RESEÑAS

Osterne, Maria do Socorro Ferreira (2020). Violência nas relações de gênero e cidadania feminina 2ª edição. Fortaleza: Edmeta Editora.

Paula Fabrícia Brandão Aguiar Mesquita
Universidade Federal do Ceará, Brasil

Osterne, Maria do Socorro Ferreira (2020). Violência nas relações de gênero e cidadania feminina 2ª edição. Fortaleza: Edmeta Editora.

Revista Tramas y Redes, núm. 1, pp. 193-196, 2021

Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales

Osterne Maria do Socorro Ferreira. Violência nas relações de gênero e cidadania feminina. 2020. Fortaleza. Edmeta Editora. 258pp.

Recepción: 01 Noviembre 2021

Aprobación: 08 Noviembre 2021

A pesquisa da professora Socorro Osterne poderia, aos desavisados, soar como mais uma sobre o tema complexo da violência de gênero, não fosse pelo grande fôlego do debate levantado por ela, ancorado fortemente na epistemologia de estudos feministas e de gênero. Seu olhar incide, diretamente, sobre as facetas desse tipo de violência, definida em seus mais fortes matizes.

O estudo teve origem no acompanhamento dos casos registrados na Delegacia de Defesa das Mulheres de Fortaleza, Ceará, no ano de 2004, mediante apanhado feito nos Boletins de Ocorrência, através de observação in locus e entrevistas com as mulheres denunciantes e, eventualmente, com os próprios agressores. A ideia foi tentar compreender a cadeia de significados que permeia os discursos das mulheres que denunciam a violência, apreendendo as tensões da dualidade do tipo algoz versus vítima, relacionando-a com a histórica condição da não-cidadania feminina. A pesquisadora propõe o dilema: ainda é possível pensar num mundo melhor, mais humano e livre?

Resposta de difícil alcance, se pensarmos que o feminismo foi um dos movimentos mais revolucionários do século XX – para não retrocedermos ao século XVIII, onde aconteceram importantes lutas e movimentos de resistência que modificaram profundamente as relações entre os grupos sociais haja vista o deslocamento nos papeis de gênero. Osterne, apressa-se em delinear os contornos do que nomeia de feminismo, em sua abordagem multi-perspectivista e em suas ideias além das fronteiras. Fala de um feminismo globalista, mas também localista, que comporta análise relacional e conexões transdisciplinares e transnacionais.

Corajosa e astuta na condução desse delineamento, impecável em sua sustentação, a autora propõe que essas relações são fundadas na primazia de valores masculinos sobre os femininos, evidenciados como se estiveram naturalizados. Ainda que um casal se forme pela sua unidade, destaca a diversidade das relações interpessoais e sugere evitar cair no dualismo vítima e agressor, isso para que as questões de mais alto alcance possam ser apreendidas.

Com sua destreza peculiar, expõe o resultado de sua pesquisa em cinco capítulos. O primeiro intitula-se “O sentido da violência e suas especificidades contra a mulher no contexto das relações sociais de Gênero”. Neste capítulo, apresenta a violência como categoria analítica que perpassa o ordenamento social e, igualmente as relações de poder. A obra, analisa a violência e seus condicionantes sobre as relações heteronormativas de homens e mulheres, seguindo o rigor teórico necessário a acolhê-la em suas múltiplas expressões, seja física, moral, institucional, sexual, doméstica, psicológica, dentre outros.

Assim, embasa a ideia de que a violência doméstica é um fenômeno de múltiplas determinações, tanto advindas da ordem normativa quanto das relações vivenciadas pelo casal, sendo a desigualdade social uma dessas significativas implicações. Sugere que as relações de poder apresentam importante papel, pelas lentes de Michel Foucault, como algo que não tem uma essência, única ou global, que possa ser possuída em detrimento a outra, mas antes como uma prática cultural histórica.

Para dimensionar a complexidade da discussão sobre violência e relações de poder, a autora dialoga também com Marilena Chauí e sua ideia de relações de força e liberdade. Dialoga, também, com Saffioti, para pensar a violência doméstica como “aquela que acontece numa relação afetiva, que privilegia o masculino, cuja ruptura, por vezes, exige intervenção externa”. Corrobora com essa autora, ao dizer que dificilmente uma mulher consegue desligar-se de um homem violento sem ajuda externa. Em outras palavras, as mulheres vítimas da violência são tratadas como não-sujeitos.

O capítulo 2, intitulado “A cidadania no universo relacional brasileiro e a cidadania feminina”, articula a perspectiva da cidadania, para além da mera consciência de direitos e deveres. Parte da noção advinda dos Gregos, traçando uma contextualização histórica que passa pela pólis, onde os direitos dos cidadãos como iguais, se constituíam em detrimento dos escravos e das mulheres. Aprofunda o sentido de cidadania à luz de autores como Marshall, Da Matta e Dagnino, e conflui para a condição paradoxal feminina, explorada por Joan Scott. A ideia é não desistir do ideal da igualdade, tampouco atenuar a diferença.

O terceiro capítulo “Usos e abusos da categoria gênero: para além do masculino e feminino”, é um dos capítulos teóricos mais relevantes para a obra, pois fundamenta uma vasta análise alicerçada nas epistemologias feministas e nas teorias de gênero de modo criterioso. A abordagem parte do patriarcado, passando pela noção de sexo-gênero em Gayle Rubim, adentra as análises marxistas para, enfim, concentrar-se na noção de gênero em Joan Scott. Essa autora, interpreta a categoria pela sua erudição e conotação mais neutra do que aquela proporcionada ao uso da palavra “mulheres”, uma vez mais integrada à terminologia científica das Ciências Sociais e menos à política do feminismo.

Capítulo primoroso, revela o percurso investigativo das principais descobertas sobre violência nas relações de Gênero. A violência então, se situaria, mais usualmente, mas não apenas, naquela perpetrada pelo homem contra a mulher, para domínio e controle da parceira, que se reflete em todas as classes sociais, embora as populares tenham essa visibilidade mais evidenciada.

No capítulo 4, intitulado “A extensa rede de significados que se formulam no campo da violência doméstica contra a mulher: objeto, metodologia e percepções”, Osterne revela todo o desafio de compreender como as mulheres formulam seus argumentos sobre a violência denunciada, como se percebem e descrevem seus parceiros. Há um levantamento do marco histórico dos primeiros serviços e dados sobre a violência contra a mulher. Apresenta as mulheres denunciantes, com um perfil assim mostrado: 58% têm idades entre 26-45 anos; 47% são solteiras, 38% casadas, e as que denunciaram expressavam baixo poder aquisitivo e escolaridade. Os casos são mostrados com riqueza de detalhes, revelando as facetas múltiplas da violência no interior das relações de gênero.

Já o Capítulo 5, “Violência contra a mulher e políticas públicas: concretizando a cidadania feminina”, concentra esforços em apontar a violência contra a mulher em sua dimensão estrutural. Não como um beco sem saídas, mas para fugir ao relativismo dominante, que a coloca numa situação de vítima sem agência sobre os próprios caminhos a serem (re)tomados. Em que pese sobre isso a advertência da autora sobre o patriarcado está articulado às relações de gênero, evidenciando o caráter estrutural e dinâmico desse tipo de violência, assertivamente, propõe o binômio dominação-exploração como eixo de análise.

Ao clamar por esclarecer essas relações na perspectiva foucaultiana de poder, atrela, de modo inelutável, a dimensão da resistência. O poder, é mostrado como teias de relações, presentes em todo lugar. Acentua que onde ele se impõe, coexiste com formas de resistir. Assim sendo, desfoca a tese “vitimista”, propondo a possibilidade de ruptura e resiliência. Além do mais, reforça que outro elemento fundamental é o simbólico (Bourdieu), como aquele que recompõe lugares sociais, e que é usado eficazmente, como força para que ali se mantenham. Osterne assevera, categoricamente: “Foi, visivelmente, possível perceber, na experiência de vida das mulheres que denunciavam a violência sofrida por parte de seus parceiros, o poder sendo exercido na contramão daquilo que poderia ser considerado hegemônico na relação”.

Socorro Osterne através de sua obra ímpar no Brasil, revela o vínculo inextrincável, da violência contra a mulher em sua dimensão política. Contribui afirmando que para haver igualdade de gênero, a violência deve ficar longe das naturalizações e das trivializações do trágico. O papel da pesquisadora para elucidar tais relações complexas é sua contribuição para reduzir os equívocos que ainda rodeiam essa temática e, consequentemente, contribuir para eliminar as desigualdades de gênero.

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