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Pedagogias Amefricanas: as metamorfoses educacionais de Lélia González
Amefricanas pedagogies: Lélia Gonzalez’s contributions to brazilian educational thought
Pedagogias amefricanas: las metamorfosis educativas de Lélia Gonzalez
Pedagogias Amefricanas: as metamorfoses educacionais de Lélia González
Reflexão e Ação, vol. 32, núm. 1, pp. 82-97, 2024
Universidade de Santa Cruz do Sul
Recepción: 03 Abril 2022
Aprobación: 14 Mayo 2024
Resumo: Este artigo apresenta algumas contribuições da intelectual brasileira Lélia Gonzalez para o pensamento educacional brasileiro. Apontamos as transformações que o arcabouço teórico gonzaleano experimentou durante a sua jornada intelectual e política, partindo da década de 1970 e iniciando com a perspectiva marxista, posteriormente chegando aos paradigmas psicanalíticos, afrocentrados e feministas a partir de uma pesquisa de caráter descritivo e exploratório. Com relação à vertente feminista, não pretendemos dar prioridade à mesma nesse texto, focando as nossas atenções nas teorias anteriores, especialmente a Afrocentricidade, principal alicerce de uma proposta pedagógica amefricana.
Palavras-chave: Lélia Gonzalez, Pedagogias Amefricanas, Educação.
Abstract: This article presents some contributions of the Brazilian intellectual Lélia Gonzalez to Brazilian educational thought. We present the transformations that the Gonzalian theoretical framework experienced during its intellectual and political journey, starting from the 1970s, with the Marxist perspective, later arriving at the psychoanalytic paradigms, afrocentric and feminist based on descriptive and exploratory research . Regarding feminist theory, we do not intend to give priority to it in this text, focusing our attention on previous theories, especially Afrocentricity, the main foundation of an Amefrican pedagogical proposal
Keywords: Lélia Gonzalez, Amefrican Pedagogies, Education.
Resumen: Este artículo presenta algunas contribuciones de la intelectual brasileña Lélia Gonzalez al pensamiento educativo brasileño. Presentamos las transformaciones que experimentó el marco teórico gonzaliano durante su recorrido intelectual y político. A partir de la década de 1970 con la perspectiva marxista, llegando luego a los paradigmas psicoanalíticos, afrocéntrica y feminista basado en una investigación descriptiva y exploratoria . Sobre el aspecto feminista, no pretendemos darle prioridad en este texto, centrando nuestra atención en las teorías anteriores, especialmente afrocentricidad, fundamento principal de una propuesta pedagógica ameafricana.
Palabras clave: Lélia Gonzalez, Pedagogias Ameafricanas, Educación.
INTRODUÇÃO
As trajetórias intelectual e militante de Lélia Gonzalez foram por ela trilhadas com o principal objetivo de combater o racismo estrutural no Brasil. Uma intelectual pública3 incansável, provocativa e criativa, características essas evidentes em sua escrita arrebatadora.
Muitas/os de suas/seus biógrafas/os afirmam com tranquilidade que a autora de “Por um feminismo afro-latino-americano (2011)” foi uma das primeiras intelectuais brasileiras a debater e a escrever sobre o conceito de colonialidade do poder, chegando a anteceder algumas teses lançadas por Quijano (2005).
Sua interpretação da opressão colonial também antecipava ideias que depois seriam formuladas pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano autor do conceito de colonialidade do poder, e desenvolvia-se em termos muito próximos do trabalho de Fanon: tratava-se de desmontar o mito da democracia racial brasileira sustentando que a criação de categorias raciais como indígena, negro e branco é uma exigência do sistema de poder colonial. Para isso, era preciso também enfrentar a construção histórica e naturalizada do negro passivo, obediente, submisso, subalternizado e lutar contra a narrativa de que a libertação dos escravos foi um gesto de bondade da princesa Isabel (Rodrigues, 2020).
Na mesma toada vanguardista, os estudos gonzaleanos foram precursores nos debates sobre as tríplices opressões de classe, de raça e de gênero, hoje conhecidas sob o escopo da interseccionalidade. Seus/suas principais estudiosas/os destacam os “jornais Mulherio e Lampião da Esquina, vinculados respectivamente aos movimentos feminista e homossexual. Em um dos artigos publicados no primeiro periódico referido, ela traz a mesma ideia da tríplice discriminação que atinge as mulheres negras” (Rios; Ratts, 2022, p.10).
No entanto, Lélia Gonzalez esteve por muito tempo em condição de anonimato no seio do circuito acadêmico brasileiro. Um esquecimento que na atualidade está sendo reparado graças a uma vigilância comemorativa por parte das juventudes de vários movimentos negros, de mulheres racializadas e feministas, em meio ao esforço de produzir eventos, documentários, exposições e rodas de conversas sobre a grande Mulher Preta Amefricanizada e afrocentrada da Améfrica Ladina.
Uma das principais hipóteses levantadas pelas/os pesquisadoras/es da obra da intelectual para justificar tal ostracismo é o fato de seu legado material não ser tão extenso quanto o patrimônio imaterial gonzaleano. Há registros de dois livros escritos por Lélia Gonzalez: Lugar de Negro (1982), elaborado em coautoria com o sociólogo Carlos Hasenbalg e Festas Populares no Brasil (1987), premiado em Leipzig, na Alemanha; algumas/uns de suas/seus biógrafas/os incluem um terceiro livro, trata-se de um compilado de textos onde a intelectual amefricana assina pela autora de um deles, dedicado a refletir sobre a condição da mulher negra na sociedade brasileira (Rodrigues, 2020).
Os poucos livros escritos não podem ser vistos como um parâmetro para medir a estatura dessa magistral intelectual. Lélia Gonzalez proferiu inúmeras palestras na América do Norte, na África e na Europa, uma boa parte delas gravadas, transcritas e organizadas em livros póstumos como Primavera para as rosas negras (2018) e Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos (2020).
Além de ser uma grande filósofa e historiadora, por ser apaixonada pela arte, também foi uma primorosa menestrel e compositora, prestando até mesmo assessoria para o cineasta Cacá Diegues, diretor do consagrado filme Quilombo. Sua voz ao mesmo tempo ecoou no cenário político brasileiro, assumindo importantes funções no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e candidatando-se duas vezes como deputada.
Tais evidências, para algumas/uns de suas/seus contemporâneas/os e estudiosas/os de seus legados, exigem cautela com relação aos rótulos e seus sectarismos. Embora tenha dado imensuráveis contribuições para o feminismo negro e para as lutas dos movimentos negros, a herança que Lélia nos deixou é muito mais ampla, sendo considerada uma das maiores intérpretes do pensamento social brasileiro. Escreveu uma série de textos espantosamente atuais, além da sua tentativa de impulsionar vertentes transdisciplinares nas ciências sociais (Barreto, 2018).
Assim como Paulo Freire que, segundo estudiosas/os como Scocuglia (2019), construiu um pensamento passível de mudanças a cada nova escrita, a filosofia de Lélia Gonzalez também não escapou das metamorfoses provocadas pelo passar do tempo de acordo com Barreto (2018).
Essa autora, de maneira didática, aponta que podemos estipular três distintos momentos não estanques e que contemplam as mudanças experimentadas pelo pensamento da intelectual: a) uma fase marxista correspondente à década de 1970; b) o momento em que Lélia mergulha na psicanálise e na Afrocentricidade, a partir de 1980; c) uma última etapa dedicada a uma profunda crítica sobre o imperialismo do feminismo ocidental e algumas considerações sobre o mulherismo Afrikana que contemplam as décadas de 1980-90.
Este artigo pretende trilhar uma linha argumentativa gonzaleana que parte de uma ótica marxista, a partir da perspectiva racial, segue problematizando o racismo estrutural no Brasil e deságua no apontamento de caminhos pedagógicos antirracistas a partir do enfoque da Afrocentricidade.
METODOLOGIA
Indo ao encontro do objetivo de divulgar a complexidade do pensamento gonzaleano de modo a não mais enclausurarmos a sua intensa produção intelectual ao texto “Racismo e sexismo na cultura brasileira,” adotamos como caminho metodológico uma investigação de caráter descritivo e exploratório.
Segundo Lima e Mioto (2007), tal escolha é pertinente no cerne de estudos que buscam retirar dos umbrais do pensamento científico propriedades essenciais, autoras/es e debates teóricos que ainda não estão circulando amplamente no circuito acadêmico brasileiro.
Por isso procuramos tracejar uma espécie de “cartografia das teorias gonzaleanas,” mapeando artigos, entrevistas, ensaios, teses e dissertações que se debruçam sobre a temática.
Sobre esse mapeamento, Lima e Mioto refletem que:
não é raro que a pesquisa bibliográfica apareça como revisão de literatura ou revisão bibliográfica. Isso acontece porque falta a compreensão de que a revisão de literatura é apenas um pré-requisito para a realização de toda e qualquer pesquisa, ao passo que a pesquisa bibliográfica implica em um conjunto ordenado de procedimentos de busca por soluções, atento ao objeto de estudo, e que, por isso não pode ser aleatório (Lima e Mioto, 2007, p. 39).
Com o objetivo de negritar a riqueza, as metamorfoses e a heterogeneidade que caracterizam o pensamento-ação de Lélia Gonzalez, consultamos coletâneas como o livro “Primavera para as rosas negras,” um compilado de textos acadêmicos e políticos escritos pela própria antropóloga e resenhas e artigos produzidos por suas/seus principais biógrafas/os e intérpretes.
Buscamos também utilizar como carta náutica dessa “incursão epistêmica” a cronologia que abarca as “Lélias,” que começam em uma perspectiva intensamente marxista para depois experimentar uma simbiose afrocentrada.
O RACISMO NUNCA FOI UM FENÔMENO EFÊMERO NO BRASIL
A atividade intelectual de Lélia Gonzalez na década de 1970, como mencionamos no tópico anterior, é mergulhada nos preceitos marxistas. Absorta na teoria da dependência, assim como outras/os intelectuais do período, a filósofa e historiadora adensava as suas análises em três aspectos: a) uma leitura sobre o desenvolvimento tardio e combinado experimentado pelo Brasil; b) o neocolonialismo proveniente da condição do país enquanto exportador de produtos primários; c) o descarte da mão de obra racializada com o advento do modo de produção capitalista.
Lélia Gonzalez problematiza que o capitalismo manteve o funcionamento de outros modos de produção no Brasil. Esses múltiplos regimes de trabalho, incluindo o assalariado, possuem uma mão de obra racialmente classificada. Isso implica em afirmar que a classe proletária é uma minoria predominantemente branca e que se concentra em grande parte no sul e no sudeste do país, regiões que foram embranquecidas em consequência das políticas governamentais que estimularam a vinda de força de trabalho europeia.
As regiões norte e nordeste, por seu turno, são o principal palco de atuação dos modos de produção pré-capitalistas. A permanência das mesmas é fundamental para alimentar os lucros do capitalismo, além de aglutinarem uma mão de obra predominantemente negra e indígena, conjuntura essa que sinaliza para um evidente colonialismo interno. Gonçalves (2001) cita como exemplo a realidade amazônica, onde prevalecem regimes de trabalho análogos à escravização em meio a atividades como a extração do látex (considerado o ouro branco amazônico), que possibilitou a revolução industrial. Por isso, ao se referir à classe proletária, Lélia enfatiza que “[...] esse operariado brasileiro ainda é uma classe minoritária, porque dentro desse sistema que nós vivemos, nós sabemos que existe uma massa marginal crescente [negra] que nem chegou à categoria de operário [...]” (Gonzalez, [1982] 2018, p. 86).
As análises de historiadoras/es e sociólogas/os como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Fernando Henrique Cardoso sobre a realidade da população brasileira negra limitavam-se ao recorte histórico correspondente ao período pós-abolição, com a exceção de Florestan Fernandes que ampliou suas investigações sociológicas para os anos correspondentes ao advento do capitalismo no país.
No entanto, havia uma unanimidade no âmbito do pensamento social brasileiro a respeito da tese de que a discriminação racial era um indício anacrônico do período da escravização e que à medida que o modo de produção capitalista fosse avançando, as populações negras seriam automaticamente assimiladas à sociedade de classes. Portanto, para intelectuais como Florestan Fernandes, o racismo era um fenômeno efêmero (Gonzalez; Hasenbalg, 1982).
Enquanto a população feminina branca comemorava o seu amplo ingresso no mercado de trabalho, as/os brasileiras/os negra/os e indígenas, sobretudo as mulheres e a juventude, eram alocadas/os aos postos do subemprego, assumindo ofícios desprovidos dos mínimos direitos trabalhistas.
Até mesmo as classes brancas empobrecidas se beneficiam simbolicamente do racismo estrutural. A exigência da boa aparência é unânime nos anúncios de empregos, a qual traduz a exclusão das características fenotípicas não brancas. Como consequência, a classe trabalhadora negra é obrigada a ir para a informalidade. Para as mulheres racializadas, por exemplo, muitas vezes não há alternativa senão ganhar a vida como doméstica e/ou ingressar na prostituição, enquanto a juventude negra masculina, principal alvo da violência policial, corre ainda mais risco de vida com a vulnerabilidade econômica.
Uma forte evidência de que o racismo estrutural é notável na conjuntura brasileira é a própria geografia racializada das grandes megalópoles, onde os condomínios de luxo, a polícia e suas ações genocidas, bem como as periferias correspondem, respectivamente, à casa grande, ao capataz e à senzala de um Brasil do período colonial.
[...] desde a época colonial aos dias de hoje, [...] O lugar natural do grupo branco dominante são moradias amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e evidentemente protegidas por diferentes tipos de policiamento: desde os antigos feitores, capitães do mato, capangas etc, até a polícia formalmente constituída. Desde a casa-grande e do sobrado, aos belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido sempre o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” (cujos modelos são os guetos dos países desenvolvidos) dos dias de hoje, o critério também tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço [grifo nosso] (Gonzales; Hasenbalg, 1982, p. 15).
Além de questionar a falácia do milagre econômico, outro mito, o da democracia racial, era constantemente contestado pelo Movimento Negro Unificado-MNU (movimento social do qual Lélia Gonzalez foi uma das fundadoras). De modo ironicamente perverso, a censura militar utilizava um dos preceitos da Lei de Segurança Nacional referente ao crime por discriminação racial para punir injustamente as manifestações públicas que denunciavam o racismo estrutural.
O segundo momento da produção intelectual de Lélia, em nosso entendimento, não mais se resume a uma análise marxista a partir de uma perspectiva racial, mas também se dedica a aprofundar a lógica do racismo na sociedade brasileira em uma ótica transdisciplinar e que será a discussão do próximo tópico.
A PSICANÁLISE E A AFROCENTRICIDADE AMPLIAM AS ANÁLISES DE LÉLIA GONZALEZ SOBRE O RACISMO ESTRUTURAL
Lélia Gonzalez dialogou com muitos intelectuais marxistas em seus escritos, como Althusser, Lênin e Trotsky, deixando provas evidentes de que não esnobava a dimensão econômica em suas análises sobre a conjuntura brasileira, mas avança ao comprovar a tese de que o modo de produção capitalista depende diretamente do racismo estrutural e da violência sexista para se sustentar, expondo com uma riqueza de detalhes um arsenal de estatísticas robustas que mostram a condição desumana amargamente vivida pela mulher racializada no país. A intelectual amefricana, levada pela luta antirracista, passa a ter contato com a escola de resistência afrocêntrica.
O paradigma afrocentrado possui dois marcos temporais importantes: o primeiro corresponde à década de 1980, período em que Molefi K Asante publica uma série de livros dedicados a sistematizar as ideias afrocentradas. Já o segundo momento histórico é inaugurado com a consagração desse preceito paradigmático nos principais circuitos acadêmicos (Larkin, 2009).
Ainda que esses capítulos estejam em relevo no decurso das narrativas afrocentradas, muito antes desses momentos históricos importantes tal pensamento já estava presente nas experiências diaspóricas da África, América do Norte, Améfrica Ladina e Caribe, principalmente em países como o Haiti, Cuba e Brasil.
A afrocentricidade é uma escola de resistência que tem como grandes irmãs o Pan-africanismo e o movimento negritude. O paradigma afrocentrado dedica-se tanto ao estudo das religiões de matriz e africana e os seus protagonismos políticos no âmbito das lutas anticolonialistas, exemplificando a importância do vodun para a revolução haitiana, quanto à realização de um exercício de investigação das epistemologias e das pedagogias que surgiram na renascença africana, e que foram plagiadas pelas civilizações grego-romanas constituindo o modelo de ciência ocidental que conhecemos.
Em países como Cuba e Brasil, o paradigma afrocentrado se materializou na luta contra o genocídio das populações afro-cubanas e afro-brasileiras, denunciando a falaciosa cordialidade latino-americana reverberada no mito de que no Brasil predomina uma democracia racial e na ideia de uma “cor cubana,” termo em alusão ao suposto respeito às diversidades étnicas e raciais da ilha, mas que na prática não se consolidaram em ambas as nações.
[...] a crítica de Carlos Moore, inclusive sua inédita análise histórica do pensamento marxista, desafiava a presunção de resolver a questão racial por meio exclusivo da luta de classes. A análise de Moore ampliava a linha de pensamento dos dois intelectuais negros cubanos que já advogavam uma orientação independente, o sociólogo Juan René Betancourt Bencomo e o historiador e etnólogo Walterio Carboneli. As obras desses autores, banidos pelo regime cubano durante cinquenta anos, merecem ser revisitadas em estudo mais aprofundado. A repercussão da corajosa denúncia de Carlos Moore lhe custou caro. Ele questionava a ideologia racial de “cor cubana,” tão cara àquela sociedade quanto à da democracia racial ao Brasil. Trata-se de duas expressões da ideologia racial “latina” que esta coautora chamou o “sortilégio de cor.” Nas décadas de 1960 e 1970, tanto a revolução cubana como a ditadura militar direitista do Brasil adotavam essa ideologia como parte de seus respectivos discursos autoelogiosos [...] [grifo nosso] (Finch; Nascimento, 2009, p. 57).
Ainda para as/os autoras/es, Antonio Maceo, que enfrentou a violência racial em Cuba, Maria Firmina, Esperança Garcia, Dandara, Zumbi dos Palmares, Luís Gama, expoentes de movimentos antiescravagistas no Brasil, assim como muitas outras personalidades brasileiras e cubanas emblemáticas na luta contra a ideologia do branqueamento, deixaram epistemologias que foram reelaboradas e fortalecidas por intelectuais como Carlos Moore, conterrâneo de Fidel Castro, Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez a qual, a partir do pano de fundo da afrocentricidade, é responsável por criar uma categoria profundamente original e criativa: a Amefricanidade.
Esse conceito gonzaliano parte da comprovação de que o racismo não é efêmero, mas perversamente estrutural. Assim, a intelectual se dedicou a aprofundar ainda mais as análises sobre o mesmo, partindo do princípio de que a violência racial brasileira é diferente do racismo que impera em países como os Estados Unidos e a África do Sul, ambos atravessados por um doloroso Apartheid racial.
A cruel experiência de segregação racial vivenciada pelas populações negras nesses países ensejou um importante sentido pedagógico para essas comunidades. As crianças norte-americanas e africanas, desde os anos escolares iniciais, eram estimuladas por suas/seus familiares e educadoras/es a maturarem uma consciência racial, resultando em uma geração de notáveis jovens intelectuais negras/os aclamadas/os pelas suas brilhantes análises sobre o racismo e a violência colonial, como Martin Luther King, Du bois e Walter Rodney.
Para compreender o racismo estrutural brasileiro, por sua vez, é preciso negritar o fato de que embora o país não tenha vivido em uma explícita política de segregação racial, é necessário refazer os seus passos históricos, começando pela evidência de que o Brasil sofreu um processo de colonização ibérica.
Os países que estão geograficamente situados na Península Ibérica são Portugal e Espanha e apresentam como um dos principais capítulos de suas histórias as batalhas entre os Mouros e os Cristãos. Embora a narrativa eurocêntrica aponte os interesses religiosos como o motivo mais relevante para a deflagração dos conflitos, oculta dois fatos importantes. O primeiro se refere à evidência de que os Mouros eram povos predominantemente negros e o segundo diz respeito à liderança feminina de seus exércitos.
A lógica de castas que configura as sociedades portuguesa e espanhola será imposta aos territórios colonizados na Améfrica Ladina, Lélia Gonzalez (1988) dá ênfase ao Brasil. Relações de poder racialmente forjadas que posicionam as populações negras e indígenas nas esferas mais inferiores no âmbito da economia, da cidadania e da educação, portanto privando-as/os de direitos jurídicos, políticos e trabalhistas.
Para além dos fatos históricos que configuram as condições estruturais, Lélia não deixa de ignorar as chagas abertas provocadas pela violência racial no campo das subjetividades, sendo bastante influenciada pelos textos de Frantz Fanon e de Lima Barreto.
A psicanálise passa a ser um território desbravado pela intelectual. Tamanha dedicação pelos estudos psicanalíticos irá resultar na fundação da primeira escola de psicanálise do Rio de Janeiro. Ao estabelecer diálogos com MD Magno e Betty Friedan, Lélia conhece as obras de Jacques Lacan, utilizando uma de suas categorias intitulada de denegação para compreender as violências raciais no campo das subjetividades (Rios e Ratts, 2016).
Assim, a seguinte tese é levantada pela autora: o racismo estrutural no Brasil é fruto de uma (de)formação do inconsciente coletivo brasileiro, que leva a população a enaltecer as referências europeias e o branconcentrismo ao mesmo tempo em que estimula na mesma a denegação, ou seja, a repulsa, o desprezo e o ódio pelas culturas e identidades indígenas e amefricanas.
A sociedade brasileira padece de uma neurose coletiva ao cair nas armadilhas do brancocentrismo, considerando-se europeia, quando mais da metade da população é predominantemente negra e indígena. Um adoecimento psíquico que é fruto de um terrorismo cultural impulsionado pela ideologia do branqueamento, herança do processo de colonização.
Como enfrentar esse terrorismo cultural euro/norte/centrado que provoca a denegação das culturas e identidades indígenas e africanas? Uma das respostas está na língua. Lélia considerava ser importante falar sobre o pretoguês, que nada mais é do que a influência africana no português brasileiro, assim como no francês, espanhol e outros idiomas espalhados pelo continente ladino-amefricano.
[...] aquilo que chamo de pretoguês e que nada mais é do que marca de africanização do português falado no Brasil [...] o caráter tonal e rítmico das línguas africanas trazidas para o Novo Mundo, além da ausência de certas consoantes (como o l e o r, por exemplo), apontam para um aspecto pouco explorado da influência negra na formação histórico-cultural do continente como um todo (e isto sem falar nos dialetos crioulos do Caribe). Similaridades ainda mais evidentes são constatáveis, se o nosso olhar se volta para as músicas, as danças, os sistemas de crenças etc. Desnecessário dizer o quanto tudo isso é encoberto pelo véu ideológico do branqueamento, é recalcado por classificações eurocêntricas do tipo “cultura popular,” “folclore nacional” etc, que minimizam a importância da contribuição negra (Gonzalez, 1988, p. 70).
Palavras como Améfrica Ladina e Amefricanidade, essa última poderosa categoria cultural e política cunhada por Lélia, surgem do pretoguês. Uma forma de oralidade e de escrita que é, em nossa visão, uma das principais marcas anticoloniais e afrocentradas da intelectual. Um processo de libertação que exige a compreensão de que as culturas e identidade indígenas e amefricanas não se restringem à epiderme.
O Brasil-por razões de ordem geográfica, histórico-cultural e sobretudo da ordem do inconsciente-é uma América Africana cuja latinidade, por inexistente, teve trocado o t pelo d para, aí sim, nomear o nosso país com todas as letras: Améfrica Ladina (cuja neurose cultural tem no racismo o seu sintoma por excelência). Nesse contexto, todos os brasileiros (e não apenas os “pretos” e “pardos” do IBGE) são ladinoamefricanos [...] [grifo nosso] (Gonzalez, 2018, p. 335).
Nessa direção, a intelectual subverte o nome América Latina, associado à branquitude e à reprodução de um colonialismo interno por parte de uma estreita casta social que advoga para si a característica de uma latinidade que se considera ariana e por isso julga ser mais evoluída e civilizada do que os povos originários e amefricanos.
No bom pretoguês subversivo, essa América na verdade é Améfrica, uma vez que seu território é predominantemente ocupado pelos povos originários e africanos. A partir de referências da Afrocentricidade, como demonstra o primoroso livro escrito por Ivan Van Sertima Eles vieram antes de Colombo que registra, com o amparo de dados robustos, a chegada de expedições africanas às Améfricas antes da invasão europeia. As/os africanas/os estabeleceram intercâmbios e notáveis processos de interações com os povos originários que resultaram na fundação de comunidades como os Miskitos na Nicarágua, herdeiros dos intercâmbios entre povos transculturais.
“Eles chegaram antes de Colombo.” É dose! É dose! Quando a gente houve falar dos Miskitos, na Nicarágua... Eles são a própria patente de descendentes de negros misturados com índios. Mas olha para a cara de um Miskito: você vê o crioulo presente ali. São estes negros que chegaram antes de Colombo, na América [...] os índios afirmam que num passado que eles não sabem dizer quando, chegaram uns homens muito grandes e negros [grifo nosso] [...] (Gonzalez, 2018, p. 347).
A palavra Ladina, por sua vez, tem uma explicação histórica. Era utilizada para denominar as/os escravizadas/os indígenas e amefricanas/os que possuíssem algum grau de instrução que permitisse assumir ofícios que não se resumiam ao trabalho braçal. No entanto, com o passar do tempo, esse vocábulo passou a ser sinônimo de termos pejorativos, tais como malandro, preguiçoso e ladrão.
Lélia, assim, em um tom provocativo frente à violência eurocêntrica e ao brancocentrismo, brada que essa Améfrica não é dos latinos que se intitulam europeus, mas das/os negras/os e indígenas, vistos injustamente como os selvagens, irracionais e bandidos, ou seja, os ladinos.
A categoria cultural e política Amefricanidade representa uma resistência à violência e à dominação impostas pelo imperialismo euro/norte/centrado, especificamente a oriunda da América do Norte. Para Lélia Gonzalez, o termo afro-americano se encerra apenas nas experiências dos movimentos negros nos Estados Unidos, ignorando as inúmeras comunidades africanas, tanto as diasporizadas quanto as que chegaram à Améfrica Ladina antes da invasão europeia e ocupam os quadrantes central, insular e sul do continente.
Ser amefricana/o, em nosso entendimento, é respeitar toda a diversidade das peles negras e vermelhas e suas cosmosensações, culturas e identidades que abarcam a Améfrica Ladina. Não se trata de estabelecer disputas entre os povos africanos e os povos originários, uma vez que parte de uma perspectiva afrocentrada que não pretende cair nas armadilhas do egocentrismo europeu, mas em colocar no centro do conhecimento, da religiosidade, da política, dos direitos humanos e da educação as epistemologias, pedagogias e ancestralidades dos povos colonizados e racializados em permanente condição de atravessamento.
Seguindo as pistas deixadas pelo legado amefricano de Lélia Gonzalez, pensamos que é fundamental pensar na categoria cultural e política Amefricanidade a partir do seio do território Amazônico, no sentido de tecer matrizes iniciais de uma Amefricanidade Amazônida, compreendendo que o processo de colonização setentrional sofrido pelo território (Malheiro, 2021) não pode ter ignorado o fato de que apresenta contrastes com relação à violência colonial sofrida pelo restante do país.
Como apontamos em parágrafos anteriores, a categoria Amefricanidade é forjada a partir do enfoque da Afrocentricidade, uma poderosa ferramenta capaz de desmontar as engrenagens do eurocentrismo. Através de obras de intelectuais indígenas, africanas/os e diasporizadas/os consagradas/os, podemos constatar que as matrizes filosóficas, culturais e epistemológicas europeias são meros plágios do continente africano.
Esses achados, já exaustivamente comprovados, são cruciais para repensar o mundo a partir de uma ótica que retira o ponto zero do território europeu e sua (pseudo)credibilidade que embasa as perversas classificações raciais, capacitistas, classistas e generificadas, responsáveis por derramar o padrão de poder global sobre o mundo.
Importante compreender que a categoria Amefricanidade não se restringe ao território africano, de modo a levar em consideração as especificidades da Améfrica Ladina e sua diversidade. Ser amefricana/o, em nossa cosmosensação, significa sangrar a lógica sacrifical europeia que, incapaz de produzir suas próprias epistemes, drenou, violentou e se apropriou das matrizes da África clássica, o verdadeiro berço da civilização e da ciência (Diop, 1955), ao mesmo tempo em que declarava guerra aos próprios povos de Abya Ayala, território esculpido pelas relações entre os indígenas e os africanos antes da conquista/barbárie europeia e da escravização.
Assumir-se enquanto Amefricana/o é compreender que não somos africanas/os, mas um povo forjado a partir das culturas e identidades indígenas e africanas, que cruzaram o Atlântico e teceram um bordado político e cultural extremamente complexo e diverso como a Améfrica Ladina. Assim, a partir da revolução do Haiti, citada pelo próprio Quijano (2005), da Cabanagem na Amazônia e tantas outras revoluções, vemos que as experiências indígenas e africanas estão amalgamadas em uma heterogeneidade cujo (re)conhecimento é indispensável para que a nossa Abya Yala garanta a preservação de todas as vidas.
NOTAS INICIAIS SOBRE AS PEDAGOGIAS AMEFRICANAS
As pedagogias amefricanas, independente das denominações, partem da premissa de que a educação é fundamental para subverter a deformação do inconsciente coletivo brasileiro caracterizado pela denegação das culturas e identidades indígenas e amefricanas, ancoradas nos seguintes princípios: a) a urgência em realizar uma reparação histórica; b) A validação das pedagogias e das didáticas orquestradas pelos movimentos sociais, comunidades tracionais e povos originários; c) A subversão das matrizes pedagógicas e epistemológicas eurocêntricas.
Começando pelo último tópico, devemos abraçar o desafio de aprender a desaprender todas as epistemologias e pedagogias eurocêntricas ainda impregnadas nas universidades e que influenciam diretamente nas licenciaturas. Uma visão afrocentrada de nossa formação acadêmica ajuda a ampliar os nossos horizontes investigativos e docentes, nos encorajando a realizar o “desmame” de matrizes europeias que pouco dialogam com a nossa realidade.
[...] apesar da seriedade dos teóricos brasileiros, percebe-se que muitos deles não conseguem escapar às astúcias da razão ocidental. Aqui e ali podemos constatar em seus discursos, os efeitos do neocolonialismo cultural; desde a transposição mecânica de interpretações de realidades diferentes às mais sofisticadas articulações “conceituais” que se perdem no abstracionismo [...] (Gonzalez, 2018, p. 61).
Entendemos que uma visão afrocentrada e portanto anticolonial nos permite realizar o que Curiel (2013) considera como uma etnografia de nossos privilégios catedráticos, provocando um debate sobre os motivos que nos levam a racializarmos, generificarmos e empobrecermos os povos que vivem na Améfrica Ladina, ainda vistos como simples objetos de pesquisas que partem de referências epistêmicas do norte global.
Assim, não basta afirmamos que somos povos subalternizados e violentados pelo racismo, patriarcado e o heterossexismo, mas sobretudo, compreender as lógicas dessas opressões, bem como identificar quem são os grupos aburguesados e brancóides que se beneficiam com essas relações de poder.
Com relação ao segundo tópico, devemos exercer uma constante vigilância a respeito das nossas didáticas e práticas pedagógicas. Concordamos com Lélia que é errôneo pensar que basta adicionarmos autoras/es negras/os e indígenas em nossas bibliografias para acreditar que estamos combatendo o eurocentrismo. A intelectual, ao descrever sobre as suas metodologias empregadas no curso que ministrou sobre Culturas Negras, na Escola de Artes Visuais (EAV), apontou para a necessidade de ver os terreiros de candomblé, as rodas de capoeira, as aldeias e os quilombos como espaços educativos, orquestrando um processo pedagógico embasado em uma lógica comunitária, dialógica e portanto não competitiva ou meritocrática.
Acompanhemos o constante exercício de autocrítica cultivado por Lélia Gonzalez sobre a sua didática:
[...] Lélia já estava dialogando com a militância do movimento negro, mas seu método de trabalho era muito teórico e pouco dinâmico. Até então, o seu alunado era da academia, das aulas de filosofia e história. Com isso, Lélia repensou seu método de trabalho e incorporou aulas práticas ao currículo do curso, como: dança afro-brasileira e capoeira. Além disso, estava previsto em sua programação conhecer de perto um ritual do candomblé-religião de matriz africana [...] as diversas manifestações culturais africanas foram deturpadas e estigmatizadas em nosso processo histórico, com maior ênfase na religiosidade. Lélia, certamente, sabia disso! Logo, usou e abusou da docência para reinterpretar a história do Brasil, sob a ótica das/os negras/os. Ela afirmava que a cultura brasileira é eminentemente negra (Projeto Memória, 2015).
As ossaturas escolares ocidentais são absurdamente cruéis principalmente com as crianças e jovens racializadas. O modelo educativo ocidental rotula patologicamente as/os educandas/os indígenas e/ou negras, alegando que as/os mesmas/os são intelectualmente incapazes, contribuindo para os altos índices de evasão. “Induzem nossas crianças a deixar de lado uma escola onde os privilégios de raça, classe e sexo constituem o grande ideal para ser atingindo, através do saber por excelência, emanado da cultura ‘por excelência:’ a ocidental burguesa” (Gonzalez, 2018, p. 272).
Enquanto a historiografia positivista enaltece nomes como a princesa Isabel e D. Pedro, mantém no anonimato grandes heróis como Zumbi dos Palmares, Nanny e Dandara, importantes lideranças quilombolas, exemplares modelos de sociedades alternativas onde indígenas, negras/os e brancas/os empobrecidas/os experimentavam relações democráticas e amplamente anticolonialistas.
Lélia Gonzalez sempre destacou em seus textos a importância de as crianças e jovens não brancas/os conhecerem esses nomes, a fim de fortalecerem a sua autoestima, estimulando o orgulho de suas identidades e culturas amefricanas.
[...] estamos cansados de saber que nem na escola, nem nos livros onde mandam a gente estudar, não se fala da efetiva contribuição das classes populares, da mulher, do negro e do índio na nossa formação histórica e cultural. Na verdade, o que se faz é folclorizar todos eles. E o que é que fica? A impressão de que só os homens, os homens brancos, social e economicamente privilegiados foram os únicos a construir esse país. A essa mentira tripla dá-se o nome de: sexismo, racismo e elitismo. [...] [grifo nosso] (Gonzalez, 2018, p. 120).
Em meio a esta constelação de heróis e heroínas que sacrificou a própria vida em nome da libertação ao encadeamento mental imposto pela supremacia branca, as mulheres negras merecem um destaque especial. Muito mais do que serem conhecidas como escravizadas de eito ou de ganho, a ponto de a falácia da subserviência da mãe preta que amamentava os filhos da sinhá proliferar no discurso eurocêntrico, as mesmas são autoras de estratégias de sobrevivência e de resistência que inspiraram até mesmo os movimentos operários e feministas do norte global ainda na atualidade. “Inserir a história de Nanny, líder quilombola da Jamaica [...] é inserir mulheres negras para o cerne da história não como coadjuvantes, mas como figuras vitais“ (Barreto, 2018, p. 26).
Didáticas, livros e práticas pedagógicas devem ser pensados a partir de matrizes éticas, filosóficas e estético-políticas amefricanas que coloquem no centro dos processos educativos as ciências dos povos originários e amefricanos em diálogo com o conhecimento científico.
[...] estamos falando da contribuição ameríndia, da africana e da europeia. Como indígenas e negros foram escravizados e explorados pelos europeus, suas manifestações culturais têm sido retiradas de cena, recalcadas pela classe dominante de origem europeia (mas bastante mestiçada, do ponto de vista racial), que as classifica como “folclore” e as coloca como museu de curiosidades, de coisas exóticas (Gonzalez, 2018, p. 138).
Ainda que para Lélia Gonzalez a oralidade, a corporeidade e a arte sejam inerentes às referências culturais amefricanas, a população racializada deve obter contato com os conteúdos escolares para que se articulem e se fortaleçam profissionalmente diante de uma sociedade perversamente capitalista. No entanto, uma educação afrocentrada precisa orientar as/os educandas/os em direção a caminhos epistêmicos que mostrem as raízes verdadeiras dessa ciência que (des) conhecemos como de origem exclusivamente eurocêntrica, mas que se desenvolveu graças à genialidade de grandes intelectuais africanos, asiáticos e indígenas, e ausentes nas páginas das obras ocidentais.
Por isso podemos depreender que a afrocentricidade amplia os sentidos de educação. Para além de garantir que as populações racializadas tenham uma qualificação técnica e científica, seu principal objetivo é libertar as crianças, jovens e pessoas adultas do encadeamento mental imposto pela supremacia branca, pois é indispensável a edificação de uma pedagogia antirracista capaz de restaurar a autoestima esfacelada das comunidades negras e indígenas, realocando-as para o centro de suas histórias, culturas e identidades, de modo a valorizar as a estético-política, as religiosidades e as epistemologias frutos das transversalidades entre os povos originários e diasporizados, portanto amefricanas.
A afrocentricidade não pretende ser a única alternativa epistemológica frente à ideologia do branqueamento. É fundamental que outros paradigmas também sejam legitimados e contemplem questões e metas que a epistemologia afrocentrada ainda não tenha abordado ou alcançado.
Independente de suas possíveis limitações, o pensamento afrocentrado ousou ao assinar o obituário do egocentrismo eurocêntrico, revigorou “o discurso acadêmico e público e apresentou desafios de metodologia, pedagogia e pesquisa [...] para a academia como um todo” (Karenga, 2009, p. 335).
Não devemos perguntar como fazer pedagogias amefricanas, mas como podemos nos despir das ortodoxias impostas pela colonialidade que bloqueiam nossos sentidos para as cosmosensações oriundas dos corpos negros e vermelhos que já nascem lutando e morrem sonhando com a devolução da Améfrica para os seus reais donos: as/os ladinas/ladinos.
CONCLUSÃO
Manter Lélia Gonzalez no anonimato representou um grande desperdício de arcabouços teóricos para as próprias universidades brasileiras. A intelectual deve ser aclamada pela sua leitura lúcida e complexa sobre a conjuntura nacional, conduzindo um bordado entre distintos paradigmas sintonizados com as peculiaridades do nosso país.
Enquanto filósofa, historiadora e militante, a intelectual compreendia a necessidade de realizar um duplo movimento. Ao mesmo tempo em que reconhecia a urgência de ocupar as ruas, não esnobava por outro lado a importância de de(s)colonizar as universidades e as escolas.
Assim, partindo de preceitos do paradigma afrocêntrico, no intuito de combater a denegação das culturas e identidades indígenas e amefricanas que deforma o inconsciente coletivo brasileiro e alimenta o racismo estrutural, Lélia apostava em uma educação afrocentrada.
Nesse sentido, são forjadas as bases fundantes do que podemos considerar como uma pedagogia amefricana, sendo elas: a) a necessidade de reparar uma historiografia positivista eurocêntrica, desvelando as pedagogias milenares como as que foram forjadas na revolução haitiana, na cabanagem e o quilombo de Zumbi dos Palmares; b) os estudos de paradigmas e epistemologias amefricanas e indígenas e c) a valorização das didáticas e pedagogias criativas dos movimentos sociais e comunidades tradicionais.
REFERÊNCIAS
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Notas