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O quarto de Alice: o enigma da infância e suas palavras mudas – um regime estético na educação?

Alice’s room: childhood riddle and its mute speech – an aesthetical regime on education?

La habitación de Alicia: el enigma de la infancia y su palavra muda - ¿ un régimen estético en la educación?

Vinicius Bertoncini Vicenzi
Universidade do Planalto Catarinense, Brasil

O quarto de Alice: o enigma da infância e suas palavras mudas – um regime estético na educação?

Reflexão e Ação, vol. 32, núm. 1, pp. 37-50, 2024

Universidade de Santa Cruz do Sul

Recepción: 19 Septiembre 2023

Aprobación: 23 Febrero 2024

Resumo: A partir de uma cena infantil busca-se pensar a relação entre o enigma da infância (Larrosa) e a palavra muda (Rancière). Operamos um deslocamento do conceito ranciereano para analisar as contribuições que pode aportar à discussão sobre a infância e o seu papel na educação. Discute-se uma aproximação entre o conceito de regime de identificação das artes e um possível regime de identificação da infância. Através de uma discussão teórica entre aspectos estéticos e políticos, na esteira de uma metodologia por cenas, exploramos algumas redes de significações sobre uma política da infância para além das polícias da infância.

Palavras-chave: infância, palavra muda, Rancière, cenas de dissenso, regime estético da arte.

Resumen: Desde uma escena infantil buscamos pensar la relación entre el enigma de la infancia (Larrosa) y la palavra muda (Rancière). Cambiamos el concepto ranciereano para analisar las contribuciones que puede hacer al debate sobre la infancia y su papel en la educación. Se discute uma aproximación entre el concepto de régimende identificación de las artes y un posible régimen de identificación de la educación. A través de uma discusión teórica entre aspectos estéticos y políticos, a partir de una metodología por escenas, exploramos algunas redes de significados sobre una política de la infancia mas allá de las polícias de la infancia.

Palabras clave: infância, palabra muda, Rancière, escenas de dissenso, régimen estético del arte.

Abstract: Observing a child scene we seek to think about the relationship between childhood riddle (Larrosa) and mute speech (Rancière). We force a move on rancierean concept in order to analyze the aids it may apport to childhood debate and its role on education. We argue on a sense of approximating arts identification regime concept and a plausible childhood identification regime. Throughout a theoretical debate between aesthetic and political aspects, in the wake of a scene method, we exploit some meaningful networks of a politics of childhood beyond all polices of childhood.

Keywords: childhood, mute speech, Rancière, dissent scenes, arts aesthetical regime.

INTRODUÇÃO

Certa vez, quando minha filha Alice era pequena, deparei-me com o seu cenário de brincar. Eram peças de Lego, montadas e dispostas a certa distância entre si. Certamente contavam alguma história, possuíam algum sentido. Lembro-me que Alice, mesmo muito pequena, havia também registrado aquelas cenas ao tirar fotos com um celular emprestado. Registros pequenos, de um close muito específico, muito próximo, num enquadramento infantil. Essas cenas se repetiam, dispostas de outros modos, em outros dias, talvez outras histórias, outros sentidos. Nunca a perguntei o que significavam, qual era a história. Não recordo bem se havia sequer palavras na qual Alice podia me explicar à época. Imagino que não. Era completamente in-fante. Hoje Alice cresceu, possui muitas palavras, mas as “palavras” daquelas cenas continuam completamente mudas. Para mim e para ela.

Voltei a essas cenas a poucos dias por certa curiosidade de trabalho. Afinal, dentre outras coisas, tenho pesquisado sobre infância. Lembrei de um texto de Jorge Larrosa sobre O enigma da infância (2017), sobre a sua heterogeneidade, uma heterogeneidade radical, um completamente outro que por mais capturável por nossos discursos e instituições, sempre nos escapa. Inquieta o que sabemos, suspende o que podemos e coloca em questão os lugares que construímos para ela (Larrosa, 2017). Voltei para o quarto daquela Alice e para a sensação de vertigem de que fala o professor catalão, em “como a alteridade da infância nos leva a uma região em que não comandam as medidas do nosso saber e do nosso poder” (Larrosa, 2017, p. 254).

Lembrei-me também de um outro texto, de Jacques Rancière, sobre a “palavra muda”, La parole muette (2010). A cena do quarto de Alice e o tempo passado me remetem a uma cena muda, a um registro sem vínculo, sem explicação, des-identificado. Alice não é mais Alice. Talvez Alice nunca tenha sido Alice. Ou, ainda, talvez Alice seja sempre um pouco a mais do que Alice. Ainda que o filósofo francês, como sabemos, esteja a tratar de literatura e do que pensa como regime estético da arte, não deixa de ser curioso que ao resgatar o mito da invenção da escrita em Platão revele uma série de imagens que bem poderíamos aproximar da infância e de uma certa relação com ela: “Seu discurso é aquele de um órfão privado do poder do discurso vivo, isto é, aquele do mestre: a capacidade de ‘defender a si próprio’, de responder quando questionado sobre o que diz e se tornar, assim, uma semente viva que pode dar frutos”. (Rancière, 2005, p. 81 – tradução nossa)

Essa escrita muda, incapaz de se defender a si própria, de responder, tal qual o sentido originário de infantia, nos leva a pensar no papel que nós, leitores da infância, desempenhamos no contato com ela. Assim como o regime estético da arte embaralha a hierarquização no campo das artes, não poderíamos nos perguntar se não é a infância o que possibilita embaralhar certa hierarquização no campo da educação? O privilégio de certos discursos da Psicologia do Desenvolvimento ou mesmo da Pedagogia, como fala Larrosa (2017), de uma compreensão da infância como “estado psicossomático que não seria senão o momento específico e cronologicamente o primeiro de um desenvolvimento que a psicologia infantil poderia descrever e a Pedagogia, dirigir” (Larrosa, 2017, p. 235) não revela justamente uma tentativa de hierarquização dos saberes sobre as crianças, tal qual fazia o regime representativo no campo das artes? Não seriam os diferentes saberes sobre as crianças espécies de gêneros literários para os quais cabem suas regras e legislações específicas, tais como a poética aristotélica estabeleceu no campo das artes? O que vale para a comédia, não vale à tragédia. O que cabe à filosofia não cabe às ciências, e assim por diante. Não poderíamos pensar de forma semelhante no campo da educação, em que certo regime representativo da infância estabelece o que lhe cabe e o que não lhe cabe, o que lhe é próprio e o que não lhe é, segundo cada discurso específico?

Lembremos, também, que até o século XVIII, a infância, tal qual as imagens miméticas antigas, se encontrava misturada, misturada ao universo adulto do trabalho, das diversões, das festas e cerimônias e, portanto, não regulada (Schérer, 2009). E, nesse sentido, não poderíamos nos perguntar agora, a partir de uma outra palavra da infância, de uma certa “filosofia da infância”, se não é a própria infância que nos libera de suas amarras discursivas, ao ser essa “palavra muda”, democrática, que “não estando guiada por um pai que a carrega, segundo um protocolo legítimo, para um lugar onde possa frutificar […] sai ao acaso, à direita e à esquerda” (Rancière, 1998, p. 81 – tradução nossa). Poderíamos mesmo nos perguntar se essa letra escrita, como a cena infantil do quarto de Alice, em seu modo próprio de visibilidade e disponibilidade, não é o que justamente “borra toda relação de pertencimento legítimo do discurso à instância que o enuncia, àquele que lhe deve receber e aos modos segundo os quais ele deve ser recebido” (Rancière, 1998, p. 81 – tradução nossa).

O que dizem essas peças de Lego dispostas? Dizem de Alice? Dizem a quem? Dizem, de fato? Sua “brincadeira” fala? Sua infância fala a mim, seu Pai? Há um modo próprio segundo o qual o que ela “enuncia” deve ser interpretado? Certamente há várias possibilidades de responder a essa cena muda. Há sempre uma segunda palavra à disposição, uma palavra explicadora que, tal qual O mestre ignorante (2005) nos revela, talvez só sirva para determinar o início e o fim de uma palavra primeira, sabedora, portanto, do seu poder, delimitadora das bordas desde onde a ignorância possa ser solucionada e o “ignorante” contido. Não à toa, também, Rancière chame a atenção para a palavra muda em seu Inconsciente estético (2009) para pensar, por exemplo, o discurso psicanalítico. Buscamos, contudo, um outro caminho.

Larrosa nos chama a atenção para o fato de que a infância nos exige sempre um certo modo de resposta e de recebimento. A essência da educação de que fala Arendt (1979), isto é, o fato de que novos sempre chegam ao mundo nos coloca sempre em face de que “a educação é o modo como as pessoas, as instituições e as sociedades respondem à chegada daqueles que nascem” (Larrosa, 2017, p. 234). Mas como se responde à infância? Podemos responder à maneira moderna, ao modo como tradicionalmente a escola tratou e trata a infância, como “a matéria-prima para a realização de nossos projetos sobre o mundo, de nossas previsões, nossos desejos e nossas expectativas sobre o mundo” (Larrosa, 2017, p. 235), como se soubéssemos que mundo é esse para o qual devemos caminhar e conhecêssemos antecipadamente como se dá o processo de individuação desses sujeitos pequenos em face de sua socialização. É uma resposta possível. Funciona. Aí estão milhares de escolas a fazer esse trabalho. Essa perspectiva, contudo, se ancora no que Rancière (2004) costuma chamar de uma certa teologia do tempo, a crença numa certa interpretação do tempo que define a modernidade como votada à realização de uma necessidade interna, um tempo cindido em dois por um acontecimento fundador e um acontecimento a vir. Não à toa nossas sociedades pedagogizadas continuem a reservar à infância o papel quase mágico de realização das promessas modernas de progresso. A única diferença, talvez, resida no fato de que a esperança desse mundo cindido em dois, antes gloriosa no projeto da escolarização moderna, se revele cada vez mais em uma face aparentemente desastrosa.

Mas essa maneira de tratar a infância, como bem afirma Larrosa, “não é receber os que nascem em sua alteridade” (Larrosa, 2017, p. 235), mas tão somente “tomá-los como uma expressão de nós mesmos: do que nós somos ou do que nós quiséssemos ser” (Larrosa, 2017, p. 235). Restaríamos numa relação de apropriação ou de mero reconhecimento da infância. Responder e receber o outro, em um sentido mais radical, ontológico, é “abrir-se à interpelação de uma chamada e aceitar uma responsabilidade” (Larrosa, 2017, p. 235). À maneira heideggeriana, receber é também “criar um lugar: abrir um espaço em que aquele que vem possa habitar” (Larrosa, 2017, p. 235). Frente a palavra muda da infância, assim como frente a palavra muda da literatura, há um chamado à resposta, um convite a recebê-la, a fazer sala, a arrastar os móveis antigos das palavras gastas e abrir espaço para ouvi-la. Ouvir o chamado de seu ser, talvez pudéssemos continuar, em uma certa perspectiva fenomenológica.

Não à toa Larrosa relembra, a partir de Maria Zambrano, que o nascimento, essência da educação, não opera uma passagem “do possível ao real, mas do impossível ao verdadeiro” (Larrosa, 2017, p. 240), com o que a infância abre uma nova forma de se compreender a relação com a verdade. Não mais a verdade que se diz sobre a infância ou sobre qualquer outro “que não fala”, a natureza por excelência, mas “no que ela diz no próprio acontecimento de sua aparição entre nós, como algo novo” (Larrosa, 2017, p. 243). Não a verdade como representação, mas como alétheia, como “instauração do real no próprio acontecimento de sua aparição” (Larrosa, 2017, p. 243). Contudo, para chegarmos a essa verdade que cada nascimento traz ao mundo é preciso algo caro à educação contemporânea, aos seus paradigmas globalizantes atuais: desaprender, “é preciso desaprender, primeiro, todas as verdades positivas que a ocultam” (Larrosa, 2017, p. 243).

É preciso, portanto, em certa medida, calar, emudecer. Desaprender sobre a infância, sobre seus discursos, teorias. É preciso desaprender sobre Alice. É preciso tomar a palavra da infância como muda. O que diz a letra muda de um romance? Muitas coisas, diversas certamente. Não-unívocas, intransitivas. O que diz a palavra muda do quarto de Alice? Como Pai, adulto, poderia ter construído, tal qual um Lego, peça por peça, um discurso sobre os cenários de Alice, sobre suas histórias, inferindo, perguntando. Construir um discurso arbóreo. Não o fiz. Não porque me faltasse curiosidade ou porque o meu pensamento não povoasse de significados aquelas cores e espaços vazios. Não o fiz porque me satisfiz com aquelas cenas mudas, com os espaços que cada aparição me permitia ver e, também, não ver. Com os intervalos. Com os silêncios. E, é verdade, o tempo passou. O tempo cronológico passou demasiado depressa por nós. Alice não sabe de meu olhar sobre os seus registros. Eu não sei daquela Alice. Pergunto-me inclusive o que sei, de fato, de Alice. Tenho desaprendido muito para poder aprender com ela. Dado tempo. Pausas, tempo a lê-la. E entre tantos não-saberes restou um certo enigma daquela infância, muito antes do encontro com o texto de Larrosa.

DA PALAVRA MUDA À PALAVRA EXPLICADA: A QUESTÃO PEDAGÓGICA DA INFÂNCIA

Há, contudo, muitas formas de regular essa palavra que fala “à sua maneira muda, a não importa quem” (Rancière, 1998, p. 81-82 – tradução nossa). Platão já se fizera essa pergunta no Fedro, opondo a essa palavra muda e bárbara, a palavra em ato que, como caracteriza Rancière, “é uma palavra guiada por uma significação a transmitir e um efeito a garantir” (Rancière, 1998, p. 34 – tradução nossa). Tal compreensão da infância nos leva, assim, diretamente à questão do mestre, “que sabe a cada vez explicitar sua palavra e reservá-la, escondê-la do profano e depositá-la como uma semente na alma desses na qual ela pode frutificar” (Rancière, 1998, p. 34 – tradução nossa). Esse desdobramento da palavra, que Platão inaugura, é o que serve de guia para compreendermos a primazia da explicação como paradigma de toda educação, pois para que o aluno compreenda, para que a criança saiba, será sempre preciso, a partir de então, “que alguém lhe tenha dado uma explicação, que a palavra do mestre tenha rompido o mutismo da matéria ensinada” (Rancière, 2005, p. 21 – grifo nosso). Mas, por que motivo seria o mutismo da matéria um problema? Ou, como diz Rancière: por que teria o livro necessidade de tal assistência? (Rancière, 2005, p. 21). Por que uma palavra segunda?

Aqui a questão pedagógica, do que poderíamos caracterizar tão pedagogicamente como “didática”, toca novamente a questão política. O que o mestre ignorante nos revela é que “antes de ser o ato do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e bobos” (Rancière, 2005, p. 23-24). A interrupção do mutismo da palavra se torna, assim, a expressão de uma hierarquização e de um domínio de um tipo de palavra sobre outra. Contudo, paradoxalmente, não se trata do domínio da palavra oral sobre a escrita, com o que não entenderíamos o escritor Platão e o domínio letrado das ciências desde então. A palavra oral é, como bem demonstra Rancière, a primeira aprendizagem da criança, seu primeiro domínio. O que o mestre explicador inaugura é outra coisa: “trata-se de compreender – e essa simples palavra encobre todo um véu: compreender é o que a criança não pode fazer sem as explicações fornecidas, em certa ordem progressiva, por um mestre” (Rancière, 2005, p. 23). O domínio não é propriamente de um tipo de palavra, mas de um modo de circulação da palavra, de um ordenamento do modo como a palavra é vista e reconhecida, julgada. Em uma palavra é a arte da distância.

O que falta à palavra muda e que Platão sabiamente inaugura é um desdobramento que lhe faz distância, a distância entre o traço e sua interpretação, entre o signo e sua compreensão: “a escrita traça sempre mais que os signos que ela alinha, ela traça ao mesmo tempo uma certa relação dos corpos às suas almas, dos corpos entre eles e da comunidade à sua alma” (Rancière, 1998, p. 82 – tradução nossa). O que Platão percebe é que a errância dessa palavra escrita, orfã, pode ser assistida, regrada. Um assistencialismo da palavra, muito antes de um assistencialismo das crianças. À má mimesis Platão opõe uma boa mimesis, como sabemos. O regime ético das imagens purifica essa palavra errática ao dividir o mundo em dois, ao desdobrar essa palavra em signo e significado, ao permitir, assim, o surgimento da ciência e a figura do mestre explicador: aquele que conhece as distâncias. Sabe reconhecer “a distância entre a matéria ensinada e o sujeito a instruir, a distância, também, entre aprender e compreender. O explicador é aquele que impõe e abole a distância, que a desdobra e que a reabsorve no seio de sua palavra” (Rancière, 2005, p. 22). Senhor e juiz, o único capaz de deter a regressão ao infinito que a lógica da explicação comporta. A figura do mestre, do mestre explicador, é, assim, início e fim da aprendizagem.

A PALAVRA MUDA COMO O “POEMA DE PEDRA”: OS LEGOS DE ALICE

Como a catedral, o romance novo não se deixa comparar a nada de exterior a si, não reenvia a nenhum sistema de conveniência representativa com um sujeito. Ele edifica, na matéria das palavras, um monumento em que é preciso somente apreciar a amplitude das proporções e a profusão de figuras. A metáfora arquitetural pode se traduzir em metáfora linguística para exprimir que a obra é, antes de mais nada, a efetuação de uma potência singular de criação ( Rancière, 1998, p. 33 – tradução nossa)

Voltemos, agora, ao quarto de Alice. O que nos dizem suas peças de Lego espalhadas em determinada ordem? O que fala a palavra muda disposta segundo certas proporções e figuras, como a catedral do poema de Victor Hugo? Essa metáfora arquitetural também não nos mostra que toda infância é “uma potência singular de criação”? Falam, contudo, de Alice? O que nos dizem os nomes “próprios”? Que propriedade é essa que se “conserva” da passagem da in-fante Alice para a falante Alice? Um mesmo sujeito? Uma mesma personalidade? Um mesmo corpo? É a passagem dessa letra muda feito corpo, feito peça, uma literatura de Alice? Uma certa passagem da potência ao ato de Alice? Um certo desenvolvimento, biológico, físico, cognitivo? Não seria a inscrição de Alice como um nome muito mais a “proposição de um modo de encenar o discurso sem que se tenha sido chamado a fazê-lo” (Chaves, 2021, p. 201)? Claro que Rancière está operando em um nível do debate político do uso da palavra democrática, na operação dos dissensos entre a lógica policial e a lógica igualitária. Mas não poderíamos nos perguntar em que medida a destinação de um corpo ao seu lugar social esperado não está também sempre em operação em Alice, em cada um de nós como “nome próprio”? Como pensar a palavra muda que o nome Alice traz, que a in-fância de Alice traz, isto é, como uma reivindicação sensível de uma letra não destinada à Alice, à sua infância, “própria”? Ou, como dizia Rancière em La parole muette (1998), uma palavra que não reenvia a nenhum sistema de conveniência representativa com um sujeito?

Uma objeção possível talvez identificasse que não há propriamente um uso da palavra em Alice capaz de perturbar a relação ordenada entre a ordem do discurso e a ordem das relações sociais. O mesmo, contudo, não poderia ser dito de infância (Vicenzi, 2010). Des-identificar a infância de seu lugar social destinado é, assim, problematizar os seus usos habituais, conhecidos, aprendidos. O debate a partir de Jacques Rancière e Jorge Larrosa nos permitiria, assim, pensar em des-apropriar a infância, destituí-la de uma certa “propriedade”, des-possuí-la, deixar de tratar a infância como “posse”. Como pai de Alice, isto é, como Pai, implica também em ressignificar a relação que travamos com esse novo que chega. Não mais as nossas projeções e desejos sobre a geração que vem, ainda que eles forçosamente ali estarão, como toda lógica policial. Também as projeções “políticas”, das esperanças depositadas sobre aqueles que herdarão um “mundo”, estarão aqui presentes. Porém, essa paternalidade sobre a infância e sobre o mundo não mais se identifica com o seu total governo, com uma certa crença moderna do poder que se exerce sobre a infância e sobre o mundo, numa visão colonial.

Uma nova política da infância se abre ao pensarmos que a infância nunca é um simples nome definido, claramente identificável. Assim como “democracia” ou como “proletário”, nomes surgidos dos seus acusadores, como nos lembra Rancière, mas reafirmados politicamente como nomes políticos dissensuais, não seria o caso de nos perguntarmos se o mesmo não acontece com “infância”? Não foi ela “inventada” por seus acusadores? As crianças não se autointitulam “crianças” (Vicenzi, 2010). E mesmo os “nomes próprios”, Alice, Letícia, Paulo, não seriam esses nomes também nomes não próprios na origem, sempre prontos a seres reafirmados como inscrições novas no sensível? Ou, dito de outro modo, não poderíamos pensar contemporaneamente que toda vida não deixa de ser uma afirmação política, isto é, um confronto entre uma lógica de destinação social que nos pensa e uma lógica de afirmação da igualdade daquela vida com qualquer outra? Como me chamo, como me permito ser “chamado”, como afirmo um nome, “próprio”, “social”, já não é isso, também, ao menos contemporaneamente, uma afirmação política?

Para além de querer responder a essas perguntas rapidamente, penso que vale, a partir da educação, pensar que novas perspectivas se abrem quando a infância é pensada como um nome político. Que desafios à Educação Infantil essa nova política da infância coloca? Que desafios à prática pedagógica com crianças aparecem quando não mais Alice é esperada ser Alice? Quando se espera que Alice venha a ser sempre “um a mais” do que Alice, uma parte não contada da “própria” Alice? Como trabalhar com essa “contagem dos sem-parte” ao trabalhar com a infância? Ou simplesmente, como trabalhar democraticamente com a infância, em sentido ranciereano?

Para tentar dar conta, minimamente, dos deslocamentos que essas perguntas nos provocam vale voltar um pouco ao texto de Larrosa.

Talvez a pior tentação a que sucumbiu a Pedagogia tenha sido aquela que lhe oferecia ser a dona do futuro e a construtora do mundo. Porque, para fabricar o futuro e constituir o mundo, a Pedagogia tinha de dominar primeiro tecnicamente (pelo saber e pelo poder) as crianças que encarnavam o futuro por vir e o mundo por fabricar. Frente a insaciável avidez de saber, de prever e de controlar, frente a azáfama constante dos que dizem saber o que são as crianças e o que se tem de fazer com elas, frente a agitação dos que pretendem fazer o futuro e construir o mundo, frente a mobilização dos que tentam produzir o real a partir do impossível, talvez só nos reste a difícil aprendizagem de nos colocarmos à escuta da verdade que os que nascem trazem consigo. Mas isso exige a renúncia a toda vontade de saber e de poder, a toda vontade de domínio. Só na espera tranquila do que não sabemos e na acolhida serena do que não temos, podemos habitar na proximidade da presença enigmática da infância e podemos nos deixar transformar pela verdade que cada nascimento traz consigo (Larrosa, 2017, p. 244-245).

A questão, contudo, que surge no confronto dessa posição foucaultiana de Larrosa com a perspectiva inaugurada por Rancière é que a renúncia a toda vontade de poder e de saber, a toda uma lógica policial, não passa por um refúgio, conceitual, idílico, por vezes romântico, dessa esfera. A infância, como nome político, surge no confronto a essa lógica da Pedagogia, a essa lógica pedagógica. Não há propriamente política da infância sem domínio da infância, sem polícia da infância. Penso que essa é também a posição mais atual de Larrosa, haja vista seus textos mais recentes em que dialoga com Masschelein e Simons (Larrosa, 2018), leitores de Rancière. Aqui também poderíamos mobilizar o conceito de “povo criança” (peuple enfant) de Alain que “se reencontra ali [na escola] em sua unidade; e trata-se mais de uma cerimônia que de um aprendizado” (ALAIN, 2007, p. 37-38 – tradução nossa) e na aparente contradição que Gallo (2018) enxerga de pensar de que, com isso “há aqui nesta tentativa de abertura ao infantil um fechamento” (GALLO, 2018, p. 208). O que está em jogo, creio, na tentativa de Alain, assim como na reivindicação de Masschelein (2014) da escola como skholè, não é apresentar um lugar de resolução da contradição infância/governo, mas justamente chamar a atenção para o fato de que a escola como separação, como forma, nos dizeres de Rancière (1988), pode servir não só às legitimações e naturalizações, na sua reiterada crise, mas também à igualdade, a uma comunidade de iguais.

Nesse sentido, mais do que um binarismo, um dualismo perigoso a que estamos sempre perigosamente lançados, mesmo no par polícia/política de Rancière, cabe pensar numa relação imagética com a infância. Como diz Larrosa “não seria uma imagem da infância, mas uma imagem a partir do encontro com a infância” (Larrosa, 2017, p. 245). Pensando na imagem do quarto de Alice, nessa cena muda, pensar que “uma imagem do outro é uma contradição” (Larrosa, 2017, p. 245). A imagem do quarto de Alice é e não é sobre o quarto de Alice. O encontro com a infância se revela assim “um cara a cara com o enigma, uma verdadeira experiência, um encontro com o estranho, com o desconhecido, o qual não pode ser reconhecido nem apropriado (Larrosa, 2017, p. 245). Ainda que tivesse nomeado aquelas cenas mudas, ainda que lhe tivesse perguntado, aquelas imagens falam e não falam.

PALAVRA MUDA-TAGARELA: INFÂNCIA, LITERATURA E DEMOCRACIA

O enigma da infância, de que fala Larrosa, nos lança, assim, diante de uma escuta da infância. O quarto de Alice, contudo, ainda hoje fala. Fala para além da cena. Fala para além do tempo. Há algo na fala da infância que permanece. Para além da in-fante. Não uma permanência identitária, mas uma palavra muda. Se há algum sentido em sustentarmos uma aproximação da infância e da palavra muda, isso implica, também, pensarmos em como lidar com a imagem produzida a partir do encontro com o outro, com a alteridade, da palavra e do corpo. Das visibilidades e invisibilidades. Das possibilidades de sua sempre presente reivindicação. A palavra muda é, também, a palavra democrática, a palavra que circula sem donos, sem referente “próprio”. A palavra que está sempre ali, inscrita, expressa, pronta para ser tomada. É a palavra “burguesa” de operários. É a palavra “legal” de ilegais. É a palavra “adulta” das crianças. Sempre as palavras outras tornadas nossas, reutilizadas, reinventadas, recolocadas em cena, nas cenas de litígio, nas cenas previstas, “contadas”. Há, contudo, sempre a possibilidade de recontar.

A ficção é a maneira na qual o homem criança, o homem ainda mudo, concebe o mundo à sua semelhança: ele vê o céu e designa um Júpiter que fala, como ele, uma linguagem de gestos, que diz sua vontade e a executa ao mesmo tempo pelos signos do trovão e do relâmpago” (Rancière, 1998, p. 38 – tradução e grifo nosso)

Essa possibilidade de criação, de ficcionar a realidade é o que permite à palavra, tagarelar. Uma palavra muda-tagarela. Nesse sentido, Rancière sublinha que “a escrita pode ser a palavra orfã de todo corpo que a conduz e a atesta, ela pode ser, ao inverso, o hieróglifo que carrega sua ideia sobre seu corpo” (Rancière, 1998, p. 14 – tradução nossa). Contudo, há formas de se entender esses hieróglifos, formas diferentes de compreender essa “escrita” como poema de pedra, como peça de Lego. Não são, se seguirmos Rancière, “signos enigmáticos, depositários de uma sabedoria escondida, sobre os quais tanto de interpretações e de devaneios são construídos […] são os instrumentos e os emblemas, as instituições e os monumentos da vida comum.” (Rancière, 1998, p. 39 – tradução nossa). Não há uma verdade última a se revelar, um sentido escondido à espera de mentes brilhantes, explicadoras. Há simplesmente a manifestação do mundo, a manifestação da vida comum.

Se a linguagem não tem por função representar as ideias, situações, objetos ou personagens segundo as normas de semelhança é porque ela apresenta já, sobre seu próprio corpo, a fisionomia disso que diz. Ela não se assemelha às coisas como cópia porque ela porta sua semelhança como memória. Não é um instrumento de comunicação porque é já o espelho de uma comunidade. A linguagem é feita de materialidades que são as materializações de seu próprio espírito, desse espírito que deve se tornar mundo. E esse futuro é ele mesmo atestado pela maneira em que toda realidade física é suscetível de se duplicar, de mostrar sobre seu corpo sua natureza, sua história, sua destinação ( Rancière, 1998, p. 44 – tradução nossa).

Uma duplicidade da palavra que a torna sempre possível de uma reivindicação outra, de novos começos, uma palavra sempre infante, sempre disposta a novos nascimentos. É aqui que a palavra muda, poética, encontra a infância: “À teoria de um duplo fundo da linguagem poética, ele [Vico] opõe uma tese radical: a poesia não é mais que uma linguagem de infância, a linguagem de uma humanidade que passa, pela imagem-gesto, e pela surdez do canto, do silêncio original à palavra articulada” (Rancière, 1998, p. 39 – tradução e grifo nosso). A palavra ‘muda’ da poesia revela assim, em sua forma, uma humanidade que toma consciência de si, não por seu caráter alegórico, mas por sua expressividade, pelo que diz, pelo que tagarela, mais pelo que diz do que pelo que não diz. Não pelo espaço recôndito de uma interpretação, mas pela visibilidade daquilo que exprime através de si. É uma criança brincando, talvez pudéssemos mesmo resumir. É expressão, experiência. Ou, como diz Rancière: “Essa passagem de um regime de encadeamento causal a um regime de expressividade pode ser resumida na frase aparentemente anódina de Novalis: ‘A criança é um amor tornado visível’, que pode se generalizar assim: o efeito de uma causa é o signo que torna visível a potência de sua causa.” (Rancière, 1998, 40-41 – tradução e grifo nosso). O signo como visibilidade, como presença, o modo como uma verdade “se antecipa em obras mudas-falantes, em obras que falam enquanto imagens, enquanto pedra, enquanto matéria resistente à significação que ela emite” (Rancière, 1998, p. 40). Legos-falantes, monumentos de uma vida de infância, de uma vida comum.

Toda pedra pode ser linguagem: o anjo esculpido, de que nos fala Hugo, que une a marca de seu operário à potência do Verbo evocado e à potência da fé coletiva […] Essa potência da linguagem imanente a todo objeto pode ser interpretada à maneira mística, como os jovens filósofos e poetas alemães que repetem infinitamente à frase kantiana sobre a natureza como ‘poema escrito numa língua cifrada’ […] Mas pode também ser racionalizada, testemunhando que as coisas mudas carregam a atividade dos homens. ( Rancière, 1998, p. 41 – tradução nossa)

Legos cifrados de uma infância ou legos testemunhos da atividade de uma criança, de crianças? Uma “casa”, um “animal”, uma “criatura fantástica” a unir a mão de uma criança à potência da Natureza e à potência da vida infantil? Testemunhos da atividade de homens, de mulheres, de meninas? A “escolha”, contudo, do modo pelo qual interpretamos, racionalizamos, essa cena muda, nessa aproximação entre literatura e brincadeira, nos fala de uma certa maneira de ordenarmos os corpos e uma comunidade, em uma partilha do sensível, nos fala de governo, de educação, nos fala de política. O que a palavra muda do livro, do romance, traz, na visão ranciereana, é a possibilidade de uma palavra democrática perturbar “a ordem que destina os homens de ferramentas às obras governadas pela ferramenta e os homens de pensamento às vigílias do pensamento” (Chaves, 2021, p. 204). A possibilidade da palavra muda encontrar, assim, aquele(a) à qual não estava destinada segundo a ordem hierárquica das raças que, ao menos desde a República platônica, governa o modo como compreendemos o espaço das letras e da política, é o que torna perigosa a interpretação imanente do poema de pedra. Ao pensarmos a infância talvez caberia aqui se perguntar se não é semelhante processo a operar no governamento das crianças, no perigo de uma interpretação da infância que não a veja como “inferioridade”, como uma espécie de “raça menor”. Que crime é esse, portanto, da palavra muda que “demasiado tagarela, morta e letal, que, quando fala àqueles aos quais não convém falar, desvia de seu destino as almas da raça de ferro (Chaves, 2021, p. 204-205)”? Que desvio os Legos de Alice provocam? Provocam a quem? A um discurso da infância?

Um caminho aberto, portanto, pela palavra muda, ao pensarmos a infância, seria justamente problematizar a ordem dos discursos pedagógicos sobre a infância e a ordem das condições sociais a que crianças estão submetidas a partir desses dispositivos discursivos. Em suma, a organização dos tempos de desenvolvimento e maturação dos corpos e as suas manifestações e expressões enquanto vida. Por mais governo que possamos proporcionar à infância, há sempre novas possibilidades de tradução, de corporificações que os novos sempre trazem. Há sempre uma parte enigmática da infância, para retornarmos a Larrosa, sempre uma parte ingovernável que nos escapa. Uma parte democrática? Uma parte dos sem-parte? Uma parte incontada sempre passível de pedir por sua contagem? Talvez.

Isso nos leva a pensar se uma cena semelhante como a do deputado Menênio Agripa se dirigindo aos plebeus para demonstrar que não possuíam lógos não está também presente em muitas das interações pedagógicas que travamos com as crianças. Ou seja, não serão muitas dessas interações um modo de nós, adultos, lhes demonstrarmos que “ainda não são” ou que “ainda não sabem” o reconhecimento delas como seres dotados de palavra? Não há, também, ao inverso, nas interações pedagógicas movimentos de “retirada”, de uma espécie de “secessão” das crianças para outros “lugares”, da sala, do pátio, ou mesmo para fora da escola? Não seriam essas demonstrações, em alguma medida, políticas? Ao pressupô-las, assim, seres de compreensão ainda que “limitada”, não estamos caindo na mesma espécie de ilusão/confusão dos sentidos que o senador Ápio Cláudio censura ao deputado Menênio Agripa na “alegórica” cena de Rancière?

Foi um deus quem fechou a boca de Menênio, quem ofuscou seu olhar, quem fez zumbir seus ouvidos? Será que foi tomado de uma vertigem sagrada? (Ballanche, 1829, p. 93-94 – tradução nossa).

Poderíamos, assim, nos perguntar se aquilo que nos permite não reconhecer a infância como um nome político não se deve apenas ao fato de sermos nós, adultos, os responsáveis pelo estabelecimento e manutenção dessa estrutura de dominação. A mesma dúvida poderíamos levantar ao pensarmos na relação que estabelecemos com outras esferas da vida comum, como na relação com os animais ou com a própria natureza (Vicenzi, 2017). Ou seja, em que medida não é apenas o fato de não possuirmos um lógos comum, com animais e outras espécies, o que nos permite pensar que ali não há “nada”, ou que há “menos”, espécies de “tábulas rasas” sobre as quais podemos imprimir toda sorte de dominação? A partir de outras cosmovisões, como as ameríndias ou afrocentradas, que o pensamento decolonial contemporâneo nos coloca em perspectiva, tais dúvidas não parecem por completo absurdas.

Claro que há aqui um problema: em que medida é possível falarmos de política sem que haja um lógos comum, uma política para além dos “iguais”? Não se supera o problema da dominação, sobre a infância, sobre a natureza, sobre qualquer outro, pelo simples estabelecimento de um discurso que o leve em consideração. Não basta “incluir”. São precisos atos de palavra, atos que reconfigurem o que é possível de ser dito, visto, pensado, o que Rancière chama de partilhas do sensível, que “partem” e, ao mesmo tempo, “repartem” um mesmo comum. Mas, que comum temos com a infância? Que comum temos com os animais? Com a natureza? No exemplo romano, a mimetização é simples de ser resolvida:

Se a linguagem não tem por função representar as ideias, situações, objetos ou personagens segundo as normas de semelhança é porque ela apresenta já, sobre seu próprio corpo, a fisionomia disso que diz. Ela não se assemelha às coisas como cópia porque ela porta sua semelhança como memória. Não é um instrumento de comunicação porque é já o espelho de uma comunidade. A linguagem é feita de materialidades que são as materializações de seu próprio espírito, desse espírito que deve se tornar mundo. E esse futuro é ele mesmo atestado pela maneira em que toda realidade física é suscetível de se duplicar, de mostrar sobre seu corpo sua natureza, sua história, sua destinação (Rancière, 1998, p. 44 – tradução nossa).

Caberia, então, à infância uma série de mimetização dos atos de palavra dos adultos para poderem ser reconhecidas como “iguais”. Não são, todavia, as suas representações, o seu faz-de-conta, prova dessa mimetização? Aqui há uma diferença importante entre o fato da pressuposição de igualdade, que as intervenções pedagógicas revelam, e o que Rancière chama de uma cena de manifestação dessa igualdade.

Toda pedra pode ser linguagem: o anjo esculpido, de que nos fala Hugo, que une a marca de seu operário à potência do Verbo evocado e à potência da fé coletiva […] Essa potência da linguagem imanente a todo objeto pode ser interpretada à maneira mística, como os jovens filósofos e poetas alemães que repetem infinitamente à frase kantiana sobre a natureza como ‘poema escrito numa língua cifrada’ […] Mas pode também ser racionalizada, testemunhando que as coisas mudas carregam a atividade dos homens. (Rancière, 1998, p. 41 – tradução nossa)

Quando explicamos, contudo, às crianças por que essas devem ir à escola, se submeter a tais e tais disciplinas, a permanecerem em tal e qual posição não estamos, de algum modo, pressupondo-as como iguais? Ou, de forma, talvez, mais precisa, não são as justificativas pedagógicas, ao longo da história da educação, manifestações da pressuposição dessa igualdade? Ao darmos a compreender uma divisão desigualitária do sensível não estamos pressupondo que podem compreender e, portanto, que são iguais em inteligência? Nesse sentido, não é a Pedagogia, ou, ao menos, grande parte dela, um desenvolvimento de uma cena de manifestação específica da igualdade frente a infância? Ou, dito de outro modo, não é a reunião de seres infantis em espaços de educabilidade, formais, já uma cena, uma cena de uma certa partilha possível do sensível? Não é cada sala de aula a manifestação de cenas políticas da infância?

A CENA MUDA E SEUS BARULHOS... INFANTIS

Voltemos à cena muda do quarto de Alice, aos Legos dispostos sobre a bancada. Se nos mantermos fiel a essa metodologia por cenas de que fala Rancière, talvez caiba aqui, nessa parte final, pensarmos naquilo que uma cena embaralha, naquilo que a cena muda do quarto de Alice duplica, naquilo que essa cena muda barulha.

Em certa medida, é o método dos '‘ignorantes’', o inverso do método que se dá, em primeiro lugar, um conjunto de determinações gerais que funcionam como causas e ilustra seus efeitos através de um certo número de casos concretos. Na cena, as condições são imanentes à sua efetuação. O que quer dizer também que a cena, tal como a concebo, é fundamentalmente anti-hierárquica (Rancière, 2012, p. 122-123 – tradução nossa).

Aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto, como o “método Jacotot” ensinara. De certa forma, é isso que temos tentado fazer nesse artigo ao colocar em cena o quarto de Alice e seus Legos. Se seguimos essa “metodologia” ranciereana de “escolher uma singularidade, cujas condições de possibilidade se pretendem reconstruir a partir de uma exploração de todas as redes de significações que se tecem ao redor dela” (Rancière, 2012, p. 122), é para explorar o que uma cena pode ao violentar o olhar. Uma violência infantil, uma violência da infância. Uma politicidade infantil, também, frente as percepções da infância. Uma insurreição da possibilidade de ser outro, de ser duplo, de ser Alice e não Alice.

Esse artigo, ao recolocar em cena uma cena “passada”, uma letra muda, como um romance na estante, não deixa, também, de buscar na sua imanência barulhar o modo como uma brincadeira infantil, os Legos de Alice nos falam, como aparecem, como aparecem para um certo pensamento educacional. Se buscamos um deslocamento do conceito de palavra muda de Rancière do universo da literatura para o campo da infância e da educação foi na intenção de tentar pensar em que sentido esse conceito pode mobilizar uma posição anti-hierárquica nos discursos pedagógicos, em que sentido a cena do quarto de Alice nos permite novos pensares. Não nos parece possível, tampouco potente, buscarmos uma segunda palavra, explicadora, “definitiva”. O que se busca aqui, nos limites do pensável e do dizível a que se presta um artigo, é tentar discutir uma aproximação dos regimes de identificação das artes e do que temos tentado pensar como regimes de identificação da infância. Se faz sentido novos pensares, se faz sentido continuarmos a nos encontrar com a infância, não só com a de Alice que, em certa medida, já se vai, mas com todas as novas, que sempre vêm, como nos lembra Arendt (1979), é para podermos ouvir isso que o novo embaralha, barulha, aquilo que sempre escapa às nossas medidas de saber e de poder.

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