DOSSIER

Estratégias das escolas do MST no enfrentamento à precarização da formação das juventudes com a reforma do ensino médio

Estrategias de las escuelas MST para enfrentar la precariedad de la educación juvenil con la reforma de la educación secundaria

Strategies of MST schools to confront the precariousness of youth education with the reform of high school

Viviane Merlim Moraes
Universidade Federal Fluminense, Brasil

Estratégias das escolas do MST no enfrentamento à precarização da formação das juventudes com a reforma do ensino médio

Revista Tramas y Redes, núm. 6, pp. 133-152, 2024

Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales

Recepción: 19 Febrero 2024

Aprobación: 20 Mayo 2024

Resumo: O trabalho objetiva discutir a reforma do ensino médio no Brasil e seus efeitos sobre a garantia do direito à educação. Analisaram-se as estratégias adotadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) como alternativas ao discurso do empreendedorismo, do projeto (individual) de vida subservientes aos interesses do capital e da elite que dominam o léxico da referida reforma, em curso no país desde 2016, quando a Medida Provisória nº 746 foi instituída. Além da pesquisa bibliográfica em fontes primárias e secundárias, realizaram-se inserções em seminários do Movimento, que abordaram a reforma do ensino médio e apresentaram propostas pedagógicas contra hegemônicas em curso. Tais espaços construíram dois encaminhamentos principais pelo MST: resistência à implantação da reforma e fomento às estratégias locais emancipatórias.

Palavras-chave: direito à educação, políticas educacionais, reformas educacionais, ensino médio, MST.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo discutir la reforma de la educación secundaria en Brasil y sus efectos en la garantía del derecho a la educación. Se analizaron las estrategias adoptadas por el Movimiento de Trabajadores Rurales Sin Tierra (MST) como alternativas al discurso del espíritu empresarial, del proyecto (individual) de vida subordinado a los intereses del capital y de la élite que dominan el léxico de la referida reforma, en marcha en el país desde 2016, cuando se instituyó la Medida Provisional N° 746. Además de la investigación bibliográfica en fuentes primarias y secundarias, se realizaron inserciones en seminarios del Movimiento, que abordaron la reforma de la educación secundaria y presentaron propuestas pedagógicas contrahegemónicas en curso. Dichos espacios construyeron dos direcciones principales para el MST: la resistencia a la implementación de la reforma y la promoción de estrategias emancipatorias locales.

Palabras clave: derecho a la educación, políticas educativas, reformaseducativas, educación secundaria, MST.

Abstract: This paper aims to discuss the reform of high school in Brazil and its effects on the guarantee of the right to education. The strategies adopted by the Landless Rural Workers’ Movement (MST) were analyzed as alternatives to the discourse of entrepreneurship, of the (individual) project of life subservient to the interests of capital and the elite that dominate the lexicon of the aforementioned reform, underway in the country since 2016, when Provisional Measure No. 746 was instituted. In addition to the bibliographic research in primary and secondary sources, insertions were made in seminars of the Movement, which addressed the reform of secondary education and presented counter-hegemonic pedagogical proposals in progress. Such spaces built two main directions for the MST: resistance to the implementation of the reform and promotion of local emancipatory strategies.

Keywords: right to education, educational policies, educational reforms, high school, MST.

Introdução

O presente artigo busca compreender o cenário educacional brasileiro após 2016, tendo como objeto a reforma do ensino médio, primeira modificação implementada na educação nacional pelo governo do presidente Michel Temer, por meio de Medida Provisória (MP nº 746/2016). Diante do cenário de desmonte das políticas educacionais desde então, urge a amplificação de propostas educacionais que se colocam em uma perspectiva contrária ao que propõe o capitalismo em seu atual estágio de acumulação, promovidas por movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Partimos da pesquisa em fontes primárias –legislações nacionais e documentos produzidos pelos setores do MST– e fontes secundárias –pesquisas sobre a trajetória do ensino médio na educação brasileira, bem como a importância das escolas na história do MST e da pedagogia do Movimento na organização do ensino médio nessas escolas. Para nos auxiliar no aprofundamento das análises iniciadas, valemo-nos da observação de plenárias e seminários do Movimento realizadas virtualmente no ano de 2022, que abordaram a reforma do ensino médio e as propostas pedagógicas contra hegemônicas realizadas em escolas do Movimento, em alguns estados brasileiros.

É importante destacar que apesar de pouco divulgadas, há inúmeras pesquisas e estudos acadêmicos que se dedicam a acompanhar as escolas públicas em áreas de acampamentos e assentamentos que levantam a bandeira e difundem a mística do MST, bem como seus fundamentos, currículo, a formação dos seus professores, entre outros temas (Caldart, 2000). Entendemos que muitos desses estudos estão centrados na questão da educação popular, na organização curricular e na perspectiva de uma educação que se contrapõe ao discuso capitalista, não se relacionando especificamente às formas que a pedagogia do MST pode se utilizar para fazer uma contraposição ao discurso da reforma do ensino médio, transformada na Lei nº 13.415, em 2017 –ainda em implantação na maior parte dos estados brasileiros– respaldada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC)1.

Cabe ressaltar que mesmo diante a eleição de um governo progressista no país em 2023, ainda não foi possível reverter vários retrocessos no campo educacional, como a própria reforma do ensino médio. Com a ampla mobilização de setores da sociedade –como o movimento estudantil, sindicatos e associações– o governo apresentou o Projeto de Lei nº 5.230, em outubro de 2023, com uma proposta conciliatória, modificando os principais elementos de cunho regressivo expressos nesta reforma.

Com base nos estudos realizados, compreendemos que esta pesquisa expõe algumas ações adotadas pelo MST como propostas alternativas ao discurso do empreendedorismo, do projeto (individual) de vida subservientes aos interesses do capital e da elite que domina nosso país. Compreende-se que ao tornar visíveis tais produções, pode-se romper com o discurso hegemônico, que coloca a reforma do ensino médio como único modelo possível ao desenvolvimento do país e à consequente inserção das juventudes brasileiras na sociedade.

O lugar do ensino médio na formação das juventudes brasileiras

Ao resgatarmos a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN nº 4.024/1961), podemos perceber o quanto a estrutura da educação brasileira se alterou ao longo dos anos. Caracterizava-se como ensino obrigatório a ser garantido pelo Estado apenas o de nível primário, com 4 anos de escolarização a partir dos 7 anos de idade. O ensino médio, subdividido em ginasial (4 anos) e colegial (3 anos), podia ser secundário (com ênfase em uma formação geral), técnico ou para a formação de professores. Grande parte da população não passava no exame de admissão ou não dispunha de recursos para pagar os estudos posteriores, não acessando o ensino ulterior ao primário. Também cabe destaque ao fato de que somente a partir desta legislação houve a equiparação entre o ensino médio de formação geral (secundário) e profissional (técnico e/ou de formação de professores) quanto ao acesso ao ensino superior.

No texto Constitucional de 1967, durante a ditadura empresarial-militar, a gratuidade passou a ser obrigatória para o Estado dos 7 aos 14 anos, gerando uma nova modificação na organização do ensino, realizada por meio da reforma de 1º e 2º graus (Lei n° 5.692/1971). As principais alterações tratam da fusão entre o ensino primário e ginasial no 1º grau, abrangendo a faixa etária obrigatória, e da profissionalização compulsória no ensino de 2º grau, que reforçou e legalizou a dualidade já existe no sistema educacional: aos estudantes pobres, caberia o caráter de terminalidade do ensino de 2º grau, profissionalizante; aos mais ricos, o acesso ao ensino superior estava garantido. Este mecanismo foi revogado –pelo menos formalmente– em 1982, pela Lei nº 7.044.

O ensino médio como etapa final da educação básica foi instituído pela atual Constituição Federal em 1988 e corroborada pela 2ª LDBEN, Lei nº 9.394/1996, que replicou a obrigatoriedade do Estado com a garantia do ensino apenas na etapa fundamental, de 7 aos 14 anos, e aos que não tiveram acesso na idade própria2.É muito recente a ampliação da obrigatoriedade do ensino e de sua garantia por parte dos poderes públicos para a faixa etária entre 4 e 17 anos, passando a abranger as demais etapas da educação básica (parte da educação infantil e o ensino médio). Foi a Emenda Constitucional (EC) n° 59/2009 que introduziu tal modificação no artigo 208 da CF, sendo tal prerrogativa efetivada pela Lei nº 12.796/2013.

A segunda metade dos anos de 1990 e o início dos anos 2000 foram um período de intensas modificações na organização da educação dos países em desenvolvimento, com base nas orientações neoliberais do Banco Mundial (BM) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), firmadas a partir da Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em março de 1990, em Jomtien, na Tailândia. Desde então, os países signatários se responsabilizaram por organizar planos decenais que priorizassem a educação básica e as necessidades básicas de aprendizagem, adequando a formação das novas gerações aos padrões de “desenvolvimento” do capitalismo internacional (Lamosa, 2020). No plano nacional, decretos, diretrizes e parâmetros curriculares foram aprovados para normatizar os pilares de Jaques Delors (1998, p. 85) na educação brasileira: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser.

Vale um parêntese para destacarmos os conceitos de politecnia e formação omnilateral, que são contrários às orientações neoliberais que começaram a delinear as políticas educacionais do Brasil desde os anos de 1990, que mencionaremos em diferentes momentos no presente texto, e que são baseados nos estudos de Marx e da tradição marxista, principalmente em autores russos, como Shielgin, Krupskaya e Pistrak, que pensavam em uma escola fundamentada pelo trabalho, e não para ele (Pistrak, 2018). Destacamos o verbete elaborado por Frigotto (2012, pp. 277-278) para o Dicionário de Educação do Campo, no qual afirma que

Na perspectiva da superação das relações sociais capitalistas e no seio de suas contradições, Marx sinaliza três conceitos relativos à formação que estão intrinsecamente ligados, [...] o Trabalho como princípio educativo, ligado ao processo de socialização e de construção do caráter e da personalidade do homem novo [...]; a formação humana omnilateral (ver Educação omnilateral), ligada ao desenvolvimento de todas as dimensões e faculdades humanas, em contraposição à visão unidimensional de educar e formar para os valores e conhecimentos úteis ao mercado capitalista; e, finalmente, o de Educação politécnica ou tecnológica, ligada ao desenvolvimento das bases de conhecimentos que se vinculam ao processo de produção e reprodução da vida humana pelo trabalho, na perspectiva de abreviar o tempo gasto para responder às necessidades (essas sempre históricas) inerentes ao fato de o homem fazer parte da natureza e de ampliar o tempo livre (tempo de escolha, de fruição, de lúdico e de atividade humana criativa), no qual a omnilateralidade pode efetivamente se desenvolver.

Mais recentemente, na publicação do Dicionário de Agroecologia e Educação, em 2021, o verbete foi atualizado pelo referido autor em parceria com Roseli Caldart, agregando a importância de se pensar uma outra relação entre o homem e a natureza, mediatizada pelo trabalho, diferente daquela instituída pelo modo de produção capitalista.

Voltando ao contexto brasileiro do início dos anos 2000, cabe destacar que a extinção de muitos cursos técnicos e de cursos concomitantes foram alguns golpes contra uma perspectiva de formação mais orgânica que vinha sendo elaborada no ensino médio, etapa ainda não obrigatória à época. Com a chegada de um governo progressista à presidência, em 2003, houve um interregno neste ataque, entretanto sem abandono dos interesses empresariais quanto à organização desta etapa de ensino. Mesmo com a entrada do debate sobre a politecnia na formulação do Decreto nº 5.154/2004 –que trouxe novamente a figura dos cursos profissionais técnicos (concomitantes, subsequentes e integrados), muitas contradições foram vivenciadas neste período.

Foi neste contexto que mal tendo o prazo legal expirado para a adaptação dos estados e municípios à ampliação da obrigatoriedade da educação básica, chegamos em um ponto em que a política conciliatória se esgotou e as forças sociais entraram em profundo embate, redundando no chamado “golpe de 2016”, um processo onde muitos fatores contribuíram e que começou a ser gestado em um contexto não só conservador, como também baseado em pautas reacionárias.

Vejamos algumas delas: a apropriação das manifestações de 2013, que se iniciam com a pauta do transporte público e da mobilidade urbana, refluíram para reivindicações mais gerais, a respeito das condições de vida das pessoas, até serem apropriadas por movimentos ditos “apolíticos”3, o fato do parlamento eleito no pleito de 2014 ter sido um dos mais conservadores desde 19644, o impeachment da presidenta Dilma ter se configurado como uma estratégia de instrumentalização das leis para deslegitimar e prejudicar um adversário; a implantação, à força, do projeto Uma ponte para o futuro, com Michel Temer alçado ao cargo de presidente da república após o referido golpe.

Na educação todo esse pano de fundo teve muitos impactos. O fato de José Mendonça Filho, ministro da educação que assumiu a pasta na ocasião do golpe, receber membros do Movimento Brasil Livre –braço de atuação política e ideológica do Estudantes pela Liberdade (EPL), movimento fundado por líderes empresariais reunidos no Fórum da Liberdade, em 2012– e do Movimento Revoltados Online logo no início de seu trabalho, denotou o tratamento mercadológico que seria destinado à educação. Cabe ainda enfatizar que o MBL foi criado na onda das manifestações de 2013, com apoio financeiro de think tanks –laboratórios de ideias de grupos de direita, brasileiros e estrangeiros, como o Atlas Network, sediado nos EUA e capilarizado em mais de 90 países (Casimiro, 2018, p. 44).

Não foi ingênua, portanto, a publicação da Medida Provisória (MP) nº 746 em 22/09/2016. Tal medida autoritária e antidialógica estava em consonância com interesses ligados mais ao campo econômico que propriamente ao educacional, o que se corrobora pelo fato de ser acompanhada pela aprovação da Emenda Constitucional nº 95/2016, que congelou os gastos com a seguridade social à época. No ano seguinte a MP foi tornada lei (Lei nº 13.415/2017) no mesmo período em que a Reforma Trabalhista foi aprovada (Lei nº 13.467/2017), ratificando a lógica de formação das juventudes de maneira subalternizada para o mercado de trabalho, a partir de uma perspectiva individualizada e fragmentada, coerente com o cenário de desarticulação das formas de trabalho que passaram a ser permitidas desde então.

As principais alterações que primeiramente nos saltaram aos olhos na reforma do ensino médio diziam respeito à ampliação da carga horária mínima anual para 1.400 horas e a significativas mudanças curriculares, tais como: apenas as disciplinas de língua portuguesa e matemática passaram a ser obrigatórias nos três anos; tornou-se obrigatória apenas a língua inglesa como língua estrangeira; facultou-se o oferecimento de arte, educação física e outros idiomas; referenciou-se uma BNCC que à época sequer existia; e, por fim, estabeleceu-se itinerários formativos específicos, a serem definidos por cada sistema de ensino e com ênfase nas quatro áreas de conhecimentos, a saber: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas, a eles se agregando um quinto itinerário, de formação técnica e profissional.

A centralidade das habilidades e competências, dentre elas as socioemocionais, na organização curricular para a formação do jovem no ensino médio também é merecedora de destaque, pois fomenta as bases das disciplinas e áreas que citamos anteriormente, induzindo os jovens, em seu processo formativo, a desenvolver características caras ao atual momento de acumulação capitalista. Cabe ressaltar que o formato curricular proposto se agrega à “escolha” dos estudantes pelo seu itinerário de preferência, contribuindo para a precarização da formação geral, integral, que é fundamental para a inserção crítica na vida em sociedade. Colocamos a palavra escolha entre aspas, pois sabemos que a realidade de grande parte das escolas públicas brasileiras não permitirá que muitos jovens oriundos das classes populares realmente tenham tal possibilidade.

Outros aspectos relevantes se referem à figura do profissional com “notório saber” –que poderia substituir o professor licenciado, sobretudo no itinerário de formação técnica e profissional–, e à perigosa brecha aberta pela lei no tocante ao uso de recursos do FUNDEB5 pelo setor privado, especificamente nas despesas para contratar educação a distância, que a lei passou a admitir como forma parcial para a integralização do currículo.

Vários autores têm se dedicado a estudar como a teoria do capital humano influenciou a organização do sistema educacional brasileiro, em diferentes momentos históricos e de acumulação capitalista (Motta e Frigotto, 2017). Não nos causa surpresa, portanto, a pressa em aprovar a atual legislação para o ensino médio. Não seria interessante que os mais pobres, público prioritário das escolas públicas, recebessem uma educação de qualidade e com a amplitude necessária à apreensão crítica da complexidade do cotidiano. Caberia a esses jovens um ensino mais simples, voltado às demandas emergenciais deste mercado, que hoje se encontra mais “flexível”, devido ao momento de financeirização da economia. Reestruturar-se-ia o currículo, tornando-o mais adequado e mais atraente aos estudantes, garantindo que estes tenham a possibilidade de “escolha” de seu percurso formativo, segundo o que foi traçado como seu “projeto de vida”, em uma lógica “empreendedora”. Daí a minimização das disciplinas e o discurso dos itinerários que, na prática, podem acabar por priorizar o profissionalizante, por meio de parcerias público-privadas, devido às questões vividas pelas escolas públicas na maior parte dos estados brasileiros e aos interesses privatistas –diretos e indiretos– na educação (Leher e Lamarão, 2020, p. 144).

A proposta da pedagogia do MST para o ensino médio

Em sua página eletrônica, o MST se apresenta atualmente capilarizado em 24 estados, nas cinco regiões, contemplando 450 mil famílias que conquistaram o direito à terra. Divide-se em 14 setores –frente de massas, formação, educação, produção, comunicação, projetos, gênero, saúde, finanças, relações internacionais, cultura, juventude e LGBT Sem Terra– tendo como instrumentos de luta a ocupação de terras, os acampamentos, as marchas, as ocupações de prédios públicos, os acampamentos e manifestações nas cidades, a luta pela reforma agrária popular e a transformação social, dentre outros. Traz como principais bandeiras a reforma agrária popular, o combate à violência sexista, a democratização da comunicação, a saúde pública, o desenvolvimento, a diversidade étnica, o sistema político e a soberania nacional e popular (MST, 2022).

Resgatamos algumas publicações centrais que estruturaram o trabalho educativo do Movimento. O Caderno de Formação nº 18 (MST, 2005, pp. 31-34­), apresenta os princípios do MST, a saber: formação da identidade, resgate da memória, importância da cultura popular, centralidade da formação militante e da relação respeitosa entre o ser humano e a natureza. Ao pensar a escola, o trabalho e a cooperação, o Boletim de Educação nº 04, de maio de 1994, apresentou a relação entre educação e a dimensão educativa do trabalho, mediatizada pela cooperação, pensada a partir da classe trabalhadora. Baseados em Pistrak (2018) e em alguns princípios da pedagogia soviética, o MST concebe o trabalho em seu sentido mais amplo, como fundamento para a vida social e princípio educativo, cabendo à escola proporcionar experiências reais de trabalho produtivo socialmente dividido (MST, 2005, p. 94).

Ao definir seus princípios filosóficos, o MST traz a relevância da educação para a transformação social, o trabalho e a cooperação, a formação das várias dimensões da pessoa humana, com/para os valores humanistas e socialistas, e como um processo permanente (MST, 2005, pp. 161-165). Os princípios pedagógicos se pautam na relação entre prática e teoria; na combinação metodológica entre processos de ensino e capacitação; na realidade como base da produção do conhecimento; nos conteúdos formativos socialmente úteis; na educação para e pelo trabalho; no vínculo orgânico entre processos educativos e políticos, entre processos educativos e econômicos e entre educação e cultura; na gestão democrática; na auto-organização dos estudantes; na criação de coletivos pedagógicos; na formação permanente dos educadores e das educadoras; na atitude e nas habilidades de pesquisa; e, por fim, na combinação entre processos pedagógicos coletivos e individuais (MST, 2005, pp. 161-179).

O MST define sua pedagogia como: “[...] jeito através do qual o Movimento historicamente vem formando o sujeito social de nome Sem Terra, e que no dia-a-dia educa as pessoas que dele fazem parte” (MST, 2005, p. 200). Explica também a razão da expressão Sem Terra ser grafada como substantivo próprio, por entendê-la como identidade coletiva, como tentativa de formação das subjetividades, e não como uma designação social de pessoas a quem falta algo, no caso, a terra. Por fim, destacam o estudo, descrito como forma de compreensão mais ampla da realidade, apresentado em seu sentido social, a ser desenvolvido de diferentes formas: em ciclos de formação, etapas ou em séries, por meio de disciplinas agrupadas em uma parte comum do currículo, no qual não se pode prescindir das ciências humanas (história, filosofia, língua estrangeira, sobre a qual se sugere o espanhol), e de uma parte diversificada, na qual constaria, por exemplo, agricultura, gestão rural, bem-estar e memória popular (MST, 2005, p. 226). Muito antes da reforma do ensino médio o MST já se contrapunha a um ensino pautado em padrões mínimos, direcionados aos interesses do mercado capitalista e do imperialismo.

Para falar sobre o ensino médio nas escolas do MST, pautamo-nos principalmente no Boletim de Educação - Edição Especial, n° 1, que é composto por um caderno de textos que serviu de base para pensar seus princípios, como suporte teórico às discussões que se travaram antes do seminário que deu origem ao documento final “Caminhos da Educação Básica de Nível Médio para a juventude das áreas de Reforma Agrária.Documento final do 1º Seminário Nacional sobre Educação Básica de Nível Médio nas áreas de Reforma Agrária” (MST, 2006). Dividiu-se o documento em três partes, em que argumentam sobre a concepção de ensino médio para o MST, as proposições para implementação desta etapa nas áreas de reforma agrária e, por fim, as linhas de ação definidas coletivamente.

Na defesa da concepção de uma educação básica, defende a articulação do ensino médio com as demais etapas –educação infantil e ensino fundamental– e com a continuidade de estudos por parte dos educandos, seja na educação profissional ou superior. Retoma o que considera básico: a formação humana não simplificada e restrita à escolarização, que tem no espaço escolar um importante lugar; o reconhecimento da centralidade e especificidade dos diferentes momentos das vidas dos sujeitos no processo educacional; o projeto educacional de classe pensado a partir da formação integral dos trabalhadores e da práxis; a educação popular ligada ao projeto de reforma agrária que articula um novo projeto de país, superando as dicotomias entre campo/cidade, teoria/prática, corroboradas pela sociedade capitalista; as escolas do campo pensadas como referências socioculturais para a comunidade; a vinculação da escola com a realidade, sem reduzir a importância do seu papel formativo às demandas e ao pragmatismo do mercado capitalista; o entendimento do papel da escola na sociedade que temos e a busca pela configuração de um novo desenho para ela na sociedade socialista que se luta para construir; a compreensão das escolas do MST como escolas do campo, públicas, direito das famílias Sem Terra; e o entendimento da especificidade da educação do campo sem desconsiderar os princípios de classe da escola unitária (MST, 2006, pp. 8-12).

No que é pertinente ao formato que o MST pretende configurar para a educação básica no ensino médio, afirma que há um esforço para ampliar a oferta desta etapa, tendo em vista a precariedade do oferecimento por parte do Estado. Ao mesmo tempo em que destacaram as juventudes como seu eixo central, também agregaram a este grupo os adultos e idosos, ou seja, aqueles que tiveram o acesso à educação formal historicamente negligenciado pelos poderes públicos. Reafirmam a importância de a oferta do ensino médio ser contemplada por meio de escolas públicas no campo e nas próprias áreas de reforma agrária, a contar com um quadro específico de profissionais conhecedores da realidade dos assentamentos.

Ainda no campo das concepções, ressaltaram a centralidade de pensar a formação para o trabalho a partir de uma concepção alargada, que prevê a profissionalização como possibilidade, mas não como destino, contrapondo-se à perspectiva dual de educação propedêutica para as classes dominantes, e profissionalizante, para as classes populares. Retomaram-se os conceitos de trabalho como princípio educativo e de educação politécnica, superando a oposição entre trabalho manual/intelectual.

A educação politécnica visa que os jovens percebam “[...] os fundamentos científicos que estão na base das diferentes tecnologias que caracterizam as relações de produção e os processos produtivos, bem como as tecnologias ou os conhecimentos tecnológicos que estão na base das diferentes técnicas [...]” (MST, 2006, p. 16), de maneira a efetivar a práxis, articulando escola e assentamento, tendo como temas de destaque a agroecologia6 e a cooperação (MST, 2006, p. 17). Contudo, não descartam a oferta de educação profissional por meio de cursos técnico-profissionais, que deveriam estar circunstanciadas às estratégias pensadas pelo Movimento, e não determinadas pelo Estado. Além da dimensão do trabalho, as dimensões da arte, cultura e esportes são explicitadas como fundamentais à educação das juventudes.

Ao observarmos as proposições constantes na segunda parte do documento, alinhavaram-se considerações em torno dos seguintes elementos: o tipo de escola –pública–, em áreas de reforma agrária, pensando-se também na lógica do ensino médio integrado, se possível com um currículo a ser elaborado em consonância com a realidade do campo, sem o determinismo da profissionalização.

Em diálogo com os elementos precedentes, as linhas de ação e orientações elencadas pelo Movimento em 2006 podem ser atuais ainda em 2024, ao abordarmos o estado atual da educação, a saber: a intensificação de mobilizações pela implantação de mais escolas públicas, as negociações com o governo federal para ampliação da oferta de ensino médio nas áreas de reforma agrária, a parceria com as universidades para implantação de licenciaturas e com a rede federal de escolas técnicas, para que os assentamentos sejam incluídos como áreas prioritárias em seus programas de expansão, além do desenvolvimento do protagonismo juvenil na construção do projeto político pedagógico do Movimento (MST, 2006, pp. 30-31).

Alternativas à reforma do ensino médio em curso nas escolas do MST

Ter acesso aos sujeitos que compõem a organicidade do Movimento se constituiu em um desafio adicional à pesquisa. O primeiro espaço onde nos inserimos foi a Plenária Nacional dos Educadores e Educadoras da Reforma Agrária para o ano de 2022, realizada virtualmente no dia 19 de março de 20227. Após a realização de uma análise conjuntural da educação brasileira, a partir das categorias campo, educação e políticas públicas, ressaltou-se a desestruturação das bases do Estado liberal a partir dos anos de 1990, a ascenção do conservadorismo e a legitimação da competição, do individualismo e do tecnicismo na educação, por meio do discurso das competências e habilidades, que enfatizam o praticismo em detrimento da formação humana. Destacou-se ainda a necessidade de organizar a luta no cotidiano, a importância de manter as disciplinas da área das ciências humanas, e de se pensar as horas pertinentes ao itinerário formativo de educação profissional em consonância com o fundamento do trabalho como princípio educativo, a partir de propostas emergentes do Movimento: agroecologia, trabalho no campo, agricultura familiar, sempre em diálogo com comunidades e universidades.

Os debates do Seminário Nacional sobre o Ensino Médio no MST foram realizados em 23/04/20228 e tiveram início com o resgate do ensino médio como espaço de disputas e contradições, expressas em diferentes momentos da história da educação e em dispositivos legais no Brasil. Ao abordar as contradições vividas nos anos 2000 no encaminhamento das políticas nacionais, enfatizou as discussões realizadas pelo MST no período, que se relacionavam ao conceito de politecnia –entre os anos de 2006 e 2007–; à introdução do debate dos complexos de estudo na proposta pedagógica das escolas, em 2009; e à sua implementação, entre os anos de 2011 e 2013 (Sapelli, Leite e Bahniuk, 2019, p. 281).

Tal pressuposto é radicalmente diferente dos itinerários formativos apresentados pela reforma do ensino médio, detalhados após a publicação da BNCC desta etapa de ensino, em 2018, por meio da Portaria nº 1.432, daquele mesmo ano, definidos como “Conjunto de situações e atividades educativas que os estudantes podem escolher conforme seu interesse, para aprofundar e ampliar aprendizagens em uma ou mais Áreas de Conhecimento” (Brasil, 2018). A portaria, ao propor a organização do currículo em itinerários formativos, baseia-os a partir de 4 eixos: investigação científica, processos criativos, mediação e intervenção sociocultural e empreendedorismo, de maneira a viabilizar a associação das discussões escolares à realidade. Rompe-se a centralidade das disciplinas em favor das áreas e aprofunda o discurso das competências e habilidades no lugar da formação de conhecimentos complexos.

Além dos problemas trazidos no bojo das mudanças curriculares que corroboram com a precarização da formação das juventudes, foram apresentados outros perigos da reforma: a substituição de professores por pessoas com notório saber; a ampliação da jornada escolar, que pode ser viabilizada nos itinerários formativos sob a modalidade de educação à distância (EaD), favorecendo os interesses dos agentes privados que desejam se apropriar dos recursos públicos, seja por meio da venda de plataformas, materiais didáticos, ou mesmo de recursos diretos do FUNDEB. Nem de longe tal proposta lembra as discussões dos complexos de estudo, que demandam um envolvimento e conhecimento enorme do corpo docente em relação às disciplinas que devem aprofundar com os estudantes, tampouco a noção de trabalho socialmente necessário, que alinhava a relação teórico-prática da escola com a realidade dos acampamentos/assentamentos na qual se encontram inseridas. Ao contrário, sustentam-se sem a problematização do modelo capitalista, propondo-se soluções “[...] no marco do próprio sistema, por meio de ações individuais eticamente justificadas e colocadas em práticas” (Souza; Loureiro, 2020, p. 102).

Outro participante organizou sua fala em torno de três categorias centrais: ensino médio, educação do campo e formação humana, e a partir das legislações mais recentes: a Resolução n° 3/2018, que atualizou as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio; a Resolução n° 4/2018, que instituiu a Base Nacional Comum Curricular na etapa do Ensino Médio (BNCC-EM); e a Portaria nº 1.432/2018, já mencionada anteriormente.

Reafirmou os interesses privatistas na educação, que se fizeram presentes em diferentes momentos da história brasileira, e que se evidenciaram ainda mais nos momentos da aprovação das legislações supracitadas. Basta lembrar que o Movimento Todos pela Base é composto por um grupo de empresas com “responsabilidade social”. Ao historicizar o ensino médio e sua ligação com o que comumente se chama de “mercado”, Ramos (2006, p. 62) relembra que seu objetivo final nunca foi a formação integral dos sujeitos e sua emancipação, ao contrário, esteve sempre centrado no mercado de trabalho e na preparação para a vida, que se restringe, desde os anos de 1990 ao desenvolvimento de “[...] competências genéricas e flexíveis, de modo que as pessoas pudessem se adaptar facilmente às incertezas do mundo contemporâneo”.

O público foi provocado a pensar a respeito das implicações da reforma na formação da classe trabalhadora a partir de cinco contradições: o ensino médio como parte da educação básica que desconsidera o conhecimento e a formação omnilateral; o foco nas competências, que reafirmam a utilidade e nega o conhecimento enquanto práxis; a escola de tempo integral e formação unilateral que não contempla as diversas dimensões humanas; a flexibilização do currículo à escolha do estudante, que nos leva a questionar se este realmente escolhe ou recebe a única opção que lhe resta, como especialização precoce e precária; e a educação profissional na carga horária do ensino médio, que traz o trabalho pensado como finalidade do ensino, contrariando a perspectiva do trabalho como princípio educativo.

Algumas perguntas foram realizadas pelos participantes, no sentido de se pensar estratégias coletivas para o enfrentamento à reforma. De forma bem geral, elas se centraram em duas possibilidades: na organização coletiva do MST, na sua tradição de estudos e discussões para a elaboração de uma estratégia unificada do Movimento; e, por dentro da ordem estabelecida, pensar alternativas que não fossem na perspectiva de adequação às propostas dos governos estaduais, devendo-se salvaguardar as matrizes e os princípios pedagógicos do MST. Seria, pois, importante ouvir o acúmulo de estudos que alguns estados já têm, buscando brechas na legislação vigente. Esta foi a orientação para a pauta do segundo encontro do Seminário.

O segundo encontro do Seminário ocorreu no dia 28/04/20229, sendo desenvolvido em torno da experiência das escolas de ensino médio do Ceará. Foi apresentado por uma militante, que fez uma breve retrospectiva de seus 12 anos no MST daquele estado. Iniciaram o trabalho com cinco escolas naquela ocasião, e no momento contavam com 10 de ensino médio do campo, em dez brigadas diferentes, além de 2 escolas cuja construção estava em conclusão. A proposta pedagógica envolve temas como: gestão democrática, por meio da organização em coletivos e núcleos; tempos educativos; parte diversificada do currículo –que se subdivide em 3 partes: práticas sociais comunitárias, projetos de estudos e pesquisa, e organização do trabalho e técnicas produtivas; implementação dos complexos de estudos, com base em inventários da realidade; e sistema agroecológico como territorialização da agroecologia.

A lógica sustentada pelas escolas do Ceará não tolerava que nenhum conhecimento fosse retirado ou minimizado no currículo, e que o acesso à educação superior fosse bloqueado. Neste sentido, mantiveram os dois idiomas –inglês e espanhol; não abriram mão dos três componentes integradores do currículo; recusaram a parceria com empresas do capital para oferecimento de disciplinas eletivas, e organizaram um catálogo com disciplinas eletivas do campo, que envolvem temas como gênero e diversidade; e também estavam em luta pela implementação da educação profissional do campo, a partir de duas propostas: agroecologia e administração.

Em 2022 implantaram no 1º ano do ensino médio a proposição da matriz curricular, com os educadores divididos em áreas e por meio de oficinas. O currículo ficou dividido entre unidades permanentes, formação geral básica e eletivas, sendo que naquele ano ainda não tinham implantado os itinerários formativos, que seriam dois: cultura camponesa e reforma agrária popular, com aprofundamento em linguagens e ciências humanas e sociais; e agroecologia com soberania alimentar, com aprofundamento em ciências da natureza e matemática. Recusaram-se a trabalhar a perspectiva do empreendedorismo, trazendo para seu lugar o debate sobre o trabalho como princípio educativo e o cooperativismo. Os conteúdos com maior facilidade de serem trabalhados sob o viés da discussão transversal foram para o campo das disciplinas eletivas.

No debate, foi colocada a preocupação com a não redução da formação básica dos jovens. Desta forma, mesmo que não se perdessem disciplinas na base comum (apenas houvesse a redução da carga horária), que se buscasse reverter tal situação nas unidades eletivas, sempre se pensa o currículo a partir das matrizes de formação do MST. Assim, seria possível subordinar as unidades curriculares a estas matrizes, e não o contrário.

Sem a pretensão de esgotar o debate: estratégias de resistência à reforma do ensino médio

Quando nos propomos à finalização deste texto, sabemos que a discussão segue em aberto e que pode ser alterada até a publicação do mesmo. Buscamos no MST elementos para pensar a possibilidade de pautar a educação escolar, sobretudo aquela oferecida na etapa final da educação básica, sob um viés em que os sujeitos sejam considerados, e não apenas os interesses do mercado. As condições objetivas não nos parecem favoráveis, pois ao buscarmos referências na história da educação brasileira não encontramos elementos de que em algum momento o Estado tenha subvertido a lógica dual de ensino destinada às classes dominantes e dominadas.

A análise e descrição de alguns documentos do MST, bem como de movimentos que se desenrolaram em plenárias e seminários nacionais, auxiliaram-nos a elencar algumas considerações que se colocam em direção contrária à reforma do ensino médio. De forma geral, o MST se debruçou sobre sua própria história e produção a partir de 2022 para formular coletivamente uma contraproposta, nascida de sua organicidade e dos militantes, intelectuais orgânicos formados ao logo de sua existência. Ao mesmo tempo, buscou a articulação com outros coletivos, no sentido de estabelecer um maior espaço na correlação de forças para pressionar o novo governo, eleito no pleito de 2022, a revogar a matéria, assim como outras pautas caras ao campo educacional.

Diante a imensa pressão advinda dos estudantes, profissionais da educação, sindicatos e diferentes associações do campo educacional, o terceiro governo do presidente Lula, após a realização de uma consulta pública em 2023, elaborou o PL nº 5.230 para o Congresso Nacional, com o objetivo de redefinir as diretrizes para o ensino médio expressas na Lei nº 9.394/1996, alterada anteriormente pela Lei nº 13.415/2017. Dentre os pontos que sofreram modificações está a retomada do mínimo de 2.400 horas de formação geral básica sem a integração com curso técnico, distribuídas nas quatro áreas do conhecimento, que devem obrigatoriamente contemplar os seguintes componentes curriculares: língua portuguesa e suas literaturas; língua inglesa; língua espanhola; arte, em suas múltiplas linguagens e expressões; educação física; matemática; história, geografia, sociologia e filosofia; e física, química e biologia. Cabe destacar que a formação geral básica deve ser ministrada presencialmente.

Ainda nas proposições curriculares, há uma substituição da expressão itinerários formativos por percursos de aprofundamento e integração de estudos, que devem contemplar ao menos três das quatro áreas de conhecimento, sendo necessário que cada escola oferte, pelo menos, dois dos quatro percursos. Mantém-se a proposta de um quinto percurso/itinerário, que é o de formação técnica e profissional. Neste caso há a possibilidade de realização de acordos de cooperação técnica entre as secretarias de educação e as instituições credenciadas de educação profissional, preferencialmente (mas, não obrigatoriamente) públicas (conforme § 21); é também possível uma permissão excepcional para que as redes ofertem formação geral básica em 2.100 horas, desde que articulada com um curso técnico de, no mínimo, 800 horas (§ 22).

Indica-se ainda a elaboração de parâmetros nacionais para a organização dos percursos de aprofundamento e integração de estudos; a revogação da possibilidade de inclusão de profissionais não licenciados na categoria de profissionais do magistério, sendo possível a atuação por notório saber em caráter excepcional na educação básica, sem que se proceda a equivalência entre as funções destes profissionais.

O PL nº 5.230/2023 foi enviado ao Congresso em outubro de 2023, tendo o próprio governo solicitado a sua retirada da pauta de urgência constitucional, em dezembro do mesmo ano, após a indicação do deputado Mendonça Filho (UNIÃO-PE) para a relatoria, sob o argumento da necessidade de construir consensos sobre o tema. Vale lembrar que Mendonça Filho foi ministro da educação na ocasião da publicação da MP que instituiu a reforma do ensino médio, em 2016. Todavia, também no mês de dezembro de 2023, após requerimento protocolado pela deputada Adriana Ventura (NOVO-SP), o PL passou a tramitar em regime de prioridade. Mesmo com as demandas das representações presentes na Conferência Nacional de Educação (CONAE) –realizada na segunda quinzena em janeiro de 2024– reafirmando o compromisso da sociedade contra todo o retrocesso vivido na educação desde o golpe de 2016, o governo não revogou o texto da reforma do ensino médio e a tramitação do PL nº 5.230 seguiu, sendo aprovado pela Câmara e remetido ao Senado Federal nos últimos dias de março de 2024.

Entendemos que não é possível uma proposta de conciliação, uma vez que está em jogo a formação das juventudes, principalmente daquelas oriundas das classes populares, público prioritário das escolas públicas brasileiras. Desta forma, a introdução de disciplinas como empreendedorismo e projeto de vida substituem, muitas vezes, o tempo destinado a outros componentes curriculares, e esvaziam o conteúdo coletivo e crítico-reflexivo das discussões pedagógicas. Ficamos, pois, cada vez mais distantes da proposta de formação omnilateral e politécnica.

Muitas foram as questões suscitadas no percurso desta pesquisa. Mais do que a lógica das competências, gestadas no âmbito desse Estado –que é engolido pelo “mercado” e que, por sua vez, exige que a escola forme indivíduos flexíveis, adaptáveis, competitivos, empreendedores e vencedores (Laval, 2019, p. 79)– que jovens nós, educadores, queremos formar? Com que tipo de educação comprometemo-nos? Estes questionamentos seguem em busca de respostas a serem forjadas na luta coletiva pela garantia do direito à educação pública, laica, gratuita e de qualidade para todos, sem exceções.

Referências

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Notas

1 O artigo resulta de uma pesquisa realizada para o Instituto Lula no ano de 2022, intitulada “A importância da formação de identidades coletivas nas escolas de Ensino Médio do MST como enfrentamento às desigualdades sociais”.
2 Em 2006 houve a inclusão de mais um ano no ensino fundamental, por meio da Lei nº 11.274.
3 Sugerimos a leitura do livro Manifestações de junho de 2013 no Brasil e praças dos indignados no mundo da Maria da Glória Gohn para aprofundamento deste debate (2015).
4 Conforme afirma a matéria de 05/01/2015, do Valor Econômico: “Nova composição do Con-gresso é a mais conservadora desde 1964”.
5 Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Pro-fissionais da Educação, instituído por meio da Emenda Constitucional n° 108/2020, e regula-mentado pela Lei nº 14.113/2020.
6 Sugerimos a leitura de Dicionário de Agroecologia e Educação (Dias, 2021), com ênfase no verbete pertinente à prática agroecológica, constante entre as páginas 59 e 72.
8 Disponível em: https://youtu.be/rr6yd9iysg4.
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