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MÍDIAS DO IDÊNTICO: PERTENCIMENTO E FORMAS DE ASSOCIAÇÃO DO BÍBLICO AO JUDAICO COM BASE EM PRODUÇÕES BÍBLICAS BRASILEIRAS
Medios de lo Idéntico: Pertenencia y formas de asociación de lo bíblico a lo judío apartir de producciones bíblicas brasileñas
Media of the Identical: Belonging and Manners of Binding the Tiblical with the Jewish based on Brazilian Biblical Television Shows
MÍDIAS DO IDÊNTICO: PERTENCIMENTO E FORMAS DE ASSOCIAÇÃO DO BÍBLICO AO JUDAICO COM BASE EM PRODUÇÕES BÍBLICAS BRASILEIRAS
Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 25, e023029, 2023
Universidade Estadual de Campinas
Recepção: 25 Março 2023
Aprovação: 03 Outubro 2023
Resumo: Propomos discutir as possibilidades de identificação e associação com figuras judaicas a partir da veiculação e da promoção de telenovelas bíblicas produzidas no Brasil pela Rede Record de Televisão. Por meio de uma análise de conteúdo das reportagens a respeito destas produções bíblicas veiculadas pela emissora, discutimos um conjunto de consequências desta “publicidade religiosa” particular em que o objeto desta promoção (o pertencimento e a identificação com o judaísmo) não coincide diretamente com os emissores deste discurso, já que a Record é propriedade do líder da Igreja Universal do Reino de Deus. Trata-se de um discurso que conecta os judeus das narrativas televisivas bíblicas com os do presente e pleiteia um pertencimento a partir da proposição de aferição do pertencimento judaico. Argumentamos que tal discurso instaura tanto maneiras de autocompreensão possíveis e que são relativamente novas, como também traz consequências para noções como identidade pessoal, identidade nacional e identidade religiosa.
Palavras-chave: Identidade religiosa, Imaginário judaico, Judeus, Mídia e religião, Representações religiosas.
Resumen: Proponemos discutir las posibilidades de identificación y asociación con figuras judías a partir de la difusión y promoción de telenovelas bíblicas producidas en Brasil por la Rede Record de Televisão. A partir de un análisis de contenido de los reportajes sobre estas producciones bíblicas transmitidas por la emisora, discutimos un conjunto de consecuencias de esta particular “publicidad religiosa” em la cual el objeto de esta promoción (la pertenencia y la identificación con el judaísmo) no coincide directamente con los emissores de este discurso, una vez que la red Record es propiedad del líder de la Iglesia Universal del Reino de Dios. Se trata de un discurso que conecta a los judíos de las narraciones bíblicas televisivas con los del presente y reclama por la pertenencia a partir de la proposición de evaluar la pertenencia judía. Argumentamos que ese discurso estabelece tanto formas posibles - y relativamente nuevas - de autocomprensión, como trae consecuencias para nociones como la identidad personal, la identidad nacional y la identidad religiosa.
Palabras clave: Identidad religiosa, Judíos, Medios y Religión, Representaciones Religiosas.
Abstract: We propose to discuss the possibilities of identification and association with Jewish characters from the broadcasting and promotion of biblical soap-operas produced in Brazil by Rede Record de Televisão. Through a content analysis of the journalism pieces about these biblical productions broadcast by the station, we discuss a set of consequences of this particular “religious publicity” in which the object of this promotion (belonging and identification with Judaism) does not directly coincide with the agents of that speech, once Record is owned by the leader of the Universal Church of the Kingdom of God.It is perceiveble that there’s a discourse in these pieces that connects the Jews of the biblical television narratives with those of the present and claims jewish-belonging based on the several ways of identify it e define it. We argue that such a discourse introduces manners relatively new of self-understanding, as well as brings consequences for issues such as personal identity, national identity and religious identity.
Keywords: Religious identity, Jews, Media and religion, Religious representations.
Introdução
Seja grafando tensões no campo político brasileiro (Gherman, 2018, 2022; Gherman & Klein, 2019; Machado; Mariz; Carranza, 2021), seja enquanto forma de religiosidade emergente (Carpenedo, 2020, 2022), ou, ainda, enquanto discurso de relativa duração de apoio ao Estado de Israel (Machado; Mariz; Carranza, 2022), a aproximação entre agentes evangélicos e o judaísmo tem marcado um importante interesse de pesquisa e assinalado um conjunto de questões políticas, religiosas, estéticas, morais e midiáticas nos estudos sobre religião no Brasil.
Seguindo as contribuições de Meyer (2019) e Meyer e Moors (2006) e tomando as mediações (monumentalidades, produções audiovisuais, linguagens e suas formas de apresentação em espaços caracterizáveis como públicos) como meios de compreensão desse fenômeno, meu trabalho se soma a iniciativas que recortam as formas de acionamento de elementos “judaicos” por agentes ligados à Igreja Universal do Reino de Deus, dando especial atenção a seus efeitos. Pode-se pensar nos trabalhos de Gomes (2004), Mafra (2011), Giumbelli (2014) e Montero, Silva e Sales (2018) para refletir a respeito da imagética “judaica” tomada a partir de elementos referenciados como “bíblicos”, já que em seus objetos de pesquisa (as edificações da Universal e, em especial, o Templo de Salomão e seu Jardim Bíblico anexo, em São Paulo, e o Centro Cultural Jerusalém, no Rio de Janeiro), a centralidade do Antigo Testamento produz certa indefinição entre a pertença judaica e as denominações cristãs, num quadro de autoridade em nada secundário, tendo em vista que são todas iniciativas de uma igreja neopentecostal.
É possível referir ainda o trabalho de Pereira (2021) para pensar como projetos apoiados pela Universal se movem em direção à memória judaica no caso do monumento em memória às vítimas do Holocausto no Rio de Janeiro, o que não se dá sem certa agremiação de sentidos entre os seus apoiadores e o objeto que se fomenta em arranjos sociais complexos. Ampliando o escopo de referências para os neopentecostalismos e pentecostalismos em geral, deve-se marcar o trabalho de Cunha (2014) que, ao partir justamente da produção musical e estética destes grupos, identifica um movimento específico, em músicas e na ornamentação de templos, da presença de referências ao Antigo Testamento, com elementos e personagens bíblicos identificados com o judaísmo antigo a figurar de forma cada vez mais premente, chegando a sobrepujar referências ao Novo Testamento.
Proponho discutir a hipótese de que essa associação do bíblico ao judaico vem sendo movida, também, por produções veiculadas pela Rede Record de Televisão – de propriedade do líder da Igreja Universal – em suas telenovelas bíblicas e na maneira com que seu jornalismo e programas de entretenimento apresentam ao público formas de interpretar a presença do “povo hebreu da bíblia” nos dias de hoje e, mais especificamente, no Brasil atual. Por meio de um exame destas reportagens veiculadas em programas jornalísticos e de variedades que se apoiam no enredo judaico das novelas “Os Dez Mandamentos” (sobre Moisés e a libertação dos hebreus da escravidão no Egito, exibida entre 2015 e 2016, às oito e meia da noite) e “A Terra Prometida” (sua continuação, sobre Josué e as doze tribos de Israel, em mesmo horário, exibida em 2016), aponto que pode-se discutir a presença de uma publicidade em torno de narrativas judaicas que, neste discurso, provoca certa desestabilização na noção corrente de que a matriz de pertencimento religioso brasileiro seria a católica.
Na primeira parte do texto, apresento uma dessas reportagens e seu discurso a respeito da presença judaica no Brasil e de como este se apoia, parcialmente, nas telenovelas bíblicas, que fornecem imagens para o que é apresentado, por outros meios na reportagem, como histórico e factual. Na segunda seção, discuto os efeitos deste discurso no confronto com certos debates atuais que vêm justamente do campo judaico, no caso das possibilidades de reconhecimento “enquanto judeus” de sujeitos que pleiteiam tal pertencimento na disputa com os judeus mais estabelecidos e tidos como “ortodoxos”. O “para” no título da seção “Ser judeu ‘para’ quem?” salienta exatamente essa dupla inflexão: diante de quem um sujeito pode dizer que se identifica como judeu? Para além da autocompreensão do pertencimento enquanto fenômeno, torna-se relevante, assim, pensar mais amplamente a respeito das disputas sobre o reconhecimento desse pertencimento, bem como os limites da percepção celebrativa dessa possibilidade, como a veiculada pela Record em seu jornalismo.
O propósito da terceira parte do texto é o de pensar as formas de aferição da judeidade e seus contextos de autoridade, chamando atenção para os efeitos de sua definição enquanto um processo em disputa. Tanto a concepção de judeidade, com efeito, quanto as possibilidades de sua assimilação, podem ser tensionadas ou reificadas dependendo dos quadros de autoridade e de compreensão que se apresentam. Para nossa discussão, importa notar a forma como elas são percebidas e suas consequências para questões derivadas do problema da identidade. Por fim, sugiro as implicações dessas discussões para o tema das representações e seus efeitos para as maneiras de compreendermos algumas das consequências da aproximação entre judaísmo e agentes neopentecostais, com especial atenção para os projetos midiáticos como a teledramaturgia bíblica e seu potencial de produção de subjetividades em que a questão da “identidade” coincidente com um pertencimento religioso estrito pode se tornar bastante complexa.
O objetivo deste trabalho, portanto, é o de contribuir para o entendimento acerca de uma forma particular de “publicidade religiosa” (Engelke, 2013), em que uma religião (o judaísmo) pode marcar presença na vida pública sendo promovida por agentes cujo pertencimento religioso não coincide diretamente com o pertencimento que está sendo promovido, posto que a Igreja Universal pertence ao campo do neopentecostalismo. Importa, assim, justamente compreender de que forma, com que recortes e buscando quais efeitos essa publicidade vem ocorrendo.
Os judeus estão em geral ausentes dos quadros de análise que se ocupam das formas de presença da religião nas esferas pública e política no país de forma comparada (Montero, 2006; Giumbelli, 2008; Giumbelli & Scola, 2016). O caso específico da publicidade religiosa de narrativas judaicas aqui em exame aponta, como argumentarei ao longo do texto, para usos e reivindicações relativamente inovadoras a respeito das formas de pertencimento “judaico”. Nesse processo, a categoria de “bíblico” como mediadora se mostra importante, assim como a exemplificação que se utiliza das imagens e narrativas veiculadas pelas telenovelas bíblicas. É bem verdade que a produção de identidades amparadas em ideais de “coerência” não é novidade no campo religioso. Como intento apontar nas considerações finais, no entanto, o caso aqui abordado ganha interesse na medida em que tensiona certas formas de descrever definições de pertencimento enquanto aciona outras, que já foram utilizadas pela Universal, conforme bem descrito por Edlaine Gomes (2004), com referências a Israel e ao judaísmo como componentes estruturantes de sua autenticidade.
Os “Judeus da Silva” e suas formas de autocompreensão
O “Domingo Espetacular” da Record veiculou uma longa reportagem de quase trinta minutos relacionando os hebreus da novela “Os dez mandamentos” com a presença judaica no país. A reportagem foi ao ar em 20 de junho de 2016,1 com o título “O Brasil dos Judeus: o que os brasileiros sabem sobre os judeus”. Ela começa com a sequência da novela veiculada naquela semana da abertura do Mar Vermelho e com o locutor dizendo: “O mar que se abre no Egito paralisa e emociona o Brasil”, enquanto são vistas imagens de espectadores (famílias em ambientes domésticos, pessoas em locais públicos no que parece ser um shopping center) assistindo à sequência em questão com interesse e emoção (algumas lágrimas, olhos paralisados). Uma sonoplastia de coração batendo é ouvida por cima das imagens dos espectadores. O jornalista que narra a matéria segue:
Uma noite histórica para um país apaixonado por novelas. A cena mais esperada do ano mobiliza milhões de pessoas em frente à TV. E levanta uma pergunta: o que aconteceu com o povo de Moisés depois da fuga do Egito? Passados três mil anos, onde estão os descendentes deste povo? Depois de décadas pesquisando, estudiosos de várias partes do mundo garantem: milhões de brasileiros são judeus e não sabem.
Um dos objetivos da reportagem será o de mostrar as formas de reconhecer-se judeu – ou melhor, de descobrir-se judeu, já que esse pertencimento será apresentado a partir do que historicamente fez com que ele fosse apagado ou diminuído. O locutor segue: “Depois de décadas pesquisando, estudiosos de várias partes do mundo garantem que milhões de brasileiros são judeus e não sabem”. A edição corta as imagens de transeuntes numa cidade e passa a mostrar um cientista de jaleco, em um laboratório, com tubos e pipetas, que diz: “Um grande número de brasileiros, de portugueses, têm o DNA de Abraão. E precisam descobrir… saber de onde vieram”. O locutor completa com uma provocativa pergunta, antes da vinheta da série de reportagens “O Brasil dos judeus”: “E agora, como saber se você é um deles?”. A vinheta traz imagens que mostram a escrita hebraica ao lado de paisagens brasileiras e um homem que coloca um quipá e um manto sobre os ombros.
Após essa introdução, a primeira parte da reportagem se dedica a dialogar com certas figuras públicas para discutir seu pertencimento judaico a partir de caracteres que seriam “comuns” entre os judeus. O primeiro é Jurandyr Czackes, conhecido popularmente com Juca Chaves, músico, compositor e humorista. Ele fala sobre suas origens familiares (“pai austríaco judeu, mãe judia da Lituânia”) e descreve sobre sua relação com a religião: “Eu sou um judeu do Paraguai, não frequento sinagoga… Mas gosto dos rituais, é lindo o casamento judeu...”. O locutor segue dizendo que, apesar de não frequentar a religião, Juca “carrega duas heranças dos judeus”. Um deles seria “[o]s traços [físicos]...”, que Juca identifica como “o famoso nariz dos semitas”. A outra herança reconhecível em Juca é “a capacidade de rir de si mesmo”, que o jornalista considera “tipicamente judaica”. Juca é situado como “descendente direto do povo judeu”, conforme explicitado no discurso da reportagem, em razão da ascendência da família, que é de judeus.
“O que os brasileiros sabem sobre os judeus?”, pergunta o jornalista, se reportando à população entrevistada nas ruas. São identificados pelos entrevistados os seguintes traços: “o quipá”, “a barba grande”, “os cachos”, “o chapéu”, referências frequentes entre os judeus ortodoxos. A reportagem aponta que, “oficialmente, existem 120 mil judeus no Brasil. Se engana quem pensa que só judeus ortodoxos compõem os judeus no Brasil. Mas, afinal, como descobrir quem tem sangue judaico por aqui? Já já você vai descobrir como identificar o que este pesquisador chama de ‘DNA de Abraão’”.
Na segunda parte da reportagem, os personagens que são apresentados são brasileiros de distintas partes do país que, “na busca por suas origens”, perceberam-se ou descobriram-se, a partir de certo trabalho de investigação, como “descendentes de judeus”, ou, como a matéria chama, “descendentes do povo hebreu da Bíblia”. Essa expressão, “povo hebreu da Bíblia”, aparece em várias ocasiões durante a narração da reportagem e pode ser vista como uma categoria importante, uma vez que é ela quem faz a passagem, a aglutinação de sentidos, entre a “Bíblia” – cuja história se acompanha nas telenovelas e séries bíblicas da emissora – e os “judeus” do presente – descendentes que são dos hebreus bíblicos.
“Os descendentes do povo hebreu da Bíblia são mais comuns em nosso país do que a gente imagina. Como mostra em Recife, o repórter Jairo Bastos”. Em Pernambuco, o personagem trazido é um policial militar de nome Alysson da Silva. “No primeiro olhar, o policial é um pernambucano como tantos outros...”, diz o repórter, enquanto Alysson é visto em serviço, portando uma estrela de Davi no peito como pingente num colar. “Mas quando chega em casa, Alysson se transforma”, e ele é mostrado usando um quipá, uma manta sobre os ombros e entoando cânticos. “Mas nem sempre foi assim”, segue o repórter, e em seguida Alysson passa a falar sobre a descoberta de sua judaicidade: “Comecei a ler no jornal e descobri a questão dos sobrenomes e o período inquisitorial no Brasil, Espanha e Portugal...”. O repórter continua: “A pesquisa entrou fundo no passado da família Silva. E quem diria! O sobrenome mais popular do Brasil tem uma forte ligação com os judeus portugueses”. Alysson diz que seus antepassados eram de família judaica, dos “que ficaram conhecidos como cristãos novos: praticavam catolicismo em público e conservavam seu judaísmo em casa”.
As imagens mostram Alysson “percorrendo a pé” um caminho até “uma sinagoga na periferia de Recife”. Neste local, passam a entrar homens usando quipá e fazendo o sinal de referência no batente da porta de entrada (o mezuzá), ao que o repórter narra: “Um a um, chegam outros descendentes do povo hebreu da bíblia. Muitos praticavam os costumes judaicos desde a infância, sem saber”. Entrevistado entre os presentes, o empresário Youssef Sette exemplifica: “Chegava sexta-feira à noite e a minha avó colocava um lenço na cabeça, acendia umas velas... Eu perguntava a ela por que ela fazia isso e ela dizia que não sabia, que era pra chamar os santos...”. Os recifenses do grupo dos que “descobriram-se” judeus são mostrados em uma refeição conjunta, que é mostrada como, também, um importante sinal da religiosidade. Na mesa, estão, lado a lado, “o pão judeu trançado” acompanhado de “outros pratos, tipicamente nordestinos”, como a farofa de jerimum e o purê de macaxeira. Diz o repórter: “Juntos, brasileiros que se descobriram judeus recentemente celebram suas origens. A emoção toma conta da mesa...”, e cenas de “Os dez mandamentos”, na passagem da abertura do Mar Vermelho, passam à tela. “Para eles”, diz a locução, “descobrir-se judeu é saber que fazem parte de um povo que cruzou o Mar Vermelho e chegou à terra prometida”. Novamente, cenas da novela são veiculadas, com os personagens Moisés (Guilherme Winter) e Miriã (Larissa Maciel) cantando em hebraico.
Em seguida, volta-se à história de Alysson, que “Confirmou que era mesmo um ‘Judeu da Silva’ e abraçou sua origem. Mas não deixa de lado suas origens nordestinas”. Alysson é mostrado cantando “Asa branca”, música célebre composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, em uma versão em hebraico. E se justifica: “Os cânticos variam em cada local. A gente introduziu o ritmo do cântico de Asa Branca para lembrar a cultura nordestina”. Tem-se um corte e outro jornalista passa a aparecer numa biblioteca, segurando um livro nas mãos, e diz: “Histórias como a de Alysson são bastante comuns no Brasil. Para entender, é preciso voltar ao século quinze, quando os espanhóis descobriram a América e os portugueses chegaram ao Brasil. Uma história que não se encontra nos livros de escola”.
É então apresentada à audiência a pesquisadora Anita Novinsky, da Universidade de São Paulo, enquanto “especialista na história do povo hebreu da Bíblia”. A narração da reportagem tem imagens da novela para situar o público, de modo a construir uma linha do tempo sobre a dispersão dos judeus tendo “a abertura do Mar Vermelho e a chegada à terra prometida” como ponto de partida. Segue o repórter:
Judeus andam pelo deserto por 40 anos até chegar à terra prometida, Israel. Os séculos passam. Estamos em 70 d.C. e quem manda no mundo não é mais o Egito, mas sim Roma. É no ano 70 de nossa era que o Império Romano expulsa os hebreus da terra prometida. Os filhos de Israel se dispersam e passam a vagar pelo mundo.
Quase quinze séculos se passam, grupos de judeus chegam à Espanha e a Portugal. Por volta do ano de 1500, os monarcas desses reinos obrigaram os seguidores do judaísmo a se converterem ao catolicismo.
O recurso da reportagem para mostrar a passagem de tempo é uma animação em cartoon. O narrador continua: após a conversão forçada dos judeus ao catolicismo, “quem insistisse em praticar o judaísmo poderia ir terminar na fogueira da inquisição católica. Por isso, muitos filhos de Israel fugiram da Europa para o recém-descoberto Brasil. Os números de imigrantes judeus são muito maiores do que os livros de história mostram. Documentos mostram que 3 em cada 4 habitantes do Brasil Colônia eram os chamados cristãos novos. Isso mesmo! 3 a cada 4 desses brasileiros foram convertidos ao catolicismo, mas praticavam o judaísmo em casa”. Quem atesta o fato é a historiadora Anita Novinsky: “Isso eu tenho documentado... e eu tenho relatos de viajantes da época”.
O locutor segue: “O povo hebreu da Bíblia se espalhou pelo território brasileiro. Muitos tentaram a sorte nos engenhos de açúcar do Nordeste, especialmente durante as invasões holandesas, no século dezessete”. Anita atesta o fato: “O lugar que mais teve judaísmo no Brasil, que a gente tem documentado, é na Paraíba”. A partir disso, a reportagem segue para conversar com dona Lurdes Ramalho, de noventa anos, moradora local cujos bens de sua família foram, no passado, tomados pela Igreja Católica, na ocasião da inquisição. A reportagem diz que “assim como os pais de dona Lurdes, milhares de brasileiros foram atormentados por trezentos anos por serem judeus”.
O que atesta tal fato? A reportagem parte para Lisboa, com o jornalista correspondente da emissora, Teo Taveira, que fala do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, onde existem “arquivos preciosos sobre a inquisição portuguesa” e “provas históricas de um dos maiores massacres da humanidade”. Entre o material apresentado, “o mais raro” é o documento assinado pelo Papa Paulo III, de 1536, que iniciava oficialmente a perseguição a quem não seguisse o catolicismo. Uma pesquisadora portuguesa do arquivo afirma ao repórter que, ali, há mais de quarenta mil documentos comprovando o “terror enfrentado pelos judeus por mais de 300 anos”. No local também estão documentos em que se arrolam “as primeiras vítimas de execução pela Inquisição”, que traz “sobrenomes muito comuns no Brasil”, que são lidos e trazidos à tela da reportagem: “Fernandes. Fonseca. Correa. Mendes. Cardoso Pereira. Silva. Lopes”.2
Também é apresentado que a pena dos judeus era anunciada em outro ponto de Lisboa, a Igreja de São Domingos. O jornalista faz o percurso dos condenados pela Inquisição até o local onde eles eram executados em uma fogueira. Os últimos passos dos condenados eram marcados, assim, por um percurso de ofensas e ataques da população local, que também assistia “um a um os judeus serem queimados vivos”.
A reportagem se move para Belo Horizonte, Brasil, onde existe, desde 2012, o Museu da Inquisição. Nele, o diretor e fundador do museu, Marcelo Guimarães, apresenta os instrumentos de tortura utilizados pela inquisição contra aqueles que “insistiam em seguir seu judaísmo” no Brasil. Segundo Marcelo, “bastava uma denúncia, mesmo sem provas, para que abrisse um processo contra um judeu”. É pelo objetivo de visibilizar essa situação no país, essa “história oculta de milhares de brasileiros”, que o museu justifica sua existência como “uma justiça histórica”.
Voltando para os personagens da reportagem que “buscam suas origens”, somos apresentados ao médico Alexandre Coelho, que está há cinco anos em sua pesquisa. Ele é mostrado rodeado de dicionários de sobrenomes e em frente a um computador. Alexandre “encontrou pistas nas próprias lembranças” e cita certos hábitos que são vistos como “heranças judaicas”: “Sangrar o animal antes de comer. Lavar o defunto antes de enterrá-lo. Existem vários costumes que são judaicos e eu lembro de vários da minha infância...”. O locutor pergunta: “Mas, afinal, como uma pessoa pode ter certeza que é descendente do povo hebreu da Bíblia?”
Além das provas históricas, trazidas por Anita Novinsky, outros “especialistas” apresentados são Guilherme Faiguenboim e Paulo Valadares, historiadores e autores de pesquisa genealógica no tema. “Para nossa surpresa, a maior parte das pessoas que nos procura não são judeus. Eram brasileiros, cristãos”, diz um deles. “De tanto pesquisar o assunto, eles escreveram um livro”, conta o repórter, apresentando a obra de Paulo e Guilherme: o “Dicionário Sefaradi de Sobrenomes”, editado em um grande volume, que os autores citam trazer mais de dezesseis mil sobrenomes de cristãos novos.3 O repórter diz que a lista “inclui brasileiros famosos: Chico Buarque, Renato Aragão, Marisa Monte...”, e um dos especialistas afirma: “tem vários, mas nem sei se eles mesmos têm consciência dessa origem deles”.
Para ter “certeza” de sua descendência judaica, são apresentados alguns “passos”, para quem quer buscar sua origem pela via dos sobrenomes e documentos que atestem a origem sefardita. “Além do sobrenome”, segue o locutor, “é preciso fazer uma pesquisa genealógica, ou seja, descobrir nomes de familiares que viveram no Brasil Colônia e que passaram pela Inquisição”. Essa vivência estaria registrada no arquivo português citado anteriormente, o Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa. Guilherme Faiguenboim exemplifica: “Por exemplo, [se houver] um pentavô citado num processo e ser condenado, a probabilidade é altíssima”.
Além dessa pesquisa, “outros costumes” podem fornecer pistas da continuidade de descendência familiar judaica. A reportagem volta a Alysson, em Recife, que relembra costumes comuns como o uso de mortalhas para enterrar falecidos. Alexandre, o médico de Minas Gerais, também cita um dos “vários costumes que são judaicos”, como passar a mão na cabeça de crianças, dizendo “Deus te crie”. Outros exemplos, desta vez enunciados pelo próprio repórter, estão no uso de certas expressões:
Ficar a ver navios, que faz referência a judeus batizados à força nos portos de Lisboa; vestir a carapuça, referência às roupas usadas pelos filhos de Israel durante os julgamentos da Inquisição; não apontar para estrelas com medo de que nasçam verrugas, um mito inventado para que crianças não procurassem a estrela que anunciava o Shabbat, o sábado sagrado do judaísmo; dar aquela faxina na sexta-feira, assim como os judeus sempre fazem antes do Shabbat.
“Há ainda outra forma de investigar as origens judaicas que os cientistas acreditam ser a prova definitiva”, o que leva a reportagem ao terreno dos laboratórios. O repórter passa a entrevistar “o pesquisador Roberto Grobman, que garante que o fim da dúvida está no uso de kits de teste como esse aqui”, enquanto segura um kit para coleta de material genético. “O avanço de pesquisas genéticas auxilia quem está em busca de suas origens. Um exame de DNA feito a partir de saliva ou da mucosa pode dizer se pessoa tem sangue judeu ou não”, diz o jornalista. O pesquisador cita que “o exame pode ser feito pelo lado materno e pelo lado paterno”, e passa a demonstrar o procedimento de coleta, que se dá pela raspagem da mucosa da boca, ressaltando que “não dói nada”. O material é inserido em tubos de coleta, que o laboratório envia para os Estados Unidos.
Segundo Grobman, o teste pode regressar a “até cento e onze gerações e determinar as origens do investigado”. O próprio cientista fez o teste e depõe, dizendo que o exame confirmou o que ele já sabia, que tinha 91% de sangue ashkenazi, de judeus de origem europeia, misturado com outros povos, também europeus. O resultado dos testes chega aos contratantes “pelo computador, em cerca de 40 dias”. O repórter termina esta seção da reportagem perguntando a Grobman: “Por que é importante a gente saber a nossa origem?”. O cientista responde: “Os judeus se espalharam pelo mundo. Hoje, no Brasil, há um grande número de pessoas que descendem dos judeus e não sabem disso. Um grande número de brasileiros, de descendentes de portugueses, que possuem aquela origem. Possuem o DNA de Abraão. Eles precisam saber de onde vieram”.4
O arremate da reportagem opera pela justaposição dos personagens abordados na narração do repórter: “Um humorista de São Paulo” (Juca Chaves), “um policial em Pernambuco” (Alysson), “uma aposentada na Paraíba” (Lurdes). “Estados do Brasil, rostos bem diferentes, que assim como milhões de Silvas, Rodrigues, Lopes e tantos outros carregam no sangue. O Brasil dos Judeus”. Cenas da abertura do Mar Vermelho de “Os Dez Mandamentos” encerram a reportagem, com uma sonoplastia de tom épico.
Um elemento a considerar na exposição de personagens na reportagem da Record é que, à exceção da idosa paraibana, eles são homens, e a “continuidade” é aferida no masculino e como uma marca do masculino, como deixa explícita a expressão “DNA de Abraão”. Os citados na reportagem são personagens bíblicos homens (Moisés, Abraão) e os depoentes que grafam a sua “descoberta” enquanto judeus também são homens. Esse dado torna-se ainda mais relevante se tivermos em conta o fato de que trabalhos sobre a recepção de telenovelas tanto no Brasil (Almeida, 2003), quanto em contextos norte-americanos (Modleski, 1983), costumam recortar seus efeitos na organização da vida de espectadoras mulheres.
O recurso a “ancestrais comuns” como mediador de relações e de comunidades de pertencimento não é um tema novo, haja vista toda a agenda de pesquisa sobre o estudo dos nacionalismos (Anderson, 2008). Com efeito, a presença desse recurso na construção de coletividades (tratadas neste trabalho, com o apoio do trabalho de B. Meyer [2019], de “formações estéticas”) que se dão em registros que não o Estado-nação (e que também não se encaixam totalmente na definição do religioso, posto que a categoria frequente é “povo da Bíblia”) é digna de nota. Pela postura ambígua do “bíblico” em não coincidir totalmente com o “religioso” (ou com uma religião específica), pode-se perceber um ganho de espaço no sentido de construir sentidos possíveis com temas no nível do cotidiano que se apresentam à audiência enquanto “bíblicos”.
Ser judeu “para” quem?
O documentário “A estrela oculta do sertão”, lançado em 2005 e dirigido por Luize Valente e Elaine Eiger, aborda um tema próximo ao da reportagem da Record. Há, inclusive, certas repetições nos entrevistados apresentados pelo programa da emissora, entre os quais está a presença da pesquisadora e professora da Universidade de São Paulo, a historiadora Anita Novinsky. A esta acadêmica se somam outras presenças, como a de um antropólogo (Nathan Wachtel) e um genealogista (Paulo Valadares). O tema do documentário é a permanência de práticas judaicas no Seridó nordestino. Além disso, nele acompanhamos alguns indivíduos que se descobriram “marranos”, cristãos-novos, que buscam seu lugar junto à comunidade judaica estabelecida. A conversão depois de adulto é negociada junto a judeus “de origem”, que a reportagem da Record chamou de “descendentes diretos”.
Ocorre que, nos casos apresentados no documentário, os personagens apresentados não conseguem ser reconhecidos como judeus ou como tão judeus quanto os outros. Muito embora o tema dos cristãos novos seja visto como importante e merecedor de atenção, a negociação é por vezes frustrada e a conversão que oficializaria o estatuto de judeu daqueles novos ingressantes é adiada e colocada em questão diante da dúvida dos judeus “estabelecidos”, descendentes diretos, a respeito da possibilidade de conversão ou do nível de preparação dos candidatos.
O cenário trazido pelo documentário, portanto, é menos “aberto” no nível da identificação de brasileiros “comuns” como judeus, mesmo quando da aceitação do fato da conversão compulsória ao catolicismo no caso dos cristãos novos – e que seriam, portanto, “originalmente” judeus. Nesse sentido, pode-se dizer que convivem distintas “ontologias” (Mol, 2007) e que estas coexistem e disputam entre si no campo da aferição da “ascendência” judaica performando múltiplas realidades. Torna-se fundamental, assim, perceber os distintos alcances da reivindicação da “herança judaica” e as formas de demonstração e regulação que elas assumem.
O tema, como dito, não está ausente no campo do judaísmo e há até uma classificação para estas populações: judeus marranos – em hebraico, “Bnei Anussim”, que significa “filhos dos forçados” (Gutiérrez, 2011). Em setembro de 2021, uma articulista do Instituto Brasil-Israel publicou o texto “O dilema e o desafio de inserir o contexto brasileiro dos bnei anussim no debate histórico e político da diáspora”.5 No documentário de 2005 e no texto de 2021, percebe-se certa resistência aos marranos e dos bnei anussim na integração como um igual na comunidade judaica, em especial as mais ortodoxas. Tal postura aferida em casos concretos destoa do sentido mais “celebratório” da presença do “povo judeu da Bíblia” no Brasil, veiculado pela Record. Perceba-se que, na reportagem analisada, as formas de “ter certeza” e “encontrar provas definitivas” passam por cadeias de mediação que são pensadas em termos de distintas possibilidades. O que não aparece na reportagem da Record, contudo, são “judeus oficiais”, como, por exemplo, rabinos. O mais próximo da sinagoga que passamos na reportagem é no caso da periferia de Recife, que parece uma sinagoga “nova”, produzida pela reunião de “convertidos” na região (ver Imagem 3).
Mas os “judeus oficiais” são chamados vez por outra a autenticar a iniciativa da teledramaturgia bíblica e demais produções do ciclo bíblico. Ligado à Record, o portal de notícias R7 veiculou a frequência e o aval do público judaico para a versão em filme de “Os Dez Mandamentos”. Em fevereiro de 2016, publicou, por exemplo, uma entrevista com Persio Bider, identificado enquanto “presidente da JJO (Juventude Judaica Organizada)”, que afirmava que a novela, em especial, era um “fenômeno entre a comunidade” e que o filme estava agradando “jovens da comunidade judaica”:
— Eu já tinha visto a novela e muitos amigos judeus se envolveram com a trama. Quando veio o capítulo do Mar Vermelho, a gente ligava uns para os outros para avisar: “Põe na Record, põe na Record”. Mandava mensagem nos grupos de WhatsApp... Bombou demais! (…)
— Mesmo aqueles da comunidade que não têm o hábito de assistir a novela, ficaram felizes por ver nossa história em rede nacional e em uma emissora tão grande como a Record. O filme somente corroborou essa sensação, pois virou um programa de família, em que nas noites de shabat — quando a família toda se reúne sem celular, TV ou internet para conversar —, este tema, sem dúvida, foi o destaque. (R7, 09/02/2016)6
Em outra ocasião naquele mesmo mês, o R7 veiculava uma matéria intitulada “Sobrevivente do Holocausto se emociona com Os Dez Mandamentos – O Filme”, a respeito de um senhor de 91 anos, morador de São Paulo, que teria apreciado muito ver “a história do seu povo nos cinemas”:
Incentivado pela companheira, ele foi ao cinema no sábado passado (30) no Higienópolis, tradicional bairro judeu em São Paulo. — Não consegui assistir à novela porque estava trabalhando, tinha compromissos no horário, a minha companheira era vidrada, não perdia um capítulo e, logo que estreou, fomos para o cinema. Achei o filme muito bom, principalmente a cena da abertura do Mar Vermelho. Está lindo. É muito bom e pode ser lançado mundialmente, porque é uma história universal. (R7, 03/02/2016)7
Voltando às formas de aferição propostas pela reportagem da Record, além da investigação de gerações e do cruzamento com a documentação historiográfica a respeito da condenação pela Inquisição de membros de sua família de cinco séculos atrás, duas outras formas de conhecimento são mostradas ao público. Um deles é o recurso ao dicionário, que sistematiza muitos percursos de cristãos-novos no Brasil e que pode ser “um atalho” para a aferição da ascendência judaica. O outro, que me parece mais inovador, é o uso do teste de ancestralidade genética, cujo discurso veiculado soa quase mágico: ele possibilita retornar a até cento e onze gerações anteriores ao sujeito que faz uso dele, de modo a identificar traços genéticos que são nomeados como “o DNA de Abraão”.
O recurso à ancestralidade genética como definidor de identidades não é uma novidade,8 mas o seu uso para o caso do judaísmo é interessante porque pode nos fazer retomar uma concepção substancialista da definição de judaísmo que tem implicações regulatórias importantes. Como lembra Antônio Sérgio Guimarães (2021), tal definição inclusive traz consequências para a ideia de “raça”, em sentido amplo. Segundo Guimarães, no quadro da modernidade, os judeus foram compreendidos como racializados em distintas ocasiões, inclusive em momentos críticos do século XX. A aferição “genética” da judaicidade, embora surja aqui como uma operação de conhecimento de si e da nação (e de que estas sejam aferidas emicamente como positivas), não deixa de carregar a marca de uma concepção racializante no campo da definição biológica sobre um tipo social.
Judeidade, alteridade e assimilação
Na torrente de imagens e discursos evocados em torno da presença judaica no Brasil, um personagem é central na argumentação da Record: Moisés, que “abriu o Mar Vermelho” e cruzou com “o povo hebreu da Bíblia” o trajeto rumo à “terra prometida”. Contudo, pode-se questionar e encontrar muitas respostas para certa pergunta de longa duração: Moisés era judeu?
Este foi um tema que ocupou o fundador da psicanálise a ponto de ele ter escrito uma obra sobre o judaísmo, o qual corresponde a um de seus últimos trabalhos, em “O homem Moisés e o monoteísmo”. Neste trabalho, Freud (2018) defende que Moisés era egípcio, uma interpretação que não era totalmente nova, mas que ele apresentava em torno de argumentos sobre temas como identificação e diferença, que são constitutivos da psicanálise (Roudinesco & Plon, 2008: 518-519). Conforme Roudinesco e Plon, ao “desjudaizar Moisés”, Freud mostrou como ele era representante da figura do “criador”, que é sempre um exilado: “(…) quer um estranho na cidade, quer uma ruptura com a sua época, quer dividido em seu próprio íntimo. É sob essa condição que ele consegue inverter a tradição, suplantar a religião do pai, ter acesso a uma outra cultura e criar novas formas”. O argumento para a tese de Moisés ser egípcio tem origem na interpretação de que o monoteísmo não é invenção judaica, mas egípcia (Roudinesco & Plon, 2008: 520).
Recorrendo a este texto mais de cinco décadas depois de sua publicação, o crítico literário palestino Edward Said (2004) fazia uma palestra, no ano de 2001, em Londres, no Museu Freud, de título “Freud e os não-europeus”. Comentando este trabalho, Joel Birman (2004) salienta como a leitura de Said aprofunda o aspecto de crítica à modernidade da obra freudiana, no sentido de uma crítica à identidade coerente. Ao assumir o conflito que informa a subjetividade de Moisés (egípcio e fundador do judaísmo), Freud estaria reiterando uma das pedras fundadoras da psicanálise na sua elaboração sobre o sujeito: o seu caráter de conflito. Assim, em qualquer leitura normativa da identidade judaica, se estaria produzindo um recalcamento que voltaria na forma de “mal- estar”, que figura também no texto de Freud.
Pode-se depreender disso tudo que o discurso freudiano é uma crítica à modernidade, pois o que se inscreve no seu projeto sociocultural implica a exclusão de outras marcas, que devem ser então recalcadas por forças poderosas. Um projeto civilizatório implica, assim, um conjunto de marcas que se opõem a outras de forma diacrítica, mas que pretendem excluí-las para se impor como projeto. (Birman, 2004: 26)
No plano político, a produção “normativa” de uma separação coerente e unitária entre judeus e outros povos (o que seria, para Freud, uma ficção) tem consequências a serem anunciadas por Said diante do conflito Israel-Palestina. A identificação de Israel como “ao lado da Europa” apagaria, para Said, o fato de que o judaísmo se constituiu num contexto “especificamente não-europeu” (Birman, 2004: 26). Cita Birman: “Existiria algo de não-europeu nesta tradição que a colocaria numa relação de identidade/diferença em relação ao Oriente, que deveria ser devidamente reconhecida. O judaísmo estaria então numa encruzilhada, entre o Ocidente e o Oriente, estando aí sua riqueza” (Birman, 2004: 27).
A diferença como uma categoria analítica e da relação opera, assim, clivagens entre “Oriente” e “Ocidente” que tem informado posições no conflito entre palestinos e judeus:
Quando Said retoma essa leitura freudiana, interessa-lhe mostrar como, na atualidade, a política arqueológica do Estado de Israel busca apagar e silenciar suas origens não-europeias, indicando monumentos e traços arqueológicos que seriam estritamente judaicos desde sua origem na Palestina. Vale dizer que essa arqueologia se orientaria pela concepção substancialista da identidade judaica e se contraporia à perspectiva diferencial presente nesta tradição. (Birman, 2004: 29, grifos meus)
Quem pode definir pertencimentos judaicos? Como concepções de judeidade circulam e regulam processos de aferição da autenticidade, quando ela é pensada como religiosa e quando ela é pensada como política? O caso da teledramaturgia bíblica, como exposto, tem atualizado certo debate sobre essas perguntas e colocado em circulação respostas que competem com outras.
Para Said, um dos elementos que tornam a figura de Moisés tão interessante no âmago da gênese do judaísmo é o seu caráter de estrangeiro incorporável ao grupo judaico: apesar de forasteiro, Moisés seria “de alguma forma assimilável” (Said, 2004: 47). Mais adiante em seu ensaio, Said vai refletir sobre as consequências da tese freudiana em sua percepção de que o fundador do judaísmo seria alguém não totalmente judeu, rasurando a noção de que existiria alguma coerência entre “origem”, “território” e “religião” a convergir na fundamentação de Israel como um Estado:
Muito distante do espírito dos apontamentos deliberadamente provocativos de Freud, de que o fundador do judaísmo era um não-judeu e de que o judaísmo começou nos domínios do monoteísmo egípcio e não-judeu, a legislação israelense combate, reprime e até cancela a, cuidadosamente mantida, abertura de Freud da identidade judaica em relação ao passado não-judeu. As complexas camadas do passado, por assim dizer, foram eliminadas por uma Israel oficial. (Said, 2004: 73)
Se o debate de Said (2004) pensa as consequências da identidade judaica concebida como homogênea e seus efeitos em locais como a Europa e no Oriente Médio, um discurso “desde o Sul global”, conectando contextos, vem sendo veiculado pela Record. Trata-se de um discurso informado por debates locais, brasileiros, que não são alheios aos primeiros, mas que têm sua especificidade. Como bem elucidou Clara Mafra ainda em 2011, o projeto do Templo de Salomão, construído pela Universal, também aponta, assim como Said retomando o texto freudiano, para a hipótese do “mal-estar na civilização” cristã de origem europeia.
A força de persuasão da magnificência do Templo de Salomão está, se seguirmos as palavras de Edir Macedo, na sugestão de outro “entendimento” do cristianismo, segundo o qual, na longa narrativa judaico--cristã, Roma e Europa seriam largamente ignoradas. Com o templo, uma linha espaço-temporal cruzará o Mediterrâneo e o Atlântico, ligando Israel ao Brás, em São Paulo, sem desvio em terras europeias. Há aqui um diálogo com a tese do “mal-estar da civilização” — se a Europa filtrou a mensagem cristã de tal forma que ela se autorrepre-sentou no topo da hierarquia do mundo, sustentando a reprodução de uma humanidade crescentemente desigual, está na hora de ignorar estes interlocutores consagrados e reler a mensagem cristã em novos termos. (Mafra, 2011: 618)
Assim como no Templo de Salomão, pode-se ver na teledramaturgia bíblica uma iniciativa do campo da “cultura” que produz interpelações às formas de definição do “autêntico” e das aferições em circulação sobre representações religiosas que já se pensam como legítimas e estabelecidas. Escreve a autora sobre o Templo: “Nesta história, sentidos mais autênticos e verdadeiros do culto judaico, ignorados por mais de vinte séculos, aterrissariam abruptamente em um bairro de trabalhadores migrantes na periferia do capitalismo” (Mafra, 2011: 618). Em sua leitura desse “universalismo parcial”, Mafra aponta para produção de algo “novo” (um pertencimento “hebreu” tomado a partir do “bíblico” e que não passa pelo judaísmo ortodoxo, por exemplo), o qual interpela elementos já estabelecidos no campo religioso e que os faz funcionar a partir de outros projetos.
A instrumentalização das “origens materialmente rastreáveis” (que E. Said identificava na forma da arqueologia como um elemento importante na produção da identidade judaica-israelense na contemporaneidade) pode ser vista como uma forma de vinculação inovadora no que a Record chama de “povo hebreu da Bíblia”, por meio da autenticação de artefatos e processos históricos organizáveis de modo coerente. Esta organização de espacialidades, materialidades e formações estéticas pode ser vista junto ao processo de constituição do que Edlaine Gomes chamou, ao investigar a autenticidade como recurso arquitetônico e ritual da Universal, de “Israel mítico”, o qual compreende uma série de elementos identificáveis:
O vínculo com a terra santa é estruturante na concepção de igreja da Universal, o que pode ser observado em distintos cultos e rituais, como na “fogueira santa de Israel”, no valor conferido ao Antigo Testamento, nas peregrinações a Israel e nas pregações de bispos e pastores. (Gomes, 2004: 13)
No caso do discurso sobre pertencimento que a Record põe em circulação por meio da categoria “povo hebreu da Bíblia”, há uma inovação interessante no sentido de questionar narrativas mais ou menos oficiais a respeito da religiosidade preponderante no Brasil. Não só pelo acionamento, como a reportagem de “Domingo Espetacular” bem expõe, da Igreja Católica enquanto uma inimiga histórica do judaísmo e partícipe de processos violentos e condenáveis (os quais cumpre relembrar e fazer conhecer, conforme situa o Museu, brasileiro, da Inquisição), mas como uma instituição que ocultou a verdadeira forma de religiosidade predominante no país antes da Inquisição e da imposição do catolicismo aos “cristãos novos”: o judaísmo. Se a conquista ibérica da América Latina fazia a região “nascer católica” (Oro & Ureta, 2007: 281), o discurso da Record a respeito do “Brasil dos judeus” questiona a narrativa da hegemonia católica como um processo bem-sucedido e finalizado, e acentua maneiras de “descobrir-se judeu”, o que levaria a repensar a própria identidade nacional em nome de uma vinculação que não acione a origem católica como matriz de referência.
Segundo esse discurso, o “DNA dos judeus” está circulando insuspeitadamente pelo Brasil. Vale dizer que a Record tem mostrado a heterogeneidade do “povo hebreu da Bíblia”, inclusive em termos raciais. Para embasar tal projeto, a Record buscou a consultoria de um historiador, Maurício dos Santos,9 para apresentar as doze tribos de Israel que compõem a história da novela “A Terra Prometida”, e a apresentação de “algumas delas” ocorreu em reportagem do programa “Hoje em dia”, em 23 de agosto de 2016.10 A reportagem intentava situar o espectador em meio às tribos e aos vários personagens no lançamento de “A Terra Prometida”.
“A mesma fé” unia “homens e mulheres de características diferentes” que compunham as doze tribos, segundo a jornalista do Hoje em Dia. O esforço do programa de localizar o espectador em meio a tantos nomes e atores passa a ser, em seguida, comentar brevemente sobre os líderes de cada tribo. “O líder da tribo de Gad é Elizafe”, interpretado pelo ator Altair Rodrigues. A repórter narra que “o líder da tribo de Gad é negro, uma representação dos hebreus que migraram pelo continente africano”.
O historiador consultado prossegue em sua explicação: “Nós não temos uma tribo formada por negros. Mas nós temos negros que fazem parte de tribos. É uma referência histórica bem interessante”. Mesmo com uma ênfase em tipos físicos diferentes entre os membros das tribos israelitas, os negros compõem uma notória minoria no elenco da novela. Situação parecida pode ser vista em “Os dez mandamentos”, onde os atores negros são circunscritos ao núcleo egípcio, embora não entre os protagonistas. Outros recursos de “autenticidade” empreendidos pela teledramaturgia bíblica podem ser vistos no uso do hebraico em diálogos e músicas, e também nas viagens para gravação em locais da “terra santa” e a reconstituição de cenários no Brasil para a encenação destas tramas, bem como os efeitos especiais em momentos especiais das narrativas – como na abertura do Mar Vermelho, por exemplo, tornando a “grandiosidade” também um índice para aferição da autenticidade do bíblico junto aos demais recursos estéticos que remontam, ainda, ao hebraico e o judaico (Scola, 2021).
Considerações finais
A forma com que apresentamos e representamos a distribuição do pertencimento no espaço e no tempo é uma questão aguda para determinados grupos religiosos. Seguindo os trabalhos de J. Lorand Matory, defendo que as metáforas utilizadas para narrar um pertencimento religioso têm forte capacidade de interferir junto a outras representações (o que demonstra que se tratam de disputas no interior das formas de definição de uma religião) e também, o que parece mais importante para nossa discussão, que as metáforas modificam as formas de aferição do pertencimento religioso. Por trabalhar a força de metáforas como “origens”, “raízes”, “sobrevivências” e mesmo de “diáspora” para as religiões afro-americanas, Matory (2020) contribui, conforme o leio, para pensarmos certa ética e certo programa de pesquisa para quem se dedica a esses temas.
Ao salientar a agência em sentido amplo das formas de conhecimento embutidas nas metáforas e descrições a respeito da aferição do pertencimento religioso em contextos de disputa entre “o local” e o “transnacional” – ou, se quisermos, entre o oficializado e o contextual insurgente – e as múltiplas inovações e variações delas derivadas, Matory nos convida a pensar a todas as representações em jogo enquanto produções reflexivas de um diálogo. Disto resulta que não poderíamos hierarquizar estas operações de conhecimento e suas apresentações, mas descrevê-las em seus processos e efeitos. Analisando a diáspora africana, o autor sugere pensarmos metáforas analíticas utilizadas como as de “raízes” e o “diasporismo” (Matory, 1998, 1999) não enquanto “mapas de uma história cultural real”, mas como artefatos políticos (Matory, 2020: 984), que podem modificar (tensionar, colapsar ou transladar) pertencimentos visando a determinados fins.
Percebe-se no caso aqui em exame que os recursos “genealógicos”, “históricos” e de memória que vêm sendo apresentados pela Record tensionam formas de pertencimento judaico e sugerem questões importantes, em especial se tivermos em conta, como insisti ao longo deste ensaio, o fato de seus veiculadores não serem eles judeus, mas de se tratar de uma emissora cujo dono é o líder da Igreja Universal – ela mesma muito interessada em aproximações públicas com certas representações judaicas. Uma forma de pensar a relação em curso entre evangélicos e judeus, tomando a perspectiva dos primeiros em relação aos segundos, tem lugar na teologia da substituição, que entende os evangélicos como substitutos dos judeus enquanto “povo escolhido”, e a conversão destes ao cristianismo de matriz pentecostal. Conforme Jayme C. Jovengelevicius (2019):
Motivados por uma leitura literal da bíblia, esses setores evangélicos veem o estabelecimento do Estado de Israel como uma refundação do reino bíblico de Davi e uma confirmação das profecias messiânicas sobre o fim dos tempos. Por outro lado, é parte da escatologia milenarista que, durante o Armagedom, o final dos tempos, os judeus aceitarão Cristo como salvador, o que estimula iniciativas proselitistas por parte desse grupo. (Jovengelevicius, 2019: 54)
Esta não é a única posição possível do ponto de vista de uma denominação cristã em relação ao judaísmo: poder-se-ia, de fato, incorrer-se na mera desconsideração dos judeus com base nesta interpretação teológica da “substituição”. Como analisou Jovengelvicius (2019), contudo, tal posição vem sendo enunciada em coalizões cristãs em prol de um filossemitismo específico, nem sempre totalmente de acordo com os interesses dos judeus e dos israelenses, mas que utilizam referências judaicas para projetos específicos, em especial nos Estados Unidos, por denominações batistas e pentecostais. Este evento não está de todo ausente no quadro brasileiro, haja vista o trabalho de Gherman (2022) sobre o acionamento de referências judaicas, ao judaísmo e a Israel pela extrema-direita, em especial pelo bolsonarismo.
O tipo de apropriação marcada pela ambivalência em relação à identidade judaica promovida por agentes sociais externos a ela, presente em todos estes eventos, embora se resguarde a especificidade de cada um deles, pode ser visto em uma das produções da Record em seu ciclo bíblico. Refiro-me a “Apocalipse”, adaptação do livro bíblico de mesmo nome exibida entre 2017 e 2018, e que tinha núcleos de personagens evangélicos e judeus, inclusive ortodoxos e moradores de Israel, e que mostrava a estes últimos como problemáticos do ponto de vista moral, mas salvaguardava a virtude de seus personagens evangélicos.11
Seria possível tomar este tipo de representação como mais uma maneira de discutir uma interpretação da teologia da substituição que defendesse uma falta de interesse nos judeus pelos neopentecostais. Mas parece-me que o interesse duradouro da Universal nos “temas” e “representações judaicas” não trabalham em nome da mera superação do judaísmo. De outra forma, pode-se defender que se trata de um acionamento específico, interessado em produzir certa similitude com representações estabelecidas e, com base neste acionamento, produzir uma interferência inteiramente pública (no sentido de se darem, estas interferências, em âmbitos do espaço público) que fundamente certa aproximação na diferença em relação a esta, embora preserve o sentido de autenticidade das representações judaicas, pouco a pouco tornadas “bíblicas”.
Parece-me que é possível perceber um movimento de “regressão” a um judaísmo tido como anterior no caso dos “judeus da Silva” de que trata o jornalismo da emissora na promoção de “Os Dez Mandamentos”, como também de “superação” pela via – não enunciada, é verdade, mas conhecida por agentes religiosos – da perspectiva da “substituição”. A posição mediadora de processos sociais abrangentes do judaísmo nessa linha do tempo pode ser melhor compreendida se tivermos em conta os “imaginários” em disputa sobre Israel e os judeus, conforme descritos por Gherman (2022), entre o filossemitismo e o antissemitismo e, como apresentei na terceira seção deste texto, no fomento a uma concepção substancialista da identidade judaica, baseada em uma “unidade” entre elementos (como território, povo, linguagem). Nesse último caso, trata-se de uma concepção que tem claras implicações regulatórias e possibilidades de instrumentalização, e que, no caso das telenovelas, instrumentalizam outro repertório (tradições partilhadas, hábitos, expressões linguísticas, genealogia e, por fim, até certos genes em comum).
Há que se perceber a centralidade da mídia nestes processos, desfazendo oposições entre religião e mídias (Meyer, 2019) e percebendo, em lugar disso, as formas como produções midiáticas demonstram forte capacidade de produzir vinculação e “comunidades”, para além dos registros das religiões oficiais12 e do Estado-nação. Se pensarmos estas mediações a partir das mídias, a questão das mimeses pode ser melhor percebidas, de modo a salientar, como o fez Michael Taussig (1993), que aquilo que é produzido com base em um dado ente adquire propriedades daquilo que é mimetizado. Mesmo em um local aparentemente “secundário”, as mídias podem atravessar as temáticas e representações religiosas de modo a fomentar uma “globalização por baixo” (Meyer & Moors, 2006: 5) dos canais oficiais, tensionando processos sociais. Esta é uma especificidade importante no quadro dos estudos sobre televisão e religião. Diferentemente das produções audiovisuais analisadas por Lila Abu-Lughod no Egito (1995), 2003, 2006) e Veena Das na Índia (1995), em que os contextos religiosos (islâmico e hinduísta, respectivamente) devem ser tomado em conta pelos produtores destas telenovelas a fim de negociar e estimular os valores da “modernidade”, inclusive com apoio governamental, as produções bíblicas brasileiras têm se colocado outros objetivos quando se afinam aos projetos da Universal.13
O caso da campanha em torno do “Brasil dos judeus”, com efeito, pode ser visto como uma forma contextual com que produções audiovisuais articulam de forma imprevista “modernidade, melodrama e individualismo” (Abu-Lughod, 2003: 80), com uma telenovela exemplificando pertencimentos que podem ser “descobertos” e aferidos por meio da exposição de trajetórias individuais e pelo uso de tecnologias de distintos alcances. Se as possibilidades de pensar telenovelas enquanto projetos de tecnologia de governo em contextos onde a realidade religiosa é central já se encontram bem colocados em diferentes agendas de pesquisa, podemos também refletir com certa familiaridade a respeito do tema da identidade a partir da indústria cultural e suas consequências para o tema da subjetividade na tradição da teoria crítica.
Penso aqui na obra de Theodor Adorno, na sua contribuição ao questionamento das supostas identidades coerentes, compreendidas enquanto unidades de não-contradição, que seriam produto dos esquematismos oferecidos pela inscrição do desejo pelas formas de socialização hegemônicas, como aquelas que advém dos produtos da indústria cultural (Safatle, 2020: 186).14 Embora os impactos dessa promoção de identificações judaicas ainda não possam ser totalmente definíveis, pode-se pensar que esta publicização e esse convite persuasivo à identificação colocam questões para a própria ideia de identidade religiosa. Afinal, se “descobrir-se” pertencente ao judaísmo pode não ser consequência de uma adesão exatamente religiosa – veja-se que o convite ao público não se expõe em termos de uma eventual “conversão” ao judaísmo, muito embora o material analisado apresente um caso de uma conversão religiosa. Nesse discurso, tal “descoberta” de um judaísmo anterior e transformativo da identidade é apresentada como efeito de outras cadeias de significado.
Entre estas, significados da ordem do histórico, do genético ou do cultural, conforme os exemplos elencados no texto. O processo, afinal, sugerido ao público, é o de “descobrir-se judeu” e não de “converter-se ao judaísmo”. Pode ser por este motivo que uma emissora ligada a uma igreja neopentecostal sugere a identificação e a estabilização de representações como “idênticas” às do judaísmo: porque se depreende que o “idêntico” pode estar além de uma identidade estrita e inclusive funcionar a favor de uma outra identidade religiosa.
Numa palavra, o que estou sugerindo é que o idêntico bíblico-judaico pode ser uma maneira de pensar o processo de acionamento de referências vetereotestamentárias e ligadas ao judaísmo antigo que tem efeitos transformacionais inovadores (em especial, ligados às questões de autoridade e autenticidade religiosa) numa dada configuração social complexa, como a aproximação com o judaísmo no caso de agentes ligados à Igreja Universal no Brasil. Entre estes efeitos, parece-me claro que a produção da noção de “equivalência” entre domínios que, em outros registros, são percebidos como separados, traz implicações importantes. O resultado de uma equivalência para com o judaico pode fazer com que formas emergentes de pertencimento possam ser, em relação ao judaísmo, compreendidas, apresentadas e promovidas como assemelhadas, próximas, conectáveis ou, se reduzirmos a equivalência sugerida pelos produtores desse discurso a termo, como idênticas e consubstanciais a este.
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Notas
Autor notes