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Sociologia da utopia crítica no nexo das mudanças climáticas
Sociología de la utopía crítica en el nexo del cambio climátic
Sociology of critical utopia at the nexus of climate change
Revista Tramas y Redes, núm. 3, pp. 91-111, 2022
Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales

DOSSIER


Recepción: 09 Noviembre 2022

Aprobación: 09 Diciembre 2022

DOI: https://doi.org/10.54871/cl4c304a

Resumo: Este artigo contribui para a compreensão do campo da utopia crítica contemporânea no nexo das mudanças climáticas ao consolidar teóricos, principais conceitos e abordagens metodológicas. Foi realizada uma revisão sistemática a partir das bases Web of Science e da BNU com analise VosViewer. Além da parte metodológica e resultados, há na parte da discussão um enquadramento da utopia à luz da teoria social contemporânea. Também é apresentada a análise do campo com teóricos contemporâneos como El-Ojeili, Elliott, Jameson, Levitas e Urry no nexo entre utopia e mudanças climáticas. As considerações finais apontam para novas formas de se interpretar e criticar os sistemas dominantes e para um desenvolvimento de uma sociologia do futuro capaz de mobilizar a utopia e o futuro inscritos no presente como quadros ideológico-utópicos para a emancipação e transformação socioclimática para humanos e não humanos.

Palavras-chave: utopia crítica, mudanças climáticas, método sociológico, teoria social crítica.

Resumen: Este artículo contribuye a la comprensión del campo de la utopía emergente en el nexo del cambio climático mediante la consolidación de teorías, conceptos y enfoques metodológicos. Para la revisión sistemática se utilizó el método bibliométrico de la base de datos Web of Science (1945-2022) y BNU con análisis VosViewer. En la primera parte, se realiza una síntesis de la utopía en el ámbito de la teoría social contemporánea. La segunda presenta un análisis del campo con los teóricos contemporáneos El-Ojeili, Elliott, Jameson, Levitas y Urry acerca del nexo entre utopía y cambio climático. Y en la tercera el énfasis está en los conceptos principales de la utopía crítica. Las consideraciones finales apuntan algunas críticas a la luz pos-humanista como categorías analíticas de emancipación y transformación del futuro y potencialidades de lo que son los seres humanos y no humanos.

Palabras clave: utopía crítica, cambio climático, método sociológico, teoría social crítica.

Abstract: This article contributes to the understanding of the emerging theoretical field of critical utopia. By presenting the state of the art of utopia as a concept of social theory in intersection of climate change research in light of the social science field, this systematic work seeks to consolidate theoretical concepts and methodological approaches under construction. The methodology used was bibliometric through the Web of Science and BNU with VosViewer. In the first part, there is a brief synthesis of utopia within the framework of contemporary critical social theory. The second part presents an analysis of the field with theorists: El-Ojeili, Elliott, Jameson, Levitas and Urry. In the third one, the emphasis is on the main concepts such as critical utopia. The final considerations point out some post-humanist critique and potentialities.

Keywords: critical utopia, climate change, sociological method, critical social theory.

Introdução1

A utopia já foi enquadrada como subcategoria, categoria, conceito, campo de estudo e mesmo gênero literário2. Foram as investigações de Mannheim (1893-1947) que inauguram a “sociologia da utopia” como campo de estudos a partir da crítica marxiana (Ricoeur, 2015, p. 320). Todavia, como observa Ricoeur (2015), a utopia como campo investigativo de caráter crítico é relegada a um segundo plano nos estudos sociológicos. É a socióloga Ruth Levitas quem retoma a utopia como agenda de pesquisa na perspectiva sociológica e propõe um modelo à luz da teoria social crítica (Levitas, 2000). A autora não só apresenta uma abordagem crítica como elabora um modelo conceitual-metodológico, a utopia como método sociológico (Levitas, 2013). Porém, a autora não entra diretamente na temática das mudanças climáticas, todavia lança as bases para o principal teórico do nexo em recorte, o sociólogo John Urry que inova ao propor uma abordagem conceitual-metodológica para discutir as mudanças climáticas e seus efeitos nos ordenamentos das sociedades contemporâneas.

Se relacionarmos o conceito da utopia (enquanto crítica aos sistemas de ordenamento social) com a temática das mudanças climáticas (enquanto objeto de investigação sociológica política) há poucos teóricos neste palco específico que dialogam entre si. A referência neste nexo (utopia e mudanças climáticas) é John Urry que parte das bases conceituais da utopia como método sociológico de Levitas e elabora um modelo conceitual-metodológico para investigar de forma direta as implicações sociais das mudanças climáticas. O autor contribui para a discussão ao trazer seis formas de inclusão do futuro como categoria analítica crítica em seu modelo (Urry, 2016). Nessa perspectiva o futuro em Urry3 — uma noção de futuro que estrutura um quadro ideológico-utópico e que fomenta ações no presente para o presente — ecoa a definição de futurabilidade de Berardi (2019, p. 143) na qual “os futuros são inscritos no presente como possibilidades imanentes”. Para esses teóricos não há futuro na perspectiva temporal, somente presente, o que remete ao conceito de esvaziamento do tempo (Jameson, 2021) onde só resta o espaço presente e é neste espaço que o futuro é apenas um elemento orientador do agir político no presente. As políticas da mudança climática se inscrevem neste tipo de abordagem teórica, como instrumento forjado no presente para orientar o agir político no presente.

Diante do aumento dos efeitos catastróficos das mudanças climáticas de raiz antrópica (Brulle, 2019; Giddens, 2009; IPCC, 2022) a ação — além da reflexão sobre o agir político — no presente se impõe aos indivíduos e grupos, humanos e não humanos uma orientação, seja ela qual for. A utopia crítica contemporânea busca uma melhor compreensão sobre os processos de formação desses quadros ideológico-utópicos que orientam e ordenam social e ecologicamente os indivíduos e grupos em suas múltiplas escalas. No contexto climático, alguns quadros ideológico-utópicos não só reproduzem as desigualdades sociais e ecológicas e aumentam os efeitos físicos das mudanças climáticas como levam a modos de vida distópicos sustentados por estes quadros.

Este artigo tem sua originalidade na apresentação das contribuições e os limites teóricos da utopia crítica no nexo das mudanças climáticas a partir de cinco autores contemporâneos que mobilizam a utopia sob diferentes níveis de convergência entre si: Ruth Levitas, John Urry, Fredric Jameson, Chamsy El-Ojeili e Anthony Elliott. O presente trabalho dá ênfase ao diálogo entre os dois principais teóricos: Levitas que lança a pedra angular da utopia crítica contemporânea e Urry que a partir das bases conceituais metodológicas de Levitas inaugura de modo direto o nexo da utopia com as mudanças climáticas. Porém vale ressaltar que a discussão do presente trabalho mantém uma interface dialética com os demais teóricos em destaque no recorte desta análise.

Este artigo se estrutura em três seções, além da introdução e das considerações finais. Na primeira é apresentada a metodologia e os resultados da pesquisa sobre o campo da utopia crítica contemporânea no nexo das mudanças climáticas. Na segunda há duas subseções: na primeira é apresentada a utopia dentro do campo do campo da teoria social crítica e na segunda (dividida em mais três subseções) a utopia crítica contemporânea com os elementos seminais da utopia clássica, os elementos contemporâneos e as fronteiras teóricas.

Metodologia e resultados

O procedimento metodológico para a revisão sistemática do campo utilizou a mesma estrutura analítica para a investigação dos estudos e pesquisas das Ciências Sociais no Brasil sobre a temática das mudanças climáticas (Salmi e Fleury, 2022). Dois bancos de dados foram acessados. A pesquisa na base Web of Science(WoS) — Coleção Principal (Clarivate Analytics) — foi realizada em 15 de abril de 2022 e na base Bibliothèque Nationale et Universitaire de Strasbourg (BNU) em 06 de maio de 2022. Para a base WoS a pesquisa se concentrou no período entre 1945 e 2022 e resultou 114 resultados4 no nexo entre utopia e mudanças climáticas para o filtro dos campos associados às Ciências Sociais. Para a base BNU nos mesmos critérios a pesquisa resultou em zero5. Além da análise dos documentos identificados nas bases, também foi realizada uma revisão extensiva nas referências bibliográficas citadas e nos autores cocitados no nexo utopia e mudanças climáticas.

Em relação ao nexo utopia e mudanças climáticas, o que se nota é uma fraca interação entre os dois nós temáticos, o que revela uma possível emergência do campo da utopia crítica para as investigações sobre mudanças climáticas.

Entre os teóricos mais cocitados os destaques contemporâneos são o sociólogo britânico John Urry (1946-2016), o teórico crítico da cultura norte-americano Fredric Jameson (1934-) e a socióloga britânica Ruth Levitas (1949-). Urry é o principal teórico do nexo utopia e mudanças climáticas. O teórico traz o enquadramento de Levitas para deslocar a noção de futuro de um locus filosófico para uma categoria sociológica no nexo direto das mudanças climáticas.

Uma referência revelação é Jameson. O crítico é aparentemente um teórico deslocado das discussões sobre mudanças climáticas, todavia é um dos autores de referência nesta pauta, devido às suas teses sobre utopia à luz da crítica aos processos de formação dos sistemas ideológicos culturais (e.g. capitalismo tardio e suas formas de apropriação tanto imaginárias quanto materiais — que no contexto da emergência climática se revela patente esta relação entre os planos culturais e os efeitos dos quadros ideológicos sobre o planeta) e suas implicações nas sociedades contemporâneas (Jameson, 2021).

Tanto Urry como Jameson6 partem, por diferentes caminhos, das bases de Levitas. Se Urry é a ponta de lança do nexo utopia e mudanças climáticas, Levitas é a base e a pedra angular da utopia crítica contemporânea que lança as sementes a partir das quais Urry conecta com a temática das mudanças climáticas. Assim Levitas recoloca a utopia como campo de estudos da sociologia contemporânea (Levitas, 2000; 2013) e faz uma interface no nexo das mudanças climáticas a partir do seu próprio arcabouço teórico em diálogo com as noções de futuro de Urry (Levitas, 2013; 2017; Urry, 2016).

A revisão sistemática dos documentos de ambas as bases resultou na identificação de outros dois sociológicos contemporâneos vinculados à discussão em pauta. O sociólogo político neozelandês El-Ojeili que parte das bases de Levitas para construir seu arcabouço teórico-metodológico (El-Ojeili, 2018; 2020). E o sociólogo neozelandês Elliott que realiza um diálogo direto com Urry sobre as implicações do avanço tecnológico sobre as subjetividades — humanas e artificiais — contemporâneas (Elliott e Urry, 2010) e lança as bases para a discussão da tecnologia, em especial a inteligência artificial (Elliott, 2019; 2022), no nexo dos futuros climáticos, inclusive uma discussão fronteiriça à luz da sociologia da tecnologia sobre inteligência artificial e as implicações sobre o futuro climático — pautados por um utopismo positivista — e as subjetividades alternativas deste encontro: IA e mudanças climáticas.

A seguir são apresentadas as contribuições7, interações entre as abordagens identificadas no nexo utopia e mudanças climáticas e suas implicações teóricas-metodológicas.

Diálogos utópicos: do por vir ao AI climate futures

Essa seção está dividida em duas subseções. A primeira apresenta uma breve visão da utopia dentro do campo da teoria social crítica como elemento teórico e instrumento de crítica política. A segunda apresenta a utopia no nexo das mudanças climáticas, seção que é subdividida em três subseções. Na primeira subseção são apresentados os elementos teóricos clássicos que são as raízes da utopia contemporânea e que no nexo das mudanças climáticas são frequentemente citados. Na segunda subseção são os elementos contemporâneos e na terceira e última subseção as fronteiras e algumas críticas adicionais às abordagens analisadas.

A utopia dentro da teoria social crítica contemporânea

Esta subseção não busca apresentar o campo da teoria social crítica no nexo da utopia, mas traçar um contexto da utopia crítica contemporânea que é a base das discussões das mudanças climáticas à luz da utopia. É fundamental compreender mesmo de modo sintético como a utopia crítica está posicionada no campo da teoria social crítica e como estas posições têm implicações quando o clima é o tema de análise dos autores contemporâneos.

A teoria social crítica8 pode ser entendida como o espaço teórico, epistêmico e empírico das Ciências Sociais que busca investigar as dinâmicas entre as objetividades (materialidades objetivas) e subjetividades (sujeitos e suas práticas sociais) diante de sistemas estruturantes e estruturadores — e.g. como os hegemônicos em contextos de opressão e dominação e em contextos de insurgências e revoluções (Bronner, 2017; Foster e El-Ojeili, 2021). Grosso modo, à luz da utopia crítica a teoria social crítica é o espaço epistemológico entre as atividades científica e ideológica-utópica. O objeto sociológico e político pode variar, porém a ênfase está no nexo das relações entre: i) teorias e doutrinas (sistemas ideológicos e/ou utópicos — a depender da abordagem teórica) e práxis revolucionárias; ii) estruturas dominantes e formas de subjetivação; e iii) outros elementos associados ao nexo entre teoria e prática social.

Nessa linha, “a teoria crítica como um método transformativo da ordem social” (Bronner, 2017, p. 22) avança de uma investigação puramente descritiva e interpretativa para um enquadramento crítico sobre os indivíduos e estruturas, sobre o posicionamento político do próprio cientista social à luz de uma sociologia do futuro inscrito no presente (Levitas, 2013; Suvin, 2012; Urry, 2016) e sobre o papel da própria ciência como atividade social crítica (El-Ojeili, 2020; Levitas, 2013). A noção desse tipo de enquadramento teórico e analítico, de raízes bakuninianas-marxianas9, encontram-se ancorados em princípios teóricos como: a crítica como método sociológico (Levitas, 2013) e a emancipação moral e subjetiva do ser humano diante de estruturas de poder hegemônicas como horizonte normativo oriundo dessa crítica (El-Ojeili, 2018, 2020; Elliott, 2019; Jameson, 2021; Levitas, 2013; Urry, 2016). Em uma perspectiva histórica pode-se notar a similaridade entre a utopia crítica e alguns princípios teóricos da própria teoria crítica, “tais como a crítica imanente como método de análise” e “a orientação para a emancipação enquanto horizonte normativo da crítica” (Bueno, 2022, p. 3). Nesta perspectiva a utopia contemporânea permite a crítica tanto como a emancipação da razão humana.

Em um movimento contemporâneo, uma das vertentes no campo das Ciências Sociais, em especial da Sociologia Política, retomou os elementos da ideologia e utopia como objetos sociológicos e buscaram ampliar o campo da teoria crítica por meio do conceito central da utopia como método sociológico crítico (El-Ojeili, 2018, 2020; Jameson, 2021; Levitas, 2013; Urry, 2016). Esses teóricos enfatizam a relação não só entre teoria crítica e práxis social consciente como o posicionamento ontológico e político da produção de conhecimento da ciência social. Para os teóricos desse campo a utopia é a chave para não o esgotamento das energias utópicasmas para um renascimento das forças utópicas transformativas. Na abordagem da utopia crítica contemporânea, ao contrário da vertente teórica clássica da teoria social crítica — de Mannheim até Habermas —, a utopia é aqui enquadrada como um sistema ideológico e a utopia e a ideologia são noções conceituais e analiticamente equivalentes10 e desse modo associadas às visões de mundos existentes e imaginados que operam inscritos no presente como elementos fomentadores dos processos de subjetivação dos indivíduos e grupos.

No contexto das mudanças climáticas, a utopia crítica é mobilizada a partir de outro conceito-categoria que está diretamente associado aos processos de intersubjetividade: o futuro e a dialética entre identidade (objetividades e subjetividades) e diferença e suas implicações nas formações dos sistemas e quadros ideológico-utópicos (El-Ojeili, 2020; Elliott, 2022; Elliott e Urry, 2010; Jameson, 2021; Levitas, 2017; Urry, 2016). A função do futuro nas configurações utópicas possui abordagens teóricas por vezes convergentes e outras antagônicas. Em síntese, a utopia dentro da teoria social crítica contemporânea é compreendida como ideologia e vice-versa e o conceito de futuro é apreendido como elemento inscrito no presente para o presente. Para a utopia crítica contemporânea o que está em disputa é o futuro como elemento orientador e fomentador de um quadro ideológico-utópico. Nesta perspectiva o futuro é estruturante e estruturador do agir político no presente.

A utopia clássica e contemporânea na intersecção climática

Ao menos três teóricos clássicos se destacam e possuem influências sobre a utopia contemporânea: Mill, Bloch e Suvin. Alguns de seus elementos utópicos ainda podem ser vistos nas fundações da utopia contemporânea e em algumas abordagens que ainda pautam as estruturas teóricas contemporâneas.

Elementos seminais da utopia para a compreensão do nexo das mudanças climáticas

Alguns elementos seminais da utopia na sua vertente crítica são as bases11 da utopia crítica contemporânea no nexo das mudanças climáticas, como os conceitos do liberalismo utilitarista de James Stuart Mill, do princípio esperança de Ernest Bloch e da orientação utópica de Darko Suvin.

Os elementos de Mill (1806-1873) são referências clássicas nas vertentes do utilitarismo e liberalismo e consequentemente as noções, conceitos e categorias de caráter liberais são criticadas pelas teorias anarquistas, socialistas, comunistas e convivialistas. A liberdade como chave utilitarista e princípio motor para a estruturação e ordenamento do social e ecológico também move as coalizões climáticas contemporâneas como demonstrado recentemente (Brulle, 2019) e incorporado ao recente relatório Sixth Assessment Report (IPCC, 2022). Brulle (2019) não chega a mobilizar a utopia ou outras categorias da teoria social crítica para investigar as lógicas hegemônicas e dominantes destas coalizões climáticas estadunidenses, mas demonstra como o sistema neoliberal produz práticas de contenção de narrativas — e.g. contramovimentos climáticos negacionistas — e buscam realizar a reprodução das posições dominantes destes agentes nos espaços das políticas domésticas (no caso dentro dos Estados Unidos) e internacionais. O utilitarismo e liberalismo de Mill ainda parecem conceitos potentes e ativos quando a temática é política das mudanças climáticas.

Já os elementos sobre utopia de Ernst Bloch (1885-1977), teórico de raízes marxianas, versam na lógica da construção de um modelo teórico crítico capaz de compreender as estruturas sociais dominantes para emancipar os seres humanos dos sistemas hegemônicos. A contribuição é reconhecida por El-Ojeili (2012, p. 192) que busca conectar “o passado (o histórico), a análise do presente (a questão sociológica da ‘lógica do social’), e as ideias sobre futuro (a dimensão utópica)”. O teórico clássico traz o conceito do ainda-não como um dos elementos utópicos centrais de uma utopia concreta — noção que atravessa os processos de subjetivação e formação dos sistemas ideológicos e são incorporados na lógica do futuro inscrito no presente.

E finalmente, Darko Suvin (1930-), teórico de raiz marxiana que traz noções seminais na perspectiva metodológica analítica de uma utopia crítica ao propor componentes e definições diretas para seu enquadramento teórico. A partir das críticas a Mill e incorporação de Bloch, o autor estrutura a utopia como método e argumenta que são

necessários no mínimo dois elementos: i) o agente que se move, e ii) o espaço imaginário no qual ele se move […] com aspectos de agenciamento: i) o lugar do agente que se move, seu locus, ii) o horizonte para o qual o agente se move, e iii) e a orientação, um vetor que conjuga locus e horizonte. (Suvin, 1990, p. 77)

O elemento-chave suviniano é a orientação utópica, que é entendida como um “vetor de desejo ou cognição” (Suvin, 1990, p. 78).

O enquadramento da utopia como desejo de Jameson (2021) e a utopia como desejopor uma vida melhor de Levitas (2013) são ecos da “orientação utópica como vetor de desejo” de Suvin (1990).

Outro conceito seminal é o horizonte-fim e sua relação direta com os efeitos das mudanças climáticas. Suvin (2012, p. 324) que está nos dois espaços — do clássico e do contemporâneo — argumenta “o horizonte-fim do tipo extrativista planetário [é] pautado por guerras, exploração econômica e ecocídio”. A conexão com os vetores analíticos-críticos de Naomi Klein (2014) são diretos. Pode ser observado como o conceito de Klein do extractivist mindset e sua crítica sobre a pauta neoliberal de exploração econômica a nível planetário encontram-se aderentes ao elemento do horizonte-fim do quadro utópico de Suvin do tipo extrativista planetário.

Em síntese, a abordagem liberal utilitarista de Mill é um dos elementos antagônicos nas críticas dos teóricos da utopia contemporânea, principalmente na relação com os sistemas dominantes. Já os conceitos por vir, ainda não e princípio esperança de Bloch são elementos que entram nesta relação diametral com os conceitos utilitaristas de Mill e os teóricos contemporâneos ainda se valem desta assimetria em suas críticas atuais. E os elementos de Suvin têm um caráter mais metodológico, mas ainda são as bases da utopia contemporânea.

Elementos da utopia contemporânea no nexo das mudanças climáticas

A partir dos elementos apresentados da utopia clássica é que o campo da utopia crítica contemporânea é forjado por Ruth Levitas, John Urry e Chamsy El-Ojeili. Outros interlocutores no campo, como Fredric Jameson e Anthony Elliott, cada um dentro de seus campos, também contribuem em menor escala no diálogo entre utopia e a questão climática.

Levitas (2000, 2013, 2017) constrói as bases da teorização da utopia crítica contemporânea em diálogo com as noções dos autores clássicos e os contemporâneos. A exceção é Elliott12, que dialoga com Urry (Elliott e Urry, 2010) na chave da sociologia da tecnologia e eventuais críticas ao quadro ideológico da tecnossalvacionismo e das sociedades neoliberais.

Urry é a principal chave do nexo entre utopia e mudanças climáticas e avança com a teorização da utopia crítica, propõe modelos utópicos — que o autor denomina de métodos utópicos (Urry, 2016) —, mobiliza o futuro como categoria analítica e apresenta estruturas utópicas como objeto sociológico dentro do nexo das mudanças climáticas. Já El-Ojeili (2018), também a partir de Levitas, propõe novos elementos metodológicos analíticos e investiga empiricamente a dinâmica social com a aplicação da utopia crítica e incorpora algumas consequências teóricas da noção por virda sua teoria do princípio esperança (Bloch, 1995). Já Elliott (2019) empresta uma parte do conceito de futuro de Urry em sua sociologia do futuro e avança para os estudos da IA no nexo das mudanças climáticas — AI climate futures studies (Elliott, 2022). Com exceção de Urry, os demais autores não possuem as mudanças climáticas como objeto direto em suas abordagens teóricas à luz da utopia contemporânea, todavia a interlocução entre os teóricos demonstra a interface entre os conceitos tanto da utopia clássica quanto da contemporânea quando o tempo é mudanças climáticas.

É Levitas quem reinscreve a sociologia da utopia no contexto contemporâneo. O enquadramento conceitual teórico de Levitas (2013; 2017) — que tem raízes na crítica da posição da ideologia e da utopia de Marx13 — tem suas bases nos elementos utópicos de Mill, Bloch e Suvin assim como nos enquadramentos da utopia nos autores da teoria crítica14. A autora avança na abordagem crítica sobre a utopia como lente analítica e instrumento político de intervenção no mundo. Como em El-Ojeili (2018), a autora equaliza a noção de ideologia e utopia. Quanto à abordagem de Urry, a crítica de Levitas se concentra no argumentação de que o arcabouço sociológico de cenários imaginários (Urry, 2016) é um tipo de sociologia da utopia, em especial uma utopia como método pautada por uma orientação utópica (como em Suvin) e não uma sociologia da tecnologia a partir do princípio liberal-utilitaristade Mill — como Elliott e Urry insistem em argumentar (Elliott e Urry, 2010; Levitas, 2013; Urry, 2016).

Já na perspectiva metodológica sociológica, a utopia concentra-se na compreensão e crítica no nexo dos mundos existentes e os imaginados (na noção do ainda não de Bloch) no presente e as instituições (estruturas) dominantes existentes em determinados espaços também no presente. Levitas (2013) aborda a utopia tanto como ontologia como arquitetura sociológica. Na perspectiva ontológica a utopia encontra-se em uma tríade: na compreensão e crítica do nexo entre “futuro” e “normatividade” a partir da questão “o que significa ser humano” (Levitas 2013, p. 175). Como crítica analítica a utopia como método sociológico busca, entre outros elementos utópicos, identificar o presente ausente (Levitas, 2013, p. 197), ou seja, busca manter ancorado no presente a análise e a crítica e estabelecer o futuro como objeto sociológico e vetor modelador dos imaginários utópicos que movem os agentes no espaço tempo presente. No presente ausente, o sujeito está deslocado do presente — alienado (das estruturas hegemônicas presentes) como em Marx ou esquecido (das forças hegemônicas presentes) como em Suvin (2012) e em Jameson (2021) — e reproduz seu modo de viver em um estado de suspensão da realidade presente.

No quadro de Urry (2016), a subjetivação do agente moral é perpassada pela historicidade — a “tradição das gerações passadas pesam como um pesadelo nas mentes dos vivos” (Marx, 1973 [1852], p. 146 apudUrry, 2016, p. 62). Para o autor, em uma abordagem pós-marxiana, a utopia se equipara à noção de ideologia como visão de mundo existente e imaginada, ou seja, a utopia e o futuro são elementos do presente no imaginário do agente social e político. Para Urry (2016, p. 91) “o futuro é, em boa parte, um conjunto de commodities que se torna elemento-chave nas estratégias das organizações sociais”. É neste ponto, do agenciamento perpassado pela historicidade, que Elliott (2019) se alinha ao quadro dos cenários imaginados de Urry ao pautar a discussão sobre os efeitos das mudanças climáticas no nexo das novas subjetividades produzidas pelas inteligências artificiais (IA). Nessa linha, a utopia como método crítico passa a investigar quais tipos de utopias movem os agentes em seus espaços presentes. Um argumento possível é afirmar como hipótese que os tipos extrapolação e cenários (Urry, 2016) são os quadros ideológico-utópicos- que compõem em parte as estruturas projetadas por humanos e IAs dos conteúdos do IPCC nos imaginários subjetivos dos cientistas que investigam diretamente o clima — mas não os cientistas sociais do campo da utopia crítica, pois estes, grosso modo, possuem uma abordagem crítica sobre o objeto clima.

Levitas (2013; 2017) ao contrário de Urry (2016) não entende o futuro no quadro dos modelos utópicos, ou seja, “a utopia [como método] não é um plano, versões de cenários de futuros melhores que devem ser negociados coletivamente”, mas como método deve se concentrar nas questões de agência e organizações políticas dos espaços de construção das imaginações utópicas e consequente nos espaços de decisão. Urry (2016) não se contrapõe ao entendimento de Levitas (2013), mas ao colocar o futuro como objeto sociológico, o teórico propõe modelos utópicos que expandem a compreensão das formas de subjetivação a partir de tipos de imaginários utópicos que podem orientar os agentes e suas organizações enquanto coletivos. Deste modo, Levitas (2017) ancora o elemento do futuro no presente (presenting the future) e esse movimento remete a uma ontologia do presente — entendimento sociopolítico similar entre os teóricos da utopia crítica e nesta perspectiva se aproxima do quadro teórico de El-Ojeili (2020).

Os modelos utópicos de Urry (2016) podem ser entendidos como modelos ideais de elementos imaginários que possuem a função motriz da construção de mundos utópicos internos ao sujeito. Esses modelos utópicos se aproximam teoricamente do quadro de constelação utópica de El-Ojeili (2020). O autor não rejeita a linearidade histórica por completo, mas entende o valor do passado sobre a construção do presente ao utilizar a utopia como construtor do imaginário — que pode ser entendido como futuridadepresente. Esses mundos movem e orientam os sujeitos a produzirem modos de existência ou produzirem novos por meios reformistas ou revolucionários, planejados ou não.

Para Levitas (2017, p. 3), “por definição, toda discussão sobre um futuro melhor é normativo” e desse modo, a autora concebe a “utopia como método sociológico” para a “reconstituição imaginária da sociedade” a partir de uma reflexão crítica sobre o status quo e a visibilização das ‘invisíveis’ estruturas de poder hegemônicas. Se a discussão sobre um futuro melhor é normativo, então o quadro de Klein (2014) — como de outros autores críticos aos sistemas dominantes — ganha relevância ao colocar em perspectiva a questão da redistribuição (de caráter normativo e por vezes prescritivo) como formas de superar os efeitos geradores das mudanças climáticas, a dizer o quadro neoliberal de pauta extrativista. A utopia crítica aqui está ancorada no nexo entre os planos reflexivo e empírico, modelada por “princípios éticos e ações políticas” (Levitas, 2017, p. 11). Esse entendimento de interdependência interplanos é uma das características da teoria social crítica e por consequência da própria utopia crítica enquanto abordagem teórico-pragmática. Nesta perspectiva, o agir político é um tipo de direcionamento por quadros ideológico-utópicos, sejam eles existentes e dominantes ou emergentes e alternativos.

Para o enquadramento conceitual teórico e metodológico da utopia crítica de Urry (2016), o autor de um lado expande o quadro de Levitas (2013) e por outro coloca mais ênfase na relação entre a historicidade (passado) e futuridade (presente) no contexto da produção de conhecimento científico. Ambos estabelecem bases e métodos utópicos que utilizam a noção de futuro inscrito no presente como elemento central analítico para a investigação dos processos15 de subjetivação utópica. Tais bases são utilizadas tanto por El-Ojeili (2018; 2020) como por Elliott (2019; 2022) em suas críticas utópicas, seja na perspectiva tecnologia ou de sistemas-mundo dominante em relação aos presentes distópicos e futuros-presentes possíveis.

Já El-Ojeili (2012; 2018) avança tanto vertical como horizontalmente no campo a partir dos elementos conceituais anteriormente formulados16 por teóricos da teoria social à luz da utopia com o quadro conceitual-teórico de Levitas (2013; 2017). Avanços verticais, pois sua modelagem está ancorada na gênese dos utopistas clássicos, entre eles Mannheim — o qual ele subverte a noção de ideologia mannheimiana e a equaliza com a noção da utopia, como fez Levitas (2013). E avanços horizontais, ao expandir metodologicamente o campo contemporâneo com quatro elementos: componentes, figuras, configurações e constelações utópicas (El-Ojeili, 2018; 2020). Se para El-Ojeili (2020) a utopia é uma atividade social crítica, ou seja, um método científico que contribui para a compreensão dos nexos entre indivíduos e seus mundos, biografias e histórias, mundos existentes e imaginados, e tem como objetivo social o movimento do agente de um estado de sofrimento empírico para um de melhor bem-estar, a mesma noção se alinha às bases teóricas de Levitas (2013), Urry (2016), Elliott (2019) e Jameson (2021).

No contexto contemporâneo na intersecção climática a referência de destaque — além das obras de Urry e Levitas — é a crítica de Naomi Klein (2014) sobre a pauta ideológica extrativista controlada pelas oligarquias em posição dominante a nível global. Essa é uma das referências mais citadas pois traz na lógica causal histórica as causas para as mudanças climáticas: o capitalismo, e mais, na sua vertente neoliberal de lógica extrativista (extractivist mindset). Por um lado, a autora utiliza uma abordagem similar ao quadro da utopia crítica, mas não de modo explícito, pois não mobiliza os elementos da utopia como método. Klein (2014) utiliza um arcabouço teórico que fomenta análises críticas no nexo entre passado, presente e futuro, críticas essas alinhadas aos sistemas utópicos (ideológicos) neoliberais e extrativistas de caráter utilitarista, autoritarista e hegemônico. Na perspectiva da utopia crítica, a autora mobiliza mais os elementos associados à configuração utópica do que às constelações — caso de Brulle (2019) que se concentra em compreender as coalizões Estado-Mercado que controlam as narrativas da questão climática.

Ainda na perspectiva da questão climática se pode argumentar que Brulle (2019) identifica uma figura ideológica-utópica com agenciamento para as construções das contranarrativas negacionistas sobre a questão climática: as coalizões climáticas neoliberais americanas ancoradas no extrativismo. Também nessa linha, o extractivist mindset de Klein (2014) é uma típica figura utópica. Apesar de Brulle e Klein não dialogarem entre si nem com os teóricos da utopia contemporânea, seus conceitos mobilizados em suas análises o fazem.

Se Klein (2014) e Brulle (2019) discutem as mudanças climáticas com o intuito de compreender as dinâmicas e interesses dos grupos em situação de domínio nas arenas políticas, é Elliott (2022) quem traz um novo agente, o agente artificial IA, como agente político ativo nesta arena. No âmbito dos futuros sociais abertos, a questão da construção de novas subjetividades por meio das interações ativas dos sistemas de IA na formulação de políticas climáticas há duas facetas: em uma, os IAs promovem mecanismos mais eficientes e rompem com o sistema capitalista de caráter extrativista e na outra os IAs aumentam as desigualdades sociais apesar de gerar transições energéticas mais eficazes (Elliott, 2022). A discussão sobre o nível de agenciamento — e eventual controle ou convivência — com este novo agente artificial autônomo no nexo das mudanças climáticas é nitidamente um espaço a ser explorado.

A aderência entre os conceitos das figuras ideológica-utópicas e os quadros formadores dos sistemas de ideologias-utopias é muito nítido. Ao trazer as contribuições dos teóricos da utopia contemporânea, há outros exemplos destas figuras utópicas configuradas na arena climática: tecnocracia salvacionista utilitarista, modernização ecológica secularizada, crescimento econômico ilimitado neoliberal, decrescimento antiutilitarista, digitalização total e transição pós-crise climática liberada por IA, militarização digital no contexto climático, entre outras (El-Ojeili, 2020; Elliott e Urry, 2010; Jameson, 2021; Levitas, 2017). É muito relevante como os quadros teóricos à luz da utopia crítica no nexo das mudanças climáticas conseguem apreender de forma aparentemente diferente o mundo empírico e chegarem a conclusões similares em relação aos agentes em posição de poder e domínio e as estruturas dominantes, porém lançam novas luzes sobre as dinâmicas em posição de poder.

Nota-se um alargamento do campo da utopia como subcampo da teoria social crítica contemporânea seja como campo teórico seja como instrumentalização metodológica epistêmica e política que tem a questão climática como objeto direta ou indiretamente. O nexo emergente entre a utopia contemporânea e as mudanças climáticas pode ser entendida como uma prática de um grupo de cientistas que buscam uma reação (compreensão outra) aos sistemas hegemônicos no contexto do aumento das iniquidades sociais e ecológicas diante dos efeitos (nefastos) das mudanças climáticas de origem antrópica de um determinado tipo de sistema-mundo dominante.

Fronteiras teóricas e críticas às abordagens

Apesar de Levitas (2013; 2017) não trazer um quadro metodológico consistente — que é modelado por El-Ojeili (2020) — a autora lança as bases de uma sociologia do futuro renovada e ao posicionar a utopia como método crítico lança luzes sobre dois pontos relevantes: o futuro como noção crítica analítica e a utopia como crítica social política. Urry (2016) fica ancorado nos “modelos utópicos” dentro de uma perspectiva pragmática do utilitarismo tecnológico — na mesma linha que o utopismo positivista de Elliott (2022) que tende a um tecnossalvacionismo e ao não entrar nas análise dos grupos em posição de poder ou estruturas produtoras de iniquidades — como em Brulle, 2019 — o sociólogo permanece dentro do campo de uma sociologia da tecnologia mais do que dentro de uma sociologia do futuro (apesar da sua insistência argumentativa e no esforço de lapidar o arcabouço teórico ancorado em uma nova abordagem no conceito de futuro. Já El-Ojeili (2020) consegue agregar novos elementos ao quadro da utopia crítica, porém não enquadra as mudanças climáticas como objeto analítico direto e sim seus efeitos antrópicos. O cientista social também não entra na discussão das implicações sobre IA — como Elliott (2019, 2022) o faz no campo da sociologia da IA no nexo das mudanças climáticas — nem na questão do agenciamento de não humanos, sejam eles biológicos, IA ou híbridos e suas implicações nos sistemas estruturantes e estruturadores sociais.

O que também não é identificado nos arcabouços destes teóricos é a abordagem crítica da dicotomia sociedade-natureza. Apesar de Elliott (2019) realizar uma citação aos estudos sobre o agenciamento de não humanos de Latour (1947-2022), o faz na perspectiva do nexo entre as novas tecnológicas, IA em especial, e as mudanças sociais, uma vez que “a agência é bem compreendida como distribuída entre humanos e máquinas” (Elliott, 2019, p. 41). Porém sem incluir o agenciamento de outros não humanos, como os seres da natureza e seus agenciamentos, Elliott (2019, 2022) limita sua abordagem e suas críticas aos sistemas dominantes. Nem as discussões teóricas entre Elliott e Urry (2010) nem os diálogos entre Levitas e Meyer (Levitas, 2017) trazem à tona a crítica à dicotomia sociedade-natureza. Grosso modo, as fronteiras teóricas se situam na crítica entre humanos e a tecnologia (à luz de uma sociologia da tecnologia) ou entre humanos e suas estruturas sociais dominantes (à luz de uma sociologia crítica política).

E no contexto do Brasil não há discussões no nexo entre utopia e mudanças climáticas, porém no que tange ao contexto das mudanças climáticas (Fleury, Miguel e Taddei, 2019), mais do que enquadrar o clima como questão sociológica, a contribuição da utopia crítica contemporânea para o contexto climático é colocar a crítica utópica como instrumento sociológico político crítico. Ressalto ainda que este tipo de arcabouço — da utopia crítica — não é utilizado atualmente pelas Ciências Sociais no contexto das mudanças climáticas (Moraes et al., 2020; Salmi e Fleury, 2022). O que se revela no campo da teoria social crítica é um campo relativamente bem delimitado — utopia contemporânea considerado a partir das bases de Levitas em 1990 até as discussões mais recentes de Urry, El-Ojeili e Elliott nos primeiros anos de 2020, porém tal adensamento teórico não foi abordado nas Ciências Sociais do Brasil dentro do contexto das mudanças climáticas. As oportunidades de avanços teóricos de abordagens mais interdisciplinares — incluindo entre campos das Ciências Sociais como uma aproximação entre a Sociologia da Utopia, a Sociologia da Questão Climática e os Estudos Sociais das Ciências e da Tecnologia — parece uma frente a ser explorada.

Considerações utópicas

As contribuições e lacunas dos principais teóricos que investigam ou são mobilizados no nexo utopia e mudanças climáticas à luz das Ciências Sociais ainda é recente apesar de profícuo entre os teóricos. O que estes autores têm em comum são suas abordagens críticas nas análises dos tipos de ordenamento das sociedades em relação aos sistemas estruturantes e estruturadores dominantes — e.g. capitalismo, capitalismo tardio (Elliott e Urry, 2010; Jameson, 2021) capitalismo desorganizado e capitalismo recursivo (Elliott e Urry, 2010), neoliberalismo tecnológico e neofascismo (El-Ojeili, 2020; Elliott e Urry, 2010; Levitas, 2017). A formação dos sistemas ideológicos como horizontes utópicos a partir do avanço da tecnologia e as implicações dos efeitos das mudanças climáticas está no cerne da discussão destes teóricos.

A relativa complexidade — e latente emergência — da utopia crítica contemporânea pode ser entendida como um esforço alternativo para uma melhor compreensão da realidade que se impõe sobre humanos e não humanos: os efeitos desiguais das mudanças climáticas de origem antrópica. Entre as oportunidades reforça-se a ideia de um campo emergente para teóricos das Ciências Sociais orientarem suas investigações no contexto climático a partir das lentes da utopia crítica contemporânea.

Nesses quadros, o criticismo utópico tem uma função emancipatória — característica basilar da teoria social crítica. Para os teóricos que possuem o clima como objeto de suas investigações, a noção de emancipação dos humanos dos sistemas dominantes — de cunho opressivo e por vezes violento que são orientados por um vetor liberal utilitarista — é crucial, e nesta linha a compreensão de como as sociedades podem ou devem ser (re)ordenadas ganha uma dimensão de urgência. Diante de um possível eterno apocalipse17 climático pode ser a diferença entre uma vida humana digna e uma vida sem os humanos como os conhecemos.

A utopia como práxis crítica é um movimento teórico das ciências sociais, em especial da teoria social crítica e da ciência política, que emerge diante dos evidentes efeitos objetivos das mudanças climáticas de origem antrópica. A necessidade de uma abordagem teórica que tenha como orientação a compreensão de estruturas hegemônicas com práticas autoritárias e por vezes violentas é uma das possíveis explicações para o surgimento da utopia como método sociológico crítico.

As abordagens teóricas analisadas da utopia crítica contemporânea são complementares e não concorrentes nem disruptivas entre si. Pode-se afirmar que a utopia crítica contemporânea também subverte algumas noções e conceitos clássicos — e.g. a dualidade entre utopia e ideologia de Mannheim — para abrir um novo espaço teórico, metodológico e epistêmico, e, desse modo, fomentar consequências políticas outras no próprio modo de produzir ciência crítica quando o clima é o objeto de análise. Foi apresentado uma faceta de uma teoria crítica potente — a utopia como método crítico sociopolítico — que busca visibilizar estruturas e relações sociais desiguais por meio do horizonte utópico do projeto frankfurtiano de uma emancipação humana pela razão.

Além dos conceitos e categorias-chave da teoria social, como modos de produção, regulação e controle, hegemonia e autoritarismo, estruturas estatais e de governança, bem como falta da crítica da relação dicotômica sociedade-natureza, as abordagens conceituais teóricas-metodológicas aqui analisadas se somam ao arcabouço teórico-pragmático de horizonte emancipatório e redutor de iniquidades sociais e climáticas.

Diante do apocalipse climático as contribuições dos teóricos contemporâneos que constroem, alargam e mobilizam o campo da utopia crítica tem seu próprio horizonte utópico: a transformação da ordem social pela emancipação do ser humano de suas ideias preconcebidas historicamente sedimentadas e utopicamente mantidas pautadas na dominação do outro, seja esse outro humano, seja não humano — a Natureza ou a IA como sujeito político crítico.

Suplemento 1


Tabela 1. Contribuições e lacunas no nexo utopia crítica contemporânea e mudanças climáticas

Fonte: Autoria própria.

Referências

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Suvin, Darko (2012). In Leviathan’s Belly: Essays for a Counter-Revolutionary Time. Rockville, MD: The Borgo Press.

Urry, John (2016). What is the future? Cambridge, UK: Polity Press.

Notas

1 Agradecimentos: Ao Prof. Dr. Frank Adloff e seu grupo de pesquisa “Futures of Sus-tainability” da Humanities Centre for Advanced Studies da Universidade de Hamburgo, à cientista social Prof. Dra Elisabeth Lambert Abdelgawad, Diretora de Pesquisa da CNRS, e seu grupo de pesquisa “Sociétés, acteurs, gouvernement” (SAGE) da Université de Stras-bourg, aos debatedores do X Seminário Discente do PPGS/UFRGS, ao grupo de pesquisa TEMAS|UFRGS e à CAPES pelo financiamento da bolsa de pesquisa.
2 No enquadramento marxiano a utopia é uma subcategoria da ideologia, enquanto que na abordagem mannheimiana a utopia é um conceito-categoria na mesma posição sociológica da ideologia que depois vem a se tornar a sociologia da utopia. Para uma visão geral das diferentes abordagens e relações entre ideologia e utopia de Saint-Simon (1760-1825) até Habermas (1929-), ver Ricoeur (2015 [1986]).
3 O autor chega a sinalizar a proposição da noção de futuridade mas não chega a desenvol-ver esta definição teórica, uma vez que se concentra nos quadros metodológicos, porém as noções da futuridade de Urry (2016) e futurabilidade de Berardi (2019) são muito similares.
4 .Após o filtro para as Humanidades foram selecionados vinte artigos divididos nas se-guintes áreas: “Humanities Multidisciplinary” (5), “Political Science” (5), “Social Sciences Interdisciplinary” (4), “Anthropology” (2), “Sociology” (2), “Ethics” (1), “Philosophy” (1), “Psychology Multidisciplinary” (1). Em relação ao número total de citações anuais, há um crescimento nos últimos quatro anos: 2018 (7), 2019 (5), 2020 (17), 2021 (25).
5 Após o resultado nulo, os critérios foram alterados para “climate change” AND “socio-logy” em todo o “Catalogue” da BNU o que resultou em 23 documentos (artigos e livros). Análise dos resumos e sinopses não revelaram nenhuma nova referência em relação a base WoS pesquisada anteriormente.
6 Jameson realiza uma discussão entre ciência utópica e ideologia utópica e a crítica entre “a tradicional oposição marxista entre ideologia e ciência” que faz ecoa à crítica do pressu-posto “ideologia como utopia” e vice-versa de El-Ojeili. Para esta discussão, ver em especial: Jameson (2021, pp. 85-106) e El-Ojeili (2020, pp. 17-35).
7 Ver quadro-síntese dos teóricos em destaque com suas contribuições ao campo da utopia contemporânea no nexo das mudanças climáticas: Suplemento 1.
8 O objetivo do recorte deste artigo não é a discussão sobre a teoria social crítica em si, mas sinalizar e enquadrar a utopia crítica dentro do campo da teoria social crítica que essa é oriunda e a partir deste contexto seu nexo ao tema das mudanças climáticas.
9 Para uma visão aprofundada sobre a gênese e evolução do campo da sociologia à luz da utopia e ideologia, ver El-Ojeili (2012), especialmente Cap. 1, “On Sociology”.
10 Ver as sete teses básicas da utopia como método de El-Ojeili (2018; 2020).
11 Entre as referências de teóricos clássicos, duas se destacam: Principles of Political Economy de James Stuart Mill de 1884 e The Principle of Hope de Ernest Bloch de 1985.
12 Importante ressaltar que Anthony Elliott foi supervisionado em seu doutorado em teo-ria social na Cambridge University por Anthony Giddens. Para uma melhor compreensão de onde Elliott parte para elaborar sua reflexibilidade das IAs como agentes artificiais no nexo das mudanças climáticas, ver Giddens (2009).
13 Para Marx há uma oposição entre a ciência e a ideologia (e utopia), o que a partir de Mannheim tal pressuposto teórico é rompido tal assimetria (ciência e ideologia/utopia) é também dissolvida por Levitas.
14 Entre eles ressaltam-se os diálogos com Adorno, Gorz, Habermas, Horkheimer, Mar-cuse e Zizek. Todavia, a crítica de Levitas se concentra nos teóricos contemporâneos em análise no presente trabalho. Mais em Levitas, 2013.
15 A saber: i) aprendizado das visões passadas sobre o futuro, ii) futuros falidos, iii) disto-pias, iv) utopias, v) extrapolação, e vi) cenários (Ur r y, 2016).
16 O autor parte de alguns conceitos de Adorno, Badiou, Bloch, Jameson, Levitas e Man-nheim para formular seu quadro conceitual teórico e a definição dos elementos utópicos da utopia crítica contemporânea. Ver El-Ojeili (2012; 2018).
17 Parafraseando Swyngedouw e homenageando Latour com suas críticas sobre a dico-tomia sociedade-natureza que pauta as atuais políticas e seus efeitos contemporâneos pre-sentes e futuros.


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