DOSSIER

Redes de organização da migração no Brasil: o papel da OIM e a produção do conhecimento sobre a população migrante

Redes de organizaciones de migraciones en Brasil: el papel de la OIM y la producción de conocimiento sobre la población migrante

Migration Organization Networks in Brazil: the role of the IOM and the production of knowledge about the migrant population

Gislene Santos
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Redes de organização da migração no Brasil: o papel da OIM e a produção do conhecimento sobre a população migrante

Revista Tramas y Redes, núm. 5, pp. 191-205, 2023

Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales

Recepción: 02 Octubre 2023

Aprobación: 30 Octubre 2023

Resumo: O Brasil, desde os anos 2000, insere-se no circuito das migrações provindas dos países da América do Sul e do Caribe. Aliado a este curso migratório, se instalou no Brasil uma rede de organizações internacionais (OI) dedicadas à migração. Entre elas destacamos a Organização internacional para as migrações (OIM). Suas ações atingem várias cidades brasileiras e a OIM passa a ter um papel de consultoria e ordenamento na gestão migratória no território brasileiro. Para entender e analisar este contexto do ordenamento do território, pela circulação de população, temos por objetivos descrever a configuração geográfica do padrão de localização e distribuição da OIM no Brasil; sistematizar a origem e o papel da OIM no contexto histórico das migrações; e destacar a atuação da OIM quanto ao conhecimento sobre a população migrante. Por fim, discorremos sobre a importância de um estudo analítico sobre a OIM, visto o papel que tem ocupado na gestão da população migrante no território brasileiro.

Palavras-chave: Organização Internacional para a Migração (OIM), Brasil, produção do conhecimento, gestão migratória.

Resumen: Desde la década de 2000, Brasil forma parte del circuito migratorio procedente de países de América del Sur y el Caribe. Aliado a este rumbo migratorio, se estableció en Brasil una red de organizaciones internacionales (OI) dedicadas a la migración. Entre ellos destacamos la Organización Internacional para las Migraciones (OIM). Sus acciones llegan a varias ciudades brasileñas y la OIM ahora tiene un rol de consultoría y planificación en la gestión de la migración en territorio brasileño. Para comprender y analizar este contexto de planificación territorial, a través de la circulación poblacional, nuestros objetivos son describir la configuración geográfica del patrón de ubicación y distribución de la OIM en Brasil; sistematizar el origen y papel de la OIM en el contexto histórico de la migración y resaltar el papel de la OIM en términos de conocimiento sobre la población migrante. Finalmente, discutimos la importancia de un estudio analítico sobre la OIM, dado el papel que esta ha desempeñado en la gestión de la población migrante en territorio brasileño.

Palabras clave: Organización Internacional para las Migraciones (OIM), Brasil, producción de conocimiento, gestión migratoria.

Abstract: Since the 2000s, Brazil has been part of the migration circuit from South American and Caribbean countries. Allied to this migratory course, a network of international organizations (IO) dedicated to migration was established in Brazil. Among them, we highlight the International Organization for Migration (IOM). Its actions reach several Brazilian cities and the IOM now has a consultancy and planning role in migration management in Brazilian territory. To understand and analyze this context of territorial planning, through population circulation, our objectives are to describe the geographic configuration of the location and distribution pattern of the IOM in Brazil; to systematize the origin and role of the IOM in the historical context of migration; and to highlight IOM’s role in terms of knowledge about the migrant population. Finally, we discuss the importance of an analytical study on the IOM, given the role it has played in the management of the migrant population in Brazilian territory.

Keywords: International Organization for Migration (IOM), Brazil, knowledge production, migration management.

Introdução

No contexto das teorias neoclássicas, a migração é entendida como um processo marcado por dois espaços geográficos: o da origem e o do destino. O migrante (homem) é portador de uma racionalidade para escolher e decidir o seu destino migratório. Importa reforçar que, no contexto dos anos 1950, os locais de origem dos migrantes eram encarados como os espaços da escassez e ou da falta dos recursos técnicos necessários para alcançar a modernização e o desenvolvimento produtivo. Eram então nomeados os lugares repulsores de população. No local de destino, para onde os migrantes se dirigiam, fixavam-se os recursos e as inovações técnicas para atender a produção do setor industrial. Na linguagem dos neoclássicos, eram estes os lugares atrativos de população. Este jogo de escalas, na teoria neoclássica econômica, cumpriu o seu lugar no contexto desenvolvimentista. A título de ilustração, em 1950, cerca de 60% da população da América Latina residia em área rural. Em 1965, 15 anos depois, a estatística se inverte: 53% da população já estavam localizadas em áreas urbanas. Em 2020, 20% da população estavam localizadas em áreas rurais na América Latina e no Caribe. Na escala mundial, esta nossa região apresenta uma das menores taxas de população rural, ficando atrás somente dos Estados Unidos. Em 2010, países da América do Sul como a Argentina, o Brasil, o Chile, o Uruguai e a Venezuela, apresentavam taxas negativas de crescimento da população rural. Este duplo arranjo entre a origem rural (local do atraso) e o destino (local das inovações), configuraram-se como as escalas de análise tanto no planejamento regional quanto no campo analítico das migrações. De certa forma, o campo da pesquisa populacional foi alvo da aplicação dos planos das agências desenvolvimentistas. Para lembrar, a divisão mundial entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos foi cunhada no contexto da Carta das Nações Unidas, em 1945. Apesar de o acento ter sido dado para a manutenção da paz entre os países, uma leitura mais atenta reconhece que paz, desenvolvimento e segurança internacional andaram lado a lado. Ou seja, a geopolítica da paz entre as nações e a segurança nacional foram concebidas dependentes do desenvolvimento econômico (Santos, 2018).

Neste contexto, os locais atrasados sob a alcunha de subdesenvolvidos, eram considerados focos de tensão e insegurança política o que justificava, na política externa estadunidense, ações de intervenção tanto no campo das políticas educacionais quanto nas políticas de controle populacional. No Brasil, a ingerência das agências internacionais na gestão populacional não é um fato novo. Basta pontuar o papel da Fundação Ford e Rockfeller nos anos 1960 (Martini, 2005). Estas organizações, como também a USAID (Agency for International Development) e a BENFAM (Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar), atuaram tanto no ensino no campo populacional quanto nas políticas de planejamento familiar no Brasil, com o objetivo de reduzir a taxa de fecundidade da população brasileira (Fonseca Sobrinho, 1993). Ainda, no contexto internacional, a segunda metade da década de 1970 é um marco para entender o que se convencionou, a partir daí, a reconhecer a problemática da migração internacional. Se até os anos 1960, a preocupação das organizações internacionais para os países da América Latina se dava em torno do crescimento populacional, nos anos 1970, a migração já se evidencia como um problema. Não se tratava somente dos deslocamentos dos refugiados políticos pós segunda guerra mundial, mas os deslocamentos de mão de obra em direção a Europa Ocidental e os Estados Unidos. Em síntese, podemos considerar que a partir de 1974 nas pautas das agências internacionais começa uma política de controle da migração internacional. Desde então, junto à problemática do crescimento demográfico, a migração para o trabalho entre os países vai ganhar centralidade na agenda internacional.

Considerando que a problemática populacional ocupa uma centralidade na pauta das agencias internacionais, chama-nos atenção, no contexto atual das migrações na América Latina, a entrada da Organização Internacional da Migração (OIM) no Brasil, em 2015. O seu papel tem sido central na organização e gestão de um dos mais recentes e complexos fluxos migratórios na escala intrarregional, o da Venezuela em direção ao Brasil. Assim, reconhecendo que os pesquisadores na América Latina possuem um longo lastro de pactuação com as agências internacionais (Martini, 2005; Santos, 2018; Miceli, 1995), o que reflete diretamente no campo teórico e metodológico das pesquisas sociais e populacionais, cabe-nos aqui, ainda como exercício introdutório, levantarmos algumas questões sobre a inserção da OIM no território brasileiro e suas implicações tanto na gestão dos fluxos migratórios quanto na sua relação com os procedimentos e as análises voltadas às migrações.1 Para isto, organizamos este artigo em duas seções: 1) Na primeira, a preocupação se volta em descrever, ainda que introdutoriamente, o padrão de localização da OIM no Brasil. 2) Na segunda, organizamos uma síntese sobre as origens e metamorfoses da OIM, suas funções e o papel no contexto das migrações internacionais; e traçamos alguns pontos (ainda elementares) sobre uma agenda de pesquisa no campo das migrações, levando em consideração o papel da OIM como central na rede das organizações migratórias. 3) Nas considerações finais, elencamos alguns pontos no tocante ao campo da pesquisa quando associada à OIM. Esperamos que este trabalho contribua para a continuidade e futuras análises sobre o papel das agências internacionais da migração no Brasil e na América Latina.

A OIM no Brasil

Em 2010, a inserção do Brasil no contexto das migrações intra-regionais provocou um rearranjo na cultura institucional no campo migratório. Delimitamos o ano de 2010 por ser, a partir daí, que a questão migratória brasileira terá um ponto de inflexão, com alteração nas normas e vistos migratórias. Isto se deve, em parte, pela migração haitiana e mais recente com a migração provinda da Venezuela. Estes dois cursos migratórios justificarão um reordenamento das políticas migratórias e dos dispositivos de controle migratório. Para ambos os fluxos, os estados da Região Sul (Paraná/PR, Santa Catarina/SC e o Rio Grande do Sul/RS) serão os destinos prediletos desta migração, o que altera o histórico das migrações na região. O estado do Paraná, até então marcado por fluxos provindos do Paraguai e da Bolívia, passa a ser um dos principais destinos da migração haitiana, incentivada, sobretudo, pela oferta de trabalho no setor alimentício. Entretanto, o Acordo de Residência do Mercosul não atendia aos haitianos, em razão do Haiti não integrar o Mercosul. Neste contexto, alterações na ordem dos vistos foram acionadas para este curso migratório, que está ainda em curso.

Figura 1. Localização dos escritórios da OIM, 2021
Figura 1. Localização dos escritórios da OIM, 2021

Entre os novos arranjos na legislação migratória, destaco o Decreto nº 8.503, assinado em agosto de 2015, que promulgou o acordo entre o governo brasileiro e a OIM referente à “Posição Legal, Privilégios e Imunidades da Organização no Brasil”2. A entrada oficial da OIM, com a sede instalada em Brasília, capital federal, em 2016, insere o Brasil como um dos pontos de localização e conexão de uma extensa rede de organização internacional da migração na América do Sul.

Como observado na Figura 1, a OIM no Brasil se encontra em duas áreas de fronteira internacional: em Roraima (RR) e Santa Catarina (SC). Referencio essas localizações, pois, diferente das demais no Brasil, somente nos estados de RR e de SC os postos da OIM estão situados na capital e também nas cidades localizadas na faixa fronteiriça. Este padrão espacial permite a OIM se posicionar como um dos importantes pontos de conexão de uma rede migratória na qual circulam um vasto leque de informações, bens e migrantes no território brasileiro, sobretudo em dois segmentos fronteiriços: o norte e o sul do Brasil, o que lhe confere uma posição estratégica na América do Sul. Em relação à migração provinda da Venezuela, país fronteiriço com o Brasil na Região Norte, as informações que aí circulam são, sobretudo de caráter transnacional. Hoje, cabe à OIM o acesso a uma base de dados sobre a população venezuelana coletadas em território brasileiro, o que apresentaremos ainda nesta seção.

No estado de Santa Catarina (SC), na região sul do Brasil, os escritórios estão instalados em duas cidades: Chapecó, no oeste catarinense, e Florianópolis, capital do estado. Entretanto, suas ações não estão limitadas aos seus escritórios e a coordenação da OIM estadual desenvolve com várias prefeituras projetos dispersos em 13 cidades catarinense, em parcerias com associações e organizações locais e/ou regionais. Em consultas, temos observado que há um procedimento de apresentação da OIM junto a estas instituições. Em Itajaí (SC), a coordenação da OIM apresentou o seguinte programa: “Integração econômica entre países vizinhos e fluxos migratórios contemporâneos e a atuação da OIM”, organizado pela Fundação de Educação Profissional e Administração Pública de Itajaí (FEAPI). Percebam que o programa aparenta seguir os princípios do Acordo Mercosul, usando palavras comuns como “integração” e “países vizinhos”. Importa destacar que em 2009, como aponta Fernandes (2017), a OIM prestou serviços e assessoria técnica ao Mercosul, quando da implantação do Acordo de Residência entre os países membros. Apesar desta assessoria, somente em 2015, a OIM celebrou um acordo específico com o Brasil e veio a ocupar uma posição central na rede das organizações migratória no território brasileiro.

Em 2021, a OIM mantinha já representação em várias cidades brasileiras e cerca de 200 funcionários em seus quadros. Atua a partir desta década em vários projetos, desde o processo burocrático da regularização migratória à implantação do que se denomina “governança migratória”, com foco nas instituições governamentais municipais. Também tem a função da organização empírica dos dados referentes às migrações internacionais, através dos projetos “Pesquisa e informação” e “Governança e política migratória”. Trata-se, assim, de um efetivo conhecimento das migrações internacionais no Brasil e com poder de gestão dessa população, tendo em vista as ações em parceria com várias instâncias institucionais administrativas — internacional, nacional, regional e municipal.

No quadro da governança migratória estimula os municípios, através de sua assessoria, a receberem os migrantes nas áreas citadinas. Realiza articulações com associações civis e consultoria aos quadros institucionais de uma prefeitura municipal, sobretudo quanto aos primeiros atendimentos de acolhida aos migrantes e a inserção no mercado de trabalho local. Suas ações estão voltadas para o estabelecimento dos migrantes em cidades, daí que tenha entre seus projetos o “Migracidades”, em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Este projeto, em 2022, se implantava em 13 estados brasileiros e 56 cidades. (OIM, 2022). A OIM tem estabelecido, em seus informativos, o estreito vínculo entre migração internacional e as cidades, visto que são as cidades as receptoras dos migrantes não nacionais. Neste contexto espacial, no qual 85% da população brasileira, em 2022, residiam em áreas urbanas, a OIM tem buscado inserir os governos locais na aplicação de políticas públicas para os migrantes no espaço das cidades. Entretanto, segundo a própria OIM, a condução das políticas públicas urbanas torna-se mais difícil pela ausência e ou precariedade dos dados estatísticos da população migrante nos espaços urbanos. Para sanar esta deficiência empírica, a OIM tem assumido o papel “técnico” de coletar, sistematizar e divulgar dados populacionais sobre a distribuição dos migrantes nos espaços urbanos. Esta preocupação com a magnitude demográfica aparece no material informativo da OIM (2022). No Brasil, segundo o IBGE (2019), 3.876 municípios (com mais de 100.000 habitantes), em 2018, contavam com a presença de migrantes não nacionais. E, segundo os dados do SISMIGRA (Sistema de Registro Nacional Migratório), o destino dos migrantes provindos da Venezuela e do Haiti é, sobretudo para as áreas citadinas. Esta distribuição dos migrantes entre as áreas urbanas tem levado a uma justificativa que as políticas públicas migratórias sejam edificadas, sobretudo nas cidades (Villarreal e Charneski, 2022). Em relação ainda aos dados sobre a população, a OIM, logo no ingresso dos migrantes venezuelanos no estado de Roraima, realiza os registros sobre esta população. Quanto à Pesquisa e Informação, mantém uma plataforma de dados sobre a migração, além da parceria com a R4V3 e a sua participação fundamental na realização do Censo Demográfico de 2022, realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) junto à população Venezuela e indígena em Roraima. Segundo relatos dos funcionários censitários, a entrada nos abrigos em Boa Vista, capital do estado de Roraima, para a coleta das informações censitárias só foi possível pela mediação da OIM4. Os serviços de coleta de dados são centrais nas atividades da OIM, como a aplicação do Displacement Tracking Matrix (DTM, na sigla em inglês), que tem por objetivo monitorar o deslocamento e as rotas da população em movimento5. Trata-se de um sistema de monitoramento já aplicado em 60 países sobre aproximadamente 14 milhões de pessoas em movimento. Para o Brasil, desde 2018 foram aplicadas 12 rodadas deste monitoramento. Inicialmente foram realizados no estado de Roraima, na cidade fronteiriça de Pacaraima e na capital Boa Vista. Em 2020 estendeu-se para os estados do Amazonas e Maranhão. Trata-se assim de um detalhado conjunto de informações sobre a população da Venezuela fora do seu país de origem6.

Em trabalho recente, Domenech, Basualdo e Pereira (2023) descrevem e analisam a implantação desta técnica de controle na região sul-americana. Em análise detalhada do DTM, a partir da produção das rondas, enquetes e das representações gráficas e cartográficas, deixam evidente que foi implantado — e está em funcionamento — um complexo sistema de informação e base de dados sobre a população na América do Sul. Estamos falando sobre meios técnicos informacionais que monitoram e controlam as rotas de deslocamento dessa população. Em nome da normatização global que estabelece uma migração “segura” e “ordenada”, se instaura o controle sobre o movimento e a circulação da população migrante na fronteira brasileira — uma atividade inaugural, nunca antes realizada pelo governo nacional. Neste contexto, importa estarmos cientes do acervo de informações que a OIM possui hoje sobre a população que se desloca entre os países, apresentando-se assim como uma das mais importantes bases de dados populacionais na escala mundial. Como também apontado por Santi (2020), para se atingir a meta da seguridade e da migração ordenada, a OIM faz uso de uma ferramenta global que possibilita informações para o controle e a vigilância das populações em movimento.

Dificilmente uma pesquisa no Brasil sobre migração internacional não tenha como consulta de dados a plataforma da OIM. Esta dependência em relação à base de dados necessita ser mais discutida tanto no campo da pesquisa como também pela própria sociedade. Qual o controle que os migrantes têm sobre esta base de dados? E sendo a OIM uma organização intergovernamental, como se efetivam o uso destes dados? São preocupações legítimas, devido à magnitude de informações sobre um grupo populacional em situação de movimento. Ao se ter a dimensão do fluxo migratório na América Latina, quais ações são desencadeadas quanto à circulação destes migrantes no espaço internacional? Trata-se de dados que são utilizados para políticas de cooperação entre os países? Os migrantes são sujeitos ativos na elaboração e implantação destes acordos? Ou são políticas de cooperação bilateral ou multilateral contrários aos interesses territoriais dos migrantes? No contexto da globalização, os fluxos migratórios ilustram um espaço aberto ao movimento, entretanto, simultaneamente, o excesso de hostilidades territoriais e o recuo da hospitalidade aos migrantes vulneráveis são demonstrações das “contenções territoriais”, usando aqui uma expressão de Haesbaert (2014). Assim, pensamos que seja necessário um amplo espaço de constituição de uma esfera pública de comunicação, referente à urgência que a OIM tem nos colocado sobre a implantação das ferramentas da contabilidade demográfica dos migrantes. Cabe reforçar que a OIM ocupa hoje uma centralidade na rede de informação sobre os migrantes em vários níveis escalares, e como adverte o geógrafo político Raffestin (1993), controle do fluxo de informações é poder. Esta capilaridade espacial que se estende do norte ao sul do Brasil, aufere à OIM um conhecimento do território brasileiro e uma participação em um novo arranjo político na gestão migratória no Brasil que requer, por parte dos pesquisadores, que seja mais examinada.

A territorialidade da Organização Internacional para as Migrações (OIM)

Desde 2016, a Organização Internacional para as Migrações integra o sistema das Nações Unidas (ONU). Entretanto, cabe informar que a OIM é uma organização relacionada e não uma agência especializada da Organização das Nações Unidas (ONU). Este distintivo é importante, pois permite a OIM manter uma independência e autonomia em relação a ONU, ainda que associada7. Apesar da relação direta entre a OIM e a ONU que os folders e outros meios de comunicação transmitem, a OIM possui um grau de autonomia frente à própria ONU, o que lhe confere uma constituição própria não submetida diretamente a ONU. No Brasil, nos panfletos informativos, a OIM é apresentada como uma agência da ONU. Mas como adverte Goodwin-Gill (2019) ela não é uma agência especializada da ONU e é importante que esta informação seja esclarecida. Em trabalho recente sobre a OIM (Bradley, Costello e Sherwood, 2023), a coletânea de artigos demonstra a controvérsia frente ao papel da OIM no campo dos direitos humanos para os migrantes e o que implica a sua autonomia de mandato no sistema da ONU.

A origem da OIM se deu no após Segunda Guerra Mundial, em 1951, assim como a ONU. Com o enfraquecimento da Organização Internacional para os Refugiados (IRO, da sigla em inglês), o Departamento de Estado dos Estados Unidos convocou, em caráter de emergência, a Primeira Conferência Internacional sobre Migração Internacional em Bruxelas, em 1951, com o objetivo de discutir sobre a situação dos refugiados da Europa do Leste. Um dos resultados desta conferência foi a criação do Comitê Intergovernamental Provisional para os Movimentos de Migrantes da Europa (CIPMME), em substituição a IRO e tendo como função implantar uma logística de transporte para os refugiados. Em 1956, é renomeado para Comitê Intergovernamental para as Migrações Europeias (CIME). Reparem que é excluído a palavra “Provisório”. Em 1974, no contexto da entrada oficial da migração internacional nas Conferências Populacionais (Santos, 2018), o CIME se converte em um fórum para o debate internacional e de intercâmbio de experiências entre governos e outras organizações sobre questões migratórias. Em 1980, é renomeado para Comitê Internacional para as Migrações (CIM). Além da nova nomenclatura, o CIM ganha também outras atribuições, não mais restrita à Europa e sem uma definição e limite escalar de suas ações no espaço internacional. Entretanto, a OIM atende ao mundo ocidental e como informa Goodwin-Gill (2019), a sua missão provocada pelo governo estadunidense, em 1951, tinha um compromisso anticomunista. Em 1989, devido a diminuição dos refugiados para a Europa, relativizado o fantasma da superpopulação, ocorre mais uma vez a alteração do seu nome para a atual Organização Internacional da Migração (OIM). Em 2016, será considerada pela Assembleia Geral da ONU, a organização responsável para o tratamento do Pacto Global das Migrações. Mas, reforçando, mantendo ainda o seu estatuto de independência do sistema ONU.

A direção da OIM tem sua sede em Genebra (Suíça) e possui centros administrativos localizados em Manila (Filipinas) e no Panamá (Panamá). Conta atualmente com 173 países membros e sua forma de organização está estruturada em sedes, escritórios, agências, postos de triagem. Possui nove oficinas regionais, assim distribuídas: Dakar (Senegal), Nairóbi (Quênia), Cairo (Egito), Pretória (África do Sul), San José (Costa Rica), Buenos Aires (Argentina), Bangkok (Tailândia), Bruxelas (Bélgica) e em Viena (Áustria). Em Nova York (EUA) e Addis Abeba (Etiópia) mantém dois escritórios especiais, dedicados às pautas com as missões diplomáticas, corporações multilaterais e organizações não governamentais.

Para o contexto geográfico da América do Sul, desde 1953, países como Paraguai, Argentina, Chile e a Colômbia aderiram como membros à então CIPMME. Como nesta década a questão dos deslocamentos internacionais se centrava na pauta do refúgio, a adesão destes países se deu com a missão de receptores e destino dos refugiados provindos da Europa. Entretanto, apesar de sua presença desde a década de 1950 na América do Sul, suas ações foram pontuais e a criação de uma oficina regional com sede em Buenos Aires (Argentina) só foi acontecer em 2011. Até então, as ações na Argentina eram denominadas “Misión con Funciones Regionales para el Cono Sur”. Essa presença no país, desde 1953, voltou-se para o desenvolvimento de programas de cooperação técnico entre os países da região. Em 1973, no contexto político do golpe de Estado no Chile, o então CIME atuou com o reassentamento de 31.000 chilenos em 50 países8. Em síntese, para cada um destes países a OIM desenvolveu uma logística de atuação e com atividades, ainda que não integradas, no Cone Sul.

Mas chama a atenção a tardia adesão do Brasil à organização, formalizada em 2004, e foram mais de 12 anos como país associado para ter, como já apontado, seu escritório nacional em Brasília em 2016 — quando também se instalaram o escritório de campo na cidade de Boa Vista (RR) e o posto de triagem em Paracaima (RR). Esse posto na cidade de Paracaima compartilha as mesmas instalações com a “Operação Acolhida”, fundada e comandada pelas Forças Armadas brasileiras em 2018 e destinada ao tratamento logístico do fluxo provindo da Venezuela migratórios no Brasil.

Através de um trabalho etnográfico sobre a OIM, Mansur (2014) considera que esta organização segue as orientações da União Europeia quanto à política de securitização das fronteiras. Segundo o mesmo autor, a pauta que balizou a securitização das migrações foi dada pelo tráfico de pessoas. Esta questão entrou na agenda da América do Sul e, associada ao tráfico de mulheres e prostituição, tem sido utilizada como justificativa para as ações de controle e vigilância sobre o trânsito de população. A OIM assim, no Brasil tem sido a principal porta-voz da ONU do Pacto Global para as Migrações Seguras, Ordenadas e Regulares.

A instalação da OIM e a da Operação Acolhida no estado de Roraima, em 2018, trouxeram alterações significativas na paisagem local e estadual, como pontuam Vasconcelos e Santos:

A chegada de milhares de venezuelanos na pequena Boa Vista fez emergir uma certa Indústria da Migração em Roraima. (...) ao longo do primeiro semestre de 2017, a chegada de instituições e a criação de uma infraestrutura que anteriormente não fazia parte da realidade local, como escritórios de organizações internacionais, criação de abrigos, centros de referência, entre outros. Por outro lado, instituições e sujeitos que já compunham a dinâmica da cidade adquirem novas prioridades de atuação: simultaneamente, a disputa pelo protagonismo e por alianças incertas com os jogadores globais. (Vasconcelos e Santos, 2017, p. 252)

A instalação destes novos equipamentos implica não somente uma mudança na paisagem local mas em mudanças normativas. Os novos organismos internacionais exercem uma forte pressão sobre as instituições governamentais em níveis estadual e municipal. Outros estados do Brasil como o de Santa Catarina, Amazonas e o de Minas Gerais, no contexto das ações da Operação Acolhida para a interiorização dos migrantes venezuelanos, celebrarão acordos com a OIM e se inserem como pontos de conexões desta ampla rede de organização migratória.

Esta breve apresentação da forma organizacional da OIM abre caminho para entrarmos em nossas considerações finais, com o objetivo não de concluir uma reflexão, mas elencar propostas de trabalho, visto que cabe-nos como docentes e pesquisadores da migração, ter um esclarecimento sobre as bases de dados utilizados em nossas pesquisas. Chamo atenção, pois desde 2016, com a instalação oficial da OIM no Brasil, esta se tornou a fonte mais regular e oficial de uso entre os pesquisadores.

Considerações finais

Ao longo deste artigo, inserimos pontos que consideramos necessários para o campo da pesquisa em migrações, visto que tem se tornado uma prática metodológica recorrente, entre os investigadores acadêmicos, a referência direta a OIM seja no campo conceitual e ou como usuários dos dados. Reconhecemos que a OIM junto à prestação de serviços aos governos tem se tornado uma produtora de conhecimento, visto que constroem uma visão de mundo social sobre a migração internacional. Por se tratar também de uma agência internacional impõe, através dos seus boletins informativos, oficinas, cursos de formação, a emergência da migração com uma inevitabilidade global. Por sua vez, os pesquisadores usuários dos dados OIM, não tem realizado um exercício investigativo sobre as condições políticas que possibilitaram a esta organização representar e cumprir atualmente um papel central na gestão migratória na América Latina. A eficiência da OIM ao fornecer os suportes técnicos e demográficos da migração no Brasil, não podem prescindir de um exame analítico do seu conteúdo político. Nenhuma técnica é vazia de sentido político e tampouco se fixa nos lugares aleatoriamente. Na Figura 1 destacamos a localização estratégica dos postos da OIM em 2 segmentos fronteiriços do Brasil, o norte e o sul, conferindo a esta organização internacional um amplo conhecimento da região fronteiriça no continente americano.

Outro ponto, ainda a ser analisado, é o papel da OIM junto às outras redes de organização migratória no Brasil. Qual a intermediação da OIM junto aos migrantes não regularizados? Sua atuação está limitada aos migrantes ordenados e regulares? Qual a sua posição, visto que a associação a ONU se deu na celebração do Pacto Global para uma migração segura, ordenada e regular, em 2016. O conjunto das coletas dos dados sobre a vida do migrante, além de fornecer uma base de consulta e uso pelos pesquisadores, quais são os outros usuários? A magnitude do monitoramento dos dados e o conhecimento do terreno estão submetidos à função do controle da mobilidade da população? A OIM auxilia os migrantes em seus projetos de circulação ou serve para restringir os seus movimentos? Em síntese, as perguntas colocadas são aquelas que instigam para uma ampliação analítica, no sentido de termos conhecimento sobre as várias dimensões da OIM e o seu papel no contexto das migrações da América Latina. Esperamos que este trabalho, aqui apresentado, sirva como ponto de partida para agregar pesquisadores que questionem sobre o uso das plataformas e a base de dados que utilizamos em nossos procedimentos metodológicos. Cientes de que não existe neutralidade na produção da informação e do conhecimento científico, cabe aos pesquisadores da América Latina, região que historicamente foi objeto de experimento das políticas populacionais desenvolvimentistas, termos atenção e rigor analítico ao que está sendo produzido e colocado em circulação pelas organizações internacionais.

Referências

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Santos, Gislene (2018). O discurso do desenvolvimento e os desafios políticos da migração contemporânea. Em Silveira, R. L.; Felippi, A. C. (Orgs.), Território, redes e desenvolvimento regional: perspectivas e desafios. Florianópolis: Insular.

Vasconcelos, Iana dos Santos e Santos, Sandro Martins de A. (2017). Refugiados em Roraima? Instituições, papéis e a competição pelas categorias. Em Baeninger, Rosana; Silva, João; Jarochinsky, Carlos (orgs.), Migrações venezuelanas (pp. 250-256). Campinas: Ed. Unicamp.

Villarreal, Maria C. V. e Charneski, Márcia M. (2022). As cidades importam: perspectivas e exemplos sobre o protagonismo local no acolhimento, proteção e integração das pessoas migrantes e refugiadas no Brasil. Em Quintero, Jaqueline M.; Santos dos, Rafael P.; Meneghetti, Tarcísio V. (orgs.), Estudos sobre direitos das migrações e políticas públicas municipais (pp. 188-207). Itajaí: Editora da Univali.

Notas

1 Este artigo é resultado de um projeto em curso intitulado: “Redes de Organização e gestão dos movimentos migratórios no Brasil”, com recursos do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq). Processo No. 420058/2021-4.
2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/decreto/D8503.htm (acesso em 28/09/2023). Os acordos da OIM com instituições, ONGs, Universidades e outras asso-ciações iniciaram-se, no Brasil, em 2010. Para uma cronologia dos acordos consultar: https://brazil.iom.int/pt-br/acordos-de-cooperacao-e-memorandos-de-entendimento-da-oim-no-brasil (acesso em 22/10/2023).
3 R4V — Plataforma de Coordenação interagencial para refugiados e migrantes da Vene-zuela, liderada em conjunto pela ACNUR e OIM. https://www.r4v.info/es/situations/plat-form/location/7509 (acesso em 26/09/2023).
4 Conforme relato dos funcionários do IBGE, na apresentação intitulada: “Censo 2022 – Adaptações metodológicas para o recenseamento de indígenas em situação de abrigamento” – VII Seminário do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios. Rio de Janeiro, 29 a 31 de agosto de 2023.

As informações demográficas da população estrangeira no Brasil eram, até o ano 2010, for-necidas pelo IBGE, através do Censo Demográfico. Atualmente, temos uma base de dados para população estrangeira organizada pelo SISMIGRA – Sistema de Registro Nacional Mi-gratório e pelo OBMIGRA – Observatório das Migrações Internacionais (UnB). Entretanto, para a população venezuelana, além destas plataformas, conta-se com o levantamento da OIM – esse difere de outras fontes de dados, visto que realiza entrevistas com os migrantes provindos da Venezuela. As informações não são somente quantitativas, como no Censo Populacional, mas qualitativas.

5 Nos boletins da OIM, em português a DTM é traduzida por “Matriz de monitoramento de deslocamento”.
6 https://brazil.iom.int/sites/g/files/tmzbdl1496/files/documents/dtm-am-2021-defeso_0.pdf (acesso em 28/09/2023). Trata-se de um informativo, cerca de nove páginas, que tem como título “DTM” (Matriz de Monitoramento de Deslocamento, da sigla em inglês). São coletados dados sobre idade, escolaridade, etnia, cor e raça, gênero, saúde reprodutiva, gravidez, remessas, trajetos migratórios e outros quesitos. Na capa final deste informativo consta a bandeira dos Estados Unidos e a do Brasil, o logotipo do Ministério da Cidadania (Brasil) como a fonte do financiamento: Escritório de População Refugiada e Migração do Departamento de Estado dos Estados Unidos da América.
7 No site das Entidades das Nações Unidas no Brasil, consta o nome da OIM junto a outras organizações como a FAO, OIT, UNESCO, entre outras. Esta forma de apresentação gera uma associação direta entre a OIM a ONU, sobretudo por estar ao lado de agencias como a FAO e a UNESCO. https://brasil.un.org/pt-br/about/un-entities-in-country

Já no site da ONU, na seção Sistema da ONU a OIM aparece como “Organização relaciona-da”. https://unric.org/pt/nacoes-unidas-sistema-da-onu/

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