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A gênese de um espect-a(u)tor eco-relacional reflexões sobre teatro, política e educação

The genesis of a espec-a(u)tor eco-relacional: reflections on theater, politics and education

La génesis de un espec-a(u)tor eco-relacional: reflexiones sobre teatro, política y educación

Fernando Antônio Fontenele Leão
Universidade Federal do Sul da Bahia, Brasil
João Batista de Albuquerque Figueiredo
Universidade Federal do Ceará, Brasil

A gênese de um espect-a(u)tor eco-relacional reflexões sobre teatro, política e educação

Reflexão e Ação, vol. 31, núm. 2, pp. 55-67, 2023

Universidade de Santa Cruz do Sul

Recepción: 10 Junio 2022

Aprobación: 13 Junio 2022

Resumo: Na década de 1970, Augusto Boal propôs, em seu Teatro do Oprimido, a ideia de conversão do espectador em ator e o neologismo espect-ator, para destacar a importância de assumirmos o lugar da ação, tanto no teatro, como nas ruas do país, que enfrentava a violência de uma ditadura militar. Nos anos 2020, após profundas mudanças políticas no mundo, a proposta de Boal continua relevante? Este trabalho se dispõe discutir isto. Apresenta um resumo da conjuntura política atual, especialmente no Brasil, e propõe contribuições da Perspectiva Eco-Relacional para ampliar o intento de Boal. Como principal resultado, o trabalho aponta para a gênese do espect-a(u)tor eco-relacional.

Palavras-chave: Teatro do Oprimido, Contexto político, Emancipação humana.

Abstract: In the 1970s, Augusto Boal proposed, in his Theater of the Oppressed, the idea of converting the spectator into an actor and the neologism spect-actor, to highlight the importance of taking the place of action, both in the theater and on the streets of the country , which faced the violence of a military dictatorship. In the 2020s, after profound political changes in the world, is Boal's proposal still relevant? This paper sets out to discuss this. It presents a summary of the current political situation, especially in Brazil, and proposes contributions from the Eco-Relational Perspective to broaden Boal's intent. As a main result, the work points to the genesis of the eco-relational spect-a(u)tor.

Keywords: Theater of the Opressed, Political context, Human emancipation.

Resumen: En la década de 1970, Augusto Boal propuso, en su Teatro del Oprimido, la idea de convertir al espectador en actor y el neologismo espec-actor, para resaltar la importancia de ocupar el lugar de la acción, tanto en el teatro como en el las calles del país, que enfrentó la violencia de una dictadura militar. En la década de 2020, después de profundos cambios políticos en el mundo, ¿sigue siendo relevante la propuesta de Boal? Este documento se propone discutir esto. Presenta un resumen de la situación política actual, especialmente en Brasil, y propone contribuciones desde la Perspectiva Eco-Relacional para ampliar la intención de Boal. Como principal resultado, el trabajo apunta a la génesis del espect-a(u)tor eco-relacional.

Palabras clave: Teatro de los Oprimidos, Contexto político, Emancipación humana.

INTRODUÇÃO

Corria o ano de 1968, no Brasil, e o regime ditatorial, que tinha se instalado quatro anos antes, num golpe encabeçado por militares e pela classe dominante (leia-se, latifundiários e empresários), insatisfeitos com o anúncio de reformas de base que seriam realizadas pelo governo de João Goulart, ia se mostrando cada vez mais violento.

Muitas/os intelectuais e artistas sentiam fortemente a coerção do Estado. Augusto Boal, teatrólogo e diretor teatral, na ocasião à frente do Teatro de Arena, na cidade de São Paulo, relata que no dia da estreia do espetáculo I Feira Paulista de Opinião, o elenco foi informado que o governo exigia setenta e um cortes nos textos para que fossem liberadas as apresentações públicas. Os cortes não foram feitos e a Feira foi apresentada como um “ato de rebeldia e desobediência civil”, como expresso na carta que foi lida pela atriz Cacilda Becker no início de cada uma das apresentações1.

No fim daquele mesmo ano de 1968, foi decretado o Ato Institucional nº 5, AI-5, que, entre muitas medidas autoritárias, endureceu a censura aos meios de comunicação e às obras artísticas; tornou ilegais as reuniões políticas; perseguiu estudantes e trabalhadores de diferentes setores.

Parte da classe artística assumiu a postura de enfrentamento ao regime opressor, pensou estratégias de organização e de mobilização do povo, que vivia uma experiência antidemocrática, e Boal, de forma mais específica, começou a buscar formas para que o teatro fosse um catalisador a estimular tal participação popular, como afirma Julián Boal (2014), filho de Augusto e também teatrólogo. Essa atuação levou Augusto Boal, anos mais tarde, a ser preso, torturado e, em seguida, exilado do país.

Um conflito social estabelecido, em que se percebe uma ação para censurar, prender e silenciar, mas também é nítida uma reação para denunciar, contrapor e anunciar um propósito de libertação, é o cenário político em que surge o Teatro do Oprimido.

Boal (2011), em sua obra Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, publicada em Buenos Aires, em 1974, a partir das experiências com o Teatro de Arena, em São Paulo, e com o teatro popular no projeto Alfabetização Integral (ALFIN), no Peru, entende que era chegada a hora de compartilhar os “meios de produção” do fazer teatral, democratizar as técnicas, de modo que todas/os tivessem o direito de sair da passividade (do espectador objeto) para assumir o lugar da ação (do ator sujeito).

Naquela conjuntura política do país, ser “espectador” do “espetáculo de opressão” promovido pelos militares era ser conivente com a violência. “O espectador, ser passivo, é menos que um homem e é necessário re-humanizá-lo, restituir-lhe sua capacidade de ação em toda sua plenitude” (BOAL, 2011, p. 236). Daí, a conclusão de que espectador era uma palavra feia, obscena, e que era urgente a sistematização de um método, de teatro e de educação, que possibilitasse a conversão do espectador em ator, no palco do teatro e nos espaços públicos do país.

Em obras posteriores, Boal (2002) apresenta a ideia de que não apenas podemos fazer teatro, mas também somos teatro. Isto porque o teatro, para além de ser uma expressão artística, também está na capacidade humana de se observar enquanto age, ser espectador de sua própria atuação. Nesse momento, nós que estamos escrevendo esse artigo (ação), também nos percebemos escrevendo (observação) e entendemos onde estamos e onde não estamos (o eu e o não-eu). Para tratar dessa ideia, Boal cria um neologismo, espect-ator, que relaciona a observação e a ação, seja no intuito de transformar a cena no Teatro do Oprimido, seja com o propósito de transformar a si próprio e à sociedade em que vivemos.

Passadas cinco décadas da situação política em que surgiu o Teatro do Oprimido, perguntamo-nos se os objetivos de revelar o espect-ator e de possibilitar a conversão do ser passivo/espectador em ser ativo/ator continua sendo relevante para quem pensa teatro em interface com a política e com a educação.

Nosso objetivo neste trabalho é discutir a relevância do conceito de “espect-ator” e da ação de conversão espectador-ator para observar, compreender e agir diante do contexto político em que vivemos, e o faremos a partir da apresentação de um panorama da conjuntura política, especialmente no Brasil nos anos 2020, e de reflexões acerca das contribuições da Perspectiva Eco-Relacional (FIGUEIREDO, 2007) para ampliar a proposta de Augusto Boal.

Tomamos por hipótese que a Perspectiva Eco-Relacional (FIGUEIREDO, 2007), ao propor uma superação do paradigma cartesiano, na direção da complexidade, relacionando diferentes dimensões do eu, do outro e do mundo no processo de apreender, construir e promover o conhecimento, poderá, ao tempo que reconhece a relevância do conceito de espect-ator e da conversão espectador-ator, problematizar e tecer caminhos para sua ampliação, apontando para a formação de um espect-a(u)tor eco-relacional, consoante com as necessidades de atuação no teatro, na política e na educação na contemporaneidade.

Considerando que o Teatro do Oprimido tem sido estudado e praticado em mais de setenta países, em cinco continentes do mundo; que temos observado um maior interesse no tema, como tem mostrado, ano a ano, as Jornadas Internacionais de Teatro do Oprimido e Universidade (JITOU), ao apresentar um panorama de atividades de pesquisa, extensão e ensino em instituições públicas e particulares em diferentes países, especialmente em universidades brasileiras (BEZERRA, 2021), e como comprovou a grande procura pelos estudos virtuais em Teatro do Oprimido, no período da pandemia de Covid-192; considerando que esse interesse pelo Teatro do Oprimido se dá num contexto de avanço do conservadorismo e da ideologia de direita e de extrema-direita no mundo, do desmonte de políticas sociais, do desmantelamento de instituições, de desaparecimento de empregos e de perda de direitos pelos/as trabalhadores/as; também de uma época marcada pela ideia do desempenho individual, do empresário de si mesmo, do excesso de informação, da imersão da população em uma cultura digital (HAN, 2018; 2019). Apontar um dos caminhos possíveis para observar-sentir-refletir-criar-agir no teatro, na política e na educação, diante de um contexto tão complexo, é que consiste a relevância deste trabalho.

O QUE NOS MOSTRA O CENÁRIO POLÍTICO ATUAL?

Entre janeiro de 2019 e dezembro de 2022, a maior parte da população brasileira sofreu com o governo de um presidente da república, eleito, que trazia em seu discurso uma série de referências ao golpe empresarial-militar de 1964 e elogios à atuação dos militares no período ditatorial – incluindo os torturadores –, que, segundo ele, agiram para a manutenção da democracia frente a um golpe comunista que seria dado no país. Ele também dizia/diz assumir a missão de livrar o Brasil da ameaça do comunismo. Tal discurso não deve nos fazer supor que o momento político atual é semelhante àquele de cinquenta anos. Precisamos entender algumas especificidades.

Podemos afirmar categoricamente que o presidente Jair Bolsonaro foi um governante autoritário, com pretensões a ditador? Ele foi autoritário, não resta dúvida. No entanto, pensamos que o seu autoritarismo é diferente, mais complexo que o observado na postura dos ditadores do passado. Desse modo, no teatro, por exemplo, criar uma cena com a representação do presidente da república como um ditador, relacionando-o à ditadura dos anos 1960-70, poderia ser pouco eficaz para discutirmos a realidade.

Concordamos com Ghiraldelli (2021, p. 104) quando afirma que o ex-presidente agia em duas frentes: a) em consonância com o economista Paulo Guedes, na perspectiva de um neoliberalismo globalizante, que se expressava em quatro reformas – trabalhista, previdenciária, administrativa e tributária –, aliadas a privatizações, criando “uma sociedade menos regrada pela constituição de 1988”; b) inspirado pelos ideólogos Olavo de Carvalho e Steve Bannon e pelo modo de atuação das milícias cariocas, inaugurando uma distopia anarcocapitalista, onde “quem pode mais, chora menos”, sem qualquer controle do Estado (ou dele) em ações dos indivíduos, como em relação a compra de armas, a postagens de desinformações/crimes na internet, a medidas sanitárias em meio a uma pandemia, etc. Como taxar de ditador um sujeito que, em vez de centralizar em si os rumos do país, pulverizava as responsabilidades?

Em nossa leitura, o presidente que teve sua trajetória caracterizada por discursos falaciosos, responsabilização de outros por atos que deveriam ser de sua competência e articulação política limitada, especialmente com governadores dos estados, atuou contra o país ao esgarçar a Constituição Federal num processo permanente de fragilização da legislação do país e ao cometer crimes contra a sua própria população, com destaque para os crimes atribuídos a ele pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da pandemia de Covid-193.

Assim, no cotidiano, em vez de ditador, seria melhor qualificado como um agitador político- ideológico de extrema direita, que rotineiramente criou conflitos em temas ligados à corrupção, aos costumes e às políticas de identidade, fomentando uma “guerra cultural”, pautando a agenda da imprensa e gerando forte engajamento com viés antissistêmico nas redes sociais digitais.

No contexto mundial, acompanhamos o crescimento na popularidade de partidos anti- imigrantes e racistas e um recorrente insucesso de partidos socialdemocratas na Europa; uma mudança no discurso e uma maior aceitação em relação a governos autoritários em diferentes países; eleições de mandatários outsiders, como Volodymyr Zelenski, na Ucrânia, e Donald Trump, nos EUA. Para a filósofa Nancy Fraser (2020, p. 35), fenômenos como esses são parte de uma crise política global que passa por uma “rejeição generalizada à política tradicional”.

Donald Trump, empresário, magnata, conhecido por programas televisivos, foi eleito com uma proposta bastante diversa daquelas apresentadas em pleitos anteriores por democratas e republicanos, no “vale-tudo” de um populismo reacionário: “na prática, o muro na fronteira mexicana somado aos gastos em infraestrutura de larga escala” (FRASER, 2020, p. 50).

Isto é, de acordo com a filósofa estadunidense, a grande quantidade de votos se deu pelo fato de que ele apresentava um conjunto de valores relacionados com o reconhecimento (como a sociedade entende as dimensões da identidade, da estima e da noção de pertencimento de seus membros) e com a distribuição (como a sociedade entende a estrutura econômica e, consequentemente, como destina seus bens e seus rendimentos a seus membros), que se identificava com o sentimento de angústia da população imersa numa realidade de problemas econômicos, sociais e ecológicos, a exemplo de empregos precários, dívidas, violência, tensões na vida familiar e comunitária, climas extremos, etc.

Mas, se esses são os efeitos observáveis, quais seriam as causas do esgotamento do modelo político experimentado até então e da busca por líderes associados a uma perspectiva antissistêmica e de espectro ideológico conservador, em muitos países do mundo?

Entendemos que a resposta tem uma raiz na economia. A década de 1970 marca o início de uma nova fase do capitalismo: o capitalismo financeirizado, distinguido pela ênfase crescente no rentismo (dinheiro que produz dinheiro, sem o intermédio da produção de mercadoria). Mudanças que aconteceram à época – como a ruptura dos EUA com o acordo de Bretton Woods, em 1971 – geraram instabilidade econômica a ponto de levar diversos países a abandonarem a concepção de estado de bem-estar social (welfare state), fazendo a crise ser sentida imediatamente pela classe trabalhadora (GHIRALDELLI, 2021).

Dialogando com Ghiraldelli (2021), numa tentativa de síntese, considerando os limites do debate neste artigo, entendemos que, nas últimas cinco décadas, os/as trabalhadores/as, que já vinham sofrendo com o Pós-Fordismo (sai o humano e entram as máquinas), foram obrigados/as a lidar com os processos de uma ideologia neoliberal, que se efetivou no enfraquecimento do Estado para a classe trabalhadora, na diminuição do número de empregos e na transformação de trabalhadores em “empresários de si mesmos”.

Essas mudanças poderiam parecer – e, muitas vezes, são assim propagadas – com a conquista da liberdade tão sonhada pela classe trabalhadora, sem chefe e sem patrão, sem registro de ponto, trabalhando onde e quando quiser, sem exploração. Seria mesmo?

Para Han (2019, p. 28) não é verdade que esse modelo de sociedade, denominada sociedade do desempenho, seja uma sociedade livre e sem exploração, pois novas coerções são produzidas quando “cada um carrega consigo seu campo de trabalho”. O indivíduo de desempenho parece a nós nitidamente desenhado nos depoimentos de motoristas e de entregadores de aplicativos, que relatam, com maior naturalidade, as mais de 12 horas diárias de trabalho, os acidentes de trânsito em que se envolvem, o adoecimento, sem qualquer proteção do Estado ou responsabilização das empresas (que gerenciam os aplicativos).

A ênfase na iniciativa, no projeto e no desempenho do indivíduo, na auto-promoção e na ideia do “Você S.A.”, características de uma racionalidade neoliberal, acaba por provocar um esmaecimento do “outro” e um movimento de narcisificação da sociedade. O sujeito narcísico “não consegue perceber o outro em sua alteridade e reconhecer essa alteridade. Ele só encontra significação ali onde consegue reconhecer de algum modo a si mesmo” (HAN, 2017, p. 07). Com isso, não consegue se perceber ou, mais exatamente, não chega a delinear o “eu” diante do “não- eu”, até que, admirado pelo desejo do sucesso individual, mergulha no lago de si mesmo e, muitas vezes, se afoga na depressão ou na síndrome de Burnout.

O quadro da Sociedade do Desempenho se completa com o indivíduo autocentrado, inquieto, estimulado permanentemente à atividade, sem o hábito da reflexão e sem considerar a existência do “outro”, diante da internet. Essa ferramenta, que pode permitir uma significativa transformação nas relações de poder, por viabilizar uma comunicação sem mediações, simétrica, permitindo àqueles que apenas consumiam possam, agora, também produzir informação (HAN, 2018), também é o meio onde se observa um excesso de opinião, de ideias maldosas e/ou de desinformações, promovendo fenômenos como as fake news, capazes de colocar em risco a própria democracia.

Essa é uma breve leitura do atual cenário político, que nos conduz a pergunta anteriormente formulada: a noção de espect-ator e o objetivo de enfatizar a dimensão da ação, como propõe Boal, permanecem relevantes para um pensar-fazer em teatro, política e educação hoje?

O CONCEITO DE ESPECT-ATOR, A PERSPECTIVA ECO-RELACIONAL E ALGUMAS POSSÍVEIS RELAÇÕES

A noção de espect-ator é comumente relacionada a uma das técnicas do Teatro do Oprimido, o Teatro-Fórum, para tratar do momento em que a plateia, após apresentação de um “antimodelo”, é convidada a entrar em cena. Um(a) espectador(a) poderá sair da sua cadeira, onde esteve observando a ação do elenco, e substituir o ator ou a atriz que representa a personagem oprimida, para atuar com o propósito de oferecer um outro desfecho para a peça. Este é o momento exemplar da conversão espectador/objeto em ator/sujeito na poética teatral de Augusto Boal.

Mas a ideia de espect-ator não deve ser reduzida a uma técnica teatral. Primeiro, por que a decisão de transformar, mesmo no teatro, não é simples e nem uma “virada de chave”. É mais fácil permanecer no lugar do espectador, sem o risco da crítica ou da reação do outro. Por isso mesmo, Boal sistematizou etapas para que o processo de transformação aconteça. Depois, por que experimentado o processo de conversão espectador-ator no teatro, o que se espera é que extrapole para a sociedade. Não à toa, Boal repetia, em muitas ocasiões, em livros e em falas públicas, que “o ato de transformar é transformador, mesmo em imagem, pois que a imagem do real é real enquanto imagem”4.

Assim, nossa perspectiva de espect-ator é a do sujeito que, passando por um processo artístico, político e pedagógico em teatro, possa transitar entre o lugar de quem observa – atuando em sua observação atenta e reflexiva – e o lugar de quem atua – sem prescindir da observação do “eu” e do “outro” e do mundo enquanto age. Lembremos que Boal (2002, p. 27) afirma que “o teatro nasce quando o ser humano descobre que pode observar-se a si mesmo: ver-se em ação”. Ou seja, a descoberta de que somos espect-atores está na gênese dessa arte.

Importante observar, portanto, que Boal não desprezava a dimensão do “espect”, spectare, do latim, assistir, ver. Aliás, a palavra teatro, theatron, do grego, significa “lugar para ver” ou “lugar de onde se vê”. De acordo com Pavis (1999, p. 372), “é o local de onde o público olha uma ação que lhe é apresentada num outro lugar”, criando um jogo entre o ato de ver e o objeto que é visto. Nesse sentido, há também uma ação daquela/e que observa.

E por que Boal, então, chegou a dizer que espectador era uma palavra feia? Em parte, pelo contexto político, já anteriormente comentado. Mas também por que ele se referia ao teatro ocidental – o oficial dos livros de história do teatro –, cujo marco inicial é a Arte Poética, de Aristóteles, que formula um conjunto de regras com efeito intimidatório sobre o espectador.

Para Boal (2011, p. 91), Aristóteles criou “um poderosíssimo sistema purgatório, cuja finalidade é eliminar tudo que não seja comumente aceito (...). Trata-se de refrear o indivíduo, de adaptá-lo ao que preexiste”. Assim, o drama aristotélico conduzia o espectador por uma história que o levava a a) ter empatia com o herói, b) sofrer com a falha trágica cometida, c) sentir a dor da punição e, por fim, d) experimentar a catarse. Em outras palavras, o espectador sentia o alívio da purificação após a punição do herói, com o qual se identificou desde o início da peça, pelo cometimento de uma falta contra a sociedade. Então, se o desejo era de transformação e de revolução, devia se evitar o teatro (aristotélico) ou buscar outra poética. Boal escolheu a segunda opção!

Compreendemos que a poética do Teatro do Oprimido – mais tarde, da Estética do Oprimido (BOAL, 2009) –, viva, em permanente movimento, deve ir ganhando novos contornos a partir do diálogo com seu tempo histórico e com as diferentes culturas dos grupos oprimidos que a abraçam. Boal (2009, p. 39-40) nos ensina que “cada coisa, material ou imaterial, é ou não bela em função da sua qualidade de, através de nossos sentidos, significar uma verdade, real ou imaginária, consciente ou não, dentro de condições temporais e concretas”. Por isso mesmo, atendendo a essa afirmação, é que nos dispomos a olhar para uma parte dessa poética, à luz da Perspectiva Eco- Relacional, a fim de ir tateando verdade e beleza.

Mas o que é a Perspectiva Eco-Relacional? Numa tentativa de síntese, podemos dizer que a Perspectiva Eco-Relacional - PER é uma abordagem epistemo-metodológica que se propõe superar os paradigmas hegemônicos na contemporaneidade, com relação à leitura, à apreensão, à construção e à efetivação dos conhecimentos. Argumenta que precisamos alargar o leque de alternativas epistêmicas, superando o epistemicídio ocorrido ao longo da história humana, no qual um discurso monolítico nega ou subalterniza os demais (FIGUEIREDO, 2007).

Na modernidade, temos o advento de uma lógica homogeneizadora, disjuntiva, fragmentária e fragmentadora, que recusa interlocução, diálogo, conexões. E, assim, acaba por propor uma condição humana e social distópica. Aliás, o conceito de distopia se identifica com a ideia de um lugar em que tudo e todos/as são submetido/as a uma situação totalitária, opressora, subalternizante, em que se coloca praticamente um impeditivo a qualquer possibilidade utópica.

A PER se dispõe a oferecer uma compreensão conjuntiva, dialógica, articuladora de relações autenticas e significativas, gestoras de sentidos, signos e potenciais criadores nos quais tenhamos um alargamento contínuo do horizonte de compreensão. Por meio de uma lógica abrangente, reconhece que são nas relações que o Universo se forja, possibilitando sua expansão permanente. E são nas relações que vamos nos constituindo e tecendo os mundos, artesãos e artesãs que se criam e criam sua realidade no diálogo, nas interações (FIGUEIREDO, 2016).

A Perspectiva Eco-Relacional nos possibilita o reconhecimento do aqui e agora como lugar da ecopráxis, do foco como zoom constituinte no contexto do grupo aprendente que gesta o saber parceiro, na relevância da supra alteridade que tem consciência do/a outro/a em nossa formação (FIGUEIREDO, 2007).

Para tanto, a PER entende como ciência algo que tem raiz no seu sentido etimológico, originário do latim, scientia, cujo significado original é conhecimento atento e aprofundado. Por isto, reconhece os seres como autores/as epistêmicos/as, ou seja tecelões/ãs de sua própria história, conhecimentos, saberes, nas relações com outros/as e com o mundo que lhes acolhem, contextualizam, sensibilizam, impulsionam, mobilizam (FIGUEIREDO, 2012).

Assim, a PER, como pensa Figueiredo (2007), transforma-se numa práxis político-educativa relacional que se caracteriza pela complexidade presente na teia da vida, pela discussão da realidade social, pelo fortalecimento do impulso criador, pelo reconhecimento e a consideração pelo/a outro/a como legítimo/a outro/a, pela comunicação e pela participação estético-política com o intento da transformação social. É sobre cada um desses temas que buscaremos, ao confrontar a fase capitalista neoliberal apresentada na primeira parte deste texto, ampliar a noção de espect-ator, na perspectiva de um espect-a(u)tor eco-relacional.

O espect-a(u)tor eco-relacional, então, nasce da releitura do espect-ator (BOAL, 2002) por meio da Perspectiva Eco-Relacional (FIGUEIREDO, 2007), ampliando-lhe a dimensão da autoria, de autoras/es epistêmicas/os, e a sua própria constituição como sujeito de uma práxis, que enseja observar, sentir, refletir, criar e agir, estética e eticamente, com consideração às relações existentes entre o eu, o outro e o mundo.

A PER dialoga com a metáfora da Teia da vida, que é recriada na teia epistêmica, dando a perceber seus fios constitutivos que se desenrolam nas tramas do cotidiano. Essas podem ser replicadas ou imaginadas na cena, nos acertos e nos deslizes representados, reapresentados, pré- apresentados como experiências manifestas das interações humanas, dos percursos sociais.

Portanto, a Perspectiva Eco-Relacional lida tanto com a complexidade dos nós crísicos entrelaçados, que favorecem uma leitura de mundo estendida, através da teia epistêmica, quanto com a capacidade criadora ético-estética do diálogo, que integra e desvela o diferente como expansor de nossa tomada de consciência, de nossa práxis social, solidária e parceira.

Partindo da teia epistêmica, a PER valoriza os saberes e os sujeitos locais, reconhece a sua cultura e as suas lutas e considera as necessidades de conhecer e construir conhecimento dos grupos sociais oprimidos, indo além de uma leitura etnocêntrica, racional e pretensamente objetiva do mundo, ampliando o conhecimento sobre a realidade à medida que gera novas percepções sobre si mesmo e sobre o/a outro/a (FIGUEIREDO, 2007).

Nessa nova alternativa de reconhecer a realidade, encontramos outras condições, diferentes entendimentos e leituras de mundo, que consideram a multiplicidade de interpretações, significados, valores e expectativas. Mesmo o diálogo acerca da realidade social, implica em outras observações, objetividades, subjetividades, intersubjetividades, transubjetividades. A criticidade adquire outras nuances, pois incorpora organicamente contrapontos ao que insitui e ao que está instituído, outros sensos críticos. É no encontro que nos encontramos e podemos desvelar razões, sentires, consciência.

Assim, podemos exercitar a desconfiança em relação ao modelo neoliberal de indivíduo de desempenho, que se pauta por ideias vinculadas a iniciativa mercadológicas, a motivações elitistas, criando um tipo de subjetividade narcísica.

Nesse aspecto, no atual momento político, retomando a ideia de conversão espectador-ator, proposto por Boal (2011), vale conferir maior ênfase na dimensão do “espect”, ou seja, na observação refletida, de modo a estimular uma percepção mais acurada e uma reelaboração dos sentidos e dos significados, cristalizados e/ou não problematizados, de modo que nossa atenção possa superar uma postura maquínica, fruto do automatismo do olhar sem ver, do ouvir sem escutar, do tocar sem sentir.

Superar fronteiras e muros dos automatismos, através de pontes relacionais, leva-nos ao natural fortalecimento do impulso criador, inerente às relações, mais ainda às relações contextualizadas historicamente. Podemos conseguir romper com o ritmo de Chronos, estabelecido pela máquina, afim de experimentar o ritmo orgânico de Kairós, do lento, do parado, do vazio. Olhar para cada ser, fenômeno, evento, de cada vez. Aqui encontramos o consentimento de que algo nos aconteça, nos atravesse, nos transforme; aqui, nos dispomos à experiência.

E, neste reconhecimento e consideração pelo/a outro/a em sua legitimidade e singularidade, ampliamos e aprimoramos a relação que gera dignidade e afeto verdadeiro para com o outro, humano e não-humano; direcionamos um maior vigor a um tipo de identidade coletiva, que se faz parceria na tessitura do conhecimento, assumindo um movimento contrário ao esmaecimento ou à negação do/a outro/a, a fim de superamos o processo de narcisificação da sociedade (FIGUEIREDO, 2016).

Recordamos que o teatro não se faz na individualidade, mas se coloca como o reino do/a outro/a. O/A outro/a, diferente, que opõe, que conflita é parte fundamental desse jogo. Salientamos a importância de experimentar perceber pelo olhar do/a outro/a, num dispositivo eco- relacional, em que podemos experimentar efetivamente uma antropofagia intercultural, capaz de fazer emergir novas possibilidades de construção do inédito-viável (FREIRE, 1992).

Acreditamos que o próprio campo político da esquerda possa se reinventar ao abandonar uma lógica meramente intelecto-cognitiva ou objetivo-subjetiva, com o fito de experimentar múltiplas linguagens, com suas diferentes razões e interpretações, de segmentos diversos da socidade – e, aqui, enfatizamos, especialmente, as culturas populares, tradicionais e originárias – ambicionando, por meio de movimentos fronteiriços, uma transformação em seu ser-estar com o outro e com o mundo.

Na comunicação que eclode dentro das relações concretas, no face a face, no cotidiano, encontramos espaços e lugares horizontais e democráticos, que são convites à manifestação da arte, da amorosidade, da alegria. Em nossa práxis cotidiana, experimentando o encontro com as múltiplas linguagens artísticas, num misto de sons, imagens, palavras e movimento, temos buscado promover processos de formação com grupos aprendentes, visando a manutenção da pulsação que nos mantém esperançosos, o equilíbrio no complexo observação-sentimento-reflexão-criação-ação e a dilatação de nossa existência.

É desse modo que a PER, à medida que nos ajuda a fazer leituras da realidade a partir de uma teia epistêmica, urdida no próprio grupo de trabalho, em consonância com a ideia de que “devemos pensar a arte do ponto de vista de quem a produz e pratica, não a partir de uma perspectiva contrária à nossa” (BOAL, 2009, p. 167), também nos convida à decisão de atuar, de forma observada, sentida, refletida e criativa, assumindo um papel nas lutas por uma sociedade que se paute na solidariedade, na justiça social e ambiental, na emancipação humana.

CONCLUSÃO

Trabalhar na perspectiva da conversão do espectador-ator e da revelação do espect-ator, passadas cinco décadas de sua proposição, permanece, sem sombra de dúvidas, relevante para quem atua na perspectiva do Teatro do Oprimido ou, de modo mais ampliado, na interface teatro, política e educação.

Ao dialogar com o tempo histórico e com indivíduos e/ou grupos sociais oprimidos, na atualidade, entendemos ser necessário i) oferecer maior destaque à dimensão da observação sentida e refletida, do “espect”; ii) incluir - com o (u) - a dimensão da autoria, apenas subentendida na proposição de Boal; e iii) acrescentar o qualificativo eco-relacional, de modo a mirar outras relações; e, assim, nos manter em permanente busca de (nos) formar seres que estão/amos presentes, com o outro e com o mundo, e em ação na direção da nossa libertação e da construção de um mundo social e ambientalmente referenciado.

O poder instituído e as relações em torno dele muito se modificaram nos últimos 50 anos. Algo intrigante: se focarmos na conjuntura política do Brasil, dos últimos anos, perceberemos que o ex-chefe do poder executivo procedeu com tantos ataques às estruturas da república, que nos levou a confusões sobre como pensar e como agir na situação: enquanto sujeitos engajados no campo da esquerda, vamos proteger as estruturas institucionais que já se colocaram contra nós? Devemos lutar, com unhas e dentes, por um Estado que sempre amparou a classe dominante enquanto marginalizou as classes populares? Estamos dispostos a proteger um modelo de democracia que nunca existiu, verdadeiramente, para os povos originários, para as populações tradicionais, para as comunidades populares vivendo subúrbios, morros e favelas?

A Perspectiva Eco-Relacional parece nos ajudar a ver com maior nitidez essa complexidade ao favorecer i) experimentar um outro ritmo nas ações (em proposital descompasso com o ritmo acelerado, muitas vezes, demandado pelo cotidiano imerso na cultura digital e na perspectiva neoliberal); ii) complexificar a leitura da realidade, ao propor um encontro com uma teia da vida (que prevê, entre outros aspectos, diferentes e, possivelmente, conflitantes valores, interpretações e expectativas, até dentro do próprio grupo oprimido); iii) reconhecer o/a outro/a como legitimamente outro, diferente, podendo se opor ao que “eu penso”, mas sermos capazes de instituir o diálogo, de modo a aprender com ele/a); iv) fazer a crítica ao que está instituído (nas relações de poder no mundo, no país, mas também no próprio campo da esquerda, onde atuamos); v) valorizar a amorosidade e a alegria, como sentimento e como ação (ato de amar e ato de alegrar a si, ao/à outro/a, ao mundo), numa perspectiva revolucionária de oposição ao ódio, ao medo, ao ressentimento, à amargura.

Esperamos que essas breves reflexões possam contribuir para fortalecer a luta cotidiana de mulheres e homens, cis e trans, de todas as raças e etnias, de todas as classes sociais, de todas as orientações sexuais, com suas-nossas deficiências, eficiências e potências e, assim, caminharmos na direção da utopia da criação de um mundo onde podemos efetivamente amar.

REFERÊNCIAS

1. BEZERRA, Antônia P. (Org.). Teatro do Oprimido e Universidade: experienciações pedagógico-artivista e(m) redes para esperançar. Vol. II. Rio de Janeiro: Mundo Conteporâneo, 2021. Disponível em http://www.ppgac.tea.ufba.br/wp- content/uploads/2021/06/9786586290165_livroTO_final.pdf . Acesso em 14/03/2023.

2. BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

3. BOAL, Augusto. O arco-íris do desejo: o método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002

4. BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 11ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

5. BOAL, Julián. Presenças do Teatro de Arena no Teatro do Oprimido. Revista Terceira Margem, vol. 18, n. 30. Rio de Janeiro: UFRJ, 2014, p. 173-196.

6. FIGUEIREDO, João B. A. Educação Ambiental Dialógica: as contribuições de Paulo Freire e a cultura sertaneja nordestina. Fortaleza: Edições UFC, 2007.

7. FIGUEIREDO, João B. A. Formação d@ educador(a) dialógic@ numa perspectiva descolonializante. Tese de Professor Titular (Faculdade de educação. Departamento de Teoria e Prática de Ensino) – Universidade Federal do Ceará - UFC, Fortaleza, CE, 2020.

8. FIGUEIREDO, João B. A. Paulo Freire e a descolonialidade do Saber e do Ser In: Formação Humana e Dialogicidade III: Encantos que se encontram nos diálogos que acompanham Freire.1 ed. Fortaleza-CE: Edições UFC, 2012, v.1, p. 9.

9. FIGUEIREDO, João B. A. Pedagogia Dialógica Eco-Relacional e Matrística numa Dialogação com a Descolonialidade e a Interculturalidade Crítica In: Cenas e Cenários Interculturais – pensando epistemologias a partir do Sul.1 ed. Santa Maria - RS: Caxias, 2016, v.1, p. 79-104.

10. FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. Trad. Gabriel Landi Fazzio. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

11. FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

12. GHIRALDELLI, Paulo. República brasileira: de Deodoro a Bolsonaro. 2ª ed. São Paulo: CEFA EDITORIAL, 2021. E-book.

13. HAN, Byung-C. Agonia do Eros. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017. E-book.

14. HAN, Byung-C. No enxame: perspectivas do digital. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2018. E-book.

15. HAN, Byung-C. Sociedade do Cansaço. Trad. Enio Paulo Giachini. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2019. E-book.

16. LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Trad. Cristina Antunes, João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. E-book.

17. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999.

Notas

1 Cf. http://augustoboal.com.br/especiais/primeira-feira-paulista-de-opiniao/
2 Cf. Estudos virtuais em teatro do oprimido e outras poéticas. Disponível em https://www.youtube.com/live/9- ULJRUyUsM?feature=share . Acesso em 14/03/2023
3 Ver https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/10/20/com-nove-crimes-atribuidos-a-bolsonaro- relatorio-da-cpi-e-oficialmente-apresentado
4 Augusto Boal, para o Fórum Social Mundial, em 2003. Cf.: http://augustoboal.com.br/2018/03/16/teatro-do- oprimido-no-forum-social- 2003/#:~:text=E%20o%20ato%20de%20transformar,real%20%C3%A9%20real%20enquanto%20imagem!
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