Resumo: Este artigo tem como objetivo central analisar de qual forma o processo de recrudescimento da nova direita (ND) tem afetado os mecanismos de controle do trabalho docente na educação básica brasileira no período de 2010 a 2022. Para esta pesquisa usou-se como fonte de dados 10 (dez) documentos elaborados por entidades representativas da categoria profissional no Brasil, Associação Nacional pela Formação de Profissionais da Educação (Anfope) e Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE); e 8 (oito) entrevistas semiestruturadas aplicadas aos dirigentes dessas entidades. Observou-se a existência de três tendências que relacionam a ND e o controle do trabalho docente no contexto da educação básica brasileira. A partir disso compreendeu-se que há um processo de radicalização dos mecanismos de controle do trabalho docente que afeta as políticas educacionais e se insere também no cotidiano escolar.
Palavras-chave: nova direita, trabalho docente, política educacional brasileira, controle do trabalho docente, educação básica.
Resumen: Este artículo analiza cómo el recrudecimiento de la nueva derecha (ND) afecta los mecanismos de control del trabajo docente en la educación básica brasileña en el período de 2010 a 2022. Para esta investigación utilizamos como fuentes de datos 10 (diez) documentos elaborados por entidades representativas de la categoría profesional en Brasil, la Asociación Nacional para la Formación de Profesionales de la Educación (Anfope) y la Confederación Nacional de Trabajadores de la Educación (CNTE); y 8 (ocho) entrevistas semiestructuradas con los directivos de estas entidades. Nótese la existencia de tres tendencias que relacionan la ND y el control del trabajo docente en el contexto de la educación básica brasileña. Así, entendemos que hay un proceso de radicalización de los mecanismos de control del trabajo docente que afectan las políticas educativas y también forman parte de la vida escolar cotidiana.
Palabras clave: nueva derecha, trabajo docente , política educativa brasileña, control del trabajo docente, educación básica.
Abstract: This article analyzes how the recruitment process of the new right (ND) affected the control mechanisms of teaching work in Brazilian basic education in the period from 2010 to 2022. For this research we used as a data source 10 (ten) documents prepared by entities representing the professional category in Brazil, the National Association for the Training of Education Professionals (Anfope) and the National Confederation of Education Workers (CNTE); and 8 (eight) semi-structured interviews applied to the directors of these entities. Note the existence of three trends that relate ND and the control of teaching work in the context of Brazilian basic education. Taking this into account, we understand that there is a process of radicalization of the control mechanisms of teaching work that affect educational policies and are also part of everyday school life.
Keywords: new right, teaching work, brazilian educational policy, control of teaching work, basic education.
DOSSIER
Transformações nas formas de controle do trabalho docente no contexto de recrudescimento da nova direita brasileira
Transformaciones en las formas de control sobre el trabajo docente en el contexto del resurgimiento de la nueva derecha brasileña
Transformations in the forms of control over teaching work in the context of the resurgence of the Brazilian new right

Recepción: 11 Marzo 2024
Aprobación: 14 Mayo 2024
Esse artigo apresenta resultados parciais de Tese de Doutorado1, cujo objetivo central foi o de analisar de qual forma o recrudescimento da nova direita (ND) tem afetado os mecanismos de controle e regulação do trabalho docente na educação básica brasileira2,e de qual forma as entidades representativas da categoria profissional tem interpretado e enfrentado essa questão.
Para alcançar tal objetivo, foram analisados 10 (dez) documentos elaborados pela Associação Nacional pela Formação de Profissionais da Educação (Anfope) e Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE)3 entidades vinculadas ao Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE), e foram entrevistados 8 (oito) dirigentes das entidades mencionadas4. Os documentos referem-se ao período de 2010 a 2022. Os dados foram analisados a partir de quatro eixos: análise conjuntural e política educacional, relação entre ND e educação, estratégias de enfrentamento, e mecanismo de controle do trabalho docente –este último, objeto deste artigo.
Partimos do pressuposto de que a ND se caracteriza como ideologia e amálgama entre neoconservadorismo e neoliberalismo (Pereira, 2016; Yannoulas, 2024). A ascensão da ND no Brasil encontra seu apogeu com o governo Bolsonaro (2018-2022), mas tem suas bases consolidadas a partir do impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016. Compreendemos, no entanto, que a ND não se restringe a governos e/ou partidos políticos, mas se constituiu como projeto societário, cumprindo função na reprodução das relações sociais a fim de responder determinadas necessidades e/ou interesses. Tal projeto societário não é novo “temporalmente”, mas novo pela junção entre neoconservadorismo e neoliberalismo, que diante das novas necessidades da reprodução do capital, se unem e se diluem, tornando-se síntese entre ideologias historicamente diferentes. Isso significa que a forma pela qual a ND tem se manifestado nos últimos anos nas políticas sociais não é necessariamente “nova”, mas recrudescida em razão das condições sócio históricas: no caso brasileiro, como reação às conquistas progressistas e como resposta às crises permanentes do capital (Pereira, 2020).
Buscamos identificar a relação entre o processo de recrudescimento da ND com as formas de controle do trabalho docente –a princípio centradas nas experiências de assédio e perseguição contra professoras5, que recuperam técnicas coercitivas de controle. No entanto, no decorrer da pesquisa observou-se que a ND como ideologia possibilitava novos contornos à regulação e ao controle do trabalho docente, não apenas por recuperar estratégias coercitivas de controle, mas também por radicalizar propostas anteriores.
A fim de nos aprofundar nessa discussão, primeiramente propõe-se recuperar de qual forma o controle do trabalho docente na educação básica tem sido interpretado e analisado pelos especialistas, para posteriormente identificar os fundamentos discursivos das formas de controle do trabalho docente na interpretação da ND; para, enfim, delinearmos quais tendências são identificadas a partir dos dados coletados e analisados.
A revisão bibliográfica sobre controle do trabalho docente na educação básica permitiu identificar a existência de duas linhas interpretativas, com enfoques específicos, ainda que complementares. A primeira das linhas enfatiza as reformas educacionais no Brasil e na América Latina na década de 1990, utilizando conceitos e/ou categorias como regulação pós-burocrática (Krawczyk, 2005), estado avaliador (Afonso, 2007) e reforma gerencial do Estado (Hypolito, 2010). Para essa linha interpretativa, o controle acontece por indução, através de políticas externas à instituição escolar relacionadas com as avaliações internacionais massificas e currículos unificados, e com base no controle subjetivo por meio da cultura dos resultados e do desempenho. A segunda linha interpretativa inspira-se nas teses da proletarização docente (Enguita, 1991)6 e/ou desprofissionalização, com ênfase na diminuição da autonomia das professoras por meio da desqualificação –simplificação dos processos de trabalho e afastamento dos fundamentos pedagógicos. Debates atrelados incluem tecnicismo e neotecnicismo (Freitas, 1992), pedagogia das competências (Ramos e Paranhos, 2022), e fetiche da profissionalização (Shiroma e Evangelista, 2003). O controle se daria por meio da uniformização das práticas educacionais, predominantemente idealizadas por sujeitos externos, programas curriculares, protocolos de avaliação e/ou uso do sistema de apostilamento e pacotes educacionais (Apple, 2002).
Ambas as linhas interpretativas apontam mecanismos de controle do trabalho docente associados à reestruturação produtiva. A inserção tardia do neoliberalismo é conceito estratégico para analisar os mecanismos de controle que surgem a partir de 1990 no caso brasileiro. Avaliação massificada7, tentativas de implementar políticas de desempenho docente, programas de profissionalização docente são questões basilares nas análises sobre o processo de precarização, proletarização e intensificação do trabalho docente; e tem sido questionadas pelas entidades representativas e gerado tensionamentos na elaboração das políticas educacionais. As correlações de forças, especialmente com o setor empresarial, têm sido tensionadas, especialmente nos espaços de participação democrática tais como comitês, conferências e conselhos nacionais. No desenvolvimento da pesquisa, observou-se que com o recrudescimento da ND e o enfraquecimento dos meios de participação democrática, esse conjunto de mecanismos de controle de trabalho docente típico das reformas educacionais dos anos 1990 assume novos contornos, intensificando seus aspectos mais antissociais; e traz à tona métodos mais coercitivos como a vigilância, assédio e geração de insegurança.
Identificamos nos dados coletados três tendências relacionadas aos discursos da ND: 1) o controle curricular por meio da Reforma do Ensino Médio, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), Base Nacional Comum para Formação de Professores da Educação Básica e (BNC-FP); 2) o controle tecnológico por meio da plataformização da educação básica; e 3) o controle comportamental por meio da autocensura. Tais tendências se sustentam em discursos não necessariamente novos, mas que apresentam maior potencialidade de impactar nas práticas concretas na atualidade: (i) a desmoralização e o questionamento da qualificação e da autonomia das professoras, aferindo assim a necessidade de mecanismos mais eficientes para o controle do trabalho docente, com uma maior capacidade de inserção no cotidiano da sala de aula –zona até então pouco sujeita ao controle direto; e (ii) a moralização dos resultados e da qualidade escolar, que pavimenta o discurso da crise educacional permanente, às vezes justificada pela ausência de praticidade e objetividade dos conteúdos ensinados, às vezes pelo suposto teor ideológico. Ambos os discursos se relacionam com a falácia da neutralidade pedagógica –seja por meio do neotecnicismo e da pedagogia das competências, seja na exclusão de conteúdos considerados ideológicos. Observa-se que tais discursos se sustentam em fundamentos tanto neoconservadores –pânico moral, ceticismo em relação a ações coletivas– quanto neoliberais –adequação das escolas e do currículo às novas demandas do mercado, incluindo a formação docente e os parâmetros de qualidade educacional.
A primeira medida no campo das políticas educacionais do governo golpista de Michael Temer foi a Reforma do Ensino Médio (2017), aprovada sob decreto, sem mediação com as entidades representativas e movimentos populares da educação. A Base Nacional Comum Curricular - BNCC (segmento do ensino médio) foi estruturada considerando essa reforma inconsulta e por decreto. É importante recuperar que a proposta de uma base curricular nacional estava prevista na Constituição Federal de 1988, e teve como principal motivação eliminar os resquícios educacionais do período ditatorial brasileiro (1964-1985) (Andrade, 2020). Sua obrigatoriedade aparece na Lei de Diretrizes e Base da Educação (1996) e desde então foram desenvolvidas propostas impulsionadas por diferentes segmentos da sociedade8. Tal pauta tem sido capturada especialmente pelo setor empresarial, representado por entidades como Todos pela Educação9, alegando a necessidade de transformar o sistema educacional brasileiro. As políticas curriculares são de interesse estratégico desses setores, e incluem o desenvolvimento de sistemas avaliativos mais eficientes. Tal questão é discutida pela Anfope (2018) e também comentada por Natan (Anfope):
O único objetivo definido pelo MEC, para suas ações, é o de promover a adequação dos currículos [...] mirando as provas nacionais e fortalecendo a avaliação individual de estudantes [...] e dos professores, [...] e o consequente ranqueamento das escolas “produtivas”, premiadas e recompensadas [...] (Anfope, 2018, p. 52).
Sobre a educação de um modo geral, atendendo a esses interesses dos exames em larga escala, faltava fechar alguns zeros [...] eles não tinham uma padronização curricular que desse para fazer uma comparação entre estados, entre escolas [...] E eles vêm, então, com a formatação da formação, circunscrita à BNCC (Natan, Anfope).
Desta forma, o advento das avaliações massificadas têm levado a padronizar e reduzir os conteúdos curriculares, facilitando a criação de um sistema de avaliação estratégico para essas novas formas de regulamentação da educação, e potencialmente permitindo novas modalidades de ensino, como a educação domiciliar.
Outra questão importante é a relação dessas iniciativas com o desenvolvimento de um projeto educacional compatível às novas formas de reprodução da vida capitalista, especialmente no âmbito do trabalho, que se torna cada vez mais incerto, instável e precarizado. De acordo com Yannoulas (2024):
A reforma do ensino médio é a tentativa de substituir o conceito de trabalho em seu sentido ontológico como princípio educacional, pelo conceito de “ocupação empreendedora”, flexibilizando trajetórias educacionais para futuros ocupacionais incertos em um mundo pós-salarial (Yannoulas, 2024, p. 29).
Desta forma, a BNCC e a Reforma do Ensino Médio visam reforçar saberes alinhados com as novas demandas do mercado, ou seja, mais técnicos, neutros e utilitaristas. Tal tendência não possui apenas efeitos na aprendizagem, mas tem grande potencialidade de desprofissionalização docente. Segundo CNTE (2022):
Reforma do Ensino Médio e BNCC: ambas se estruturam em princípios utilitaristas, mercadológicos, amparados em competências tecnicistas, sem garantir a formação integral dos estudantes. A organização dos itinerários formativos e a distribuição da carga horária aprofunda a formação minimalista dos estudantes voltada para os interesses do mercado, bem como contribui para a desprofissionalização da profissão docente, entre outros motivos, pela introdução do Notório Saber (CNTE, 2022, p. 48).
A figura do Notório Saber surge com a Reforma do Ensino Médio10, significando a inserção de outros profissionais sem formação pedagógica no quadro de trabalhadoras docentes, sob argumento de suprir as novas disciplinas técnicas. Gustavo (CNTE) questiona a respeito “mesmo o notório saber precisa ter a habilitação. Se a gente for abrir pra todo notório saber pra vir dentro da escola, então pra que você precisa da escola?”. Maria relaciona tal questão com a:
Desqualificação do trabalho docente [...] ou seja, nós lutamos a vida inteira para que a profissão fosse valorizada, para que as pessoas que fossem trabalhar na educação tivessem formação para isso. O professor não fosse qualquer um, tá certo? (Maria, CNTE).
O notório saber é um subproduto do projeto educacional da ND, sustentado na perspectiva de desmoralização do saber pedagógico específico, através de uma onda de ataques contra às instituições de formação de professoras e a negação do saber especificamente pedagógico.
Em síntese, identificamos que a discussão sobre BNCC orbitou em torno da padronização, prescrição e aperfeiçoamento das políticas de avaliação massificada. De forma articulada, podemos observar um processo de desprofissionalização do trabalho docente por meio da desqualificação, radicalizado pela negação da especificidade pedagógica e a supressão da obrigatoriedade de certificação de competências pedagógicas para desenvolver trabalho docente. Tal questão é manifesta, dentre outros meios, com a “tutorização”, o trabalho voluntário, e o ocultamento ou falseamento da especificidade da relação discente-docente na mediação ensino-aprendizagem.
De acordo com Silva (2022), a plataformização é manifestação do “neotecnicismo digital”, que aliado ao pragmatismo educacional, retira a centralidade da relação discente-docente nos processos de ensino-aprendizagem, e a substitui por soluções tecnológicas ofertadas por grandes empresas. O neotecnicismo não é um conceito novo, é inclusive já fora utilizado por Freitas (1992) afim de descrever a padronização e ampliação do controle através das avaliações externa de larga escala. Há ainda experiências e estudos sobre o uso de materiais didáticos e sistemas de apostilamento (Apple, 2002; Adrião et al., 2009). Entretanto, a plataformização em larga escala torna-se socialmente viável com o desenvolvimento e expansão das tecnologias de informação e comunicação, e destacadamente possível com o ensino remoto emergencial no período pandêmico. Nesse sentido, a CNTE identifica que a omissão do Estado no desenvolvimento de alternativas educativas no contexto pandêmico abriu “uma janela de oportunidade” para “às fundações empresariais e grandes conglomerados e plataformas educacionais, que [...] passaram a ser utilizados pelas secretarias e gestores educacionais” (CNTE, 2022, p. 26).
Nos documentos analisados, o termo plataformização surge em 2021 (Anfope, 2021), relacionado não apenas aos interesses do mercado, mas também com a desqualificação do trabalho docente “agora substituído por programas auto instrutivos em grandes plataformas” (Anfope, 2021, p. 17). Nesse sentido, a desqualificação não se reduz apenas a simplificação dos processos de ensino, mas como produto da subordinação dos professores a um modelo educacional idealizados por sujeitos externos ao cotidiano escolar, mas exercendo controle quase total sobre os conteúdos, metodologias de ensino e avaliação, e assim reduzindo a autonomia em relação à idealização do seu trabalho. Gabriela sintetiza essas questões desta forma:
E aí, nós perdemos muito, por exemplo, com a organização curricular nas escolas, né? O professor perdeu sua liberdade de cátedra, no sentido de ter essa autonomia no espaço da escola. E isso temos muito com uma organização, com uma demanda do mercado, quando esse modelo conservador, porque esse modelo, eu acho que ele chega junto com o processo de mercantilização e privatização da escola pública. Porque junto disso, a gente tem os pacotes prontos que os governos compram, plantam no espaço da escola, e que traz já um modelo, uma organização curricular que define, que traz o conceito de projeto deles. Então, engessa toda essa organização curricular do espaço da escola, e o professor apenas tem que executar, por meio de um método apostilado, ou seja, pelas plataformas digitais (Gabriela, CNTE).
Os entrevistados comentaram também a capacidade das plataformas para vigiar de forma mais acurada o trabalho docente. Isso seria tecnicamente possível permitindo o acompanhamento em tempo real do tratamento dos conteúdos e das aulas ministradas, afetando não apenas as trabalhadoras docentes, mas também as atividades discentes ao identificar dados como quantidade de acesso, frequência e tempo utilizado. Os entrevistados apontam que a sala de aula, ao deixar de ser “física” e se tornar “virtual”, facilita intervenção de sujeitos externos e gravações com intenções escusas. Tais questões se relacionam com a tentativa de exercer controle sobre a sala de aula, espaço até então pouco sujeito ao controle externo, mas que é afetada definitivamente pelas plataformas com base em estratégias de vigilância e consequente geração de insegurança para docentes. Desta forma, ainda que a plataformização seja apenas uma tendência11, ela seria capaz de instrumentalizar propostas mais radicais de controle, como discutiremos a seguir.
O MESP foi um movimento social cujo principal objetivo era impedir a suposta ideologização ou doutrinamento de esquerda promovido por professoras e instituições formadoras. Criado em 2003, o movimento foi inserido de forma significativa nas discussões sobre políticas públicas de educação apenas em 2014, afetando principalmente os debates em torno do novo Plano Nacional de Educação. Destacam-se as estratégias de criminalização e assédio contra as professoras desenvolvidas pelo MESP12, como o incentivo aos alunos a gravar aulas para expor e denunciar professoras que “usufruíam da escuta cativa” para trazer temas muito “ideológicos” e pouco “científicos”13 (Yannoulas, Afonso e Pinelli, 2022). Segundo Raul:
Nós passamos a viver um período de medo. Os alunos filmando a aula, filmando as aulas dos professores, para depois mostrarem aos pais, para saber se aquilo era alguma coisa que estava dentro dos princípios da educação dos bolsonaristas ou se era alguma coisa que era doutrinação (Raul, CNTE).
O MESP foi sujeito estratégico na introdução de formas de assédio, perseguição e vigilância das trabalhadoras docentes, por evidenciar que os novos mecanismos de controle do trabalho docente são mais complexos do que apenas tentativas de “judicializar” a censura contra professoras e conteúdo. O MESP teve suas atividades limitadas em 2020, quando Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a Lei “Escola Livre” já aprovada no Estado de Alagoas, o que não alterou seus efeitos moralizadores no cotidiano escolar.
O forte nexo entre controle do trabalho docente e o MESP é evidente nos documentos analisados, que denunciam o cerceamento de expressão e/ou liberdade de cátedra: “Com mobilização de alunos e pais, instalam, também, o controle dos professores em suas salas de aula, mediante iniciativas como a da “escola sem partido.” (Anfope, 2016, p.16) e “A laicidade e o pluralismo de ideais dão lugar a projetos de Lei da Mordaça (Escola sem Partido), que pretendem perseguir profissionais da educação e impor a ditadura do pensamento único nas escolas” (CNTE, 2017, p. 38).
O MESP também é analisado como produto da articulação entre “forças conservadoras e liberais”. Nesse sentido, nos documentos é possível observar a forte relação entre o controle e o estabelecimento do governo Bolsonaro e sua agenda educacional. A respeito Anfope (2018) afirma:
Nesse cenário vemos o aprofundamento do desmonte do Estado brasileiro, em especial na educação, e a ampliação de uma intensa articulação de forças conservadores e liberais na disputa por maior controle político e ideológico da escola básica e da Universidade, a par do cerceamento da livre expressão e da repressão aos profissionais da educação, suas entidades e movimentos (Anfope, 2018, p. 25).
É interessante observar que o controle político e ideológico também se manifesta como estratégia discursiva para justificar a redução de gastos em instituições formadoras de docentes, como as Universidades Federais e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)14, evidenciando interesses econômicos que ultrapassam as pautas morais tipicamente associadas ao neoconservadorismo.
O ataque à liberdade de cátedra foi identificado pelos interlocutores como um “novo” tipo de controle do trabalho docente. De acordo com Natan (Anfope), ainda que houvessem propostas de controle externo como currículo, material didático e avaliações em larga escala, a sala de aula estava menos sujeita ao controle direto. O “chão da escola” é então afetado por mecanismos de vigilância, gerando sensação de insegurança e cautela sobre os temas discutidos.
Esses elementos todos trouxeram uma novidade pra dentro da sala de aula. A gente combatia ou temia, os processos de controle da gestão, né? Da gestão mais próxima da própria escola, da rede, enfim. A gente temia esse controle, né? Ou pelos exames [...], mas hoje a gente tem outro elemento [...] isso tem trazido uma tensão muito grande dentro das escolas. Como outro elemento que coloca mais perversidade e adoecimento sobre quem está lá na frente, né? (Natan, Anfope).
A esse respeito, Sartori (2021) tem identificado a “autocensura” como fenômeno crescente entre as trabalhadoras docentes. Caracterizado como evitação, silenciamento ou abordagem superficial de determinados assuntos (em geral, pautas progressistas), a autocensura tem ultrapassado a sala de aula, se instalando em espaços, em tese, privados como as redes sociais. Nesse sentido, diferente dos mecanismos de controle sustentados na construção de consensos –como “auto intensificação” (Hypólito, 2010)– a autocensura indica um controle mais coercitivo, pautado na vigilância, insegurança e medo capaz de alterar o comportamento das trabalhadoras docentes fora da sua inserção institucional. Essa questão ainda se intensifica diante dos vínculos de trabalho cada vez mais precarizados, induzindo gradativamente um maior silenciamento e evitação de conflitos.
Este artigo aborda de qual forma o recrudescimento da nova direita (ND) afetou mecanismos de controle e regulação do trabalho docente na educação básica brasileira, e como as entidades representativas tem interpretado esse fenômeno. Os mecanismos de controle do trabalho docente se aperfeiçoaram e radicalizaram porque tecnologicamente surgiram formas mais eficientes de recuperar formatos mais coercitivos. Tais mecanismos são utilizados pela ND para desmoralizar e negar a especificidade do trabalho profissional docente. Também a cultura da crise permanente da educação permitiu construir discursos sobre uma suposta necessidade de novo modelo de ensino, seja para a adequação às novas demandas do mercado de trabalho, seja para a restrição de conteúdos críticos.
Identificaram-se três tendências que se relacionam com a proposta educacional da ND: (i) o controle curricular por meio da BNCC-Formação e a Reforma do Ensino Médio, que além da implementação da pedagogia das competências, possibilitou a pormenorização dos conteúdos, dando margem ao um controle mais eficiente por meio de avaliações massificadas; (ii) o controle tecnológico por meio da plataformização da educação, evidenciando que a mediação de terceiros na relação ensino-aprendizagem se radicaliza, e diminui a autonomia das professoras ao definir os conteúdos, processos avaliativos e metodologias de ensino; e (iii) o controle comportamental por meio da autocensura motivada por formas de assédio, vigilância e geração de insegurança, e sendo identificado pelas entidades representativas como fenômeno recente e possivelmente manifestação mais concreta dos mecanismos de controle da Nova direita.
Para concluir, é importante destacar que as diferentes vertentes ou tendências do projeto educacional da ND, expresso de forma exemplar nas propostas do MESP, propõem uma diversidade de formas de controle direto das atividades pedagógicas e conteúdos tratados em sala de aula, afetando significativamente não apenas o trabalho docente, mas também com retrocessos notáveis quanto ao direito à educação. A educação básica defendida pelos setores vinculados à ND é uma educação pragmática, baseada em conteúdos técnicos, sem desenvolver a capacidade crítica ou emancipatória dos discentes. No cotidiano escolar do chão da escola e na arena das disputas pelos rumos da política educacional, os coletivos docentes interpelados por nossa pesquisa resistem às propostas simplificadoras e desqualificadoras do trabalho docente, por entender que essas propostas não apenas desvalorizam o trabalho docente –reduzindo esse complexo trabalho à uma transmissão de conteúdos supostamente neutros, como colocam em xeque o próprio direito a uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade socialmente referenciada.