Dossiê: Alternativas Pedagógicas e Prospectivas Educacionais na América Latina
Diretrizes Curriculares Nacionais para educação escolar quilombola: caminhos para uma educação decolonial no Brasil
National curricular guidelines for quilombola school education: pathways to a decolonial education in Brazil
Directrices curriculares nacionales para la educación escolar quilombola: caminos para uma educción decolonial em Brasil
Diretrizes Curriculares Nacionais para educação escolar quilombola: caminhos para uma educação decolonial no Brasil
Reflexão e Ação, vol. 31, núm. 1, pp. 40-52, 2023
Universidade de Santa Cruz do Sul

Recepción: 16 Mayo 2022
Aprobación: 14 Junio 2022
Resumen: En este artículo discutimos el proceso de colonización en las Américas. Señalamos sus efectos en la construcción social de los pueblos colonizados, especialmente en la educación. En tal sentido, entendemos que la colonialidad es el resultado del largo período de exploración de las colonias, que se tornó visceral en las configuraciones sociales de los países del continente americano, con énfasis en el contexto brasileño. Así, percibimos que la educación brasileña todavía reproduce un pensamiento europeo hegemónico, y constituye un espacio para la reproducción de los principios de la colonialidad. Por el contrario, el movimiento decolonial latinoamericano ha provocado cambios de pensamiento, que se han materializado en distintas acciones. Una de ellas es la construcción de las Directrices Curriculares Nacionales para la Educación Escolar Quilombola (Brasil, 2012) que entendemos como un ejercicio de decolonización. En ese sentido, señalamos cómo estos lineamientos dialogan con el movimiento decolonial, brindando una nueva configuración educativa, haciendo eco y visibilizando saberes y conocimientos subordinados y borrados por la colonialidad.
Palabras clave: Colonización, Colonialidad, Educación, Decolonialidad.
Resumo: Discutimos, neste artigo, o processo de colonialização das Américas, apontando os seus efeitos na construção social dos povos colonizados, em especial na Educação, entendendo que a colonialidade é fruto do longo período de exploração das colônias, se tornando visceral nas configurações sociais dos países do continente americano, com destaque para o contexto brasileiro. Assim, percebemos que a Educação brasileira ainda reproduz um pensamento europeu hegemônico, se tornando um espaço de reprodução dos princípios da colonialidade. Na contramão disso, o movimento decolonial latino-americano vem proporcionando mudanças de pensamentos, que tem se materializado em diferentes ações. Uma delas é a construção das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola (Brasil, 2012) que aqui entendemos como um exercício de decolonização. Neste sentido, apontamos como essas diretrizes dialogam com o movimento decolocial, proporcionando uma nova configuração educacional, ecoando e visibilizando saberes e conhecimentos subalternizados e apagados pela colonialidade.
Palavras-chave: Colonização, Colonialidade, Educação, Decolonialidade.
Abstract: In this article, we discuss the process of colonialization in the Americas, pointing out its effects on the social construction of colonized peoples, especially in Education, understanding that coloniality is the result of the long period of exploitation of colonies, becoming visceral in the social configurations of countries of the American continent, with emphasis on the Brazilian context. Thus, we realize that Brazilian Education still reproduces a hegemonic European thought, becoming a space for the reproduction of the principles of coloniality. On the contrary, the Latin American decolonial movement has brought about changes in thoughts, which have materialized in different actions. One of them is the construction of the National Curriculum Guidelines for Quilombola School Education (Brazil, 2012) which we understand here as an exercise in decolonization. In this sense, we point out how these guidelines dialogue with the decolocial movement, providing a new educational configuration, echoing and making visible knowledge and knowledge subordinated and erased by coloniality.
Keywords: Colonization, Coloniality, Education, Decoloniality.
INTRODUÇÃO
A colonização europeia nas Américas foi um processo longo que encontrou na escravização dos indígenas e, posteriormente, dos africanos, o suporte fundamental para sua realização e reconhecido sucesso, deixando marcas até hoje presentes, evidenciadas por uma sociedade fortemente influenciada pelo eurocentrismo.
Partindo do processo de colonização, sem, contudo, propor um estudo histórico-cronológico, buscamos apontar, no conteúdo deste artigo, como o colonialismo e seus desdobramentos - como a colonialidade - estabeleceram as regras que regem o mundo contemporâneo, nomeando a Europa como o modelo, o padrão a ser seguido e copiado, renegando e subalternizando todas as experiências outras.
Após esse percurso, trazemos as discussões e experiências dos estudos decoloniais, que visam, dentre outras coisas, visibilizar novas formas de construção do poder, saber e ser, alicerçando-se em epistemologias insurgentes que corporificam e materializam vozes e saberes, outrora subalternizados e entendidos como inferiores, questionando a estrutura hegemônica europeia e as verdades ditas como absolutas.
Por fim, apresentamos algumas experiências no contexto educacional brasileiro – políticas públicas, metodologias e experiências pedagógicas –, especificamente as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola na Educação Básica (DCN – EQEB). Criada em 2012, esse documento apresenta possibilidades metodológicas para a construção de uma educação antirracista, equalitária e emancipadora, inquirindo mudanças curriculares, trazendo os saberes, conhecimentos e experiências das comunidades quilombolas para a escola. Entre seus objetivos, propõe que sejam consideradas “[...] as práticas socioculturais, políticas e econômicas das comunidades quilombolas, bem como os seus processos próprios de ensino-aprendizagem e as suas formas de produção e de conhecimento tecnológico [...] (BRASIL, 2012, p.4).”
Neste sentido, entendemos o conteúdo das diretrizes como um exercício decolonial, ou uma tentativa de decolonizar a história - haja vista que a existência de uma legislação não pressupõe sua aplicação, a depender da ação dos personagens envolvidos no processo educacional - apontando como exemplos possíveis o de (re)construir aquilo que o colonizador instituiu como materialidade verdadeira de saberes, deixando escamoteado os conhecimentos oriundos das comunidades remanescentes de quilombos, resgatando a história de negros e negras injustiçados historicamente.
DO COLONIALISMO À COLONIALIDADE
A posição privilegiada da Europa como centro e modelo pensante, econômico e cultural do mundo moderno se deu a partir da exploração de outros povos, principalmente a partir da colonização da África, Ásia e América. Essa exploração se alimentou na desculpa da “[...] missão civilizadora, um peso que o homem branco deveria carregar, e o dever moral que ele tinha para levar o progresso e as vantagens da civilização aos povos conquistados [...]. (SERRANO; MUNANGA, p.3, 1995).” Os autores apontam, também, que as diferenças tecnológicas entre invasores e invadidos foram interpretadas como sinônimos de superioridade e inferioridade, desprezando a verdadeira realidade histórica.
Maldonado-Torres (2018) ressalta que a “descoberta” teve implicações profundas múltiplas, bem como um grande impacto sobre a noção de ser civilizado. Realizando uma leitura de Bowden (2009), o autor menciona que:
Uma vez que foi determinado que ao mundo colonial faltava civilização e, consequentemente, soberania, foi quase inevitável que o direito internacional criasse por si só ‘o grande projeto de salvação de levar os marginalizados ao domínio da soberania, civilizando o incivilizado e desenvolvendo as instituições e técnicas jurídicas necessárias para essa grande missão. (BOWDEN, 2009, p. 128 apud MALDONADO-TORRES, 2018, p. 31)
Alicerçado na “boa intenção” de trazer os colonizados, por eles chamados de selvagens e primitivos, a um mundo moderno pautado na racionalidade, o colonizador, “com a consciência tranquila” - haja vista que suas intenções se diziam “nobres” -, começa seu processo de dominação, exploração e colonização.
Contrariando a história oficial, que relata a passividade e impotência dos povos invadidos e colonizados, “[...] a história recente da África pré-colonial mostra que a resistência à conquista aconteceu em todo território africano, sendo registradas guerras de resistências que teriam durado de três a trinta anos [...] (SERRANO; MUNANGA, 1995, p.4)”, apesar da desigualdade nas relações de força entre os colonizadores e colonizados.
Além do movimento de resistência à exploração, já havia na África, em meados do século XV, quando os europeus lá chegaram, “[...] formações políticas com um nível de organização e de estrutura bastante elevado [bem como] Estados de formação recente, [...] com bases sociais e culturais ainda flutuantes [...] (SERRANO; MUNANGA, 1995, p, 4)” desmistificando a ideia apregoada de que se tratava de povos primitivos e incivilizados e, portanto, necessitariam de “ajuda” para alcançar a “civilização”. Assim, para validar a colonização e a exploração, mascaradas pela “missão civilizadora”, o colonizador lançou mão da negação da existência de elementos civilizatórios entre os povos invadidos.
Como sabemos, a resistência fez parte de todo o processo de colonização. Neste sentido, para alcançar uma dominação total, foram necessárias mais que a força bruta e a ocupação militar. Assim, “[...]precisava negar-lhes a história e destituir completamente suas raízes culturais, ou seja, suas culturas e suas identidades[...] (SERRANO; MUNANGA, 1995, p. 7)”, lançando mão de estratégias como a proibição do uso das línguas nativas, rotulando-as como inferior, além de ser ensinadas, nas escassas escolas, a geografia e a história dos países colonizadores.
Assim, para além da exploração das colônias com o objetivo de enriquecimento da metrópole (SERRANO; MUNANGA, 1995), temos uma sociedade esvaziada de si mesma, “[...] de culturas espezinhadas, de instituições minadas, de terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificências artísticas aniquiladas[...] (CÉSAIRE, 1978, p. 25)”. Césaire (1978) enfatiza que se trata de um processo em que se classifica e equaliza a colonização como um processo de coisificação.
Esse mesmo autor, se valendo da ideia de contato como mecanismo de interação e troca, reconhece que a convivência entre diferentes civilizações, entre mundos distintos, é “excelente”, e classifica esse intercâmbio como um “oxigênio”. Entretanto, ressalta que esse fenômeno foi inexistente no processo de colonização, uma vez que “[...] entre colonizador e colonizado, só há lugar para o trabalho forçado, a intimidação, a pressão, a polícia, o imposto, o roubo, a violação, as culturas obrigatórias, o desprezo, a desconfiança, a arrogância, a suficiência, a grosseria, as elites descerebradas, as massas aviltadas [...] (CÉSAIRE, 1978, p.25)”, sendo assim, fica estabelecida uma relação de dominação.
Alicerçado nos postulados de Césaire (1978), de Serrano e Munanga (1995) e, dialogando com as ideias de Madonado-Torres (2018) definimos colonização como um instrumento de usurpação e subjugação, no qual a parte diminuída nesse processo, mesmo sendo a detentora de riquezas minerais, naturais e culturais, valorosas, é induzida a se projetar como incapacitada na regência de tais recursos. Os valores culturais, sociais e costumes do povo colonizado são negados e inferiorizados, forçando-os a assimilar outros saberes (do colonizador), criando, assim, uma máscara ideológica que materializa e legitima a subjugação.
Sendo assim, a partir da definição proposta, entendemos que a colonização, aqui também lida como sinônimo de colonialismo, foi um “[...] sistema de exploração econômica, de dominação política e de sujeição cultural [...] (SERRANO; MUNANGA, 1995, p,3).”
É válido destacar que o colonialismo que nos propomos a discutir nesta leitura é referente ao momento histórico da construção da modernidade. Enfatizamos tal ponto de vista para que não se confunda as diferentes explorações de um povo sobre o outro, nos diferentes tempos, com o intuito de compará-las e deslegitimar as reivindicações atuais dos povos vítimas do colonialismo moderno. Ou ainda, como alerta Maldonado-Torres (2018):
[...] [F]azer do colonialismo um conceito geral para que ele perca especificidade e quaisquer implicações sobre o presente. Isso não significa que não há laços importantes entre diferentes formas de colonialismo e construção do império, bem como entre vários modos de desumanização; no entanto, a relevância contemporânea do colonialismo e da descolonização é perdida se esses conceitos são abordados apenas dessa forma. (MALDONADO-TORRES, 2018, 35)
Em outras palavras, é importante que se reconheça as semelhanças entre os processos de exploração humana, mas se faz necessário pensar cada processo em suas especificidades sócio- históricas, bem como as suas influências materializadas na organização social contemporânea. Assim, podemos compreender o colonialismo como “[...] a formação histórica dos territórios coloniais [diferenciando] do colonialismo [que assume] modos específicos pelos quais os impérios ocidentais colonizaram a maior parte do mundo desde a ‘descoberta’ [...] (MALDONADO-TORRES, 2018, p.35).”
A ruptura com o modelo colonial se deu a partir de revoltas dos colonizados, frente às diversas formas de exploração, de negação e desumanização. No entanto, o discurso do processo de descolonização e independência foi “[...] uma vontade deliberada das potências coloniais de abrir mão de seus direitos[...] (SERRANO; MUNANGA, 1995, p,10)” ou ainda, uma livre inciativa dos colonizadores que ainda ganha eco em detrimento ao movimento de resistências dos explorados.
Esse discurso objetiva deslegitimar o protagonismo dos povos colonizados no processo de libertação da subjugação político-econômica, ventilando a ideia de que a independência foi cedida, e não conquistada. Entretanto, “[...] a história de lutas, às vezes violentas e trágicas, das antigas colônias desmente essa visão eurocêntrica da descolonização [...] (SERRANO; MUNANGA, 1995, p,10).”
Contudo, o fim oficial da exploração e domínio político-econômico das metrópoles sobre suas colônias não apagou a historicidade construída por meio dos anos sob o regime colonialista. Ou seja, o momento entendido como pós-colonial não corresponde a um apagamento das marcas do colonialismo, ou mesmo que “[...] os problemas do colonialismo foram resolvidos ou sucedidos por uma época livre de conflitos [...] (HALL, 2003, p.56).”
Mesmo não sendo seu objeto de estudo a colonialidade, mas tecendo críticas ao momento pós-colonial, Hall (2003) alerta para a necessidade de se pensar esse termo para além de um momento histórico ou uma “[...] sucessão cronológica do tipo antes/depois [...] (HALL, 2003, P.56)”, apontando que problemas de dependência, subdesenvolvimento e marginalização, presentes no período colonial, persistem no pós-colonial, mas se apresentam em uma nova configuração.
Deste modo, mesmo havendo relação entre colonialismo e colonialidade, vale resgatar os conceitos desses termos, a fim de não os confundir e diferenciá-los:
Colonialismo pode ser compreendido como a formação histórica dos territórios coloniais; o colonialismo moderno pode ser entendido como os modos específicos pelos quais os impérios ocidentais colonizaram a maior parte do mundo desde a “descoberta”; e colonialidade pode ser compreendida como uma lógica global de desumanização que é capaz de existir até mesmo na ausência de colônias formais. (MALDONADO-TORRES, 2018, p. 35)
Logo, o colonialismo pode ser entendido como a ação de dominação e exploração dos territórios. Já a colonialidade se configura como as construções sociais, simbólicas e epistemológicas que norteiam a humanidade, fazendo prevalecer os ideais do colonialismo e do colonizador, mesmo livre da dominação territorial.
Observamos que a modernidade, criada no seio da colonização, construiu uma ideia e um modo de produção do conhecimento que revelam “[...] o caráter do padrão mundial de poder: colonial/moderno, capitalista e eurocentrado. Essa perspectiva e modo concreto de produzir conhecimento se reconhecem como eurocentrismo [...] (QUIJANO, 2005, p. 115).” Ainda hoje vivemos sob os efeitos da colonialidade, especialmente no campo educacional, em que há a negação das contribuições epistemológicas de indígenas e africanos, em detrimento ao conhecimento europeu hegemônico. É na contramão dessa lógica que se inserem os estudos decoloniais que nos propomos a discutir, especificamente no campo da educação.
DCN – EQEB COMO EXERCÍCIO DE DECOLONIZAÇÃO
Como vimos, o processo de colonização não se restringiu à exploração das terras e seus recursos, mas adentrou em vários segmentos das esferas sociais. Desta forma, as sociedades colonizadas acabam por pensar e elaborar seus modos de produção, cultura, educação, a partir da ótica colonialista, visto que passaram a ser seus referenciais sob todos os ângulos de (co)existência. Ou seja, as ex-colônias agora vivem à luz da lógica da colonialidade e de seus efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos, que permaneceram “[...] nas estruturas sociais, imbricadas com a expansão e impacto do imperialismo e do capitalismo, [...] estabelecendo uma soberania em relação à forma como se pensava e se produzia conhecimento[...]” (SILVA; BALTAR; LOURENÇO 2018, p.70), originando um saber adjetivado como universal.
É nesse cenário que se insere o movimento de decolonialidade, se estabelecendo como resistência à essa lógica e se constituindo como uma necessidade urgente ao diálogo e à afirmação de perspectivas do conhecimento e de povos que foram subalternizados dentro da modernidade colonial (MALDONADO-TORRES, 2018). “Uma das vantagens do projeto acadêmico-político da decolonialidade reside na sua capacidade de esclarecer e sistematizar o que está em jogo, elucidando historicamente a colonialidade do poder, do ser e do saber e nos ajudando a pensar em estratégias para transformar a realidade. (BERNADINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL, 2018, p. 10)”
Maldonado-Torres (2018) reforça que a atitude decolonial envolve renúncia aos sistemas de valores que permitem desqualificar e caracterizar o colonizado. Contudo, como projeto, a decolonialidade não pode ser individual, sendo necessário a junção dos que compartilham da experiência da colonização a fim de “[...]perturbar e desestabilizar a colonialidade do saber, poder e ser, e assim mudar o mundo [...] (MALDONADO-TORRES, 2018, p.50).”
Assim, acedendo que a decolonialidade não é um evento passado, mas um projeto a ser feito (MALDONADO-TORRES, 2018) e entendendo que os sujeitos “[...] chegam com os seus conhecimentos, demandas políticas, valores, corporeidade, condições de vida, sofrimentos e vitórias, questionam nossos currículos colonizados e colonizadores e exigem propostas emancipatórias[...]” (GOMES, 2012, p. 99), vemos nas DCN-EQEB uma possibilidade de caminhar rumo à decolonização.
As DCN-EQEB, homologada em 2012, pelo governo brasileiro, são orientações para se pensar a Educação levando em consideração os sujeitos e suas especificidades, destinada para escolas quilombolas1 e escolas que recebem alunos quilombolas, propondo entre seus objetivos que se “[...] considerem as práticas socioculturais, políticas e econômicas das comunidades quilombolas, bem como os seus processos próprios de ensino-aprendizagem e as suas formas de produção e de conhecimento tecnológico [...]” (BRASIL, 2012, p. 4).
O texto das DCN-EQEB, em seu artigo 1º, § 1º, endossa que
A Educação Escolar Quilombola na Educação Básica: I - organiza precipuamente o ensino ministrado nas instituições educacionais fundamentando-se, informando-se e alimentando- se: a) da memória coletiva; b) das línguas reminiscentes; c) dos marcos civilizatórios; d) das práticas culturais; e) das tecnologias e formas de produção do trabalho; f) dos acervos e repertórios orais; g) dos festejos, usos, tradições e demais elementos que conformam o patrimônio cultural das comunidades quilombolas de todo o país; h) da territorialidade. (BRASIL, 2012, p. 3)
É importante ressaltar que as diretrizes não surgem como substitutas à política educacional adotada nas unidades escolares, mas devem ser implementadas estabelecendo, como versa no inciso VI, do mesmo artigo “[...]como política pública educacional e estabelecer interface com a política já existente para os povos do campo e indígenas, reconhecidos os seus pontos de intersecção política, histórica, social, educacional e econômica, sem perder a especificidade (BRASIL, 2012, p. 3).”
Alguns dos princípios que regem a Educação Escolar Quilombola, apontados na DCN-EQEB, versam sobre:
[...] o respeito e reconhecimento da história e da cultura afro-brasileira como elementos estruturantes do processo civilizatório nacional; a proteção das manifestações da cultura afro-brasileira [bem como a] valorização da diversidade étnico-racial; [a] promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, credo, idade e quaisquer outras formas de discriminação [...]o conhecimento dos processos históricos de luta pela regularização dos territórios tradicionais quilombolas [...] superação do racismo – institucional, ambiental, alimentar [...] e a eliminação de toda e qualquer forma de preconceito e discriminação racial [...] (BRASIL, 2012, p.5)
Parece-nos estranho, ou no mínimo destoante à prática pedagógica, que princípios como esses precisem estar descritos no texto de uma legislação, porém, em face ao racismo estrutural, a imposição de saberes coloniais em oposição aos fundantes de uma civilização, é necessário sim o registro para que, de alguma forma, se possa buscar formas de viabilizar o que é necessário, numa perspectiva decolonial.
Gomes (2012) destaca que “[...]vivemos um momento ímpar no campo do conhecimento [em que o] debate sobre a diversidade epistemológica do mundo encontra maior espaço nas ciências humanas e sociais. É nesse contexto que a Educação participa como um campo que articula de maneira tensa a teoria e a prática (GOMES 2012, p. 99).” Coadunando com as ideias da autora, reforçamos que as DCN-EQEB se tornam ferramenta fundamental, necessária e decolonial, à medida que como legislação educacional normatizam e direcionam mudanças, que consideram as comunidades remanescentes de quilombos brasileiras, suas singularidades, as origens socioculturais dessas comunidades, seus saberes e modo de produção do conhecimento na formatação dessa Educação.
Uma das estratégias utilizadas pela colonialidade é o silenciamento e o apagamento das vozes e da história dos colonizados, materializada pela propagação de uma narrativa construída sob a ótica do explorador, delegando a si a posição superior dos fatos narrados, ao passo que os outros sujeitos desse momento se tornam figurantes ou oponentes, construindo uma imagem depreciativa de sua origem e de suas contribuições na construção social.
Diante de todos esses argumentos vemos o movimento da decolonialidade como forma de pensar a história de um povo, elucidando historicamente a colonialidade do poder, do ser e do saber, com vistas a elaborar estratégias de mudança para essa realidade. O Artigo 6º, inciso VII, traduz essa inquietação quando aponta, como um dos objetivos o de “[...] subsidiar a abordagem da temática quilombola em todas as etapas da Educação Básica, pública e privada, compreendida como parte integrante da cultura e do patrimônio afro-brasileiro, cujo conhecimento é imprescindível para a compreensão da história, da cultura e da realidade brasileira (BRASIL, 2012, p.05).”
Desta sorte, é mister destacar que esse documento é fruto das lutas de diversos movimentos sociais e da sociedade civil organizada, com destaque aos movimentos negro e quilombola, contando, ainda, na sua elaboração, com a participação de intelectuais negros e quilombolas, conferindo-lhe um caráter legítimo de representatividade, ecoando os conhecimentos negligenciados e apagados pelo eurocentrismo, reivindicando mudanças que partem de uma origem afrocentrada.
Além disso, as DCN-EQEB estabelecem que a Educação Escolar Quilombola requer, dentre outras necessidades, uma pedagogia própria, o respeito à especificidade étnico-racial e cultural de cada comunidade, a formação específica de seu quadro docente, bem como materiais didáticos e paradidáticos específicos, preconizando, também, uma gestão democrática com a participação da comunidade e suas lideranças. Como bem estabelece o documento: “[...]assegurar que o modelo de organização e gestão das escolas quilombolas e das escolas que atendem estudantes oriundos desses territórios considerem o direito de consulta e a participação da comunidade e suas lideranças, conforme o disposto na Convenção 169 da OIT. (BRASIL, 2012, p.04-05).”
As Diretrizes, ao atribuírem a comunidade escolar (direção, professores, coordenação, alunos, alunas, pais e lideranças das comunidades) o direito de fala, de se posicionar, e dessa forma colaborar na construção dos saberes que serão desenvolvidos nos espaços escolares, estão munindo a decolonização de um instrumento de poder, refletido no currículo, que poderá, de forma fidedigna, refletir as necessidades do grupo atendido e da sociedade em geral.
Gomes (2012) aponta que
[...] a teoria educacional e o campo do currículo participam de um movimento [...] composto por duas vertentes: a interna, que questiona o caráter monolítico do cânone epistemológico e se interroga sobre a relevância epistemológica, sociológica e política da diversidade interna de práticas científicas dos diferentes modos de fazer ciência e da pluralidade interna da ciência; e a externa, que se interroga sobre a exclusividade epistemológica da ciência e se concentra nas relações entre a ciência e outros conhecimentos, ou seja, aquela que diz respeito à pluralidade externa da ciência [...] essas vertentes podem ser compreendidas como dois conjuntos de epistemologias que procuram, a partir de diferentes perspectivas, responder às premissas culturais da diversidade e da globalização. (GOMES, 2012, p.99).
A autora adverte, ainda, sobre os avanços e os limites da teoria educacional e suas repercussões na prática pedagógica que podem impactar as teorias e até mesmo a educação, dentro e fora do ambiente escolar, e dessa forma emergir a discussão sobre que tipo de currículo temos e qual queremos. Nessa ótica, Gomes (2012) reforça que os currículos são, cada vez mais, inqueridos a mudar, e emergem dilemas que perpassam desde aos que formulam as políticas até aos cursos de formação de professores que necessitam
[...] adequar-se as avaliações standartizadas nacionais e internacionais ou construir propostas criativas que dialoguem, de fato, com a realidade sociocultural brasileira, articulando conhecimento científico e os outros conhecimentos produzidos pelos sujeitos sociais em suas realidades sociais, culturais, históricas e políticas? Compreender o currículo como parte do processo de formação humana ou persistir em enxergá-lo como rol de conteúdos que preparam os estudantes para o mercado ou para o vestibular? [...] Como lidar com o currículo em um contexto de desigualdades e diversidade? (GOMES, 2012, p.99, grifos do autor).
Desta sorte, as novas propostas, leis e diretrizes que convergem para uma educação decolonial, nos indicam uma construção curricular transgressora e insurgente, que dialoga com a formação histórica sociocultural da comunidade escolar, com as diferentes maneiras de produção do conhecimento ao seu entorno, bem como com a inserção nesse espaço de poder das vozes dos subalternizados e dos conhecimentos epistemologicamente apagados.
Assim, acrescentar ao currículo os conteúdos dos demais grupos étnico-raciais que formaram a sociedade brasileira, nos remete à transformação dos paradigmas que a sociedade vinha reproduzindo, principalmente por meio da Educação, os quais, em geral, contribuíam para uma discussão rasa e sem grandes problematizações sobre a diversidade étnico-racial, fomentando à manutenção de atitudes racistas.
CONCLUSÃO
O percurso descrito nesse artigo no trouxe reflexões importantes acerca das DCN – EQEB, bem como os avanços que o texto da lei aponta. Porém, é necessário trazer à tona que não podemos acreditar que esse documento se basta. São necessários muitos outros caminhos para que a letra morta, ganhe vida.
Os efeitos do colonialismo e da colonialidade têm ditado as regras nos países que passaram pelo processo de colonização, elegendo a Europa como modelo universal de política, economia, sociedade, bem como detentora e produtora de todo e qualquer conhecimento válido. Consciente disso, o movimento decolonial surge como uma possibilidade para se (re)discutir e (re)pensar o mundo a partir do ponto de vista dos povos que historicamente foram subjugados e inferiorizados. Este caminho se configura em um projeto epistêmico e, sobretudo, político, que pode possibilitar um novo momento na história da modernidade – momento esse em que as amarras sociais hegemônicas europeias são questionadas - se configurando como “[...] tempo de aprendermos a nos libertar do espelho eurocêntrico onde nossa imagem é sempre, necessariamente, distorcida. É tempo, enfim, de deixar de ser o que não somos[...] (QUIJANO, 2005, p. 126).”
No Brasil, interpretamos as DCN–EQEB como uma das respostas advindas desse movimento de decolonização latino-americano, que busca inserir na Educação brasileira a história, a cultura, as tradições, os saberes e os conhecimentos das comunidades remanescentes de quilombos, que por muito tempo foram, e continuam sendo, deturpadas e renegadas, gerando múltiplos sentimentos, incluindo os de aversão, alimentando o racismo estrutural presente na constituição do país.
Sabemos da importância desse documento, mas também reconhecemos sua fragilidade em se concretizar no interior de uma sociedade concebida sob a égide estrutural do racismo. O fato de ser lei, por si só, não garante a sua aplicabilidade. Reconhecemos que o currículo escolar brasileiro ainda é um espaço reprodutor dos valores eurocêntricos e dos colonizadores, no qual os saberes das populações indígenas e africanas são entendidos como de menor significância e importância. São muitas vezes reservados para esses saberes, momentos pontuais, resumindo-os em atrativos folclóricos, inferiorizando e minimizando as contribuições dos povos originários e africanos na construção do Brasil.
Contudo, percebemos mudanças significativas na descolonização deste importante instrumento, que aqui identificamos como espaço de formação ideológica. Tais mudanças são frutos, sobretudo, das lutas constantes dos diferentes movimentos sociais, dentre eles, o negro, que constantemente reivindica a presença da história do oprimido no currículo escolar.
Gonçalves (2013) descreve a entrevista com o antropólogo e professor Munanga em que destaca que a questão não é abandonar o eurocentrismo para fazer uma abordagem afrocentrista, mas inserir “[...] os outros conhecimentos invisibilizados e, assim ter um currículo que contemple todas as raízes formadoras do Brasil [...]” (GONÇALVES, 2013, p.29). Desta forma, possibilitaríamos a existência de um currículo que não exclui as raízes ocidentais, indígenas e africanas, criando um movimento de inclusão de todas.
É esse movimento de inclusão que percebemos ser feito com as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola, que orientadas por princípios como o respeito e reconhecimento da história e da cultura afro-brasileira como elementos estruturantes do processo civilizatório nacional; a proteção das manifestações da cultura afro-brasileira; a valorização da diversidade étnico-racial; a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, credo, idade e quaisquer outras formas de discriminação; o conhecimento dos processos históricos de luta pela regularização dos territórios tradicionais quilombolas, superação do racismo e de toda e qualquer forma de preconceito e discriminação racial. (CNE/CEB N°08/2012), dialogam com os postulados decoloniais, visando a construção de uma Educação mais equalitária e emancipatória, possibilitando “[...]deixar de ser o que não somos[...](QUIJANO, 2005, p. 126). ”
REFERENCIAS
1. BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 8, de 20 de novembro de 2012.Define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. Brasília: junho, 2012. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=11963- rceb008-12-pdf&category_slug=novembro-2012-pdf&Itemid=30192 Acesso em: 10/11/2021.
2. BERNADINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e pensamento afrodiapórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
3. CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. 1 ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978.
4. GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos. In: Currículo sem Fronteiras, v.12, n.1, pp.98-109, Jan/Abr. 2012.
5. GONÇALVES, Luciane Ribeiro Dias. Políticas Curriculares e Descolonização dos Currículos: A Lei 10.639/03 e os Desafios Para a Formação De Professores. Revista Educação e Políticas em Debate – v. 2, n. 1 – jan./jul. 2013.
6. HALL, Stuart. Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Tradução Adelaine La Guardia Resende. Et.al. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
7. MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da Colonialidade e da decolonialidade: algumas dimensões básicas. In: BERNADINO-COSTA, Joaze. MALDONADO-TORRES, Nelson. GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e pensamento afrodiapórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
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Notas