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DISPUTAS NARRATIVAS ACERCA DA ESPIRITUALIDADE NO CAMPO DAS COMUNIDADES TERAPÊUTICAS
Disputas narrativas sobre la espiritualidad en el ámbito de las comunidades terapéuticas
Narrative Disputes on Spirituality in the Therapeutic Communities’ Field
DISPUTAS NARRATIVAS ACERCA DA ESPIRITUALIDADE NO CAMPO DAS COMUNIDADES TERAPÊUTICAS
Ciencias Sociales y Religión / Ciências Sociais e Religião, vol. 25, e023008, 2023
Universidade Estadual de Campinas
Recepção: 22 Fevereiro 2023
Aprovação: 05 Maio 2023
Resumo: O artigo analisa disputas narrativas em torno da espiritualidade no campo das comunidades terapêuticas (CTs). Os dados observados são provenientes de levantamento bibliográfico, análise documental e entrevistas semiestruturadas realizadas com representantes de federações de CTs e mulheres atendidas em uma CT de perfil religioso. Entre nossas principais conclusões, constatamos a existência de tensionamentos sobre o entendimento do Estado e dos representantes de federações de CTs sobre qual deve ser o lugar e o uso da espiritualidade no modelo de atendimento dessas organizações. Ademais, as falas das mulheres acolhidas entrevistadas revelam que nem sempre a fé pregada institucionalmente está alinhada com as experiências de conexão com o sagrado vividas por essas mulheres durante a permanência em CTs. Por fim, a reivindicação das CTs para manter a espiritualidade como parte do atendimento ofertado demonstra o esforço de seus representantes de preservar a identidade dessas instituições.
Palavras-chave: Comunidades Terapêuticas, Espiritualidade, Religiosidade, Disputas narrativas.
Resumen: El artículo analiza las disputas narrativas en torno a la espiritualidad en el campo de las comunidades terapéuticas (CT). Los datos recopilados provienen de una revisión bibliográfica, de un análisis documental y de las entrevistas semiestructuradas realizadas con representantes de federaciones y mujeres atendidas de una CT religiosa. Entre nuestras principales conclusiones, encontramos tensiones en la comprensión del Estado y los representantes de las federaciones de CT sobre cuál debe ser el lugar y el uso de la espiritualidad en el modelo de atención de estas organizaciones. Además, las declaraciones de las mujeres entrevistadas que reciben tratamiento revelan que la fe predicada institucionalmente no siempre se alinea con las experiencias de conexión con lo sagrado vividas por estas mujeres durante su estadía en las CT. Por último, la demanda de las CT de mantener la espiritualidad como parte de la atención ofrecida demuestra el esfuerzo de sus representantes por preservar la identidad de estas instituciones.
Palabras clave: Comunidades terapéuticas, Espiritualidad, Religiosidad, Disputas narrativas.
Abstract: The article analyzes some questions about the narrative disputes on spirituality in the therapeutic communities (TCs) field. The data come from a bibliographical survey, document analysis, and semi-structured interviews carried out with representatives of TCs’ federations and women assisted in a religious TC. Among our main conclusions, we found the existence of tensions regarding the understanding of the State and the representatives of TCs’ federations about what should be the place and use of spirituality in the TCs care model. Furthermore, the statements of the interviewed women reveal that the institutionally preached faith is not always aligned with the faith experiences of these women during their stay in the TC. Finally, the claim of the TCs to maintain spirituality as part of their service demonstrates how fundamental it is to the preservation of the identity of these institutions.
Keywords: Therapeutic Communities, Spirituality, Religiosity, Narrative disputes.
Introdução
Ainda que muitas das análises realizadas sobre o lugar ocupado pela religião na contemporaneidade indicassem o enfraquecimento ou o próprio fim da religião, a religião e a religiosidade, de fato, não desapareceram (Oro & Steil, 1997; Giumbelli, 2002).1 Como aponta Berger (1996), o cenário atual parece demonstrar a ocorrência de processos de reordenamento, sendo que dentro deles estaria a reconfiguração ou transmutação da religião em espiritualidade.
Certamente, o dado mais relevante para a condução da discussão a seguir diz respeito ao fato de que o debate acerca (apenas) da definição de espiritualidade revela muito pouco sobre esse fenômeno. Do mesmo modo, a discussão analisada não prosperará na definição – se religiosa ou secular – das origens da espiritualidade. Por outro lado, analisar como este termo é empregado no cotidiano dos indivíduos e como suas definições estão conectadas com diferentes níveis de práticas e engajamentos nos parece uma opção analítica capaz de contemplar adequadamente a multiplicidade de sentidos e significados compartilhados em campo. Como indicam Giumbelli e Toniol (2020):
Vê-se então que não faz sentido assumir que a espiritualidade seja, aprioristicamente, ou parte do religioso, ou parte do secular. Perante isso, o que parece mais pertinente não é demarcar os limites conceituais da espiritualidade ou da experiência espiritual, mas sim identificar como a espiritualidade tem sido capaz de organizar e reposicionar o religioso e o secular. Em alguma medida, assumir essa analítica é a condição para atender ao chamado de Peter van der Veer (2009), (2013) de atentarmos para “a política da espiritualidade”. Isto é, para o modo pelo qual essa categoria produz realidades, agencia atores e mobiliza instituições. A política da espiritualidade, portanto, não diz respeito a um conceito, mas a uma espécie de recomendação metodológica que insiste na necessidade de compreender os usos da categoria espiritualidade situacionalmente, considerando as configurações de poder e de saberes com os quais ela se articula cada vez que é enunciada. (Giumbelli & Toniol, 2020: 15)
Outro aspecto relevante para a discussão proposta neste artigo advém dos apontamentos de autores como Luckmann (2014) e Berger (1985), que destacam a privatização da religião ou mesmo a negação das instituições religiosas na modernidade. Neste contexto, a religião passaria a ser compreendida como uma narrativa que exerce controle sobre os indivíduos, tirando destes sua plena capacidade de autodeterminação. Paralelamente, a espiritualidade insurgiria como uma narrativa portadora de características que valorizam a fluidez das crenças e uma nova experiência com o sagrado que, a princípio, estaria pautada nas vivências dos indivíduos. Enquanto modalidade de experiência com o etéreo, a espiritualidade estaria mais alinhada com a perspectiva que apreende a contemporaneidade como um cenário onde tudo é passível de se tornar provisório e líquido (Bauman, 2001), inclusive as crenças e pertencimentos religiosos. Em síntese, é possível dizer que a espiritualidade se trata de um fenômeno que ganha corpo e volume à medida em que a rejeição e privatização da religião avançam e se consolidam na modernidade.
De acordo com Giumbelli e Toniol (2020), a “espiritualidade” ainda se trata de um conceito que parece ter conquistado relevância fora do tempo, à parte da política e distante das configurações de poder e saber que particularizam os contextos sociais. Da mesma forma, não existiria consenso acerca deste conceito, e isso parece ser o resultado das disputas e tensões estabelecidas tanto na esfera teórico-conceitual, quanto – e sobretudo – no campo da vida social onde os indivíduos interagem dentro de complexas teias de significados formadas pelos sentidos que eles atribuem às suas ações (Geertz, 2019). Quando olhamos especialmente para dentro das ciências sociais, o uso da espiritualidade como categoria de análise expõe um registro bastante nuançado, que vai desde seu entendimento como um substantivo até “referências supostamente autoexplicativas quando mobilizada como adjetivo” (Giumbelli & Toniol, 2020: 12).
Em outros campos de conhecimento, nos deparamos com definições e usos da espiritualidade que expressam particularidades. Segundo o psiquiatra Harold Koenig (2012), pode-se conceituar espiritualidade como uma busca por sentido, por algum tipo de significado, propósito e verdade na vida. Ainda de acordo com o autor, a espiritualidade também está ligada com as concepções de conforto, paz interior e conexão com os outros e com as crenças e valores nos quais o indivíduo acredita. Dessa forma, para Koenig (2012) a espiritualidade estaria ligada a uma perspectiva holística da experiência humana. Outros autores como Gomes, Farina e Dal Forno (2014) ressaltam que a espiritualidade contempla questionamentos complexos dos indivíduos, como por exemplo: de onde vim? Qual é o meu propósito? Para onde vou? Assim sendo, é possível dizer que os autores convergem para a compreensão da espiritualidade como um conjunto de pensamentos, de sentimentos e de comportamentos voltados para o transcendente da vida e para a busca do sagrado.
No campo das discussões acerca das comunidades terapêuticas (CTs), estudos recentes na América Latina contemplam o lugar ocupado pela espiritualidade nos métodos implementados por essas instituições (Valderrutén & Del Carmen, 2008; Hernández & Odgers Ortiz, 2015, 2018; Algranti & Mosqueira, 2018; Targino, 2021a; Cortez & Barroso, 2023). Como sublinha Loeck (2018) ao analisar CTs brasileiras, de acordo com seus operadores, essas instituições promovem a transformação subjetiva-moral dos indivíduos que fazem uso abusivo e/ou problemático de substâncias psicoativas. Para atingir seus objetivos, é bastante presente nas CTs a percepção de que o cultivo da espiritualidade é essencial para que o indivíduo, de fato, alcance a meta de abstinência absoluta colocada pela instituição. Neste ponto, é importante ressaltar que as CTs operam segundo a lógica do completo afastamento do uso de quaisquer substâncias psicoativas.
Tendo em vista a pertinência da espiritualidade dentro do método aplicado pelas CTs, é comum nos depararmos com a interpretação corrente de que essas instituições são vistas como lugares voltados apenas para a conversão religiosa. Ao mesmo tempo, as CTs são frequentemente classificadas como espaços onde somente narrativas e práticas de cunho espiritual e/ou religioso estão presentes (Loeck, 2018). Contudo, deve-se salientar que a espiritualidade é um entre os três componentes que formam o tripé sustentador da metodologia das CTs, ou seja, ela não é um recurso empregado isoladamente. Além dela, também encontramos recorrentemente o trabalho (laborterapia) e a disciplina como mobilizadores das estratégias aplicadas pelos dirigentes de CTs.
Dados alcançados por meio da aplicação de um survey entre 1.950 CTs (IPEA, 2017), demonstram que 83% destas instituições no Brasil apresentam alguma orientação religiosa. Dentre elas, 47% são evangélicas, 27% são católicas, 9% são vinculadas a outras religiões e apenas cerca de 19% declararam não possuir orientação religiosa alguma, mesmo aquelas que praticam atividades de espiritualidade. Interessante constatar que o mesmo survey igualmente informa que 95,6% do total das CTs brasileiras afirmam utilizar a espiritualidade como método de tratamento e 90% delas afirmam realizar cotidianamente práticas de orações, cultos e atividades de leitura bíblica. Em outras palavras, os dados da pesquisa endossam a informação sobre a forte presença de práticas de espiritualidade nas CTs brasileiras, o que também é encontrado em estudos sobre CTs em outros países da região latinoamericana (Galaviz & Odgers Ortiz, 2014). No caso brasileiro, entre as atividades de espiritualidade foram registrados com maior frequência cultos religiosos com louvores, pregações e estudos bíblicos (IPEA, 2017).
No âmbito das CTs e de suas federações, ocorrem diversos níveis de disputas em torno do conceito e uso da espiritualidade (Barroso, 2021; Cortez & Barroso, 2023). Tais tensionamentos acontecem, sobretudo, em função da suposta legitimidade que a aplicação da narrativa da espiritualidade agregaria à modalidade de atendimento oferecido pelas CTs. Paralelamente à preferência pela categoria “espiritualidade”, nota-se igualmente um movimento de afastamento do uso do termo “religiosidade”. Para entendermos melhor este cenário, os dados da pesquisa realizada por Barroso (2021) nos parecem bastante ilustrativos. Em sua pesquisa, Barroso etnografou uma série de lives2 promovidas por federações de CTs através das mídias e redes sociais.3 Segundo a autora:
A preferência pela categoria “espiritualidade”, em vez de “religiosidade”, por parte dos atores sociais, busca evidenciar a interioridade dos sujeitos, mas também se desvencilhar de uma identificação direta e evidente dos dogmas institucionais relacionados às religiões. Essa também é uma estratégia para a aceitação dos órgãos públicos da participação das CTs junto à rede de serviços públicos. (Barroso, 2021: 97)
As análises de Barroso (2021) e de Cortez e Barroso (2023) sublinham que as tensões sobre como operacionalizar a espiritualidade em CTs que possuem convênios com o Estado estão vinculadas ao fenômeno da secularização na sociedade moderna. Essa questão, inclusive, nos remete à reflexão acerca da existência de limites que separam com nitidez o secular do religioso. Como as autoras destacam, o Estado brasileiro é oficialmente laico, mas são indiscutíveis os atravessamentos que a narrativa religiosa realiza em sua estrutura. A existência dessa relação fluida e dinâmica entre o secular e o religioso no espaço público brasileiro é marcante e por vezes radicaliza os debates que envolvem atores relevantes nesses campos.
No que tange ao processo de institucionalização das CTs brasileiras,
[q]uando Deus é convocado para o debate público, no processo de institucionalização das CTs, percebe-se que a religião está em uma zona ambígua entre o secular e o religioso. Logo, no discurso sobre a operacionalização da espiritualidade, também se tensionam essas fronteiras e colocam-se as federações como concorrentes na negociação com o Estado, no que concerne a esse ponto. Assim, os discursos nas cenas públicas elucidam as lutas dos atores vinculados às CTs, nas suas relações com o Estado, pressionando esses limites, a fim de obterem financiamento público sem perderem o que julgam ser a essência das CTs. (Barroso, 2021: 99)
Seguindo os apontamentos de Giumbelli e Toniol (2020), vemos que a noção de espiritualidade é reivindicada por ateus e secularistas. Neste contexto, a concepção de espiritualidade é transformada em recurso para organizar uma crítica à religião e aos seus “efeitos colaterais” negativos. Esta narrativa de crítica à religião possui diversas ramificações, como, por exemplo, a compreensão que posiciona a espiritualidade num lugar de maior moralidade que a religião, ou a perspectiva proveniente da psicologia onde a espiritualidade é tida como uma linguagem capaz de afastar os indivíduos dos extremismos religiosos. Em ambos os exemplos, percebe-se que a compreensão acerca da espiritualidade traz consigo a perspectiva de “moralizar” a relação do indivíduo com o etéreo, além de impedir que o fanatismo religioso se manifeste (Giumbelli & Toniol, 2020).
Diante de tudo que fora exposto até aqui, propõe-se uma discussão a respeito das disputas narrativas que ocorrem sobre os usos da espiritualidade no campo das CTs. Esta discussão será desmembrada em duas seções distintas e complementares. Na primeira, serão expostos e analisados alguns dados que informam sobre como a espiritualidade tem sido mobilizada na elaboração das normativas que regulamentam o trabalho realizado pelas CTs e como o debate acerca da espiritualidade se entrelaça com a discussão mais ampla sobre o financiamento dessas organizações pelo Estado. Já na segunda seção, a análise se voltará para a espiritualidade enquanto elemento que compõe as narrativas de mulheres acolhidas em uma CT de perfil religioso. Com esta abordagem, buscaremos construir uma observação multifacetada sobre as disputas narrativas acerca da espiritualidade no campo das CTs brasileiras.
A espiritualidade nas normativas que regulamentam as CTs
Nesta seção discutiremos sobre a incorporação da categoria espiritualidade nas normativas que regulamentam as CTs em nível nacional. Os dados para essa seção foram levantados a partir da triangulação de métodos: revisão bibliográfica, análise de documentos nacionais que regulamentam as CTs no Brasil e entrevistas semiestruturadas com 10 líderes de 6 federações de CTs que participaram do processo de construção das normativas nacionais que regulamentam essas organizações.4
Existem mais de 10 federações de CTs no Brasil. Essas federações agregam CTs e estão organizadas de acordo com suas crenças religiosas e/ou recorte geográfico. Lideradas especialmente por adictos em recuperação, essas federações têm se constituído como agentes importantes na interlocução com o Estado (Cortez & Barroso, 2023).
As entrevistas, realizadas online e com duração média de uma hora, tiveram por objetivo compreender as principais demandas desses atores frente ao Estado, especialmente no que concerne à temática da espiritualidade.
O principal documento estatal que regulamenta o uso da espiritualidade pelas CTs é a Resolução 01 de 2015 do CONAD, que define as atividades de espiritualidade como aquelas que “buscam o autoconhecimento e o desenvolvimento interior, a partir da visão holística do ser humano, podendo ser parte do método de recuperação, objetivando o fortalecimento de valores fundamentais para a vida social e pessoal, assegurado o disposto nos incisos VI e VII do art. 5º da Constituição” (CONAD, 2015: 6), que preveem a liberdade de culto e a prestação de assistência religiosa em entidades civis e militares de internação coletiva.
Nota-se que apesar das CTs serem organizações que em sua maioria possuem vínculos, origens e identidades religiosas, especialmente cristãs, e praticarem atividades religiosas como método de tratamento, a definição de espiritualidade presente na Resolução 01 de 2015 do CONAD busca se afastar de uma perspectiva estritamente religiosa e/ ou cristã. Nela são citadas atividades de autoconhecimento e desenvolvimento interior, a partir de uma visão holística do ser humano, não citando nominalmente a realização de rituais religiosos específicos – como a leitura de textos bíblicos e orações.
Isso ocorre porque, como já afirmado por Cortez e Barroso (2023), a espiritualidade surge como uma categoria que resolve um dos conflitos mais importantes entre as CTs e o Estado: o financiamento público de um modelo de tratamento cujo uma das bases é religiosa. Segundo nossos entrevistados, a espiritualidade só foi incorporada no linguajar das CTs e nas normativas que regulamentam essas organizações, a partir da relação das federações de CTs com o Estado na busca de financiamento público.
Eu acho que quem inventou essa coisa de espiritualidade foi o Estado para abarcar a legislação. Como a legislação proíbe, então a espiritualidade é permitida. (Representante de Federação de CT, entrevistado 8)
As principais justificativas dos representantes de CTs para a manutenção da espiritualidade como parte importante do modelo de tratamento dessas organizações, não foram identificadas nos textos estatais que regulamentam as CTs no Brasil. Segundo os representantes das CTs, o uso abusivo de substâncias psicoativas se trata de uma doença de natureza não apenas física, mas também espiritual. Isso ocorre porque, nas palavras de nossos interlocutores, o ser humano é biopsicossocial e espiritual, sendo que essa última dimensão não pode ser negligenciada.
Então, ele (o ser humano) tem que ser visto como um todo, biopsicossocial e espiritual. Então, quando você vê um homem como um todo, a espiritualidade não pode ficar de fora, ela tem que ser cuidada também, tem que ser levada para as pessoas. (Representante de Federação de CT, entrevistado 7)
A ideia de que o ser humano tem uma dimensão espiritual não é invenção do campo das CTs. Em seu livro “Espiritualidade incorporada”, Rodrigo Toniol (2022) demonstra como em 1984, durante a 37ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), a “dimensão espiritual” passou a ser considerada como um fator intrínseco à saúde humana, sendo integrada ao programa de estratégia da saúde dos Estados Membros da OMS. Desde então, a categoria espiritualidade (como uma dimensão do ser humano) entra na área da saúde e passa a ser disputada por vários grupos, religiosos ou não, inclusive as CTs.
No caso das CTs, o reconhecimento da dimensão espiritual do ser humano pela OMS é utilizado como meio de legitimação do modelo de tratamento proposto por essas organizações frente ao Estado, cujo um dos tripés é justamente a espiritualidade. De acordo com nossos interlocutores, desde que a OMS reconheceu a espiritualidade como uma dimensão da saúde humana, o Estado brasileiro passou a considerá-la como um dos tripés possíveis do tratamento a usuários de substâncias psicoativas, tema que sempre rendeu muito conflito entre CTs, instituições estatais e outros grupos da sociedade civil, conforme demonstraram Cortez e Barroso (2023).
A Organização Mundial da Saúde reconhece a espiritualidade como um fator curativo. Então é mais ou menos por aí que eles (atores do Estado) começaram a concordar com a gente. (...) Eles (atores do Estado) começaram a não poder negar o que é claro que existe. (...) Mas, a implicância com a espiritualidade é muito grande. É um embate muito grande. (Representante de Federação de CT, entrevistado 2)
Ao longo de nossa pesquisa, indagamos os representantes de CTs entrevistados sobre o fato de a espiritualidade não estar presente no tratamento de outras doenças e o porquê deveria estar no tratamento de pessoas que fazem uso abusivo de drogas. Segundo eles, há vários motivos para isso. O primeiro é que a pessoa passaria a usar drogas para buscar um sentido para a vida, vazio esse que só a espiritualidade poderia preencher, a partir de uma reconexão com algo maior (divino) do que o próprio indivíduo.
Então o foco dessa espiritualidade é você se reconectar com algo muito maior e muito superior que você mesmo. É o que diz os doze passos e como a gente trabalha. (Representante de Federação de CT, entrevistado 7)
Ainda na dimensão do tratamento, outro aspecto apontado pelos representantes de federações de CTs entrevistados é que a espiritualidade se trata de um mecanismo fundamental para que um indivíduo que possivelmente cometeu crimes e gerou sofrimento para pessoas amadas possa se perdoar. Isso fica claro na fala do entrevistado a seguir:
Imagina na minha vida eu nunca mais poder devolver (a vida) às pessoas que eu matei, devolver a vida dessas pessoas, repor o que eu já fiz. Tentei sim me perdoar e buscar Deus (...) que é para ter o perdão do que fiz. Gente, se perdoar é mais difícil ainda. Eu acredito na minha vida que isso me ajudou a mudar (…), por isso a Bíblia veio. Vivo o que está no Evangelho (...) mas eu acredito que quem me deu a oportunidade foi Deus na vida. Não fui só. Porque é muita coisa, muita, muita, muita coisa. Eu passei por muitas coisas. (Representante de Federação de CT, entrevistado 3)
O terceiro aspecto apontado pelos entrevistados sobre o porquê a dimensão espiritual é fundamental para o tratamento de usuários de drogas, tem a ver com a religião como um mecanismo de proteção física e social. Segundo eles, a igreja seria um lugar de proteção tanto na fase de prevenção quanto para a recuperação do indivíduo. No caso da prevenção, muitos deles afirmam que uma família que frequenta de forma assídua a igreja tem menos chances de que seus filhos se envolvam com drogas, pois suas principais amizades serão dentro da instituição religiosa. Ademais, a igreja também seria um fator importante na recuperação dos indivíduos, pois os mantém distantes das drogas e da violência.
(...) estar numa igreja não é indício de que o indivíduo nunca vai ter problemas, mas é um fator de proteção. A espiritualidade é fator de proteção também. (Representante de Federação de CT, entrevistado 1)
(...) [nossa] oferta de serviços é fundamentada na espiritualidade cristã evangélica como fator de prevenção (…). [U]ma família com crianças que desde pequenas participam das atividades da igreja, onde os pais também têm um comportamento longe das drogas, então, o fator de proteção já começa na prevenção e depois é um fator de superação da dependência química. (Representante de Federação de CT, entrevistado 5)
Meus amigos todos que andavam comigo, todos, o último o filho dele matou ele para ficar com a boca de craque de Minas Gerais. Nós éramos nove que andávamos juntos construindo essa vida, eu sou o único que tô vivo. Eu não continuei. Hoje eu vejo os milagres acontecendo todo dia. Fica muito difícil não falar para as pessoas sobre Deus. (Representante de Federação de CT, entrevistado 3)
Todos os três aspectos citados por nossos entrevistados para justificar a importância da espiritualidade como um dos métodos de tratamento das CTs, também são encontrados em outras pesquisas na América Latina. Ao pesquisar CTs em região de fronteira no norte do México, Gloria Galaviz e Olga Odgers Ortiz (2014), 2016) identificaram uma narrativa de que a espiritualidade preencheria um vazio existente nos indivíduos, semelhante ao que identificamos no caso brasileiro. Ademais, Odgers Ortiz (2022) tem apontado em seu trabalho como os centros religiosos no México são instituições de proteção contra violências e a religião, mecanismo importante para que os acolhidos possam lidar com a culpa de atos realizados antes de serem acolhidos em CTs.
Outra justificativa para a defesa da espiritualidade pelas CTs é de natureza organizacional. Segundo nossos entrevistados, a espiritualidade, juntamente com a disciplina e a convivência entre os pares, é um dos pilares do modelo de CT. De acordo como eles, se qualquer um desses pilares for retirado, o modelo fica comprometido e se descaracteriza, deixando de ser CT. Por isso a defesa da espiritualidade por essas organizações frente ao Estado significa uma defesa de sua própria identidade organizacional e, portanto, de sua sobrevivência.
Nós entendemos como CONFENACT que a espiritualidade faz parte do nosso método. O método de CT consiste no desenvolvimento da espiritualidade, nas atividades práticas, nas atividades de autocuidado, quando a pessoa cuida da sua higiene pessoal, as atividades recreativas e a convivência entre os pares. Então, esse é o modelo. A partir do momento que você tira uma perna dessa mesa do método, a mesa vai ficar sem uma perna e vai ficar balançando e pode cair essa mesa. Então, nós defendemos que a espiritualidade faz parte do método. O método de CT. Se não tem espiritualidade, se não tem convivência entre os pares, se não tem atividades práticas de autocuidado, atividades recreativas, de uma certa forma deixa de ser CT (Representante de Federação de CT, entrevistado 6).
Se você for estudar a fundo toda essa história, surgiu mesmo de um pastor que queria ajudar pessoas que estavam nessa situação e que viu que o caminho era esse (...) então, quando você tira isso (a espiritualidade) você perde um pouco o foco do que é uma comunidade terapêutica (Representante de Federação de CT, entrevistado 7).
Segundo os relatos acima, é possível dizer que a disputa pela manutenção da espiritualidade no protocolo de funcionamento das CTs está conectada com uma preocupação de seus dirigentes em preservar a identidade dessas instituições. Esse posicionamento dos entrevistados revela o entendimento de que as CTs podem ser descaracterizadas se seus dirigentes renunciarem à espiritualidade como parte do atendimento oferecido a usuários de substâncias psicoativas. Justamente por isso, quaisquer negociações com o Estado nesse sentido parecem inviáveis, visto que comprometeriam aquilo que os atores das CTs classificam como parte estruturante destas instituições.
Nesta seção vimos que há diferenças importantes nas narrativas sobre espiritualidade encontradas nos documentos do Estado e nas falas dos representantes de CTs entrevistados. Enquanto nas normativas do Estado, a espiritualidade surge como categoria secundária, que busca afastar as práticas religiosas do que é desenvolvido no interior das CTs, nas falas dos representantes das CTs, a espiritualidade aparece como algo muito mais central e próximo de uma perspectiva religiosa. Segundo esses atores, a espiritualidade é central porque a doença enfrentada por pessoas que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas não é apenas física, mas espiritual. Portanto, essa dimensão é fundamental para que se possa preencher um suposto vazio no indivíduo que foi aberto pela doença. Em segundo lugar, de acordo com esses entrevistados, a espiritualidade se trata de meio fundamental para que esses indivíduos possam se perdoar dos erros (pecados) que cometeram no passado. Por fim, porém não menos relevante, para os representantes de CTs, a igreja se trata de um ambiente importante tanto para a prevenção quanto para a recuperação dos indivíduos que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas. Ademais, segundo os entrevistados, a espiritualidade faz parte do tripé que compõe a identidade do modelo de CT e retirá-lo seria acabar com esse modelo organizacional.
Na próxima seção, discutiremos como a categoria espiritualidade é disputada e compreendida pelos próprios acolhidos dessas instituições, no contexto de uma CT de perfil religioso.
Agência e espiritualidade nas narrativas de mulheres acolhidas em CTs
Tratamos até aqui sobre as tensões e disputas em torno da espiritualidade no âmbito das definições das normativas pelos atores e instituições que, direta ou indiretamente, se relacionam com o cenário das CTs, assim como das diferenças de percepções sobre o tema presentes nas normativas estatais e nas falas de representantes de CTs. Contudo, a análise da dimensão que envolve a prática da espiritualidade pelos acolhidos em CTs igualmente nos parece indispensável para alcançarmos uma melhor compreensão acerca das particularidades que atravessam o debate sobre o tema no campo dessas instituições. Para tanto, serão analisados dados obtidos por meio de cinco entrevistas semiestruturadas realizadas ao longo do segundo semestre de 20205 em uma CT de perfil religioso, que chamaremos de CTX, voltada exclusivamente para o público feminino.6 Buscamos, assim, compreender como a espiritualidade figura nas narrativas de mulheres atendidas em uma CT que emprega a religiosidade e a espiritualidade no atendimento oferecido.7 Ao mesmo tempo, objetivamos captar se as narrativas acerca da espiritualidade vivida/experienciada por essas mulheres dentro das CTs estão alinhadas com as expectativas e discursos da instituição em que estão acolhidas.
É importante salientar que as entrevistas com as mulheres acolhidas8 ocorreram durante a pandemia de COVID-19 e que este evento esteve presente nas narrativas das entrevistadas, especialmente no que tange à maneira como elas compreendem e experienciam a espiritualidade ao longo da permanência na CTX. Todavia, não queremos dizer com isso que em períodos anteriores ao “novo normal” a percepção de acolhidos e acolhidas em CTs sobre a prática e experiência da espiritualidade tenha sido menos intensa ou irrelevante. Como apontam Loeck (2018) e Brandão e Carvalho (2016), mesmo antes do contexto pandêmico a espiritualidade já se fazia presente tanto no tripé sustentador da modalidade de atendimento das CTs, como também nas narrativas daqueles que buscam algum tipo de auxílio nessas instituições. Por isso, considerando o momento em que as entrevistas foram realizadas, parece plausível a constatação de que essas mulheres destacaram em seus relatos determinados contornos e nuances, mas que esses contornos e nuances já existiam no “velho normal”.Para uma problematização mais aprofundada acerca das narrativas sobre espiritualidade apresentadas pelas acolhidas, é necessário observar o lugar ocupado pela categoria de conversão no discurso dos líderes de CTs com perfil religioso. Embora frequentemente estes líderes declarem que não há imposição para que os acolhidos passem a aderir às práticas religiosas realizadas nessas instituições, em pesquisas anteriores (Targino, 2017) foi possível apreender que recorrentemente as narrativas dos líderes de CTs religiosas mencionam a centralidade da conversão para que, de fato, ocorra o abandono do uso de substâncias psicoativas. Além disso, uma vez que estas instituições constroem rotinas pautadas em atividades de cunho religioso, é comum os líderes relatarem que a conversão dos acolhidos constitui o principal garantidor para que o funcionamento da rotina institucional não seja comprometido.
Em primeira instância, a conversão remete ao comprometimento com a prática religiosa. Porém, a conversão enquanto parte do processo de construção de um novo ethos para os acolhidos em CTs é descrita por Teixeira (2011) como um fenômeno formado não apenas pela prática, mas também pela crença. Ou seja, um indivíduo plenamente convertido, segundo a retórica compartilhada entre as CTs de perfil religioso, seria aquele que demonstra estar engajado com as práticas religiosas e que acredita na eficácia destas práticas.
A centralidade atribuída à conversão religiosa no atendimento de usuários problemáticos de substâncias psicoativas é igualmente relatada por Olga Lidia Olivas Hernández e Odgers Ortiz (2015); Odgers Ortiz, 2022). As pesquisas conduzidas pelas autoras em centros de reabilitação pentecostais localizados na fronteira norte do México nos informam que a conversão religiosa nestas instituições é compreendida como um evento de extrema importância, visto que possibilita aos indivíduos que passam pelo atendimento uma conexão legítima com Deus, ao mesmo tempo em que promove a ressignificação do mal. Hernández e Odgers Ortiz (2015); (Odgers Ortiz, 2022) também apontam que a narrativa dos dirigentes dos centros de reabilitação converge no sentido de caracterizar a conversão como um processo indispensável aos indivíduos atendidos, pois entendem que Cristo constitui a fonte de força moral necessária para vencer o mal que o uso de substâncias psicoativas representa.
Entretanto, mesmo que exista a expectativa da instituição para que seus acolhidos se convertam à religião professada intramuros, por meio da observação dos dados das entrevistas realizadas na CTX, nota-se que as acolhidas podem se apropriar de maneiras diferentes das crenças institucionais e igualmente se envolver em níveis variados com as práticas religiosas que compõem a rotina da CT. Assim, mesmo que a conversão seja apresentada com tons de exigência institucional, este processo não ocorre alheio à vontade e exercício da agência dos acolhidos.
Quando voltamos o olhar para a maneira como a espiritualidade das acolhidas entrevistadas se manifesta durante a permanência na CTX, percebemos que esta é uma das dimensões onde a agência dessas mulheres parece operar. Na medida em que elas demonstram exercer certo grau de autonomia diante da retórica institucional, seus registros de experiências com o sagrado expõem singularidades que, em diversos momentos, revelam sentidos e significados (re)construídos com base em suas trajetórias individuais. Aqui, sobressai a perspectiva que considera a espiritualidade como um fenômeno fundamentado em aspectos pessoais e subjetivos refletidos pelo sujeito na sua experiência religiosa ou na sua busca pelo sagrado (Siqueira, 2008). Em outras palavras, ainda que a instituição tente normatizar a experiência das acolhidas com o sagrado, enquadrando-a nos limites da narrativa compartilhada institucionalmente, existem manifestações e experiências que ocorrem na esfera individual que remetem a outros níveis e modalidades de conexão com o etéreo.
Após construirmos este breve panorama, passamos então para a análise dos dados obtidos na CTX. Esta instituição está localizada na região norte do Estado do Rio de Janeiro, e trata-se de um projeto impetrado por uma igreja evangélica que compõe o grupo chamado de protestantismo histórico (Silveira, 2013). Quando da realização das entrevistas, a CTX operava com lotação máxima de acolhidas. Contudo, entre os meses de fevereiro e março de 2020, período em que foram adotadas medidas restritivas para evitar a contaminação pela Covid-19, muitas mulheres abandonaram a CTX, ficando apenas 9 acolhidas, número que representava menos da metade do quantitativo de mulheres que ali viviam antes do início da pandemia. Segundo o ponto de vista das entrevistadas que presenciaram o movimento de debandada, o ápice do esvaziamento da instituição ocorreu em função de muitas das acolhidas terem sido contempladas com o auxílio emergencial oferecido pelo governo federal aos brasileiros em situação de vulnerabilidade. Entre as mulheres ouvidas, prevalecia o entendimento de que as acolhidas que deixaram a CTX no início da pandemia o fizeram com a intenção de usar os valores obtidos com o recebimento do auxílio emergencial para comprar substâncias psicoativas e retornar ao uso dessas substâncias.
Entre as entrevistadas na CTX, três delas haviam chegado à instituição antes da adoção das medidas sanitárias relativas à pandemia de Covid-19. Elas, que com as demais acolhidas que permaneceram na CTX ao longo do período mais radical da quarentena formaram o grupo autointitulado de as “nove resistentes”, expuseram em seus relatos a experiência da busca pelo sagrado permeada pela retórica de obstinação e persistência. Dessa forma, foi comum encontrar nas falas das entrevistadas referências à força interior e à espiritualidade como recursos aos quais estas mulheres recorreram para suportar a permanência na CTX, mesmo diante das dificuldades impostas pela pandemia.9
A permanência na CTX durante o período mais radical da pandemia também representou para as “nove resistentes” um período indefinido de espera. O desconhecimento acerca do vírus que circulava, assim como a ausência da vacina e o número crescente de óbitos provocados pela doença tornaram a CTX, para aquelas que lá permaneceram, um espaço seguro para aguardar a chegada de um cenário mais favorável. Nesse sentido, Odgers Ortiz e Galaviz Granados (2016) falam sobre como os centros de reabilitação evangélicos para usuários de substâncias psicoativas localizados na fronteira norte do México também se constituem como lugares de espera. Essa espera, nos dizem as autoras, implica a percepção relativa do tempo, visto que cada indivíduo vivencia a passagem do tempo de maneira particular. Da mesma forma, Odgers Ortiz e Galaviz Granados (2016) sinalizam que os usuários dos centros de reabilitação veem esse processo de espera como uma oportunidade para construir novos projetos de vida e novos “começos” para sua trajetória.
Passemos então para o relato de uma das “nove resistentes”. Hosana,10 64 anos, viúva, usuária de álcool e residente na CTX há um ano e seis meses quando da realização da entrevista, nos diz que:
Quando entrou esse negócio de [auxílio] emergencial do governo, esse negócio mexeu muito com as mulheres daqui. Por isso que o pessoal em março [de 2020] ó... todas as meninas que saíram, receberam [o auxílio emergencial] (...) muitas que foram [embora] em março, que viram, cresceu o olho (…), esse período [de pandemia] foi mais tranquilo para mim e para as meninas que ficaram, porque só ficaram as que se davam bem umas com as outras. As mais problemáticas saíram logo no começo e a casa ficou vazia. Era uma tranquilidade que você nem imagina (...) eu falo por mim e acho que também posso falar um pouco por todas as resistentes porque eu mesma passei por uma mudança muito grande, digo uma mudança da minha cabeça, sabe? A minha forma de ver a vida (...) ficar aqui sozinha com mais oito, só, me ensinou muita coisa e me deixou mais próxima de Deus. (Hosana, acolhida da CTX, destaques nossos)
Interessante notar que, para Hosana, a experiência de permanência na CTX possui contornos de transformação pessoal onde se revela para ela uma nova “forma de ver a vida”, pautada em aprendizados que a aproximam de Deus. Ao longo de sua entrevista, Hosana retorna diversas vezes ao fato de ter sido uma das “nove resistentes”. Sua narrativa expressa, em diversos aspectos, a percepção de que a experiência de isolamento social dentro da CTX se configurou numa oportunidade para seu aprimoramento pessoal e espiritual. A religião ou espiritualidade institucional passa lateralmente pelas transformações vividas por Hosana. A “tranquilidade que você nem imagina”, vivida pela entrevistada, é o registro de um período em que nenhum contato com o mundo exterior era possível para as acolhidas da CTX. Toda a rotina movimentada, até então seguida à risca, onde as mulheres frequentavam aos cultos da igreja à qual a CTX é vinculada e realizavam reuniões do grupo de oração e estudo bíblico, estava suspensa por tempo indeterminado. Acrescenta-se a isso o fato de que a CTX adotou, como medida preventiva à contaminação da Covid-19, a restrição de qualquer contato físico até mesmo entre as “nove resistentes”. Enfim, é neste cenário onde se localiza a narrativa de Hosana.
Os relatos das entrevistadas demonstram que, mesmo diante das exigências institucionais – explícitas ou não – para que elas creiam e se engajem frmemente nas atividades religiosas praticadas, ainda assim existem diversos níveis de negociações onde essas mulheres expressam seu poder de agência. Neste ponto, consideramos que a compreensão das mulheres entrevistadas sobre serem/terem ou não se convertido à igreja que funciona como “pilar religioso” da CTX constitui uma informação extremamente importante para nossa problematização.
Analisando as respostas para as perguntas “qual é a sua religião?” e “sua religião atual é a mesma que você professava antes de ingressar na CTX?” é possível perceber que apenas duas das entrevistadas, dentre elas Hosana, declararam terem se convertido, enquanto as demais apresentaram respostas que sinalizam outros formatos de conexões com o sagrado. “Sou filha de Deus”, “tenho o meu Deus” e “vivo com o meu espírito santo” foram as respostas que as três mulheres “não convertidas” trouxeram em suas narrativas. Importante acrescentar que a líder da CTX foi igualmente ouvida em uma entrevista. Quando perguntada sobre o papel das atividades religiosas e da conversão no atendimento a mulheres usuárias de substâncias psicoativas, ela foi bastante enfática ao dizer que a CTX se trata de uma instituição “cristocêntrica” e que acredita ser bastante difícil uma acolhida se afastar do uso dessas substâncias sem, de fato, estar convertida. Visto que a líder da CTX corporifica o discurso institucional, pode-se dizer que as respostas dadas pelas três mulheres não convertidas expressam um afastamento em relação às expectativas institucionais.
Assim sendo, percebemos que as narrativas dessas mulheres parecem versar sobre a dimensão da agência exercida por elas no âmbito de suas crenças e engajamentos com as práticas religiosas. No mais, é necessário problematizar até mesmo as narrativas das mulheres que se declaram convertidas. Uma vez que estamos tratando de uma instituição onde a conversão é colocada como uma condição sine qua non para o sucesso do atendimento oferecido e, muitas vezes, até mesmo para a permanência das acolhidas na CTX, não causaria espanto que algumas dessas mulheres se declarassem convertidas apenas para atender às demandas institucionais (Targino, 2021b).
Ainda no que tange ao debate sobre agência e espiritualidade na CTX, outro relato ilustrativo trazido por mais uma das “nove resistentes” é o de Raquel, uma mulher de 32 anos, mãe de quatro filhos, dependente de cocaína e álcool, residente há um ano e quatro meses na CTX quando da realização da entrevista. Segundo a entrevistada, a decisão por permanecer na instituição mesmo diante de um cenário de incertezas e sem a possibilidade de receber visitas de seus familiares, foi a prova que ela precisava dar a si mesma de que, desta vez, conseguiria se afastar do uso de substâncias psicoativas. Raquel tem uma trajetória muito comum entre usuários de CTs. Ela, que antes de ingressar na CTX foi acolhida em outra CT de perfil pentecostal, nos conta que “falhou” em sua tentativa anterior de deixar o uso dessas substâncias porque, em sua perspectiva, sentia que não era capaz de atender o nível de “religiosidade” exigido pela instituição pentecostal. Para Raquel, seu suposto fracasso na primeira experiência de acolhimento em uma CT parece ter sido superado pela descoberta de sua “força interior” e pelas transformações que ela relata ter vivido ao longo do período de isolamento na CTX. Ela igualmente diz que:
Eu passei um tempo aqui dentro achando que era só obedecer às regras, que era só ser uma boa moça. No geral, você dizer que você obedece às regras, que você faz a sua parte. Por exemplo, eu fazia a minha parte, mas eu não tava nada fazendo a minha parte porque eu tava me escondendo atrás de uma capa de religiosidade (...) então, aqui dentro da [CTX] foi muito bom pra mim descobrir quem sou eu, porque eu não sabia quem era eu. Eu não me conhecia. Eu não sabia das coisas que eu era capaz e do que eu sou capaz de fazer com Deus e em Deus. Que Deus de verdade pode mudar aquela velha criatura horrorosa pra uma mulher que eu sou hoje (…). Como eu tava te explicando, isso não tem a ver com vestir uma capa de religiosidade, como eu pensava antes. Eu só vivi o que eu vivi aqui dentro porque eu deixei Deus me mostrar minha própria força interior. Porque eu mesma tinha a chave pra deixar a droga, mas eu não sabia como encontrar e a minha mente e o meu espírito precisaram passar por uma mudança muito grande pra que eu entendesse que a resposta para minha aflição estava dentro de mim mesma. (Raquel, acolhida da CTX, destaques nossos)
Em sua narrativa, Raquel atribui centralidade ao momento em que ela “descobre quem é”, ao mesmo tempo em que compreende que seu processo de autoconhecimento nada tem a ver com “vestir uma capa de religiosidade”, ou seja, repetir mecanicamente as regras impostas pela instituição. A experiência de aprimoramento pessoal e espiritual narrada por Raquel contextualizam sua resposta à pergunta “qual é a sua religião”, ocasião em que a entrevistada diz não ter religião e se define unicamente como “uma filha de Deus”. Este dado, além de nos servir como um registro do exercício da agência e, em certa medida, autonomia de Raquel diante da fé pregada dentro da CTX, igualmente demonstra que o formato do relacionamento da entrevistada com o sagrado parece ter como pilar principal os sentidos e significados que ela atribui aos acontecimentos que atravessaram suas tentativas de deixar o uso de substâncias psicoativas.
Outro processo que parece estar presente ao longo da permanência de Raquel na CTX é a corporização do sagrado. Este fenômeno é igualmente trabalhado por Hernández e Odgers Ortiz (2015) na pesquisa que realizaram sobre usuários de centros de reabilitação pentecostais. Segundo as autoras, ao mesmo tempo em que existe uma dimensão narrativa do sagrado, há também as experiências que são introjetadas no corpo, ou seja, são corporizadas. E, no contexto de reabilitação de usuários problemáticos de substâncias psicoativas, diversas experiências corporizadas pelo sujeito podem adquirir uma significação vinculada à noção do sagrado (Hernández & Odgers Ortiz, 2015). Dessa forma, a noção de sagrado corporizado pode nos ajudar a compreender aquilo que no relato de Raquel é denominado como a “força interior” que ela descobre após permitir que Deus atuasse em sua vida. Raquel estabelece uma diferenciação bastante interessante entre o antes e depois, onde o antes é compreendido pela entrevistada como o momento em que ela “vestia a capa da religiosidade”, e o depois é marcado pela sua transformação efetiva em uma “nova criatura”. Esta distinção entre dois momentos de sua trajetória remete ao nascimento de um novo “ser”. A “nova criatura”, mencionada por Raquel, sinaliza a transformação por ela vivida. Se antes ela apenas “vestia” a religiosidade, após ela permitir a ação de Deus, o sagrado passa a ser corporizado e a transformação da entrevistada se torna efetiva.
Interessante sublinhar que, assim como Raquel, outras duas entrevistadas ressaltaram em suas narrativas que não possuem vínculo religioso com quaisquer denominações, mas que experienciam algum tipo de relacionamento com o etéreo. Isso demonstra que as expectativas institucionais quanto à religiosidade e/ou espiritualidade podem, em determinados casos, não estar alinhadas com as experiências vividas e sentidos e significados construídos pelas acolhidas. Existe, inegavelmente, uma dimensão de agência das mulheres atendidas onde elas encontram a possibilidade de elaborar diferentes conexões com o sagrado.
Considerações finais
Neste texto, argumentamos que existem diversos tensionamentos no que tange ao entendimento que o Estado e os representantes de federações de CTs expressam sobre qual deve ser o lugar e o uso da espiritualidade no modelo de atendimento proposto pelas instituições analisadas. Enquanto as normativas do Estado apresentam a espiritualidade como categoria secundária ao tratamento de pessoas que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas, distanciando sua definição das práticas religiosas que realmente ocorrem no interior das CTs, os representantes de federações de CTs destacam a espiritualidade como algo muito mais central e próximo de uma perspectiva religiosa. Em sua visão, as pessoas que recebem tratamento em CTs possuem uma doença física e espiritual, e por isso devem ser tratadas também espiritualmente. Ademais, para os representantes das federações, a igreja se trata de componente fundamental tanto para a prevenção, quanto para a recuperação de usuários de drogas. Essa última visão também pode ser encontrada na percepção da liderança da CT religiosa pesquisada, já que, para essa instituição, a conversão é o meio fundamental para o processo de recuperação do indivíduo.
Entretanto, as falas das usuárias entrevistadas revelam que nem sempre a fé pregada institucionalmente está alinhada com as experiências de conexão com o sagrado vividas por essas mulheres durante a permanência na CT. Como as entrevistas com as mulheres acolhidas na CTX demonstram, a informação de que não existiria conflito ou disputas em torno da espiritualidade dentro das CTs nos parece pouco consistente, especialmente se considerarmos o fato de que os acolhidos em CTs podem exercer seu poder de agência e transitar entre as várias nuances de crenças e engajamentos, orientados pelas suas referências pessoais de conexão com o sagrado. Além disso, deve-se sublinhar que o próprio espaço para agência dos acolhidos em CTs é entrelaçado também aos símbolos e significados espirituais e religiosos que permeiam esses espaços. Tendo em vista que as CTs de perfil religioso se particularizam de acordo com os conjuntos cosmológicos que aderem, as negociações realizadas no campo das subjetividades pelos acolhidos igualmente se tornam particulares. Por fim, a reivindicação das CTs para manter a espiritualidade como parte do atendimento ofertado demonstra o quanto ela é fundamental para o trabalho e para a identidade dessas instituições.
Quando se trata do posicionamento das CTs diante dos órgãos públicos capazes de validar sua participação junto à rede de serviços públicos de saúde, a espiritualidade é acionada com o objetivo de facilitar a aceitação do trabalho realizado por essas instituições. Por estar mais alinhada com os preceitos da modernidade, a espiritualidade parece ser mais palatável mesmo para aqueles que proferem discursos mais radicalizados contra a presença da religião nos cuidados de saúde. Assim sendo, o uso do termo espiritualidade insurge como uma possibilidade de conectar as CTs à modernidade, afastando-as de uma suposta mensagem de controle das mentes e dos corpos que o uso da religião no atendimento de usuários de substâncias psicoativas parece transmitir. Ainda, compreendemos que o uso do termo espiritualidade no campo das CTs também visa o alcance de legitimidade para essas instituições, tal como mostram os eventos ligados à escrita das normativas descritos neste trabalho.
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Notas
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