Resumen: Este artículo propone una reflexión sobre la importancia y los desafíos de la etnografía multisituada como método de investigación en los estudios de migración y movilidad, y específicamente a partir de una etnografía de las movilidades haitianas en las rutas (wout, en criollo haitiano) que recorren cuando salen de Haití, cruzando las fronteras de diferentes países de las Américas. A partir de un estudio etnográfico de las formas y lugares del “yo”, propongo un enfoque teórico metodológico para interrogar con especial atención las dinámicas y experiencias de la movilidad haitiana en y desde Brasil. El objetivo es comprender las dinámicas y las inversiones emocionales y materiales de los compromisos implicados en el trabajo de campo, y plantear un debate sobre las diversas dimensiones que puede adquirir la investigación multisituada. La investigación multisituada me permite ver en profundidad las subjetividades y prácticas de las personas en movimiento y afinar mi lectura de los mecanismos sociales de la movilidad y las redes haitianas.
Palabras clave: etnografía multisituada, movilidad, redes, Haití.
Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre a importância e os desafios da etnografia multisituada como um método de pesquisa nos estudos sobre migrações e mobilidade, e especificamente a partir de uma etnografia das mobilidades dos haitianos nas rotas (wout, em crioulo haitiano), as quais eles percorrem ao deixar o Haiti, atravessando as fronteiras de diferentes países das Américas. A partir de uma etnografia sobre as formas e os lugares dos “eus”, proponho um aporte teórico metodológico para interrogar com especial atenção as dinâmicas e as experiências de mobilidade dos haitianos no e a partir do Brasil. O intuito é entender as dinâmicas e os investimentos emocionais e materiais dos compromissos envolvidos no trabalho de campo, e suscitar uma discussão das diversas dimensões que pode tomar uma pesquisa multisituada. A pesquisa multisituada permite entrever na sua profundidade as subjetividades e práticas das pessoas em movimento e de afinar minha leitura dos mecanismos sociais da mobilidade e das redes haitianas.
Palavras-chave: etnografia multisituada, mobilidade, redes, Haiti.
Abstract: This article proposes a reflection on the importance and challenges of multi-sited ethnography as a research method in migration and mobility studies, and specifically from an ethnography of Haitian mobilities on the routes (wout, in Haitian Creole), which they travel when they leave Haiti, crossing the borders of different countries in the Americas. From an ethnographic perspective on the forms and places of the “I”, I propose a theoretical methodological approach to interrogate with special attention the dynamics and experiences of Haitian mobility to and from Brazil. The aim is to understand the dynamics and the emotional and material investments of the commitments involved in fieldwork, and to raise a discussion of the various dimensions that multi-sited research can take on. Multi-sited research allows me to get an in-depth look at the subjectivities and practices of people on the move and to refine my reading of the social mechanisms of Haitian mobility and networks.
Keywords: multi-sited ethnography, mobility, networks, Haiti.
DOSSIER
Sobre a pesquisa multisituada: aspectos (e apostas) de um trabalho de campo na área migratória nas Américas
Sobre la investigación multisituada: aspectos (y apuestas) del trabajo de campo en el área de la migración en las Américas
On multisite research: aspects (and stakes) of fieldwork on migration area in the Americas
Recepción: 29 Septiembre 2023
Aprobación: 30 Octubre 2023
Se Malinowski (1997, p. 23) já afirmava que “o Etnógrafo não tem apenas de lançar as redes no local certo e esperar que algo caia nelas”, de maneira natural, minha pesquisa de doutorado (Montinard, 2019)2 ganhou uma dimensão na qual o lugar do “eu” se confundia em um cotidiano imerso em meus olhares de jurista e antropóloga, de etnógrafa e de “nativa”, casada desde 15 anos com um haitiano, de mulher e de mãe, de francesa e de haitiana, de migrante vivendo no Brasil, imersa e comprometida em redes e em políticas públicas. Um cotidiano animado por realidades familiares que tive que aprender — por meio de jogos de mediação de emoções, entre solidão e compromissos, entre empatia e humildade — a tornar “exótico” (Da Matta, 1978). Estes compromissos compõem, assim, as riquezas etnográficas revelando o sentido social e as dinâmicas da mobilidade e das redes haitianas que formaram o objeto da minha tese de doutorado.
Enquanto eu me confrontava com um novo registro de análise acadêmica na qual o “eu” se escrevia literalmente, minha pesquisa antropológica me fez, por vezes, viver situações delicadas, entre pesquisadora e “nativa”, como se minha experiência de vida interferisse na minha própria pesquisa que ganhava, então, os contornos de uma auto-“sócio-análise” ou de uma auto-etnografia. Isso me incomodou enormemente até o momento em que aceitei ou comecei a jogar com esses diferentes “eus”. Nesse sentido, Bourdieu descreveu o método de sua pesquisa sobre os fundamentos do sofrimento social como:
uma forma de escuta ativa e armada exigindo uma postura aparentemente contraditória: de um lado, uma disponibilidade total com relação à pessoa interrogada, uma submissão completa à singularidade de seu caso particular, que pode conduzir, por uma espécie de mimetismo mais ou menos controlado, à adoção de seu linguagem e à assimilação de suas opiniões, de seus sentimentos, de seus pensamentos; de outro, uma interrogação metódica, assentada no conhecimento das condições objetivas, comuns a toda categoria e atenta aos efeitos da relação de investigação. (Bourdieu, 1991, p. 3)
Um ano após a chegada da minha família no Rio de Janeiro3, Bob, meu marido, fundou, com um grupo de jovens haitianos recém-chegados, o movimento Haitianos Cariocas do qual eu também fazia parte4. Os encontros, reunindo certos líderes da comunidade ou pessoas que desejavam engajar-se, tinham por objetivo formular respostas coletivas às situações complexas vividas por haitianos que chegavam à cidade carioca sem contatos, sem falar a língua, frequentemente sem muito dinheiro, mas sobretudo sem compreender a legislação migratória brasileira (domínio que me foi confiado e do qual eu descobri a complexidade e as lacunas). Esse movimento foi criado — assim como outros que nasceram em outras partes do território brasileiro onde a concentração de haitianos foi relativamente forte — em resposta a uma grande frustração (fristrasyon) nascida a partir da publicação de um artigo no O Globo relatando que o Estado brasileiro do “Acre sofria uma invasão de imigrantes do Haiti”5. O artigo foi publicado em 1º de janeiro de 2012, data do ano que marca a Independência da República do Haiti (01/01/1804) e que é festejada por cada haitiano com orgulho servindo para reanimar e reviver um passado histórico e heroico no qual o combate pela liberdade é consagrado neste dia.
Com efeito, a chegada de haitianos em solo brasileiro, desde os anos 2010 e 2011, fez ressurgir o interesse das mídias pela questão da migração (Cogo e Silva, 2016) e fez renascer, dentro do Congresso nacional, os debates em torno do novo projeto de lei sobre as migrações6. Porém, tal fluxo provocou também uma série de novas ações estratégicas das entidades religiosas e da sociedade civil trabalhando sobre a questão dos migrantes e dos refugiados (Cooper et al., 2016). O envolvimento da prefeitura de Brasiléia (AC) e do governador do estado do Acre se fez notar, contribuindo assim para a construção de um “problema” nacional e fazendo pressão sobre o governo federal com a finalidade de promover respostas às quais a promulgação da Resolução Normativa do CNIg (RN n. 97/2012) foi um precedente. Esta resolução específica para os haitianos criou um canal formal de entrada ao território nacional via Embaixada do Brasil em Porto-Príncipe, no Haiti, graças à obtenção de um visto permanente por razões humanitárias (Vieira, 2014 e 2017). Foi neste contexto complexo de políticas públicas que eu desenvolvi meu trabalho de pesquisa a partir da minha chegada ao Brasil.
No Rio de Janeiro, a comunidade haitiana se formou, de maneira tímida em um primeiro momento, desde o início de 2012 com a chegada de empresas de construção civil na região de Jacarepaguá para responder à forte demanda por mão de obra para a preparação dos grandes trabalhos em razão dos eventos internacionais como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Esta comunidade se concentrava — e se concentra ainda hoje — na região de Cidade de Deus, Gardênia Azul, Curicica, entre outros bairros da região. Os domingos, os únicos dias de repouso semanais para a maioria dos haitianos, eram (e continuam sendo) os dias de encontros nos quais, reunidos, cada um se divertia para reviver uma atmosfera crioula: pale kreyòl (falar crioulo), manje kreyòl (comer pratos crioulos), bay blag (gracejar) e bat domino (jogar dominó) eram para nós, e para muitos outros, bons pretextos para matar a saudade de casa. Ali, questões políticas do país animavam calorosamente os debates, acompanhados de músicas engajadas tocadas por um jovem que se tornou então um DJ amador.
As visitas à Cidade de Deus eram parte de nossa agenda semanal. Tal frequência se multiplicava pelas iniciativas ligadas aos cultos de igreja realizados em crioulo haitiano, ao coral da igreja ou do grupo musical de konpa do qual meu marido era encarregado da articulação e da produção, ou ainda dos cursos de português ou dos ateliês de formação sobre iniciativas de empreendimento. Minha presença nestas atividades fez com que eu me tornasse uma referência na área de documentação e de regularização migratória, sem dúvida pelo fato de eu ser blan7, mas sobretudo por minha condição de migrante, garantindo uma certa posição de igualdade frente a outros migrantes. De fato, ao chegar ao território brasileiro, fui rapidamente confrontada com os mesmos obstáculos jurídico-legais e, além disso, minha formação acadêmica em direito internacional e em direitos humanos8 me garantiu uma leitura jurídica e legal da questão migratória no Brasil, tendo sempre por base o sistema de referência dos haitianos. Todos aproveitavam (e ainda aproveitam) a oportunidade desses encontros para me pedir uma informação ou uma ajuda, por vezes relativas a uma explicação sobre um procedimento legal ou uma tradução, a uma questão de saúde, a uma solicitação de trabalho, entre outras. O que é importante para as pessoas era ter um interlocutor que as compreendia, não somente devido ao fato de eu falar crioulo haitiano fluentemente, mas sobretudo por ter adquirido uma leitura cultural destas conversas, respeitando as escolhas e as trajetórias de cada um, o que evitava interrogações inúteis e vazias de sentido para os haitianos, questões frequentemente postas pelas mídias, por pesquisadores ou instituições e agências migratórias.
Efetivamente, conhecer as razões que motivavam as pessoas a migrarem para o Brasil não fazia sentido algum para mim, pois estava claro que a questão se centrava nas obrigações de deixar o Haiti, o que minha família e eu tivemos que fazer no final de dezembro de 2010, quando rupturas e resignação (rezinye)9se misturam a um certo sentimento de poder (re)construir um projeto de vida no qual as obrigações e expectativas individuais e coletivas coabitam. Após ter vivido quase seis anos no Haiti e trabalhado principalmente com crianças restavèk10 e com jovens envolvidos na violência armada em Porto-Príncipe (timoun solda), eu descobri, na Cidade de Deus, uma população originária das regiões rurais do norte do Haiti, da qual a maioria não conhecia a capital e cujo crioulo se diferenciava do crioulo da capital, do gueto ou do kreyòl lari (crioulo de rua, literalmente — aqui, compreende-se o crioulo de rua de Porto-Príncipe como um crioulo “duro”) que eu tinha maior domínio. Muitos deles vinham da República Dominicana, onde eles viviam há muito tempo, e seu crioulo tinha empréstimos do espanhol. Minha imersão e minha posição no centro da comunidade haitiana no Rio de Janeiro abrem a possibilidade de (re)viver um universo haitiano para além das fronteiras nacionais onde “ser diáspora” (Joseph, 2015a, 2015b, 2017) ganham todos seus sentidos práticos, afetivos e simbólicos.
Minha imersão nas redes haitianas e nas relações criadas (ou reforçadas) a partir da minha experiência no projeto Haiti Aqui, e hoje na associação Mawon, alimentam o meu maior desafio que é a relação entre proximidade e distância, entre participação ativa e observação participante, entre ator de referência e ator formal11, entre pesquisadora, amiga e membro da família, entre francesa e haitiana vivendo no Brasil. Meu cotidiano se divide, assim, entre a expertise sobre o tema da migração e as questões pessoais e familiares oriundas de minha participação nas redes haitianas que minha pesquisa pretendeu explorar com a finalidade de propor uma melhor compreensão do universo social haitiano no qual a mobilidade ocupa um lugar fundamental.
De fato, minha experiência no projeto “Haiti Aqui” foi um espaço ideal de estudos e de pesquisa etnográfica sobre a questão da migração ao Brasil e da mobilidade na região das Américas, particularmente pelo fato de que o ano de 2016 representou o momento de novas dinâmicas e de novos horizontes, vendo surgir novas rotas como as do Chile e a wout Miami. Minha posição no centro do projeto, e hoje na associação, me permitiu integrar não somente a rede local CEIPARM12 e a nacional de migração (RedeMir e FONACCERAM)13, mas me submergiu, efetivamente e ainda mais, nas redes haitianas. Acompanhar as questões relativas às políticas públicas para as migrações e aquelas relativas à documentação ou à formação dos migrantes foram e continuam sendo as principais atividades do meu cotidiano — no qual aplicativos de comunicação, como o WhatsApp e o Messenger, são testemunhas omnipresentes — pois elas respondem a uma preocupação das pessoas em se integrarem à sociedade de acolhimento ou à formulação de novas partidas, de acordo com as políticas públicas ou as decisões dos governos que podem ser favoráveis ou não à acolhida e à integração dos imigrantes.
Em novembro de 2015 e julho de 2016, participei, como pesquisadora, de uma investigação conduzida pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), intitulada “Movimentos migratórios: um desafio para políticas de reconhecimento de direitos”. O objetivo era compreender o contexto e as dificuldades das políticas de migração segundo a perspectiva dos direitos humanos no Brasil e, a partir das análises desse cenário, produzir conclusões e recomendações que pudessem ajudar na construção dessa agenda14.
Esta pesquisa me permitiu acompanhar mais de perto os debates e a evolução do novo projeto de lei sobre as migrações e reafirmou minha experiência em matéria de migração, me garantindo novos instrumentos de leitura para melhor compreender as discussões em torno do “problema” da migração haitiana no Brasil, me auxiliando assim a formular respostas mais concretas junto aos migrantes, haitianos em particular, no cerne do projeto e da associação. Esta pesquisa possibilitou também a consolidação da minha expertise em políticas públicas sobre o tema da migração por meio de parcerias institucionais competentes e de atores importantes, integrando, com isso, a ampla rede de parceiros da sociedade civil, da Igreja e das autoridades estatais. Se a Embaixada do Haiti em Brasília foi um dos primeiros parceiros a me oferecer sua chancelaria a fim de acompanhar os cidadãos haitianos em sua documentação, facilitando assim os serviços consulares da Embaixada, o CEIPARM, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, a Polícia Federal, entre outros, tornaram-se rapidamente atores e parceiros fundamentais do meu cotidiano de acompanhamento dos migrantes.
Por outro lado, a partir de abril de 2016, em parceria com a Embaixada do Brasil e a Organização Internacional para as Migrações (BVAC/OIM) no Haiti, colaborei com o lançamento da campanha de sensibilização “Por um direito de migrar” a fim de garantir os direitos da pessoa à migração e diminuir os riscos de uma viagem ilegal ou mal orientada ocasionando situações de grande vulnerabilidade da partida à chegada. A campanha se inseriu em uma preocupação do governo brasileiro com a prevenção e a preparação dos haitianos tanto na partida quanto na chegada ao Brasil, pois, se os haitianos se preocupam em deixar seu país em busca de melhores oportunidades econômicas e em responder a obrigações morais de ajudar a família que ficou no país, uma boa preparação para a chegada ao país que se pretende migrar e se integrar na sociedade de acolhida tornam-se preocupações secundárias, resolvidas a partir da chegada.
O contexto dos anos 2012 e 2017, quando os novos fluxos de migrantes haitianos passaram a ser vistos como um “problema” nacional de migração (Cogo e Silva, 2016), foi marcado por um número infinito de pesquisas (cuja qualidade poderia variar) dando lugar a textos e reportagens de jornalistas famintos por reforçar os estereótipos associados ao Haiti, estigmatizando o país como um local de extrema pobreza, marcado por violências e epidemias. Ser pesquisadora ganhava ares de toutè (espiã, X9), conceito que engloba jornalistas, agentes do governo e todos de quem se desconfia. Cada imagem televisionada, cada reportagem, cada artigo, cada fala na qual se revelavam os estereótipos depreciando o Haiti era ressentido como uma imagem machucando e maculando o país e o orgulho de ser haitiano, reanimando assim as reivindicações e as conversas dos haitianos e dos grupos de Facebook ou de WhatsApp nos quais circulavam incontáveis mensagens, vídeos ou áudios que, sem que eu pretendesse realizar uma netnografia (Stubbs, 1999), revelavam os sentidos e as práticas do fè politik (fazer política). As ciências políticas passaram a encarnar um corpo específico, com uma voz, uma ideia, um projeto e uma política — imaginem, então, um grupo do qual participam dezenas, por vezes centenas de haitianos! Porém, estas conversas traziam à tona a importância de grupos de apoio que promoviam atividades diversas e que expressavam sua existência em redes digitais na internet. Isso me permitiu fazer observações com distanciamento e um certo anonimato, quase invisível, borrando a fronteira entre presença e ausência. Esta forma de plasticidade relacional evidenciava certas características do grupo: participantes dispersos, autoridade fluída, fronteiras incertas, compromissos frágeis, organização pouco formalizada, na qual as trocas se perdem em tempos e espaços múltiplos e deslocados (James e Busher, 2009).
Contudo, o lugar ocupado pelos diferentes “eus” em meu cotidiano nunca me fez perceber esta confusão entre pesquisadora-toutè como algo que pudesse gerar uma desconfiança com relação ao outro dando lugar ao medo e à recusa em falar. Por vezes, eu me perguntava se a minha posição como pesquisadora seria o único fato importante para meus interlocutores. De fato, esta era uma condição que eu nunca escondi, sem contudo explicitá-la de saída, mas que sem dúvida dava sentido a todas as outras posições que eu ocupava e cujas representações se configuram em um sistema de identidades designadas a partir de características imediatamente perceptíveis (como ser uma jovem branca europeia, mãe de três crianças, casada com um haitiano, falando crioulo fluentemente, migrante, etc.) ou se revelando por meio de relações conexas (como minhas experiências pessoais ou associativas). Se estas atribuições se constroem independentemente de minha vontade como etnógrafa (Bizeul, 1998), elas podem, muitas vezes, se transformar em vantagens ou desvantagens etnográficas.
Me lembro que Ti Konsil — um haitiano que eu havia formado e que me auxiliava nos serviços ligados à documentação — esforçava-se, com frequência, para explicar a um outro haitiano, em sua língua materna, quais eram as diligências administrativas e os documentos necessários para algum processo ligado à documentação da pessoa. Ti Konsil podia tratar a pessoa com toda sua paciência e seu tecnicismo, fato é que a pessoa acabava se direcionando a mim e me fazia a mesma pergunta. Eu repetia o que Ti Konsil acabava de lhe dizer, em crioulo, quase sempre palavra por palavra e a pessoa assumia, então, um comportamento mais sereno e confiante. Nisso, me vinham à cabeça expressões como blan pa konn bay manti (o branco não sabe mentir), como se o que eu dissesse tivesse mais força a despeito dos esforços de Ti Konsil. Me lembro uma vez que um haitiano havia esperado várias horas e, antes que eu o recebesse, me disse: “Senhora Mélanie, não há problema algum em te esperar. Você representa uma grande nação, você sabe do que está falando. Eu sei que você pode me ajudar e te esperar não é tempo perdido”15.
O fato de ser branca e francesa me permitia criar e manter relações com as pessoas, abrindo a possibilidade de retraçar sua trajetória, algo que se somava ao fato de falar crioulo fluentemente e de ter adquirido uma compreensão profunda do universo social haitiano no qual eu vivo. Este estatuto, contudo, poderia por vezes ser um empecilho em algumas situações. Diversas vezes, ouvi afirmações como “m pa ka pale two fò non, Méla konprann bagay yo twop byen” (não posso falar alto, Méla entende muito bem/demais das coisas) ou ainda presenciei pessoas que saíam do local onde eu estava para falar de maneira desimpedida.
Assim, enquanto eu descobria todo um novo universo acadêmico e, ao mesmo tempo, redescobria um universo social haitiano familiar no qual manje kreyòl, pale kreyòl16 eram o costume, nós reencontrávamos, Bob e eu, a força dos sentidos que podem ter a palavra dyaspora, no Haiti e no exterior, no cotidiano de pessoas comprometidas, tal como nós éramos (e somos), com uma obrigação moral e estratégica de chache lavi que não pode ter sentido se não fora das fronteiras nacionais haitianas. Se algumas destas descobertas e redescobertas me permitiram (re)viver o Haiti no cotidiano e matar a saudade desta pequena terra crioula, outras me ensinaram novas perspectivas de análise e outras ainda me fizeram compreender que esta realidade refletia uma familiaridade fragmentada na qual os múltiplos “eus” reapareciam de uma maneira inesperada dando sentido a um desses “eus” por vezes esquecido.
Se, com frequência, ao longo dos anos que constituíram minha pesquisa, eu me senti imersa e comprometida com um universo social haitiano no qual minha família e eu somos parte, eu era constantemente colocada em questão — muitas vezes de maneira humorística, mas que me atingiam violentamente — por meus interlocutores e até por meu marido de tal modo a me fazer lembrar que eu não era nem negra nem haitiana, mas sim uma francesa, yon blan. Algumas situações continuarão marcadas na minha lembrança.
Uma delas ocorreu quando eu recebi um pastor haitiano que buscava informações sobre o processo de naturalização brasileira. Eu lhe expliquei cada etapa, cada documento e o sentido de tal procedimento. Antes de se despedir, de modo bastante educado, ele afirmou:
—Senhora Mélanie, você nunca pensou em naturalizar teu marido e teus filhos, dando a eles um passaporte francês?
—Sim, Bob e Lula já possuem um —respondi com um certo espanto, como se isso fosse óbvio.
—Pois bem, senhora Mélanie, se vocês continuarem vivendo no Brasil em meio a todas as misérias do mundo, é porque vocês assim o querem, pois são euros que esperam vocês na França. Você é maldosa, você não os ama de verdade —concluiu ele17.
Mal conseguindo dominar minhas emoções por trás de um falso sorriso, me lembrei que seria vão e infeliz tentar explicar que viver na França não era algo evidente para minha família e para mim, pois viver no Brasil não fazia parte do imaginário da gwo dyaspora (grande diáspora), mas continua sendo um espaço da ti dyaspora (pequena diáspora), revelando, como lembra Joseph (2015a), as representações entre gwo peyi (grande país, pais ricos) onde o dólar ou o euro seduzem mais do que os reais do Brasil, sendo considerado, assim, como um ti peyi (pequeno país, pais em desenvolvimento ou mais pobres), apesar de sua dimensão geográfica.
Paralelo a este episódio, a evocação de um outro evento ainda fique particularmente sensível por se impor sob a aparência de uma provação. Mais uma vez me vi surpreendida, nesse caso, por meu marido. Foi em 2016, durante uma viagem ao Haiti na qual eu aproveitava para ampliar minha pesquisa e minha análise sobre a wout Miami, que chamava a atenção da opinião pública naquele ano. Cada estadia no Haiti é, para mim, como um retorno ao lar, onde reencontros se misturam com festividades, mas em que cada retorno mostra com intensidade e violências como este lar se torna cada vez mais impossível. Bob havia ficado no Rio de Janeiro com as crianças. Nos primeiros dias, nossas conversas eram embaladas pela minha animação em rever nossos conhecidos, nèg yo18 e timoun yo (crianças, jovens), e em retornar ao nosso geto19, em Bel Air. Também tratavam dos meus deslocamentos e voltas pelas ruas da capital, em moto e do meu retorno a Baradères para rever a família. Após alguns dias, Bob me questionou, em um crioulo “duro”:
Eu não entendo, o que está te acontecendo? Você acha que é uma turista no Haiti? É exatamente quando você pensa que conhece o Haiti que você corre o risco de ser vítima de algo. Eu já te disse para não ir para Bel Air, você pode me levar a sério? E não se esqueça de quem você é!20
Apesar da violência do crioulo, seu propósito era me proteger e me lembrar quem eu era. Sim, eu poderia me orgulhar de conhecer o Haiti, suas ruas, seu gueto e suas regiões rurais e dominar também seu crioulo, suas tradições, seus rituais, suas histórias e suas políticas, tudo o que o Haiti havia me ensinado e que alimentava nossa vida. Eu podia me orgulhar de conhecer profundamente o Haiti, mas Bob me lembrava quem eu era no Haiti: eu era sua mulher, Madam Bob. Eu era o que representávamos durante os anos vivendo e trabalhando em Bel Air21; eu representava a imagem de um “Bob da Paz”, reconciliador, a la pawol, eu representava a “ajuda” e a “esperança” tão ansiadas pelas pessoas de Bel Air. Eu era (e ainda sou, para sempre) yon blan para aqueles que não me conhecem. Mas, sobretudo, eu fazia parte (e faço) parte desta diáspora que vive no estrangeiro, sentimento que se confirma quando visitei Baradères, quando membros da família me perguntam, rindo: “Kisa ou potè pou mwen, dyaspora?” (O que você trouxe para mim, diáspora?). As pessoas continuam a me chamar de Méla, mas a palavra diáspora apareceu para me designar e me lembrar os sentidos do meu novo lugar no universo social haitiano.
Assim, é importante tentar me situar no cerne da minha pesquisa. Isso depende tanto de uma socioanálise das condições de produção de um saber antropológico quanto da necessidade de refletir sobre minha posição singular como etnógrafa e “nativa”. Como encontrar seu lugar, como justificá-lo, como se posicionar entre o trabalho de pesquisador e a pessoa que somos no meio de nossos semelhantes? O que meu compromisso intenso e explícito no centro do universo social haitiano e anterior à minha pesquisa revela sobre a análise etnográfica da mobilidade e das redes haitianas? Se a escolha das formas de escrita, o compromisso ou os usos sociais dos saberes são aspectos (e apostas) de uma análise reflexiva da Antropologia, a vivacidade das emoções continua, sem dúvida, um dos meus maiores desafios, pois ela me impõe um paralelismo, às vezes violente e desestabilizante, entre os campos de estudo etnográfico e meu cotidiano como “nativa”, que me obriga a repensar minha posição participante junto ao meu próprio objeto de pesquisa.
Se Pierre Bourdieu (2003) chamou de objetificação participante, ou seja, a objetificação da relação subjetiva do pesquisador com seu objeto, promovendo uma postura reflexiva frente ao objeto de pesquisa, minha própria investigação retoma particularmente a experiência de Sayad (1996) na qual a trajetória pessoal do pesquisador face à emigração aparece, para além da ruptura, como uma dimensão de continuidade entre dois paradigmas analíticos: a migração e a mobilidade. Como Sayad, sociólogo argelino e kabila, tendo vivido e se formado na França durante uma grande parte da sua vida, estudando a migração argelina, minha pesquisa é a de um estudo sobre a mobilidade haitiana partindo também da minha experiência pessoal enquanto francesa, blan, tendo que deixar o Haiti junto com minha família, tomando a wout... em direção ao Brasil, ao menos por enquanto. Ademais, tal como Handerson Joseph, antropólogo haitiano formado no Brasil, que estudou a diáspora haitiana (da qual ele fazia parte antes mesmo de desenvolver sua própria pesquisa) entre o Brasil, a Guiana Francesa e o Suriname, homem casado com uma brasileira (Joseph, 2015a), eu encontrei meu marido no Haiti, em um campo crucial do universo social haitiano, aquele da ajuda e da cooperação internacional no qual as relações entre blan e ayisyen (haitianos) implicam representações complexas. Um universo que se reproduz com força no centro da diáspora e ao longo das wout, como também em minhas experiências junto à associação, revelando a complexidade do entrelaçamento entre vida pessoal e de militância da pesquisadora, experiência etnográfica e objeto de pesquisa.
Além disso, a leitura dos trabalhos de Jeanne Favret-Saada (1990 e 2009) me ensinaram a “aceitar se perder”, ou seja, aceitar esta primeira etapa de envolvimento com o campo. A partir daí, revela-se ao etnógrafo o fato de que ele ou ela ocupa verdadeiramente um ou mais lugares nas interações, o que o obriga a agir, mostrando-se atento às intensidades emocionais ligadas às posições situacionais dos atores.
Sem que a escrita etnográfica dos meus lugares dê destaque a um estilo egocêntrico, seria absurdo esconder a realidade da minha trajetória e os desafios de um cotidiano de um “eu” múltiplo. Uma vez aceito o fato de ser afetada pelas “intensidades” (Favret-Saada, 1990) ligadas à experiência vivida desde um lugar específico, assim como o fato de estar integrada a um sistema de posições e de tomar a palavra a partir destes lugares designados a esses “eus” que eu ocupo, tudo isso se torna o desafio principal de um cotidiano imiscuído entre a imersão nas redes, no universo social haitiano em movimento permanente e nas experiências institucionais.
Enfim, Marylin Strathern (1999) nos convida a repensar a lógica da imersão/emersão do estudo etnográfico, sugerindo que o momento de escrita e de interpretação constituem um “segundo campo”, pois ele recoloca o pesquisador nas condições da investigação ao trazer à tona que a relação entre esses dois campos é “complexa” (complex) e constitui o que a autora nomeia de “o momento etnográfico [the ethnographic moment] (Strathern, 1999, pp. 5-6). Me parece, todavia, impossível pensar o fato de sair fisicamente do campo em um momento determinado, mas é possível compreender a saída do campo mais como um processo de desengajamento etnográfico, o tempo da escrita da tese, a fim de afinar minha leitura dos mecanismos sociais da mobilidade e das redes haitianas em operação.