo nas últimas décadas do século passado e às publicações contemporâneas de Leonardo Boff. Essa disposição, contudo, está vinculada aos desenvolvimentos culturais e políticos que ao longo da segunda metade do século XX incidiram sobre a imaginação religiosa moderna e com ela se relaciona dialeticamente.
Chistopher Partridge (2005) e Collin Campbel (2010) estão em acordo quanto à influência da ecologia e da questão política a ela inerente sobre a imaginação religiosa da modernidade tardia. Segundo os autores, mesmo os grupos da nova esquerda se vinculam em graus distintos a conteúdos “ecoespirituais” que insistem na indissociável relação entre a humanidade e o restante da vida terrena. Dietas, veto à proliferação nuclear, combate aos transgênicos, combate à poluição etc. são alguns dos temas da escospiritualidade que tem no “retorno à natureza” a principal via da realização espiritual dos indivíduos e da humanidade. Grosso modo, a politização da questão ecologia se deu pari passu à sua espiritualização e, em alguns momentos, seus conteúdos e demandas se imbricaram.
A questão ecológica é uma preocupação da modernidade tardia. Na medida em que a reflexividade foi dirigida para os limites do projeto moderno, a questão ecológica se tornou um tema fundamental diante dos riscos oriundos da degradação da natureza, provocados pelo ímpeto do “Prometeu Desacorrentado”, isto é, a disposição do homem e da mulher moderna para mobilizar e usufruir dos recursos naturais em seu favor, sobretudo no âmbito da produção. Por essa razão, como sugere Manuel Castells (1997 apud PARTRIDGE, 2005, p.42), o “ movimento ambientalista no último quartel do século [passado] ganhou um lugar distinto na paisagem da aventura humana”, o que inclui a aventura da fé.
Duas teorias da década de 1970 contribuíram para projetar a questão ecológica e a reflexividade acerca dos limites do modelo produtivo capitalista no que toca à necessidade da preservação de um mundo habitável para a humanidade e os demais seres vivos. A famosa Hipótese Gaia elaborada pelo geoquímico inglês James Lovelock e pela bióloga Lynn Margulis e a teoria da “Ecologia Profunda” (Deep Ecology, em inglês), conceito introduzido pela eco-filósofo norueguês Arne Naes, colaboram para a compreensão do Planeta Terra enquanto uma casa comum que deve ser preservada para que a vida continue possível. Lovevolck, o principal idealizador de Gaia, vai ainda mais longe ao sugerir que a Terra, isto é, Gaia, a deusa grega antiga, é uma macro-entidade com o qual estamos essencialmente vinculados (PARTRIDGE, 2005). Essa compreensão sugere que nosso planeta é um organismo que reage às transformações provocados pela humanidade. O fim da vida humana como a conhecemos seria uma dessas reações.
Tanto a Hipótese Gaia como a Ecologia Profunda serviram, segundo Chistopher Partrigde (2005), como referências para grupos e indivíduos religiosos que procuravam uma religiosidade alternativa que não só contrastasse com a religião do establishment, mas com o estilo de vida moderno calcado na produtividade e no consumo, ambos entendidos como forças deletérias quando vivenciados enquanto norte da realização individual dos sujeitos. A ideia do retorno ao natural teria sido então amplificada por teorias que enfatizavam o biocentrismo, isto é, a “centralidade da vida”, quanto resposta a realidade da sociedade capitalista daquela época. Assim, o “biocentrismo” implícito a essa imagem de mundo implicava uma nova relação com a natureza, incluindo o âmbito da religião.
Várias tendências religiosas e espiritualidades operaram a sacralização da natureza e da relação entre a humanidade e o planeta, que passou então a ser representado como uma casa comum e como grande mãe nutridora da vida. Essa disposição integradora serviu para estimular a apropriação e reinvenção de antigas tradições pré-cristãs e xamânicas que foram traduzidas a partir da preocupação com a preservação da natureza. Grupos e movimentos neo-pagãos, neo-xamânicos e vários outros vinculados às sabedorias orientais desenvolvem dinâmicas espirituais que buscam o despertar da nova consciência que relaciona o eu mais íntimo (o verdadeiro eu) com a natureza.
Em suas observações sobre a ecoespiritualidade, Partridge (2005) afirma que as espiritualidades da natureza desenvolvem uma “ecotopia” que aponta para a expectativa do futuro despertar de uma nova consciência ecoespiritual da humanidade capaz de superar os limites e riscos que afligem a civilização. Essa nova consciência planetária é a realização do reino de Gaia que consiste, grosso modo, em um mundo onde a consciência da vitalidade da natureza é compartilhada. Essa percepção sobre o futuro da humanidade no tocante à sua integração com a natureza aparece também na expressão “Era Ecozoica”. cunhada pelo historiador e religioso da Congregação de São Paulo da Cruz, Thomas Berry (1919-2009). Berry foi autor da obra The Great Work, cujo o subtítulo é Our Way into the Future, publicada pela primeira vez em 1999. Nela lemos que o grande trabalho a ser realizado pela humanidade diz respeito à consciência sobre a indissociabilidade entre humanidade e natureza. No âmbito do ecotopia, é o alcance dessa consciência que permitirá à humanidade se salvar dos valores destrutivos de uma cultura predominantemente antropocêntrica. Sobre isso, Berry diz:
A missão histórica de nossa época é a reinvenção dos sistemas humanos – no nível da espécie, com reflexão crítica, no interior da comunidade de vida – em um contexto temporal desenvolvimental por meios de histórias e sonhos compartilhados (...) uma nova experiência de revelação é necessária, uma experiência na qual a consciência humana desperta para a grandeza e qualidade sagrada do curso da Terra (BERRY, 1999, p.159,165 – Tradução nossa).
Embora diversa e vinculada a vários grupos, a ecoespiritualidade encontrou no neo-paganismo uma de suas principais vias de difusão. Sem nos determos em aspectos históricos desse movimento que, até onde alcançamos, está presente em todo o Ocidente, é importante mencionar que se trata de uma reinvenção da tradição pré-cristã com o fito de acomodá-la às demandas e expectativas modernas. Ou seja, o “retorno” às tradições do passado se dá pela via da adequação e seu objetivo fundamental é o estabelecimento de uma narrativa alternativa que, segundo seus idealizadores, vincula disposições religiosas contemporâneas àquelas do passado, em especial no que toca ao “re-engendramento” (no sentido de um novo gênero) do sagrado a partir da ideia do feminino expresso pelo “culto à deusa mãe” sinônimo da “mãe natureza”. Sobre a influência do neo-paganismo na Inglaterra, Patridge (2005, p.73) descreve o seguinte:
Enquanto todos os pagãos têm consciência ambiental e frequentemente são simpáticos às preocupações da ecologia profunda, seu compromisso como religiosos da natureza conduz muitas pessoas para alguma forma de manifestação ambientalista. Como uma ativista, Alexandra Plows, reconhece ‘foi através do paganismo que eu me tornei radicalmente politizada porque eu vi a vida e a Terra como sagradas’.
A citação do autor exemplifica a justaposição de conteúdo ecoespirituais e mobilizações políticas no Velho Mundo. O depoimento da ativista é parte da percepção de um conjunto de grupos organizados que desde a década de 1990 se destacou pela atuação pública em favor do meio ambiente que, como dissemos, é sacralizado. Essa disposição, contudo, não diz respeito apenas aos países do Atlântico Norte, mas à grande parte das regiões do planeta5.
A despeito da existência no Brasil de grupos e tendências que adotam uma postura ecoespiritual, como é o caso das atividades recentes de algumas das novas religiões japonesas que dialogam com a ecologia profunda, em especial a Seicho-no-Ie, e ainda também outros grupos como aqueles vinculados ao consumo ritualístico do Santo Daime. No âmbito da espiritualidade, os praticantes engendram para si a conexão da consciência individual com a floresta. Sobre essa conexão no universo do Santo Daime, Maria Betânia B. Albuquerque sintetiza:
Inteiramente associada à perspectiva de uma espiritualidade enteógena está uma concepção filosófica que concebe a floresta como projeto de vida. Uma evidência imediata disto é a centralidade da bebida para a sobrevivência da religião e, portanto, a consequente necessidade da matéria prima (a folha e o cipó) para o seu preparo. Isto implica, necessariamente, a preocupação com o plantio das espécies e o cuidado com a floresta amazônica seu habitat natural. Além dessa perspectiva, a floresta representa um dos locais de culto e de circulação de saberes, bem como o espaço onde Sebastião Mota [Fundador do Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra] sonhava reunir um povo, de acordo com um projeto de vida comunitária e ecológica (...).
A citação da autora expressa a relação do Daime com a espiritualidade que sacralizada a natureza. A própria beberagem ritual é, nesse sentido, um meio de intensificar a relação entre o eu interior que caracteriza a “religião do eu verdadeiro” e a natureza. Por essa razão, o bem-estar associado às espiritualidades alterativas e aos novos movimentos religiosos não pode ser reduzido apenas aos aspectos utilitaristas enfatizados por grupos que centram sua mensagem no potencial humano.
Como mencionamos, a ecoespiritualidade exerce influência sob determinados conteúdos cristãos contemporâneos. A recente encíclica do Papa Francisco e a expressão “Era Ecozoica” idealizada pelo Passionista Thomas Berry (1999) testemunham a capacidade da espiritualidade de incidir sobre as visões de mundo das religiões estabelecidas, o que acontece, inclusive, no Islamismo, no Budismo e no Hinduísmo (PARTRIDGE, 2005). No Brasil, os agentes da Teologia da Libertação são a ponta de lança da ecoespiritualidade de matriz cristã. Vários textos de Leonardo Boff, em especial suas obras Ecologia: Gritos da Terra, Grito dos pobres (2004) e Ética e Ecoespiritualidade (2011), sugerem um cristianismo atravessado pela consciência ecológica e aponta os rumos de uma ecotopia que passa por uma nova consciência espiritual da relação integrativa ou holística entre a humanidade e a natureza. Sobre a ecoespiritualidade, o teólogo da libertação afirma:
Hoje essa espiritualidade descobre as dimensões ecológicas de nossa responsabilidade pela paz, pela justiça e pela integridade de todo o criado. Optar pela vida implica em optar pelo planeta Terra como um todo orgânico agredido e ferido (geocídio) para que possa continuar a existir no valor autônomo e relacionado de todos os seres existentes nele (BOFF, 2004, p. 257 – Grifo nosso).
Boff vai ainda ao encontro da tendência comum no âmbito das espiritualidades e de muitos dos novos movimentos religiosos que, como sugere Chistopher Partridge e Collin Campbell, reconhecem a verdade comum entre distintas tradições religiosas. Sobre isso, Boff afirma:
Não é saudável para a alma um rígido monoteísmo, como se toda a riqueza espiritual pudesse ser reduzida a um único princípio (...) devemos reconhecer que os pagãos tinham isso de extraordinário: viam a presença de deus e deus em todas as coisas (BOFF, 2004, p. 274).
A concepção de “deus em todas as coisas” nos remete a um “mundo de encantamento” que para as ecoespiritualidades implica colorir com o sagrado a relação entre a humanidade e a natureza, daí o motivo de autores como Partridge (2005) e Campbell (2010) insistirem na hipótese do reencantamento do mundo na modernidade tardia. Na ecoespiritualidade, o encantamento sugere a superação do antropocentrismo e de outras visões de mundo que são atribuídas ao aspecto mais técnico dos conhecimentos ocidentais que, segundo o modo de ver daqueles que sacralizam a natureza, está em certa medida relacionado à degradação do meio ambiente.
Em outro trecho, Boff faz expressa a visão holística que constitui a ecoespritualidade. Para o teólogo da libertação, a Terra e a humanidade são essencialmente indistintos. A consciência da indistinção deveria, no plano da ecotopia, inaugurar um novo “ato” do teatro universal da vida: o “ato planetário”. Nesse momento:
(...) a humanidade que estava dispersa está voltando à Casa Comum, o Planeta Terra. Descobre-se como humanidade, com a mesma origem e com o mesmo destino de todos os demais seres e da Terra. Sente-se como a mente consciente da Terra, um sujeito coletivo, para além das culturas singulares e dos estados-nações (...) A partir de agora, a história da humanidade será a história da espécie homo, da hominidade unificada e interconectada com tudo e todos (BOFF, 2011, p.76).
A ideia de “voltar para a natureza” e nela assumir a unidade – hominidade - da vida é parte do fenômeno da ecoespiritualiade e de sua tessitura holística que vincula os sujeitos à coletividade, à natureza e, finalmente, à Terra. A relação mulher/terra ou homem/terra define a antropologia da ecoespiritualidade e ao mesmo tempo uma ecotopia no sentido elementar da palavra, isto é, o “Lugar da Casa” que, segundo a citação de Boff, implica um senso de pertencimento planetário que está além de outras fronteiras, incluindo a religiosa já que o autor, assim como outros promotores da ecoespiritualidade, reconhece a validade de outras narrativas religiosas que estão em afinidade com os princípios éticos da fraternidade universal.
A questão da ética religiosa e sua influência em aspectos da vida social nos remete principalmente à obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo(2004) de Max Weber. Nela, o autor considera o que ele chama de “impulsos psicológicos” da ética protestante, em específico a disciplina do trabalho, para o desenvolvimento do capitalismo nos primeiros séculos da modernidade. Nesses termos, sugerimos que a ética da ecoespiritualidade também oferta impulsos psicológicos, aqui entendido por nós como conjunto de saberes, práticas e imagens de mundo que incidem na maneira com que orientamos nossa agência nas demais esferas sociais. Nesses termos, a ética da ecoespiritualidade produz então um conjunto de sentidos que influem sobre o modo que conduzimos nossa relação com a realidade social.
A ética ecoespiritual implica uma re-leitura da vida em sociedade tanto do ponto de vista horizontal, isto é, em relação aos outros, como do ponto de vista vertical, entendida a partir da relação entre humanidade e meio ambiente. Em ambas as perspectivas essa relação está arvorada na concepção de que a vida deve ser vista a partir da totalidade. Na supracitada obra de Leonardo Boff, lemos sobre essa nova relação enquanto uma relação baseada na ética do cuidado em relação ao meio ambiente:
(...) há que se ‘cuidar com compreensão, compaixão e amor’ da Terra, entendida como Gaia, Magna Mater e a Pachamana de nossos indígenas (...) não há diferença entre Terra e Humanidade. Ambos formam uma única entidade, com uma mesma origem e um mesmo destino. Só o cuidado garantirá a sustentabilidade do sistema-Terra com todos os seres da comunidade da vida entre os quais se encontra o ser humano, um elo entre outros, dessa imensa corrente da vida (BOFF, 2011, p. 50).
Como mencionamos anteriormente, a concepção holística da relação humanidade e natureza presume a sacralização do meio ambiente que passa então a ser concebida como a casa comum de todos os seres existentes. Em sua dimensão mais ampla, essa cosmologia vincula a humanidade à Terra, concebida como uma macro-entidade dotada de uma natureza divina, a Grande Mãe ou a Mãe Natureza. É por esse motivo que a ética em questão tem como pedra angular não apenas o retorno à natureza, mas a sensibilidade em relação à casa comum cujo cuidado depende da solidariedade global.
O retorno à natureza é para a ecoespiritualdiade o percurso da interioridade e, para retomarmos as observações de Peter Clarke (2006) sobre a “religião do eu verdadeiro”, um meio de alcançar a identidade espiritual autêntica do sujeito. A noção de “transformação da consciência”, comum às espiritualidades e a vários novos movimentos religiosos que trabalham com o papel da mente, implica a aquisição de uma consciência de integração entre o eu verdadeiro e a natureza, fonte de toda a vida. Rituais neo-xamânicos e neo-pagãos, assim como atividades meditativas, são orientadas por essa apreensão holística do mundo.
A ética da ecoespiritualidade passa também pela compreensão da necessidade de preservação do patrimônio cultural e intelectual de povos e minorias étnicas cuja existência histórica está vinculada à floresta. Esse patrimônio é compreendido como um conjunto de saberes da natureza, ignorados pela civilização ocidental e pelo conhecimento científico, e sua preservação, assim como a dos povos que o detêm, é um meio de alcançar a cura de males físicos e espirituais do mundo moderno. Em suma, esses saberes são valorizados pela associação entre práticas terapêuticas e o retorno à fonte da vida, a natureza. A eles, podemos acrescentar um forte sentimento de justiça social em relação aos povos detentores desses saberes, que eventualmente estão ameaçados pelo fluxo econômico do capitalismo moderno. Nesse sentido, a ética ecoespiritual traz embutida um sentimento de compaixão engendrada no interior de várias tradições religiosas.
No âmbito da realidade cotidiana, a ética ecoespiritual está vinculada a várias práticas que incluem desde a vida empresarial até as formas de militância política que procuram uma outra via diferente daquela que é associada à degradação do meio ambiente e à expropriação das riquezas naturais promovida pelo capitalismo industrial. Além disso, outros conteúdos políticos relacionados à justiça social, ao acesso à terra e também à preservação do patrimônio epistemológico de minorias e grupos indígenas são objeto da luta daqueles que compreendem que o modo de vida moderno, seus conhecimentos e técnicas, podem ter efeitos deletérios para as relações sociais e para o meio ambiente. Por sua vez, no âmbito privado, essa ética influi na vida alimentar, em especial no consumo de produtos naturais livres de agrotóxicos, e na rejeição ao controverso uso da engenharia genética, quase sempre relacionada aos interesses das grandes corporações capitalistas.
Os estímulos psicológicos da ética ecoespiritualista também incidem sobre a maneira que o empreendedorismo é compreendido. A produção de artigos naturais, alguns, inclusive, de validade duvidosa para a ciência, assim como a preocupação com a degradação da natureza parecem estimular uma disposição empresarial do tipo “capitalismo verde” centrado no baixo impacto da produção no meio ambiente. Nesse sentido, a relação entre a ética ecoespiritualista e a esfera econômica capitalista é ambígua; ela é concebida muito mais no plano da transformação do sistema do que em sua superação plena, ainda que, retoricamente, a ideia de uma ecotopia sugira uma mudança mais profunda e, em certo sentido, revolucionária. De qualquer forma, a ambiguidade dessa relação também implica a existência de tensionamentos que fazem do capitalismo, em especial o agronegócio, sinônimo de destruição ambiental e, consequentemente, de empobrecimento espiritual.
Podemos pensar a ecoespiritualdiade considerando que ela expressa a dialética entre a religião e as demandas da modernidade, em virtude de sua capacidade de imbricar reflexivamente a experiência de fé e as demandas prementes entorno da ecologia. Essa relação tem como síntese a própria ecoespiritualidade, atuando como uma fonte de inspiração que incide sobre toda a imaginação religiosa moderna e mesmo sobre instituições que gozam de maior reconhecimento no interior do campo religioso.
O Brasil parece-nos um terreno relativamente fértil para o desenvolvimento de ecoespiritualidades. Nossa história religiosa, em especial no interior do catolicismo popular, está repleta de exemplos de encantamento da natureza e da convicção em seus poderes taumatúrgicos. Das plantas medicinais das benzedeiras ao consumo ritual do Daime podemos encontrar uma imaginação religiosa sensível a uma leitura vitalista da natureza. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento desse fenômeno parece, como em qualquer outra parte do mundo moderno, se associar à consciência dos impactos das ações humanas cujo principal exemplo no país é a crise hídrica que atualmente atinge o Estado de São Paulo.
Além do catolicismo popular, a Teologia da Libertação e sua preferência pelos pobres acena para uma nova relação com a natureza enquanto parte fundamental da realização da justiça social. Os textos de Leonardo Boff (2004;2011) e Thomas Berry (1999) a que aludimos anteriormente apontam para uma mesma leitura da relação entre ecologia e espiritualidade no que toca a uma consciência dos riscos da degradação do meio ambiente e a partir dela do sentimento de cuidado com a “casa comum” expressa pela ideia da Mãe Natureza e Gaia. Parece-nos que a nova esquerda brasileira assim como aquela que existe em outras partes do mundo assume algumas dessas propostas que, como dissemos, testemunha a justaposição de demandas espirituais e políticas em torno do tema ecológico.
Ao enfatizarmos a ecoespiritualidade temos em mente ainda que assumir a espiritualidade como sinônimo de uma religião super individualista e pragmática, uma possibilidade que atinge mesmo as religiões que gozam do reconhecimento público, diga-se, é ignorar a própria pluralidade intrínseca ao fenômeno. Entendemos que nem toda espiritualidade é um “culto de clientela” e, no caso da ecoespiritualidade, ela é muito mais do que a simples busca pelo acesso a supostas potencialidades do eu mais profundo, mas uma maneira reflexiva que sujeito moderno encontra para vincular a busca pelo “eu autêntico” a uma causa coletiva que está diretamente relacionada às expectativas e riscos socialmente partilhado por mulheres e homens de todo o mundo. Ela é, para retomarmos a interpretação construtivista de James Beckford (2008), uma forma de redefinir o significado da religião e da experiência de fé que presume a “salvação” – bem-estar é o termo corrente nas espiritualidades - a partir de uma nova relação com a natureza.