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A Escola de Teatro Político e Vídeo Popular “Cenas Camponesas” reflexão a partir da experiência
The school of political theatre and popular video “peasant scenes”: reflection from the experience
La escuela de teatro político y video popular “cenas camponesas”: reflexión desde la experiência
A Escola de Teatro Político e Vídeo Popular “Cenas Camponesas” reflexão a partir da experiência
Reflexão e Ação, vol. 31, núm. 2, pp. 68-82, 2023
Universidade de Santa Cruz do Sul

Recepción: 07 Junio 2022
Aprobación: 13 Junio 2022
Resumo: O presente trabalho objetiva refletir sobre os limites e avanços da construção dos processos pedagógicos da Escola de Teatro Político e Vídeo Popular “Cenas Camponesas”, observando como a práxis extensionista de socialização da linguagem do vídeo documentário pode ou não fortalecer a territorialização do campesinato. Nosso horizonte mais amplo é situar o audiovisual como elemento formativo da cultura, na Educação do Campo, realçando-o como uma práxis fundamental na dinâmica da luta de classes.
Palavras-chave: Vídeo Popular Camponês, Educação do campo, Cultura.
Abstract: The present work presents reflect on the limits and advances of the construction of the Cenas School's pedagogical processes, observing how the extensionist praxis of socialization of the language of documentary video, in a power perspective, may or may not strengthen the territorialization of the peasantry. Our broader horizon is to place the audiovisual as a formative element of culture, in Rural Education, highlighting it as a fundamental praxis in the dynamics of the class struggle.
Keywords: Popular Peasant Video, Field education, Culture.
Resumen: Pretendemos reflexionar sobre los límites y avances de la construcción de los procesos pedagógicos de la Escuela Cenas, observando cómo la praxis extensionista de socialización del lenguaje del video documental, desde una perspectiva de poder, puede o no fortalecer la territorialización del campesinado. Nuestro horizonte más amplio es situar al audiovisual como elemento formador de la cultura, en la Educación Rural, destacándolo como praxis fundamental en la dinámica de la lucha de clases.
Palabras clave: Video Popular Campesino, Educación rural, Cultura.
INTRODUÇÃO
Historicamente a classe trabalhadora assume a cultura como um elemento central em seu processo de emancipação e de disputa por um modelo de sociedade alternativo ao do capital, baseado na valorização do trabalho e da natureza. Essa assunção se traduz numa práxis plural das organizações populares em que a cultura é semantizada como termo que designa processos de humanização e valorização da vida, a partir do acesso ao conhecimento gerado no âmbito da filosofia, arte, ciência e na própria luta por sobrevivência, com a finalidade de produzir e reproduzir sistemas justos e sustentáveis de realização, assim como divisão do trabalho e da riqueza. Ao contrário da ideia burguesa, que cinde cultura e vida, utilizando a cultura como um marcador de ilustração, superioridade e erudição, a classe trabalhadora conecta esses dois termos e, nisso, salienta a arte como elo do povo com sua capacidade de analisar a realidade, metaforiza-la e de fruir em termos psíquico-sociais, educando-se a si mesma.
Sabendo disso, neste artigo abordamos a experiência da Escola Cenas Camponesas, que nasce vinculada ao âmbito da extensão na Universidade Federal do Piauí (UFPI) e à Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC) - Campus Professora Cinobelina Elvas (CPCE). A Escola “Cenas Camponesas” também está vinculada à rede de Escolas de Teatro Político e Vídeo Popular Nostra America. Com essa marca de origem, a Escola Cenas Camponesas expõe seu potencial educativo a favor das lutas camponesas, num território de conflitos entre os modos de realização do campesinato e do agronegócio: o sul do Piauí.
Para este trabalho, focalizamos nossa atenção na análise de uma das atividades desenvolvidas pela Escola Cenas Camponesas no ano de 2021, o curso de “Vídeo Popular Camponês”, realizado de modo remoto, no contexto necropolítico e sindêmico da Covid-19. Objetivando evidenciar os limites e êxitos dessa experiência, nos orientamos a partir dos seguintes questionamentos: uma atividade de extensão pode promover a socialização da linguagem do vídeo documentário em perspectiva popular, auxiliando os povos e comunidades do campo a defenderem seus territórios? Que processos, princípios educativos e métodos pedagógicos auxiliam nesse propósito?
Na perspectiva de respondê-las, evidenciamos ao/à leitor/a nossas ferramentas teórico- metodológicas articuladas ao histórico da Escola Cenas Camponesas, e em seu contexto, detalhamos o processo de construção e realização deste curso com a máxima honestidade na apresentação e problematização dos resultados da experiência. Em todo esse percurso, recuperamos os princípios basilares de nossa atuação: integrar a arte ao processo de organização e luta do povo, abordando e enriquecendo a gramática audiovisual dos cursistas ao valorizar a arte como um direito humano, elucidando, dessa forma, a linguagem do vídeo popular como uma arma necessária à formação humana e luta de classes.
Cabe salientar que todos os dados e informações utilizados neste artigo foram sistematizados a partir dos relatos das reuniões e grupos de estudos realizados sistematicamente pelos membros da Comissão Político Pedagógica da Escola, em sistema de rodízio, bem como das matérias produzidas para abastecer o Blog e Site da Escola1. A prática do registrar e de dar visibilidade às ações do projeto é parte importante das preocupações dos sujeitos que o realizam, no sentido de sedimentar a memória da Escola e ampliar sua capacidade de informar, formar e fortalecer a construção de rede de interlocutores interessados na arte como elemento da luta de classes. Ademais, o registro e a divulgação de produzem como uma práxis basilar do processo de planejamento e avaliação do projeto, permitindo avançar nas reflexões e decisões tomadas no âmbito do mesmo.
A ESCOLA DE TEATRO E VÍDEO POPULAR CAMPONÊS: DA PROPOSTA PEDAGÓGICA ÀS INTENCIONALIDADES POLÍTICAS
A Escola de Teatro Político e Vídeo Popular do Piauí “Cenas Camponesas” nasceu do trabalho em rede desenvolvido entre os membros do Programa de Extensão e Grupo de Pesquisa Terra em Cena, da Universidade de Brasília (UnB), e do Projeto de Extensão Cenas Camponesas, da Universidade Federal do Piauí (UFPI) - Campus Professora Cinobelina Elvas (CPCE) -, ambos, Programa e Projeto, ligados às Licenciaturas em Educação do Campo (LEdoC) das respectivas universidades.
A região sul do Piauí, incorporada ao projeto MATOPIBA2 de expansão do capital na agricultura, vinha sendo palco de inúmeros conflitos entre camponeses, fazendeiros, escoltas de segurança privada armada, etc. Havia uma demanda por defesa dos direitos humanos dos camponeses que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontava em seus relatos e compromissos, e em parceria com a CPT, o Cenas Camponesas foi associado a este contexto, na perspectiva de disputar um projeto educativo e cultural para o campo que afirmasse os camponeses como sujeitos de direitos e vítimas de violências e violações do agronegócio.
Ao mesmo tempo, junto à CPT e às comunidades camponesas, dialogávamos sobre a necessidade de gerar representações capazes de afirmar o campesinato como portador da vocação e compromisso histórico com a guarda e promoção da socioagrobiodiversidade, sendo sujeitos da segurança e soberania alimentar. Observávamos também a necessidade de, na abordagem da luta de classes, garantir que o Cenas Camponesas promovesse o debate acerca do papel contraditório que o Estado, as escolas e os próprios sujeitos camponeses vinham desenvolvendo na manutenção ou superação do cenário de conflito.
O Cenas Camponesas, já em rede com o Terra em Cena da UnB, vinha defendendo o teatro como expressão artística ligada à análise da realidade e ao ensaio da mudança: para nós a arte, mais do que dizer como o mundo vinha se constituindo na dinâmica da luta de classes e elucidar suas interferências sobre a produção da abundância/escassez da natureza e da agricultura, deveria permitir aos protagonistas da cena e aos seus apreciadores uma abertura para pensar o inédito viável (FREIRE, 2005), para metaforizar a vida (CASTELLS, 2007) e imaginar formas de superar as situações de desigualdade. Considerávamos fundamental que a arte funcionasse como um alargador da consciência em relação à dificuldade da mudança, mas também como uma experiência de expansão da vontade, motivando o engajamento na tarefa de tornar o mundo menos feio, menos desigual.
Ligando arte e um projeto de reforma agrária popular, o coletivo acadêmico Terra em Cena se fez em jornadas de permanente conexão com os movimentos sociais de luta pela terra, incorporando lideranças camponesas como seus intelectuais orgânicos em processos de pesquisa, ensino e extensão. Todo o repertório cênico do grupo refletia essa organicidade de base, com assentados, acampados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O Cenas Camponesas, inspirado pelas experiências do Terra em Cena, também produziu sua identidade seguindo as trilhas desse princípio político e pedagógico: o do diálogo e aliança com as organizações camponesas locais.
Diferentemente do Distrito Federal e entorno, no sul do Piauí, entretanto, não haviam movimentos organizados; a estrutura mais forte de estimulo à organização camponesa e de apoio às comunidades afetadas pelo agronegócio vinha da CPT e, de um modo bem tímido, de alguns sindicatos. Foram com esses parceiros que nos organizamos e desenvolvemos a tarefa de produzir um trabalho com os camponeses da região, estudantes da LEdoC (UFPI-CPCE), para que se tornassem ao mesmo tempo membros de um elenco teatral e de arte-educadores capazes de semear e formar outros grupos teatrais em suas respectivas comunidades, junto às escolas do campo ou outras organizações locais - como associações, por exemplo. Nossa tarefa consistira em caminhar lado a lado com tais sujeitos: seriam eles o primeiro público de nossas produções e os protagonistas da cena.
Incluíamos em nossa fundamentação teórico-metodológica, além desses elementos da cultura e política camponesa, o pressuposto da psicologia histórico-cultural que evidencia a aprendizagem sustentada pela “qualidade do emprego de signos” - numa linguagem que potencialize processos de significação, representação e imaginação -, operando como um alargador do desenvolvimento humano (MARTINS, 2016, p. 50), físico e mental.
Lidávamos com outro princípio pedagógico, o de sempre partir das referências culturais dos sujeitos, visando descontruir os processos de colonização do imaginário produzidos pela indústria cultural, num processo histórico conjugado com a colonização da natureza (BASTOS, 2015), buscando construir uma dinâmica pedagógica de duplo movimento: o de desmonte ideológico dos discursos que se assentam na manipulação da arte em favor da desigualdade, e o de reafirmação das manifestações culturais camponesas como portadoras de uma teatralidade muito rica, poeticamente estruturada e portadora de um projeto comunicativo biófilo e produtor de pertencimento.
Para além de oposições simplistas, tentávamos nesse movimento refletir sobre as contradições, verificando como, no plano da cultura, a relação trabalho e capital se interpenetrava. Neste processo, conjugamos uma crítica à ideia de cultura popular versus cultura erudita, resgatando o cultural como o campo da produção de humanização e de reprodução social do povo (PERCASSI; BONASSA; GUILERME, 2021).
Dessa forma, assistimos filmes ligados à estética dialética e ao universo camponês, bem como nos detínhamos na apreciação das produções audiovisuais sobre o rural baseadas no drama burguês, sempre tentando, nas duas situações, entender a correlação entre forma-conteúdo-modo de trabalho presente nas obras, e aprender os princípios que regem as representações hegemônicas e contra-hegemônicas da realidade (COSTA, 2007).
Assentados nesse tripé, forma-conteúdo-modo de trabalho, e sempre recriando nossa pedagogia teatral, pensávamos que o sentido de nosso trabalho não estaria em si mesmo, mas na possibilidade dos sujeitos desse fazer se imiscuírem na vida como quem luta em sua defesa, de modo organizado e coletivo, irmanados pelo desejo de fazer arteducomunicação. Nosso trabalho, portanto, não poderia se desgarrar da própria dinâmica de luta e atuação dos grupos camponeses do Piauí, incentivados à organização pela CPT, servindo tanto ao reconhecimento desses camponeses enquanto sujeitos de direito à arte, como ao reconhecimento da arte como um elemento pedagógico importante na educação dos sentidos e da consciência, elevando qualitativamente seus níveis na crítica ao status quo e abertura de novos caminhos revolucionários. Assim foi que o elenco Cenas Camponesas desenvolveu, de sua autoria, uma peça, a “Luta Nossa, Camponesa”, que tinha como papel analisar um processo inédito de grilagem que estava em curso no sul do Piauí, a grilagem digital ou grilagem verde (FIAN, RSJDH, CPT, 2018), alertando os camponeses para esta situação. A peça foi pensada junto com a CPT para servir de mote para o “II segundo Seminário Matopiba Perspectivas Populares”, organizado pela CPT e o Núcleo de Agroecologia e Arte (NAGU)/UFPI-CPCE, com a presença de comunidades e grupos de todas as regiões afetadas pelo agronegócio nos estados do Maranhão, Tocantis, Piauí e Bahia.
Dialeticamente, a peça também reafirmava as práticas de resistência camponesa centradas em parâmetros agroecológicos de relação com o bioma Cerrado. Este trabalho circulou em mostras no Piauí e Goiás, a partir da relação do Cenas com o movimento agroecológico do Piauí, o movimento quilombola do Estado piauiense e com o Movimento Por uma educação do campo, além do próprio Terra em Cena. Muito embora neste momento nossa referência fosse mais o teatro do oprimido do que o teatro dialético, tentamos com a peça produzir uma síntese analítica antecipando uma situação social desastrosa: a ampliação de mais uma forma de expropriação camponesa.
Aproveitamos para a composição da peça os acúmulos que tínhamos conseguido com oficinas de jogos e exercícios teatrais propostos por Augusto Boal (BOAL, 2007), as pesquisas sobre composição do personagem baseada no estudo de tipos humanos reais presentes no cotidiano dos membros do elenco. Utilizamos elementos como coro, visando trazer a voz do povo (com suas contradições para a peça); incluímos prólogo na peça para potencializar seu poder de comunicação, trouxemos o narrador para fortalecer a historicidade e demarcar que somos contra o drama (COSTA, 2007), e fizemos uso de figurino e de cenário como itens de suporte a informações estatísticas, documentais e celebrativas das vitórias de personalidades camponesas.
O segundo trabalho do grupo foi a adaptação da peça “Posseiros e Fazendeiros”, do grupo do MST “Filhos da Mae Terra”, inspirada na obra didática Horácios e Curiácios de Brecht. Nesse trabalho, já com algum aprofundamento sobre o teatro dialético, o Cenas Camponesa analisava as armas utilizadas na luta de classes envolvendo camponeses e latifundiários, no contexto avançado da reprodução do capital na agricultura. A peça, apresentada durante a “IV Mostra Terra em Cena e Tela”, teve sua construção plástica baseada nas referências do teatro do oprimido e dos festejos populares, além do teatro dialético.
Quanto à referência da cultura popular, nos parecia fundamental contrariar a lógica burguesa que situa o povo como aculturado, mostrando sua riqueza estética, ao mesmo tempo que esta seria uma estratégia para gerar familiaridade do público camponês com a peça, equilibrando os elementos de estranhamento que queríamos produzir, com uma entrada mais empática do público na recepção do espetáculo. Também nos valemos da proposta da autogestão no processo de direção, seminários dramatúrgicos, grupos de estudos, das atas de ensaio (anotações feitas rotativamente por algum membro do grupo e retomadas no próximo encontro), de memórias de peças que assistimos durante a circulação da primeira peça (exemplo: Peças dos grupos do Terra em Cena: “Se temos tanta riqueza por que somos pobres?”, “Mulher na Roça”, “A farsa da justiça burguesa”).
Muitos desafios foram enfrentados no trabalho com “Posseiros e Fazendeiros”: nos Seminários, a grande dificuldade era mostrar as relações causais e históricas entre regimes políticos autoritários e avanços do capitalismo e dos conflitos no campo, bem como os nexos entre luta camponesa e conquistas de direitos junto ao Estado burguês, já que se tratavam de temas de grande complexidade. A ideia era explorar essas relações não por meio de oposições simplistas, mas evidenciando contradições e suas nuances, tanto interna quanto externamente ao campesinato.
Tínhamos também o desafio de superar, de um lado o fatalismo, já que no confronto de armas a burguesia parecia reunir todo o poder, e do outro os romantismos que põem em perspectiva apenas a resistência dos ecossistemas e sociedades camponesas, ovacionando a beleza e a potência da cultura e da agricultura dos povos nos sentidos ecológicos e sociais. Seria importante mostrar a força das armas dos fazendeiros e a desproporcionalidade com as armas dos posseiros (o texto do “Filhos da Mãe Terra” já nos provocava a isso, colocando como armas do conflito de classes a TV, do lado dos burgueses, e o jornal impresso do lado do sindicato dos trabalhadores), e evidenciar a engenharia dos processos de violência e violação material e simbólica que impedem o campesinato de ser mais (FREIRE, 1996; 1987). Tudo isso sem deixar de mostrar a força interna do campesinato baseada na organização e trabalho coletivo, centrado em processos educativos, comunicativos e de co-evolução com a natureza.
A partir da formação dos estudantes da LEdoC (UFPI-CPCE) em ciências humanas e sociais, e de sua vivência como camponeses na fronteira agrícola do MATOPIBA, tínhamos elementos teóricos e práticos para trazer tais proposições para a peça - inclusive elementos em excesso. Porém, ainda que nos esforçássemos, nos faltava o repertório estético para potencializar a comunicação desses conteúdos de forma concisa e clara. O arcabouço dos integrantes do grupo estava sugestionado muito fortemente pelas características do drama burguês, que marca as construções televisivas, por exemplo, que a maioria dos integrantes tem acesso. Foi um desafio descontruir esses referenciais entre o próprio elenco que temia, com outros artifícios e recursos cênicos mais abstratos, não gerar empatia do público com a peça, e assim não efetivar a comunicação.
Durante longas horas discutimos a respeito, pensando no efeito de estranhamento brechetiano e na intencionalidade do teatro político, o saldo foi uma peça exaustivamente trabalhada e produtora de um grande pertencimento entre o grupo. De jogos de desmecanização dos corpos à interrogatórios na berlinda, estudantes camponeses haviam de desenvolver-se como atores para trabalharem personagens cuja subjetividade parecia, a princípio, despersonalizados, uma incógnita aos mesmos, muito embora realizados por pessoas: o latifundiário, o capitalista e o acionista da bolsa. Coros, prólogos e epílogos foram construídos visando o didático, mas sem simplificar, o esquemático sem mecanizar.
Algo fundamental nesse processo foi compreender a intencionalidade didática que Brecht empregou no teatro: mobilizamos nosso debate como licenciados para interpretar o didatismo brechtiano, verificando a importância da encenação para os objetivos políticos, estéticos e pedagógicos do autor, preocupados em pensar como a peça chegaria ao público, tornando as falas tão importantes quanto o modo que elas seriam recebidas pelo público. Percebemos que ensaiar seria mais do que gerar uma representação do texto, uma reprodução das marcações e registros plásticos da cena, mas pô-lo à prova enquanto fonte e inspiração do trabalho criativo dos atores e elemento de comunicação com o público. A direção da peça deveria funcionar como um exercício educativo de mediação para formar encenadores-pedagogos. Buscamos ainda perceber o que continuava válido, em termos de conteúdo, do momento em que o “Filhos da Mãe Terra” produziu “ Posseiros e Fazendeiros” (em 1997 no contexto em que a reforma agrária era tão esperada quanto protelada), para o momento da adaptação do Cenas Camponesas, pós golpe, em 2019, quando não só a reforma agrária se distanciava do horizonte civilizatório, como toda a democracia brasileira estava posta em cheque com a tomada do poder político por um governo necrófilo.
No contexto da IV Mostra, o trabalho do Cenas com “Fazendeiros e Posseiros” não foi imediatamente analisado e criticado pelo público, no sistema de fórum tão fundamental à identidade de educação e didática popular na comunicação elenco-público, pois os atrasos na programação nos fizeram cortar esse momento para que os próximos grupos pudessem se apresentar. Foi um prejuízo grande que tentamos reparar com um processo posterior de troca de cartas entre os grupos da Rede Terra em Cena, tendo como foco a apreciação e crítica mútua do trabalho dos grupos.
Esse processo de diálogo com a linguagem teatral também nos possibilitou uma relação com o audiovisual, oriunda de atividades teórico-práticas no interior da Escola - assim como afinidade com sujeitos e coletivos culturais, nos impulsionando a oferecer remotamente, durante a pandemia de causada pelo corona vírus, um curso de produção de vídeo documentário com celular (smartphone) para jovens camponeses/as localizados/as nas comunidades rurais presentes no sul do Estado piauiense, atividade intitulada de “Vídeo Popular Camponês”. Este curso caminhou na perspectiva político-pedagógica contra-hegemônica que estrutura a identidade da Escola: crítica à indústria cultural como expoente cultural da dominação estético-política (GONÇALVES, 2020).
Assim, após problematizarmos o caminho percorrido pela Escola até então, o qual nos formou para chegarmos neste curso de produção audiovisual camponesa, apresentaremos os aprendizados obtidos no curso de “Vídeo Popular Camponês”, evidenciando as potências e fragilidades de um processo vivenciado remotamente, porém sem deixar de perspectivar uma dinâmica de produção audiovisual condizente com a realidade material e identitária dos/as cursistas.
A DIMENSÃO METODOLÓGICA DA CONSTRUÇÃO E EXECUÇÃO DO CURSO DE “VÍDEO POPULAR CAMPONÊS”
A oferta do curso “Vídeo Popular Camponês” teve como público-alvo lideranças rurais, estudantes da educação do campo e militantes da agroecologia do Piauí. Intentamos formar uma turma com esse perfil de participantes visando expandir a experiência do curso para outros espaços e contextos formativos, uma vez que estes sujeitos poderiam se tornar, posteriormente, multiplicadores dos saberes compartilhados no curso em seus respectivos territórios e espaços de participação política.
No processo de mobilização dos participantes, contamos com a colaboração da CPT/PI e da Associação Quilombola Brejão dos Aipins, organizações com as quais, conforme já pôde ser identificado neste trabalho, já mantemos um vínculo oriundo de outros processos organizativos, além da própria Comissão Político-Pedagógica (CPP) da Escola de Teatro e Vídeo Popular Camponês. Após a formação da turma, identificamos a presença de algumas representações dos movimentos sociais camponeses, contudo a grande maioria dos participantes foi composta por estudantes da educação básica do campo e discentes da LEdoC (UFPI-CPCE) sem nenhum vínculo orgânico com organizações ou movimentos sociais do campo que atuam no sul do Estado piauiense.
A princípio, contamos com mais de cinquenta participantes, porém na medida em que o curso foi se desenvolvendo, esse número foi reduzindo até encerrarmos com, aproximadamente, doze cursistas. Não tivemos condições de fazer um levantamento sistemático dos motivos dessas desistências, mas, em diálogos informais com os desistentes, identificamos que essa queda na participação se deu por diversos motivos, tais como dificuldades impostas aos encontros remotos pela carência no acesso à internet, difícil relação socioeducativa mediada por tecnologias, sobrecarga de trabalho - no caso das mulheres estudantes, mães e donas de casa - até a descoberta da falta de interesse pela temática do curso.
No âmbito interno da CPP, também avaliamos que a desistência teve relação com a longa duração do curso, com a necessidade crescente de muitos cursistas terem que priorizar o trabalho em detrimento da formação na luta por sobrevivência, e com a sequência didática adotada - que privilegiou, num primeiro momento, a reflexão mais ampla sobre os sentidos político-estéticos do audiovisual, visando o enriquecimento do repertório dos sujeitos envolvidos numa perspectiva oposta e confrontante com os paradigmas comunicativos da indústria cultural (GONÇALVES, 2020). Esta sequência didática notoriamente contrariou as expectativas de parte dos cursistas, que estavam interessados principalmente nas técnicas da produção audiovisual.
Assumindo um posicionamento político-pedagógico explicitamente emancipador, a metodologia adotada no planejamento e desenvolvimento do curso buscou fugir da perspectiva tecnicista, mesmo que já antevíssemos alguma possibilidade de esvaziamento do curso. Seguindo alguns princípios da educação popular, sobretudo na tentativa de instigar o desenvolvimento estético dos cursistas, insistimos na perspectiva de trata-los como indivíduos historicamente oprimidos (FREIRE, 1987), mas que podem fazer uso da sua autonomia político-social a fim de transcender essa condição opressora, por meio de uma formação contrária aos ditames do capital, inclusive no campo das artes.
Sob tal perspectiva, seguimos com um processo educativo que fomentou a produção de vídeos documentários como forma de leitura da realidade, cadenciada pelo anúncio e denúncia da questão agrária do sul piauiense a partir da ótica camponesa e agroecológica. A neutralidade enquanto posicionamento ideológico foi prementemente negada; assumimos de forma manifesta o lado da classe trabalhadora do campo na dinâmica de produção e partilha do conhecimento audiovisual.
Diante desse horizonte, é importante salientar que compreendemos a produção audiovisual como uma das estratégias que devem ser adotadas pela classe trabalhadora em um processo de mobilização política mais amplo, aproximando a criação audiovisual de outros espaços, abordagens e linguagens adotadas pelas dinâmicas de organização sociopolítica dos coletivos camponeses (GOMES et al, 2015). Dessa forma, a edição final de um vídeo pode ser compreendida como o início ou continuidade de um processo educativo e de organização política, nunca o seu fim.
Essa percepção acerca do papel político e pedagógico da produção audiovisual também serviu como orientação para o planejamento e execução do curso de “Vídeo Popular Camponês”, tendo em vista que não desejávamos apenas registrar, descrever e analisar visualmente uma realidade, mas contextualizar as futuras produções realizadas pelos cursistas em uma dinâmica de luta, conquista e manutenção dos direitos sociais dos povos do campo - sobretudo por meio da proximidade com organizações camponesas atuantes nos territórios localizados no sul do Piauí. Embora tivéssemos clareza desse objetivo político, não conseguimos concretizá-lo tal qual desejamos em decorrência da grande maioria dos cursistas não possuir vínculo com movimentos sociais do campo.
Apresentando agora a estrutura do curso, a mesma foi pensada em um formato modular, através da qual professores e cursistas refletiram, de forma teórico-prática, sobre as representações hegemônicas e contra-hegemônicas associadas às imagens das ruralidades brasileiras. Essas reflexões foram elaboradas com o auxílio de categorias e conceitos oriundos das ciências humanas e sociais, articulados com os conteúdos imagéticos presentes em filmes, curtas e/ou vídeos documentários que estimularam a compreensão dialética entre forma, conteúdo e modo de produção de bens simbólicos, tanto na estrutura de intenções e divisão social do trabalho correspondente ao status quo, quanto na estrutura alternativa que ensaiamos. A dimensão prática do curso não esteve presente apenas nesta articulação imagético-conceitual voltada à leitura da realidade, que como já dissemos, se concentrou nos primeiros módulos do curso, mas também no processo de elaboração dos vídeos documentários por parte dos cursistas. Iremos tratar disso adiante.
Inspirados nas vivências educativas compartilhadas na LEdoC (UFPI-CPCE), adaptamos, em alguns momentos sem grande êxito, a linguagem científico-acadêmica ao perfil dos cursistas e às intencionalidades formativas do curso. Durante os encontros com os cursistas tivemos dificuldade, em determinadas circunstâncias, de fazer a articulação epistêmica entre os saberes científico-acadêmicos e os conhecimentos populares pertencentes às realidades socioculturais dos cursistas, que, no que diz respeito à arte, estavam embebidos em referências difundidas pela indústria cultural - o drama burguês (COSTA, 2007) - e pela escola básica - que frequentemente subjuga a arte às demais disciplinas, modulando seu uso para ilustração de conteúdos de história e geografia, por exemplo, ou para animação cultural de datas comemorativas descontextualizadas de uma visão crítica da realidade (CASTELLS, 2007).
Com isso, em nossas reuniões internas de avaliação, sistematização e planejamento semanal, recorremos aos ensinamentos freirianos que nos convidam à reflexão da própria prática educativa (FREIRE, 1996), na tentativa de buscar metodologias que possibilitassem melhores articulações entre as matrizes epistêmicas do universo popular camponês e do conhecimento científico-acadêmico. Tentamos ensinar e aprender durante o processo, e nesse contexto foi útil a recuperação e análise do universo simbólico dos festejos e celebrações dos povos e comunidades do campo, valorizando-os como manifestações genuinamente artísticas, ricas plasticamente e estruturantes de processos de socialização ligados ao pertencimento identitário e coesão social.
Na estruturação metodológica das atividades presentes nos três módulos que compunham o curso, também impulsionados pelos saberes e práticas desenvolvidas na LEdoC, adotamos os pressupostos da pedagogia da alternância, articulando tempo escola e tempo comunidade na organização dos tempos-espaços formativos dos cursistas, alinhando às discussões tidas nos encontros síncronos (tempo escola) com as realidades socioculturais compartilhadas pelos participantes do curso. Durante o tempo comunidade (encontros assíncronos) os cursistas foram convidados a refletir sobre o que foi discutido nos encontros síncronos por meio da leitura de sua realidade instigada pelas imagens fílmicas sugeridas durante o curso, acompanhadas pelos debates tidos durante os encontros síncronos.
O curso teve início3 com uma aula inaugural, na qual foi apresentada a Escola de Teatro e Vídeo Popular Camponês, o programa do curso com encontros semanais, a metodologia de trabalho, bem como a equipe responsável pelo planejamento e execução do curso (docentes e discentes bolsistas do projeto - todos vinculados a LEdoC da UFPI-CPCE). Nesta aula inaugural tentamos estabelecer um processo de auto-organização envolvendo os cursistas e a equipe executora do projeto, na medida em que a organização coletiva é uma das matrizes formadoras da educação do campo, junto com o trabalho, a luta social, a terra, a cultura, a história, as vivências de opressão e o conhecimento popular (BARBOSA, 2012).
Com esse processo auto-organizativo almejávamos instigar nos cursistas um maior envolvimento no processo formativo, seja com a sugestão de atividades, temas e questões oriundas da realidade de sua comunidade ou na realização da mística. Adotamos o whatsapp como tentativa de nos aproximar dos cursistas e fortalecer a dinâmica auto-organizativa. Mas, no decorrer do curso, fomos identificando, infelizmente, que tal processo não foi satisfatório. Acreditamos que isso tenha ocorrido em decorrência da dificuldade de internet e pelo perfil dos discentes não ser composto por sujeitos que já possuem uma relação orgânica com os movimentos sociais camponeses, além de algumas bolsistas, que serviriam como articuladoras junto aos cursistas, não conseguirem estabelecer um contato consistente e aproximado com estes.
O módulo um, intitulado “A questão agrária e o audiovisual”, teve como objetivo fomentar reflexões sobre a questão agrária e o papel da arte na luta da classe camponesa, bem como no desenvolvimento da sensibilidade artística aproximada da ampliação do repertório cultural camponês. Esse módulo contou com cinco encontros, cujos temas foram: 1º) “Cultura, arte e luta de classes”; 2º) “Direito à arte: narrativa, experiência e memória”; 3º) “Questão agrária e organicidade camponesa”; 4º) “Cultura e agroecologia”; e 5º) “Os povos do campo e as culturas populares: expressividades indígenas e quilombolas a partir das cosmovisões poéticas com a natureza”.
Antes de cada encontro deste módulo os cursistas tinham a incumbência de assistir uma produção audiovisual que dialogasse com o tema a ser tratado a fim de estarem melhor inseridos na discussão. Exceto no primeiro encontro não foi sugerido nenhum material audiovisual, mas todos os demais tiveram algum filme e/ou curta inspirando as discussões: 2º encontro: “Memórias clandestinas”; 3º encontro: “Trombas e Formoso: memórias de uma luta”; “Cabra Marcado para Morrer”; 4º encontro: “Agricultura tamanho família”; 5º encontro: “Quilombo Salinas: cumbuca de quilombo”. Houveram algumas sugestões extras para o debate do 3º encontro: “Guardiões da Terra - Agroecologia em Evolução”; “Solo, luta e justiça - agroecologia”. No primeiro encontro também foi sugerido que os cursistas assistissem posteriormente aos documentários “Escola quilombo - educação cultivada” e “Escola quilombo: étnico-racial”. Além desses vídeos, no início do modulo II trabalhamos com a obra “Na missão com Cadu”.
A leitura de todas as produções audiovisuais sugeridas durante o curso deveria ser acompanhada por uma ficha de observação, na qual estavam contidas questões que norteavam o olhar dos cursistas. As questões presentes na ficha versavam sobre: a) o título do documentário; b) o nome da equipe do documentário (câmera, direção, produção artística, fotografia); c) o ano de produção de documentário; d) o tema abordado na produção audiovisual; e) fontes de informação acessadas pelo documentarista; f) os sujeitos que estão presentes no documentário; g) sequência de acontecimentos (cenários, cenas, momentos, tempos, locais); h) trilha sonora; i) relação do conteúdo do vídeo documentário com a vida pessoal dos cursistas. Essas questões foram pensadas tomando como referência o perfil do público que estava participando do curso, sujeitos com pouca ou nenhuma experiência em produção audiovisual. Nossa preocupação era de direcionar o olhar dos mesmos para os aspectos que consideramos relevantes: o que se conta, como, quem, para que finalidade?
O módulo dois, “O vídeo-documentário político popular: do imaginário às práticas de produção”, objetivou oferecer elementos ético-filosóficos e técnicos voltados à compreensão do processo de produção de documentários a partir do uso de celulares. No contexto da produção audiovisual popular devemos primar pela condição material da classe trabalhadora, sendo este, também, um dos pressupostos que orientou a proposta político-pedagógica do curso. Assim, foi a partir desse segundo módulo que os cursistas começaram a ter acesso, de forma mais direta, com técnicas de produção de vídeo documentário por meio de smartphones.
Os encontros desse segundo módulo foram pensados a partir dos seguintes temas: 1º encontro: “Desconstruindo o cinema urgente e a técnica a serviço de”; 2º encontro: “Tirando a ideia do papel: roteiro de documentário audiovisual: um artesanato coletivo”; 3º encontro: “Gravações: como executar o planejamento, gravando vídeos com celular, gravando sons com celular, ferramentas de apoio”; 4º encontro: “Montagem - técnicas de edição de vídeo no celular: aplicativos de edição e seu funcionamento, conceitos básicos e técnicas de montagem”; e no 5º encontro, encerrando esse módulo, tivemos uma oficina de produção audiovisual de vídeo documentário, na qual os cursistas puderam iniciar o manuseio do aplicativo InShot, uma das principais ferramentas que seriam adotadas na produção do vídeodocumentário.
No primeiro módulo as dificuldades externalizadas pelos cursistas estavam restritas ao campo das ideias, do entendimento em torno da produção audiovisual popular - além das restrições no acesso à internet ainda comuns em realidades rurais. A partir deste segundo módulo começaram a aparecer, de forma mais recorrente, a necessidade de superar o sentimento de incapacidade de produzir um material audiovisual. Superar esse sentimento de impotência era necessário em decorrência do módulo três estar voltado para a realização de uma mostra a partir dos filmes produzidos pelos cursistas. Algo construtivo nessa direção foi o trabalho com fotografia afetivamente relevante para cada cursista, a fim de tratarmos de conceitos como sequência narrativa, enquadramento, memória.
Iniciamos o módulo três, denominado “Mostra de documentários, multiplicação e processos de educação e organização popular”, fazendo um levantamento das propostas de produções audiovisuais externalizadas pelos cursistas - através deste levantamento começaram a se formar temas e títulos das produções. Mesmo com o abandono de uma quantidade expressiva de cursistas, ainda tivemos dez propostas de produções, contudo foram finalizados apenas três videodocumentários. Consideramos esse montante como significativo em decorrência do contexto social em que o curso foi realizado, ou seja, durante a pandemia, em formato remoto e direcionado para sujeitos que nunca tiveram a experiência com produção audiovisual. Todo o material de apoio e sistematização do curso foi organizado em um site pelas bolsistas que acompanham a Escola.
O primeiro documentário produzido pelas cursistas se intitula “Rezar e resistir para existir”, tendo como equipe de direção as cursistas Jaysa Nerys, Hellen Jane, Joandra Keetlym e Simone Lago - todas discentes da LEdoC (UFPI-CPCE). Essa produção aborda o Festejo de Todos os Santos enquanto marca identitária da Comunidade Quilombola Brejão dos Aipins, localizada no município de Redenção do Gurguéia (PI). O curta apresenta importantes personagens que participam do Festejo, problematizando também as implicações da perda dessa tradição na Comunidade.
No segundo vídeo documentário, “O esperto que pega a terra”, cuja direção é de Marcela Gomes e Jacira Chaves, podemos observar o avanço do agronegócio sobre a Comunidade Mimoso, localizada no município de Palmeira do Piauí. A produção problematiza de forma mais específica a interferência do agronegócio sobre a criação do gado “na solta”, nas antigas áreas comuns das chapadas do cerrado, atualmente desmatadas e ocupadas com a monocultura da soja. Esta produção também conta com o depoimento do Sr. Feliciano de Araújo, o qual diz nunca ter “botado vaqueiro”, mas sempre possuiu “uma vaquinha”.
O terceiro documentário, “Chapéu, perneira, gibão”, produzido pela própria CPP da Escola, registrou a cultura do vaqueiro, os saberes e sons dessa cultura do trabalho, a partir da experiência de Sr. Raminho da comunidade Castelo/Chupeiro (Eliseu Martins/PI).
Durante o processo de criação destes vídeos estabelecemos um método de leitura e crítica de cada documentário, através do qual abríamos espaço para a troca de impressões e sugestões advindas dos membros da Escola e dos cursistas, tendo como referencial os textos e orientações tidas durante o curso.
Embora tenhamos que ainda avançar em muitas questões, e as próprias reflexões até aqui levantadas apontam para isso, é certo que o curso possibilitou o enriquecimento da gramática audiovisual de todos os participantes, sejam eles discentes ou docentes, na medida que experimentaram uma formação teórico-prática sobre o uso de celulares, e organizaram-se em grupos para produzir documentários sobre questões de interesse de suas próprias comunidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiência do curso foi desafiadora: para além do precário acesso à internet e aos meios tecnológicos de informação e comunicação (celulares, no caso), observou-se que a indústria cultural exerce um papel muito forte na colonização dos inconscientes dos próprios camponeses. A contracolonização dos imaginários e dos repertórios formais não se concluiu em uma única formação. Além disso, o engajamento da CPT e da Associação Quilombola do Brejão dos Aipins na CPP do curso foi instável, pois, na fronteira do agronegócio e da Covid, os conflitos no campo aumentaram, requerendo-lhes atenção total. Isso abalou o papel de mediação entre a Universidade e comunidades rurais exercido por tais entidades, enfraquecendo o engajamento dos cursistas e o papel educativo da Mostra de Documentários Itinerante idealizada para o encerramento do curso.
De modo geral, ao refletirmos sobre os limites e avanços da construção dos processos pedagógicos da Escola Cenas Camponesas, observamos que a práxis extensionista de socialização da linguagem do vídeo documentário pode se efetivar como um elemento da cultura, na Educação Campo, fortalecendo-a como princípio indispensável à construção de narrativas, sensibilidades e consciências em defesa dos territórios camponeses. Nesse processo, os princípios e elementos metodológicos da educação popular, em especial o diálogo e a educação estética dos sentidos, são elementos indispensáveis.
REFERENCIAS
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Notas