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A educação da(s) infância(s) e a cidade em tempos de (pós)pandemia: Por que matricular as crianças na cidade?

Childhood education and the (post) pandemic city: why enroll children in the city?

La educación de las infancias y la ciudad (post) pandemia: ¿por qué matricular a los niños em la ciudad?

Patricia Gonçalves Bastos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Maria Tereza Goudard Tavares
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

A educação da(s) infância(s) e a cidade em tempos de (pós)pandemia: Por que matricular as crianças na cidade?

Reflexão e Ação, vol. 31, núm. 3, pp. 41-58, 2023

Universidade de Santa Cruz do Sul

Recepción: 04 Enero 2023

Aprobación: 04 Marzo 2023

Resumo: O presente artigo é resultante de pesquisas que vimos realizando no âmbito de um projeto mais amplo, que objetiva investigar componentes territoriais de processos educativos de crianças na região metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), mais especificamente na cidade de Niterói, bem como a produção de condições de Educabilidade (Freire, 1996) de crianças de classes populares urbanas em diferentes redes educacionais da região investigada. Nessa perspectiva, a temática da infância e cidade vem sendo estudada por nós em diálogo com a teoria dos campos de Bourdieu (2007), nos convocando a pensar intercessões com os Estudos Sociais da Infância e o campo da Educação Popular (Tavares, 2015). Nosso objetivo é buscar argumentos para provocar deslocamentos no campo conceitual, político e pedagógico da educação da pequena infância, que possam romper com o caráter majoritariamente escolar da educação das infâncias, investigando-as e inserindo-as na vida cotidiana da cidade na qual vivem e deveriam crescer com dignidade e acesso aos seus direitos fundamentais (Santos, 1996).

Palavras-chave: Infâncias, Direito à cidade, Processos educativos, Periferias urbanas.

Abstract: This article is the result of research that we have been carrying out within the scope of a broader project, which aims to investigate territorial components of educational processes of children in the metropolitan area of Rio de Janeiro (RMRJ), more specifically, in the city of Niterói, as well as the production of conditions of Educability (Freire, 1996) of children from urban popular classes in different educational networks at the investigated region. In this perspective, the theme of childhood and the city has been studied by us in dialogue with Bourdieu's theory of fields (2007), inviting us to think about intersections with the Social Studies of Childhood and the field of Popular Education (Tavares, 2015). Our objective is to seek arguments to provoke displacements on the conceptual, political and pedagogical aspects of early childhood education, which can break with the mostly schoolish character of the children education, investigating those children and inserting them in the daily life of the city where they live and should grow up with dignity and access to their fundamental rights (Santos, 1996).

Keywords: Childhoods, Right to the city, Educational processes, Urban peripheries.

Resumen: Este artículo es el resultado de una pesquisa que venimos realizando en el marco de un proyecto más amplio, que tiene como objetivo investigar los componentes territoriales de los procesos educativos de los niños de la región metropolitana de Rio de Janeiro (RMRJ), más específicamente, en la ciudad de Niterói, así como la producción de Condiciones de Educabilidad (Freire, 1996) de niñas e niños de clases populares urbanas en diferentes redes educativas en la región investigada. En esta perspectiva, el tema de la infancia y la ciudad ha sido estudiado por nosotros en diálogo con la teoría de los campos de Bourdieu (2007), instándonos a pensar en las intersecciones con los Estudios Sociales de la Infancia y el campo de la Educación Popular (Tavares, 2015). Nuestro objetivo es buscar argumentos que provoquen desplazamientos em el campo conceptual, político y pedagógicos de la educación de la pequena infancia, que pueden romper con el carácter mayoritariamente escolar de la Educación de las infancias, investigándolas e insertándolas en la vida cotidiana de la ciudad donde viven y deben crecer con dignidad y acceder a sus derechos fundamentales (Santos, 1996).

Palabras clave: Infancias, Derecho a la ciudad, Procesos educacionales, Periferias urbanas.

INTRODUÇÃO

A gente sempre deve sair à rua

como quem foge de casa

Como se estivessem abertos diante de nós

todos os caminhos do mundo.

Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali… Chegamos de muito longe,

de alma aberta e o coração cantando! (Mário Quintana, 1989)

Em diálogo com a epígrafe acima, vimos nos interrogando sobre as relações das crianças pequenas com os espaços da cidade em tempos de (pós)pandemia do novo coronavírus. Em tempos de tantas incertezas, em face dos impactos causados pela Covid-19, tais como o distanciamento social iniciado em 16 de março de 2020 e encerrado com a (re)abertura integral das escolas em março de 20221, vimos convivendo com o luto e a tristeza diante do número de óbitos e sequelas ainda desconhecidas pela exposição ao vírus. Além disso, do retorno às escolas ter ocorrido ainda sem vacinação para grande maioria de crianças pequenas da Educação Infantil em Niterói, cidade na qual trabalhamos e pesquisamos infâncias que vivem em periferias urbanas.

Nessa perspectiva, vimos nos perguntando: o que aprendemos sobre a pandemia? Essa questão, entre outras tantas, tem nos oportunizado investigar a problemática da infância e a cidade em diálogo com Bourdieu (2007), principalmente quando problematizamos questões vinculadas aos Estudos da Infância em diálogo com a Educação Popular (Tavares, 2019), fundamentadas na necessária intercessão desses campos, compreendemos que partir da “teia de relações” que se abre a partir do cotejamento desses dois campos, torna-se possível apreender com maior densidade analítica e prática, as questões e tensões presentes na tríade infância, escola e cidade, entendendo com Bourdieu2, que a imagem da sociedade se apresenta como um campo de batalha, que é operado “com base na força e no sentido, ou melhor, dando ênfase à força dos sentidos”. Assim, a força e a violência simbólica inúmeras vezes presentes no cotidiano das crianças pesquisadas, podem ser melhores compreendidas quando se dá visibilidade ao “campo de lutas como sistema de relações objetivas no qual as posições e as tomadas de posição se definem relacionalmente e que domina ainda as lutas que visam transformá-lo”3. E somente com referência aos espaços de disputa que se pode efetivamente compreender a questão do campo, buscando reconhecer o forte papel das relações de poder que tentam se impor ao processo de socialização das crianças das classes populares, e que muitas vezes tentam objetificá-las4.

Porém, com a reabertura das escolas em 2022, observamos também o retorno da presença ruidosa das crianças nas escolas e nos espaços próximos ao entorno das unidades de Educação Infantil em Niterói. Isso nos faz recordar e problematizar a presença das crianças na cidade, nas ruas, nas calçadas, nas praças, nos playgrounds, nos portões de entrada das creches e pré-escolas, nas feiras livres e outros lugares da cidade, tempos depois de terem permanecido encerradas em suas casas, apartamentos, barracos, em moradias inúmeras vezes precárias e com grande adensamento social, compartilhando muitas vezes o espaço da casa com muitas pessoas, entre adultos, idosos e outras crianças.

Com parte da memória do avanço avassalador da Covid-19, é importante assinalar que as creches e pré-escolas públicas e instituições educativas de modo geral, depois de quase dois anos de atividades remotas, retomaram suas atividades pedagógicas presencialmente em fevereiro de 2022, mas ainda com muito temor à pandemia e sua terrível propagação, principalmente pela ausência de vacinação de um grande número de crianças na cidade. Diante desse cenário, ainda tão incerto, faz-se necessário problematizar e provocar reflexões acerca de como vem se produzindo a vida cotidiana, as diferentes táticas (Certeau, 1994) pelas quais crianças de creches e pré-escolas públicas vêm lançando mão no período da (pós)pandemia para garantir o seu direito à cidade, aos espaços citadinos.

Para tanto, intencionamos colocar em diálogo como vêm se dando as atuais condições de vida de crianças pequenas oriundas de classes populares de uma Unidade Municipal de Educação (UMEI) de Niterói. Crianças que vivem na periferia da Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro (RMRJ) e que nos desafiam a pensar práticas favoráveis à educação e ao cuidado cotidiano nesses tempos (pós)pandêmicos.

No Brasil, os dados do Ministério da Educação (MEC) relativos a março de 2022 indicam o retorno das atividades presenciais em todas as redes escolares, tanto públicas quanto privadas, nos 26 estados e no Distrito Federal. E, segundo dados do Censo Escolar de 2019, seriam quase 9 milhões de crianças matriculadas na Educação Infantil (creches e pré-escolas) nas redes públicas e privadas em todo o país (INEP, 2019), ou seja, um enorme contingente de crianças de 0 a 5 anos de idade afetadas diretamente pelo cenário descrito. Nesse contexto de tantas incertezas e rompimento de vínculos causados pelo longo período da pandemia da Covid-19, perguntamos: E as crianças pequenas das periferias urbanas niteroiense, como estão vivendo esses tempos de retorno às escolas? O que estão fazendo e como estão usando os tempos da vida cotidiana nos espaços da cidade?

Em linhas gerais, o cotidiano vivenciado por muitas famílias e crianças das periferias metropolitanas fluminenses colocou em xeque a aplicação das determinações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e das próprias secretarias de saúde locais, em face da pandemia da Covid-19. Dados organizados pela ONG “Casa Fluminense”, a partir do Censo de 2010 (IBGE), nos apontam que cerca de 300 mil casas na RMRJ apresentam mais de 3 pessoas por cômodo. E que, em termos de moradia, a RMRJ concentra o maior número de adensamento populacional do país. Além disso, há pouco menos de 2 anos, o Estado do Rio de Janeiro sofreu uma gravíssima crise hídrica de abastecimento e qualidade da distribuição de água, piorando substancialmente os índices de saneamento básico, especialmente nas favelas e bairros das periferias urbanas (Macedo; Pessanha; Tavares, 2021).

Para complexificar as condições e qualidade de vida no Estado, o Rio de Janeiro apresenta, ainda, um dos piores índices de acesso a saneamento básico, ao passo que, no ranking das cidades com piores condições de saneamento básico do Brasil, 5 cidades do Estado estão entre as piores do país, todas concentradas na RMRJ (Casa Fluminense, 2020).

Por outro lado, o direito à vida e à segurança na região metropolitana fluminense, densamente povoada, tornou-se um enorme problema que afetou as condições de isolamento social dos moradores das periferias urbanas no Estado do Rio de Janeiro. Por exemplo, o caso do assassinato da menina Ana Clara Machado5, de 5 anos, baleada quando brincava na porta de sua casa com dois tiros de fuzil, em 3 de fevereiro de 2021, durante uma operação policial na favela Monan Pequeno, localizada no bairro de Pendotiba, região vizinha do complexo de favelas do Viradouro, em Niterói, expõe de maneira visceral como crianças e jovens pobres, majoritariamente negros e negras, estão vulneráveis à escalada da violência, principalmente nas operações policiais realizadas de forma letal, em favelas e bairros populares.

Outro aspecto marcante dos desafios das famílias das classes populares, fortemente agravado com a pandemia da Covid-19, foi a situação de mulheres, mães, trabalhadoras e chefes de famílias, as quais se encontram mais vulneráveis e expostas às situações de desigualdade social e econômica. Isso revela o agravante do recorte de gênero, que é altamente atingido por essas desigualdades, cuja concentração de mulheres chefe de famílias encontra-se nas favelas das periferias que fazem parte da região metropolitana fluminense.

Mais especificamente, ao refletir sobre as condições da vida cotidiana das crianças com as quais vimos trabalhando nas instituições de Educação Infantil da cidade de Niterói, urge problematizarmos as condições concretas nas quais elas realizaram o isolamento social, mediante o imperativo do fechamento das creches e pré-escolas. É importante ressaltar que Niterói faz parte da RMRJ, segunda maior área metropolitana do país, apresentando no contexto da pandemia um expressivo número de óbitos e infecções pela Covid-19.

Segundo o Painel de Controle da Covid-19 elaborado pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS), Niterói apresentou o total de 73.669 casos confirmados da doença e 2.718 óbitos, até a data de 31 de março de 2022. De acordo com os dados da Rede Análise Covid-19 (2022), baseados no Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe), desde o primeiro caso confirmado e registrado de coronavírus, em 2020, até 31 de março de 2022, 1.680 crianças de até 12 anos de idade morreram da doença no Brasil. O levantamento da Rede Análise Covid-19 também revela que, no total de 1.680 mortes de crianças no país, somente nos primeiros três meses de 2022, 195 óbitos foram de crianças ente 0 e 5 anos por conta da letalidade do novo coronavírus. O que corrobora a importância da vacinação nessa faixa etária.

É importante destacar que 31.758 crianças de até 12 anos de idade testaram positivo para a Covid-19 até o final de março de 2022, no Brasil. Com relação às crianças de até 5 anos de idade, o número de testes positivos registrados no país foi de 19.943. Segundo o jornal local A Tribuna (2021), os bairros e as favelas da Região Oceânica e do complexo de favelas do Viradouro em Niterói apresentam uma grande incidência de casos do novo coronavírus, chegando a mais de 800 casos de confirmações diárias, em 2021, cabendo ressaltar que essas localidades são atravessadas por muitas desigualdades socioeconômicas e espaciais, o que as torna bastante susceptíveis à propagação do vírus entre os seus moradores6.

Talvez, neste momento em que milhares de famílias, crianças e professoras(es) retornaram à vida pós-pandemia em casa, cabe a pergunta: e as crianças das favelas e periferias urbanas de Niterói, foi possível garantir-lhes protocolos sanitários de proteção e de prevenção ao vírus, num cenário como o acima descrito? Qual a importância das creches e pré-escolas para as crianças pequenas, familiares e profissionais que atuam na Educação Infantil? Ou, ainda: que sentidos são construídos, por familiares de crianças das classes populares, a partir da garantia do direito à Educação Infantil aos seus filhos pequenos, conforme já nos alertavam Pessanha, Macedo e Tavares (2021), em seus estudos sobre a educação das infâncias em munícipios do Leste Fluminense durante a pandemia da Covid-19?

No atual contexto de abertura de creches e pré-escolas, urge problematizar o contexto de trabalho pedagógico realizado no período pandêmico, levando-se em consideração que muitos sistemas educacionais da RMRJ fomentaram o planejamento e a disponibilização de atividades remotas como o único meio de contato com as crianças e suas famílias. A suspensão das atividades presenciais obrigou as redes de ensino e as UMEIs, a buscarem formas alternativas de reorganizar o calendário escolar e propor atividade de aprendizagens às crianças de forma não presencial. Nessa perspectiva, torna-se fundamental perguntar: quais os sentidos de tais atividades para as crianças pequenas, especialmente em contextos de desigualdades e, muitas vezes, de exclusão ao acesso às tecnologias digitais de informação? A formulação desta pergunta se torna relevante diante dos dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil7 (CGI.br) e da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) (Brasil, 2020), que revelam que a grande maioria dos usuários das classes populares possui limites, em geral, bastante restritos de tráfego de dados. Portanto, ainda é importante e necessário conhecer com se deu a adoção de estratégias pedagógicas utilizadas pelas UMEIs niteroiense, bem como se deu as respostas dadas pelas famílias, e sobretudo, pelas crianças, as estratégias utilizadas por cada UMEI, por cada professora/professor em relação ao trabalho feito com as turmas de crianças no período pandêmico, principalmente para se identificar quais práticas pedagógicas foram mais efetivas na garantia de aprendizagens no contexto pandêmico.

As questões acima elencadas tangenciam o presente artigo, cuja premissa é de que escutar as instituições educativas voltadas à pequena infância, juntamente com a escuta de familiares e professoras(es), torna-se um dispositivo político e epistêmico fundamental para pensar processos educativos a contrapelo (Tavares, 2019) e que possam se nutrir da dúvida como método (Garcia, 2009), num momento histórico tão crucial como o da (pós)pandemia da Covid-19. E por isso mesmo, em um momento tão dramático, entendemos ser relevante e inadiável refletir sobre as atuais condições e desafios da educação da pequena infância, a partir da suspensão das atividades cotidianas das creches e pré-escolas.

Entendemos ser ainda necessário problematizar, junto às Unidades Municipais de Educação infantil (UMEIs) pesquisadas, como se deu a experiência do isolamento social vivenciada nos espaços privados de vida familiar. Na seção seguinte, apresentaremos uma experiência de resistência e de criação de comunidade de afetos (Carvalho, 2009) em uma UMEI de Niterói, focalizando seus esforços de territorialização de uma pedagogia da liberdade (Freire, 2001) junto às crianças e suas famílias.

IMPACTOS DA PANDEMIA DA COVID-19: O QUE ESTAMOS APRENDENDO COM A “PEDAGOGIA DO VÍRUS”?

Entre o período temporal de março de 2020 e janeiro de 2022, com o avanço da pandemia no Brasil8, diante das orientações sanitárias e o distanciamento social, as pretensões de continuidade de um trabalho presencial, em tempo integral, com as crianças e os seus cotidianos tornaram-se improváveis. As atividades das escolas públicas no município foram suspensas no dia 16 de março de 2020, pelo Decreto Municipal nº 13.506/2020l (Niterói, 2020), como uma das medidas municipais de enfrentamento ao caos pandêmico no país. Neste mesmo documento, a Prefeitura declarou estado de “EMERGÊNCIA em Saúde Pública no Município de Niterói”, em razão da pandemia da Covid-19.

Após a suspensão das atividades educativas presenciais, uma das questões centrais que se apresentaram a nós, como pesquisadoras e professoras militantes do campo das infâncias, foi o interesse em saber como estavam as crianças e suas famílias. Estariam elas tendo condições de realizar o distanciamento social e os demais protocolos de enfrentamento à Covid-19? Considerando os contextos sociais e espaciais em que estes sujeitos vivem, sobretudo diante do descaso histórico do poder público na garantia efetiva dos direitos sociais, estariam minimamente seguras(os)? Embora ressaltemos que o conceito de segurança sanitária seja profundamente paradoxal frente às condições concretas, materiais e existenciais de vida desses sujeitos.

Sabemos que as desigualdades sociais e espaciais não foram inauguradas com a pandemia da Covid-19, no entanto, vimos aprendendo com a “cruel pedagogia do vírus” (Santos, 2020) que as classes populares brasileiras, em especial a população negra e favelada, têm sido as mais expostas não só ao vírus, mas à violação dos direitos, a partir da lógica capitalista de exploração e produção de mais valia em detrimento da preservação da vida. Segundo Milton Santos (1996), os homens e mulheres das classes populares vivem em condições de exploração e de dominação no capitalismo de diferentes formas, mas buscam resistir a essas diferentes tentativas de dominação e de opressão. Para Santos, é sobretudo no território usado, no território praticado que o homem lento cria condições de apropriação e compartilhamento da vida social mais ampla (Santos, 1996). Assim, compreendemos que, no território usado, homens, mulheres, crianças e jovens produzem táticas e estratégias (Certeau, 1994) direcionadas ao combate das opressões capitalistas, através de uma multiplicidade de formas de apropriação de seus territórios de vida cotidiana.

Os primeiros contatos com as crianças e as suas famílias contribuíram para repensar o trabalho na UMEI, sobretudo a partir da indagação sobre os diferentes sentidos construídos pelos familiares das crianças sobre o direito à educação de seus filhos e filhas durante a pandemia. Do ponto de vista do projeto pedagógico da escola da pequena infância, as relações cotidianas entre as crianças, profissionais e as famílias significam uma coletividade educativa que é fortalecida na presença diária, nas interações presenciais. E durante o contexto pandêmico, quando não havia mais presença física, concreta? Como reinventar a presença na ausência? Como construir condições de diálogo, buscando criar e fortalecer os vínculos afetivos e pedagógicos? Como produzir uma pedagogia da presença, em especial fortalecendo os princípios pedagógicos das interações e brincadeiras (Brasil, 2010) no contexto remoto e de distanciamento social? Esses foram questionamentos que toda a equipe pedagógica da UMEI compartilhou, intencionando uma reaproximação com as crianças e famílias.

A partir dessa perspectiva, foi possível vislumbrar um outro cotidiano, que foi se revelando por meios virtuais, em diálogo com as crianças e as famílias. Fomos construindo na UMEI, de forma parceira, com docentes, crianças e famílias, vínculos e afetos por meio dos grupos virtuais de interação possibilitados pelo aplicativo virtual WhatsApp e pela Internet, onde fomos compartilhando histórias, músicas, incertezas, esperanças, saudade, brincadeiras lúdicas, jogos corporais, informações sobre a pandemia, memórias da UMEI, partilhando o cotidiano doméstico, ouvindo as diferentes vozes de crianças e adultos, familiares e professoras.

As crianças pareciam ter gostado deste novo jeito de se comunicar, de vivenciar as atividades compartilhadas remotamente pela UMEI. Gostavam de enviar áudios para outras crianças dos grupos, dando recados referentes à saudade ou desejando feliz aniversário. Também pareciam gostar de ver fotos e assistir vídeos umas das outras e das professoras. As fotos e os vídeos enviados pelas crianças, mediadas pelas famílias, comunicavam diversas situações, que costumavam envolver brincadeiras, momentos do cotidiano doméstico, saídas de suas casas para ida ao médico, à praça, à rua, à praia, ao trabalho da mãe, por exemplo.

Em outras situações, as crianças e/ou famílias também faziam propostas de brincadeiras para os grupos virtuais de interação. Porém, a preocupação com as crianças e suas famílias continuaram a nos mobilizar na UMEI, nos desafiando a procurar outras formas e propostas de chegar às crianças, de dar maior materialidade ao desafio de acolhê-las num contexto tão complexo como o da pandemia da Covid-19.

APRESENTANDO UM RETRATO FALADO DA UMEI GERALDO MONTEDÔNIO BEZERRA DE MENEZES: APROXIMAÇÕES COM O TERRITÓRIO USADO

A UMEI Geraldo Montedônio Bezerra de Menezes desenvolve um trabalho pedagógico de tempo integral, atendendo cerca de 150 crianças, em 2022, com a faixa etária entre 2 e 5 anos. Fundada em fevereiro de 2008, na Rua Doutor Mário Viana, no bairro Santa Rosa, a UMEI fica localizada em uma região no entorno do Complexo de favelas do Viradouro, na zona sul de Niterói, cidade que já foi capital do Estado do Rio de Janeiro, antes da fusão desse estado com a Guanabara (1975).

A região do complexo de favelas do Viradouro concentra entre 8,6% e 13% da população niteroiense, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010. As favelas deste Complexo se concentram em três principais bairros: Santa Rosa, Viradouro e Vital Brasil. A UMEI está em ponto territorial próximo de algumas favelas deste Complexo: em frente à escola da pequena infância fica a favela Souza Soares; atrás a favela Beltrão, e em suas lateralidades as favelas Viradouro, Vital Brazil, Zulú, Morro da Santa, Morro da União, Morro do Africano, dentre outras.

Localização do Complexo do Viradouro, em Niterói, RJ
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Localização do Complexo do Viradouro, em Niterói, RJ
Fonte: Google Earth, com marcações e legenda da autora. Data da imagem: 22/11/2022.

Nestes tempos pandêmicos, em que a relação da UMEI com as crianças e suas famílias aconteceu por meio dos grupos virtuais de interação, temos conhecido melhor a região, a partir do olhar das infâncias e/ou suas famílias, como aconteceu em janeiro de 2021, quando, a partir de uma proposta educativa na qual as professoras de um dos grupos de referência de crianças de 2 anos de idade apresentaram uma brincadeira com a parlenda Janela, Janelinha, perguntando o que se via da janela de casa de cada criança. As crianças e famílias fotografaram o que viam das suas janelas, no alto das favelas do Complexo do Viradouro. Foram ângulos novos e instigantes para a compreensão e interpretação do território das favelas do Complexo, sobretudo para quem não o conhece, e para quem busca conhecer as referências infantis e familiares sobre o lugar em que vivem.

A poética do espaço (Tavares, 2003), mesmo em tempos pandêmicos, possibilitou outras imagens e interpretações espaciais nas experiências mediadas por um cotidiano educativo virtual, que foi exercido provisoriamente. As crianças e as famílias nos falaram mais sobre as suas relações com o lugar, uma vez que este vira também um contexto muito rico para a comunicação entre os diferentes grupos virtuais de interação. As famílias postavam fotos dos quintais, das ruas, da vista das favelas para outros pontos geográficos da cidade. A leitura de outros ângulos da favela nos levou a mudar a percepção estética do Complexo do Viradouro, complexificando a sua percepção a partir das leituras de crianças e suas famílias.

A seguir, exemplificamos a questão colocada acima: o que se vê são as capturas de telas dos grupos virtuais de interação, em que as famílias postavam fotos do que elas e as crianças viam das suas janelas.

Imagem do que se vê da janela da casa do A., 2 anos
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Imagem do que se vê da janela da casa do A., 2 anos
Fonte: Arquivo Institucional, 26/1/2021.

Imagem do que se vê da janela da casa do D
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Imagem do que se vê da janela da casa do D
Fonte: Arquivo Institucional, 27/1/2021.

A partir da atividade produzida com os grupos virtuais de interação, foram sendo intercambiadas outras interpretações sobre o contexto espacial e geográfico de moradia das crianças, sobretudo a complexa compreensão das proximidades entre as suas casas que, embora nem sempre se localizem nas favelas do Complexo do Viradouro, se aproximam pelas medidas espaciais do bairro.

Cumpre darmos destaque, também, à questão da violência urbana que impactou a vida de moradoras e moradores do Complexo do Viradouro, desde o início do período de pandemia do novo coronavírus. As operações policiais foram recorrentes no período pandêmico e principalmente no ano de 2020, quando iniciou a pandemia no Brasil. Lembramo-nos do dia 19 de agosto de 2020, quando houve uma grande operação policial no complexo de favelas do Viradouro. E as(os) moradoras(es) enfrentaram a truculência da polícia militar, que ocupou as favelas em uma operação que não tinha prazo para findar, ferindo os direitos das(os) moradoras(es), que tiveram as suas moradias invadidas e reviradas pelos militares, tendo seus corpos revistados e suas liberdades colocadas em suspeição.

Neste período, algumas moradoras(es), ao saírem de suas casas para trabalharem, deixavam bilhetes para os policiais, como este que se encontrava colado em uma porta, de acordo com a divulgação do jornal Folha de São Paulo (2020): “Srs. policiais, não arrombem a minha casa outra vez. Saí para trabalhar. Só volto à noite. Sou morador. Bom dia, boa tarde, boa noite.” Há também moradoras(es) que colocaram em suas janelas faixas com frases de protestos contra o desrespeito da polícia.

Moradora coloca um lençol em frente à sua casa, com a seguinte frase escrita: “#LAR DE MORADOR RESPEITE”
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Moradora coloca um lençol em frente à sua casa, com a seguinte frase escrita: “#LAR DE MORADOR RESPEITE”
Fonte: Rafael Lopes/Folha de São Paulo, 2020.

Desde o início de 2019, um ano antes do início da pandemia, foram inúmeras as operações policiais no Complexo das favelas do Viradouro. Não foram raras às vezes em que precisamos nos organizar com as crianças para ficarmos sentadas no chão da UMEI, abaixo das janelas, e nos protegermos de possíveis balas perdidas. Como também não foram raras às vezes em que as famílias chegaram mais cedo para buscar as crianças, pois a polícia havia entrado em alguma favela do Complexo, e quando isso acontece não se sabe o que pode acontecer, tamanho o medo dos moradores diante da truculência e desrespeito das ações de segurança pública, que parecem produzir medo e insegurança aos moradores daquelas favelas.

Uma análise feita pela Casa Fluminense (2022), com dados do Instituto de Segurança Pública para a construção do Mapa da Desigualdade da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, aponta que, no ano de 2019, no município de Niterói, das mortes ocasionadas pela polícia, 88% eram pessoas negras, o que torna fundamental discutir a necropolítica (Mbembe, 2018) na cidade de Niterói, com ênfase no Complexo do Viradouro. O filósofo camaronês Achille Mbembe cunhou o conceito de necropolítica9 para apontar e problematizar a prática política e social que determina a quem deve ser garantida a vida e a quem deve ser garantida a morte, em uma lógica do fazer morrer e deixar viver, produzida pela estrutura colonial da sociedade, e que está diretamente associada ao racismo estrutural presente em nossa estrutura societária. Ainda a esse respeito, o filósofo e atualmente Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do atual Governo Lula, Sílvio Almeida, em seu livro Racismo Estrutural (2019), evidencia a partir do conceito de necropolítica de Achilles Mbembe, que a necropolítica ocorre quando o Estado adota como natural políticas de morte, quando se nega a humanidade do/da outro/outra e este/esta outro/outra é colocado/a como exceção, sendo nesse contexto que o poder de matar opera: “A necropolítica, portanto, instaura-se como a organização necessária do poder em um mundo em que a morte avança implacavelmente sobre a vida. (Almeida, 2019, p. 125).

Ainda com relação ao impacto da violência urbana sobre crianças pequenas nas favelas e periferias urbanas de Niterói, de acordo com os dados estatísticos da plataforma Fogo Cruzado (2020), somente no ano de 2020, 22 crianças foram baleadas na região metropolitana do estado do Rio de Janeiro. Isto significa que houve um aumento de 267% em relação ao ano anterior, quando 3 crianças foram baleadas.

A partir dessas considerações, vale dizer que as práticas de necropolítica são uma constante no cotidiano das favelas do estado do Rio de Janeiro, uma crise humanitária permanente, na qual durante a pandemia se ampliou. Não podemos dizer que a operação policial que foi iniciada no primeiro ano pandêmico, no Complexo do Viradouro, é uma característica específica da pandemia. Esta ação policial parece ser um dos reflexos das opressões produzidas pelo Estado para reprimir os moradores das favelas, de mantê-los restritos, confinados em seus próprios territórios (Tavares, 2019).

Contudo, é importante dizer que o Complexo de favelas do Viradouro tem sido, historicamente, uma referência de lutas populares em favor da vida. No mês de setembro de 2020, por exemplo, em meio à pandemia e a operação policial, um coletivo de mulheres do Morro da União buscou parceria com outras pessoas moradoras de outras favelas do Complexo para organizar uma manifestação cultural intitulada Ocupação Cultural Artística (OCA), que aconteceu no dia 5 de setembro, durante todo o dia, com atividades protagonizadas por grupos culturais e artísticos do próprio lugar.

Como acontece na maioria dos eventos culturais, sobretudo os que envolvem as escolas de samba do Complexo do Viradouro, as crianças da UMEI estiveram presentes com suas famílias, celebrando a vida e a alegria de circular nas ruas, encontrando os seus pares que constituem o coletivo infantil da UMEI. É importante dizer que a organização da OCA esteve atenta aos cuidados que envolvem a pandemia, incentivando o uso de máscaras e o distanciamento entre as pessoas, distribuindo álcool em gel e garantindo que os lanches distribuídos gratuitamente às crianças estivessem higienizados e protegidos de possíveis contágios do novo coronavírus, assim como os brinquedos montados e higienizados no local, preparados para as crianças brincarem, e expressarem suas brincadeiras, culturas e as diferentes linguagens produzidas pelos seus corpos infantis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: POR QUE MATRICULAR AS CRIANÇAS NA CIDADE?

Buscamos, neste texto, pensar sobre relações que crianças pequenas e profissionais de uma UMEI de Niterói/RJ estabeleceram com os espaços da cidade durante a pandemia da Covid-19. Como perspectiva conceitual e analítica, recorremos às contribuições de Milton Santos (1996), cujo trabalho político-epistêmico e político-metodológico toma a perspectiva do lugar como espaço por onde se engendram ações e diferentes relações de força que dinamizam e produzem dinâmicas sociais no território usado. Em sua formulação teórica sobre a epistemologia existencial, Santos10 nos instiga a realizar o exercício de estudar o que cada lugar tem de singular, de específico, de diferente e original, para compreendermos como os sujeitos agem e produzem modos de vida, relações e práticas sociais, dentre as quais o direito à educação na cidade.

Os dados elencados na introdução e no corpo do artigo evidenciam que o crescimento das desigualdades e da vulnerabilidade social já era recorrente nas favelas e em periferias urbanas de Niterói/RJ. São inúmeras famílias vivendo nas ruas da cidade, pauperizadas pelo aumento do desemprego, queda da renda, insegurança alimentar e muito temor da infecção pelo coronavírus e da letalidade do vírus. Grande parte dessas famílias são matrifocais, isto é, famílias chefiadas por mulheres, não diferindo dos dados nacionais, que apontam que cerca de 50% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres (IBGE, 2020).

Por outro lado, os impactos da Covid-19 na vida dessas famílias, sobretudo pelo longo período de isolamento social, agravado pelo fechamento das creches e pré-escolas, trouxeram, dentre outras vulnerabilidades, a falta de espaços e lugares estruturados para as crianças pequenas. Com efeito, é fundamental ressaltar que, na sociedade em que estamos inseridos, as crianças das classes populares circulam na casa de avós, madrinhas, parentes e na própria vizinhança, sobretudo crianças das favelas do Complexo do Viradouro, que possuem maior autonomia para praticar os espaços das favelas nas quais vivem. Com o novo coronavírus e a necessidade de se permanecer em casa, esses territórios de acolhimento se tornaram muitas vezes interditados, proibidos, ampliando a vulnerabilidade social, tornando as vidas das crianças da UMEI mais desprotegidas, mais vulneráveis às “adversidades do território”.

O breve cenário apresentado, com recorte nas crianças e famílias de territórios de favelas distintas de Niterói, ainda que com muitas variáveis a serem investigadas, nos fornece elementos vigorosos para colocar em diálogo as condições nas quais essas famílias e crianças vivenciaram os dois anos da crise provocada pela Covid-19. Esse contexto é trazido como pano de fundo para o debate proposto sobre as relações que crianças pequenas constroem em seus territórios físicos e existenciais, nos quais a UMEI possui uma dimensão educativa fundamental, principalmente porque as crianças manifestam gostar de estar nela, se sentem protegidas e felizes em meio a outras crianças e profissionais da UMEI. No presente artigo, procuramos enfatizar em quais condições e circunstâncias ocorreu a educação da pequena infância, mediante a suspensão do funcionamento das UMEI e o consequente isolamento de suas experiências educativas nos espaços privados de suas famílias.

No bojo da discussão sobre o impacto das atividades remotas na educação das crianças pequenas, ressaltamos a preocupação com uma possível descaracterização das concepções epistêmicas e pedagógicas que fundamentam o trabalho na Educação Infantil. Perguntamo-nos, então, de que forma, e se, o uso das tecnologias pode contribuir para a educação das crianças pequenas, sem descaracterizar as bases e princípios da Educação Infantil (Brasil, 2010). Como o trabalho pedagógico da UMEI, o binômio educar e cuidar se fez presente nesse cenário pandêmico, sem desejar institucionalizar o espaço privado das famílias ou reafirmar arranjos emergenciais que ferem princípios democráticos de nossa sociedade diversa e plural?

Nesse caminho, reafirmamos a pertinência de retomarmos a pergunta feita por Santos (2020): “Que potenciais conhecimentos decorrem da pandemia do coronavírus?”, atentando, principalmente, para as possibilidades de construção de outras perspectivas e pedagogias favoráveis à educação e ao cuidado das crianças pequenas das favelas e periferias niteroiense. Enfatizamos a importância de aprofundar nossos conhecimentos sobre a pluralidade das infâncias e as especificidades da Educação Infantil, levando em consideração diferentes questões pedagógicas, sociais, culturais, históricas e econômicas que circunscrevem o campo do direito à educação das crianças pequenas e de suas famílias.

Para tanto, procuramos elaborar questões, experiências e reflexões que, no nosso entendimento, podem contribuir para o levantamento de questões e para a construção de “potenciais conhecimentos”, a partir das situações e provocações que a Covid-19 imprimiu às UMEI, às famílias e às crianças, de uma maneira ainda muito complexa e de difícil apreensão, em especial pela conjuntura do isolamento social, que, na condição de professoras e pesquisadoras, estivemos todas e todos a vivenciar.

Neste esforço de elaboração de uma síntese, mesmo que inconclusiva, ressaltamos uma questão que, longe de ser uma obviedade, configura-se como um desafio fundamental, em especial no Brasil a partir da pandemia da Covid-19: torna-se fundamental (re)pensar e (re)discutir o papel político e social da educação da pequena infância, dos espaços coletivos de educação e cuidado de crianças pequenas. Para tanto, é primordial compreender as crianças e famílias das classes populares, como autoras de soluções potentes e legítimas em seus territórios de vida. Porém, para o reconhecimento da condição da cidadania ativa (Benevides, 1991) desses sujeitos, é necessário cada vez mais “matriculá-los’, principalmente às crianças, na cidade, reconhecendo-as como sujeito de direitos, e com participação social e política garantida nos destinos de sua cidade, nos seus territórios de vida.

O diálogo aberto e as interações práticas, construídas e fundamentadas em pedagogias possíveis, inspiram e complexificam os movimentos singulares que as UMEIs vêm trilhando para chegar às crianças e suas famílias. Trata-se de apontar para a potência do estabelecimento de vínculos, a construção de encontros, a partilha de reflexões diante de tantos desafios, e de pensar a vida como possibilidade do ainda por vir, como nos provocou o cenário pandêmico.

Com efeito, problematizar os impactos da pandemia na vida de crianças pequenas e famílias das classes populares do Complexo do Viradouro nos remete ao desafio de continuar a investigar que potenciais conhecimentos decorrentes da pandemia podem mobilizar reflexões e práticas favoráveis ao cuidado e maior proteção das referidas crianças e suas famílias, além do acolhimento amoroso dos/das profissionais das UMEI. Nesse sentido, enquanto professoras e pesquisadoras compromissadas com a pequena infância e o direito à cidade (Tavares, 2019), insistimos em apostar em ações de diálogo e de parceria com esses sujeitos, crianças e suas famílias, em seus territórios de vida, potencializando oportunidades de materialização de processos formativos indissociáveis a um projeto de cidade menos desigual, menos fragmentada, menos violenta e racista. Que possa acolher a multiplicidade de vidas territorialmente diferentes, com igualdade e justiça social.

Compreendemos ser cada vez mais urgente e inadiável, tanto política quanto epistemicamente, conhecer e dialogar com processos educativos produzidos pelas forças vivas nos territórios, interrogando-as, aprendendo com elas na perspectiva do enfrentamento das desigualdades sociais e da necropolítica (Mbembe, 2018) que dizima crianças e jovens pobres e negros que (sobre)vivem no Leste Fluminense. Nesses tempos tão sombrios, compreendemos ser urgente produzir estudos sobre o campo das infâncias, da Educação Infantil e do direito à cidade (Lefebvre, 1991) em sentido ampliado, fortalecendo pedagogias da liberdade (Freire, 2001), afirmando a vida em tempos de (pós) pandemia e a democracia como um valor indispensável ao bem comum.

Nesse sentido, insistimos que não basta ao Estado promover e expandir as matrículas das crianças pequenas às escolas da infância. Torna-se fundamental garantir, produzir e inspirar políticas públicas que possam asseverar o acesso e os diferentes modos de uso das crianças pequenas e suas famílias ao território, tornando-o um território usado, como nos ensina Milton Santos (1996), garantindo seu direito à cidade. Finalizamos o presente artigo, referenciando o seu título, reiterando que é urgente matricular as crianças pequenas também na cidade. Uma cidade na qual as suas práticas e experiências espaciais possam ser incentivadas, protegidas e garantidas. Sobretudo em espaços pensados para elas e com elas, tais como praças, parques, escolas, ruas, bairros, tornando a cidade mais acolhedora e democrática para todas e todos os demais cidadãos.

REFERÊNCIAS

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Notas

1 As escolas retornaram em 2021, com restrições em relação ao número de pessoas por turno, distanciamento social. Na UMEI investigada, o retorno presencial aconteceu para as crianças com 5 anos de idade, em junho de 2021. A Unidade provisoriamente foi organizada em tempo parcial, tendo dois turnos diários, em que havia, no máximo, 5 a 6 pessoas por sala.
2 Ibidem, p. 175
3 Ibidem, p. 175.
4 Ibidem. Escritos da Educação. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2007
5 Ibidem. Disponível em: www.casafluminense.org.br. Acesso em: 22 nov. 2022.
6 Ibidem. Disponível em: www.atribuna.com.br Acesso em: 22 nov. 2022.
7 O Comitê Gestor da Internet Brasil foi criado pela Portaria Interministerial de nº 147, de 31 de maio de 1995, e alterado pelo Decreto Presidencial Nº 4.829, de 3 de setembro de 2003. (CGI.br, 2003).
8 Em 23 de novembro de 2022, o Brasil registrou, desde o início da pandemia no país, o total de 35.104.673 habitantes infectados pelo novo coronavírus e 689.341 óbitos, de acordo com os dados produzidos pelo Ministério da Saúde (PAINEL CORONAVÍRUS, 2022).
9 Ibidem. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.
10 Ibidem. A Natureza do espaço: Técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
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