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“Uma escola com princípios sólidos, gera contentamento” moralidades e produção de subjetividades
“A school with solid principles, generates contentment”: moralities and production of subjectivities
“Una escuela con principios sólidos genera contentamiento”: moralidades y producción de subjetividades
“Uma escola com princípios sólidos, gera contentamento” moralidades e produção de subjetividades
Reflexão e Ação, vol. 31, núm. 1, pp. 147-161, 2023
Universidade de Santa Cruz do Sul

Recepción: 29 Marzo 2022
Aprobación: 03 Abril 2022
Resumo: O artigo tem como objetivo mostrar como os professores/as entendem as moralidades presentes na escola e suas implicações nos processos de subjetivação dos alunos/as. A análise é fruto de pesquisa realizada através de entrevista semiestruturada com professores de uma escola pública. A análise dos enunciados dos/as professores aproxima-se da perspectiva pós-estruturalista e indica que ainda circulam na escola valores que se colocam como universais, naturais e absolutos. Esse tipo de moralidade se constitui em um dispositivo de homogeneização dos processos de subjetivação dos/as alunos/as, invisibilizando as diferenças, reforçando os estereótipos e subalternizando outras subjetividades.
Palavras-chave: Escola, Subjetividade, Moral.
Abstract: The article aims to show how teachers understand the moralities present in the school and their implications in the processes of subjectivation of students. The analysis is the result of researches carried out through semi-structured interviews with teachers from a public school. The analysis of the teachers' statements approaches the post-structuralist perspective and points out that values that are universal, natural and absolute still circulate in the school. This type of morality constitutes a device for homogenizing the processes of subjectivation of students, making differences invisible, reinforcing stereotypes and subordinating other subjectivities.
Keywords: School, Subjectivity, Moral.
Resumen: El artículo tiene como objetivo mostrar cómo los profesores comprenden las moralidades presentes en la escuela y sus implicaciones en los procesos de subjetivación de los estudiantes. El análisis es el resultado de una investigación realizada a través de entrevistas semiestructuradas a docentes de una escuela pública. El análisis de las declaraciones de los profesores se acerca a la perspectiva posestructuralista e indica que en la escuela aún circulan valores que son universales, naturales y absolutos. Este tipo de moral constituye un dispositivo para homogeneizar los procesos de subjetivación de los estudiantes, invisibilizando las diferencias, reforzando estereotipos y subordinando otras subjetividades.
Palabras clave: Escuela, Subjetividad, Moral.
INTRODUÇÃO
O enunciado que intitula este artigo foi proferido em uma entrevista, em 2015, pelo docente João, professor que atua em uma escola pública localizada na região centro-oeste do país. O enunciado é parte do conteúdo de entrevistas de uma pesquisa, cujo objetivo foi investigar como os professores/as entendem as moralidades presentes na escola e suas implicações nos processos de subjetivação dos alunos e alunas. Na ocasião, o professor João disse que uma das questões que diferencia a escola em que trabalha é o fato de “ela ser tradicional católica, [...] ter princípios [...], princípios que são seguidos a milhares de anos.”. Isso mostra, em certa medida, a presença hegemônica de valores cristãos sendo cultuados neste contexto escolar.
No entanto, ao mesmo tempo em que os professores assumem, em determinados momentos, a posição de sujeitos cujas ações são norteadas por um conjunto de verdades fundamentadas na ideia de uma moralidade transcendente, universal e absoluta, também assumem, em outros momentos, posturas diferentes, considerando a possibilidade de buscar experiências e ações além daquelas já instituídas. Afinal, conforme Foucault (2013), não somos sujeitos absolutos nem possuímos uma essência; somos efeito de formações discursivas e regimes de verdade, por isso, assumimos posições específicas de sujeito no interior de uma sociedade, “relacionando[-nos] direta ou indiretamente com certos dispositivos, táticas e estratégias de saber/poder, fazendo circular um conjunto de verdades.” (CARVALHO, 2011, p. 12).
Embora não seja nosso intuito realizar uma análise das práticas de resistência a esses modos de sujeição na escola, entendemos, com Foucault (1988), a impossibilidade de as relações de poder acontecerem senão na relação com os movimentos de resistência. Assim, para o autor, as resistências “são o outro termo nas relações de poder; inscrevem-se nestas relações como o interlocutor irredutível.” (FOUCAULT, 1988, p. 91). Por isso, é possível afirmar que, na escola onde desenvolvemos a pesquisa, professores e alunos constantemente subvertem os processos de sujeição que o modelo de moralidade coloca em ação.
Para compreender a questão, nos aproximamos do campo teórico pós-estruturalista e, em um primeiro momento, apresentamos as contribuições de teóricos como Nietzsche (1998;2013), Foucault (2000;2013), Deleuze (2018), entre outros, destacando, principalmente, a crítica que Nietzsche faz à moral vigente em sua época. Nesse caso, ao fazer uma genealogia da moral, Nietzsche coloca de imediato a questão do valor dos valores e, com isso, abre possibilidades da pergunta pela criação de valores ao invés de seu culto e perpetuação.
Em um segundo momento, por meio da análise das entrevistas dos professores que participaram da pesquisa, mostramos que ainda circulam na escola valores que se colocam como universais, naturais e absolutos. Esse tipo de moralidade, ao se colocar como hegemônica na escola, revela-se um dispositivo de homogeneização dos processos de subjetivação dos/as alunos/as, invisibilizando as diferenças, reforçando os estereótipos e subalternizando outras subjetividades.
Assim, consideramos pertinente recuperar a questão nietzschiana que indaga sobre o valor dos valores da educação, pois ela abre caminho para a desconstrução do caráter transcendental dos princípios morais e possibilita a criação de valores, de uma multiplicidade de moralidades, de condutas, de sujeitos, de identidades e diferenças no espaço escolar, sem apelo a ídolos e ideais. Trata-se de pensar a moral como histórica, contingente, provisória ou, para usar uma expressão de Nietzsche (2014), uma criação humana, demasiada humana.
A escola onde ocorreu a pesquisa é uma instituição pública estadual localizada na Região Centro-Oeste do país e oferece o Ensino Fundamental, que engloba do 1º ao 9º ano da Educação Básica. Realizamos entrevistas semiestruturadas com nove professores durante os anos de 2014 e 2015. Os critérios estabelecidos nesta pesquisa para a seleção dos professores que concederam entrevistas foram: todos os professores lecionam do sexto ao nono ano do Ensino Fundamental, todas as séries (do sexto ao nono ano) são contempladas dentre os professores entrevistados, e todas as áreas de conhecimento são representadas – Ciências, Língua Inglesa, Língua Portuguesa, Matemática, Artes, História, Educação Física, Ensino Religioso e Geografia. Os nove professores concederam suas entrevistas1 na sala dos professores e aceitaram que fossem gravadas. De posse das gravações das entrevistas, estas foram transcritas para posterior análise. Dos professores entrevistados, seis são professoras, e três são professores. Do total, sete são efetivos, e dois são convocados. Todos os professores têm Ensino Superior, e sua idade varia de 26 a 45 anos. Quanto ao tempo de magistério, cinco professores tinham mais de 10 anos, três professores tinham entre cinco e 10 anos, e um professor tinha um ano de experiência no magistério.
Porém, considerando os objetivos propostos neste artigo, faremos alusão somente aos enunciados de cinco professores, pois os enunciados dos professores não citados estão contemplados nos enunciados citados. Para preservar o anonimato, utilizaremos nomes fictícios sempre que nos referirmos a eles.
A CRÍTICA MORAL DE NIETZSCHE
Nietzsche reformula valores próprios da modernidade, como a racionalidade e a objetividade, e constrói uma concepção de conhecimento como resultado da história, da existência e da interpretação. Ao romper com o pensamento moderno ele fortalece a sua crença de que “não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos” (NIETZSCHE, 2013, p. 103) e que essa interpretação só é possível de ser feita do ponto de vista de um sujeito específico que, por sua vez, está inserido no seu tempo. Assim, todos os significados atribuídos ao mundo são colocados um ao lado do outro, sem que nenhum possa desfrutar de uma preeminência ontológica capaz de torná-lo “verdadeiro”.
Entendendo que a moralidade, em nenhuma hipótese, necessita de fundamentação, Nietzsche (2013) coloca em questão a eficácia de se discutir a filosofia de um ponto de vista pretensamente universal, presente em boa parte dos sistemas filosóficos da modernidade, especialmente daqueles herdeiros da tradição metafísica ocidental:
Os filósofos sem exceção, com uma seriedade e uma rigidez que se prestavam ao riso, exigiam de si mesmos algo bem mais elevado, de mais pretencioso, de mais solene, logo que deviam se ocupar de moral como ciência. Pretendiam encontrar os fundamentos da moral – e todos os filósofos acreditaram até o presente que haviam fundado a moral. Mas a moral, por si mesma, era considerada como coisa ‘dada’.” (NIETZSCHE, 2013, p.113, grifo do autor).
O filósofo alemão propõe uma abordagem genealógica da moralidade, considerando sua origem histórico e cultural, em detrimento de uma abordagem própria do racionalismo filosófico. Para ele, a moralidade não pode ter a pretensão e nem se colocar como definitiva, pois ela é, ao contrário, dinâmica. Ela se apresenta numa linguagem codificada, ou como diz Larrosa (2004), é “um texto difícil e enganador que se tem de aprender a ler evitando-se cair em suas armadilhas, evitando uma leitura ao pé da letra que tome por fatos ou por realidades definitivas o que não são mais do que interpretações próprias de culturas.” (LARROSA, 2004, p. 28). Nas palavras de Nietzsche (2001):
A moral é tão-somente uma interpretação de certos fenômenos, porém uma falsa interpretação. [...] Por isso não se deve nunca tomar ao pé da letra o juízo moral [...] entretanto, como semiótica possui um valor inapreciável, pois revela ao que sabe entender, ao menos, realidades preciosas acerca das civilizações e dos gênios que não souberam bastante para compreenderem a si mesmos. A moral é apenas uma linguagem de signos, uma sintomatologia. (NIETZSCHE, 2001, p.43).
Corazza e Tadeu (2003) reforçam a perspectiva nietzschiana e afirmam que a moral só pode ser “uma sintomatologia: ‘estes’ valores são sintoma de quê? Ou uma semiologia: Sinal de quê? Ou ainda, uma genealogia. Interrogá-los genealogicamente. Qual a história desses valores, qual sua proveniência, quais forças transformaram-nos justamente em valores?” (CORAZZA; TADEU, 2003, p. 54, grifo dos autores). Como se observa, os autores apontam para o fato de que não existe uma leitura última e definitiva que dê sentido verdadeiro à moralidade, colocando em dúvida, como diz Nietzsche (2013), que um filósofo possa ter opiniões últimas e verdadeiras. Não podemos afirmar que “atrás de uma caverna, não haja necessariamente uma caverna mais funda - um mundo mais vasto, mais estranho, mais rico cima de uma superfície, uma profundidade atrás de cada fundo, sob cada ‘fundamento’.” (NIETZSCHE, 2013, p.258, grifo do autor). Outras leituras, perspectivas novas, múltiplas e distintas tendências são possíveis; e os valores estabelecidos indicam as diferentes formas de ser e de viver das pessoas e de suas culturas.
Assim, como sugere Nietzsche, se o texto da moral – inscrito em nosso corpo através da cultura – é uma interpretação, podemos construir outras interpretações, atribuir-lhes outros sentidos, nos atrever a interpretar o texto da moral de outra forma e construir outros significados. Foi o que Nietzsche (1998) fez com a moral vigente em sua época, interrogando de outro modo o texto da moral, lançando outro olhar e, por isso, produzindo outras interpretações. Como afirmou: “ninguém examinou até hoje o valor [...] desse medicamento chamado moral: teria sido necessário, antes de mais nada, que ela tivesse sido posta em questão. Pois bem! Essa é precisamente nossa tarefa.” (NIETZSCHE, 2013, p. 354).
Ao propor fazer uma genealogia da moral, o projeto nietzschiano mostra-se “uma tentativa de superação da metafísica através de uma história descontínua dos valores morais que investiga tanto a origem – compreendida como nascimento, como invenção, quanto o valor desses valores.” (MACHADO, 2002, p. 59). Trata-se, agora, de abolir o mundo transcendente, suprassensível, base a partir da qual os valores foram arquitetados, e mostrar que eles surgiram em algum momento e em algum lugar determinado.
A perspectiva aberta por Nietzsche, conforme Marton (2000), possibilita criar novos valores, desestabilizando a defesa dos valores instituídos:
Até agora foi o homem, concebido enquanto criatura em relação a um Criador, quem avaliou; e os valores que criou desvalorizaram a Terra, depreciaram a vida, desprezaram o corpo. É preciso, pois, combatê-los, para que surjam outros. É preciso denunciar que se forjou a alma, ‘para arruinar o corpo’, que se inventou o ‘mundo verdadeiro’ enquanto ‘nosso atentado mais perigoso contra a vida’, que se fabulou a noção de Deus como ‘a máxima objeção contra a existência’. Só então será possível criar novos valores. (MARTON, 2000, p. 57, grifo da autora).
O pensamento nietzschiano se insurge contra a ideia de fundamento que torna os valores indiferentes à sua própria origem. Ele se insurge “contra a ideia de uma simples derivação causal ou de um raso começo que coloca uma origem indiferente aos valores” (DELEUZE, 2018, p. 10). Procurar uma tal origem é “tentar reencontrar ‘o que era imediatamente’, o ‘aquilo mesmo’ de uma imagem exatamente adequada a si; [...] é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira.” (FOUCAULT, 2000, p,17, grifo do autor). Por isso um valor, na perspectiva nietzschiana, não pode ser pensado a partir de um domínio transcendental, pois ele é sempre resultado de uma forma de valoração, de um ato de força, de uma imposição.
Ao propor um “desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias” (FOUCAULT, 2000, p. 16), a genealogia nietzschiana mostra o caráter histórico da moral reforçando que os valores não são ontológicos, não têm valor em si, mas são criações humanas em contextos específicos. Ansell-Pearson (1997) esclarece que a genealogia, ao mostrar a vontade de poder que há por trás das postulações dos valores morais, tem como objetivo abalar as pretensões universalistas e humanistas dos valores morais. Constitui-se, dessa forma, um exercício importante de crítica, pois possibilita mostrar a produção histórica de todos os valores e ideais. Deste modo, “nada é fixo e imutável: tudo o que existe, inclusive as instituições legais, os costumes sociais e os preceitos morais, evoluiu e é produto de uma forma específica de vontade de poder.” (ANSELL-PEARSON, 1997, p.140).
Nietzsche, expondo a história da moral, nos leva a compreender que não existe uma moral universal única e válida para todos; ao invés disso, ele critica as tentativas de hegemonia desse tipo de moralidade. A moral apresentada como universal, dotada de critérios que valiam para todos, passa a ser questionada, assim como o princípio transcendental, o ente supremo e fundamento desses princípios. A moral já não é eterna, mas tem começo e fim. Nessa perspectiva, a moral é mais da ordem da contingência do que da transcendentalidade:
Ela tem uma origem. Não uma origem primeira e fundacional. Não a origem dos grandes gestos, das solenes inaugurações. Não a origem da outorga de tábuas da lei. Mas a origem mais terrestre, mais profana, mais cotidiana, do erro e da tentativa, da fraude e do engano, da sedução e da conquista, da persuasão e da dominação. A moral é mais da ordem da contingência que da ordem da transcendentalidade. (CORAZZA; TADEU, 2003, p. 44).
Entendida desta forma, segundo Marton (2000), a moral desdenha “tudo o que até então se venerou e, pelo mesmo movimento, [afirma] tudo o que até então se negou.” (MARTON, 2000, p. 62). Ela diz que se outrora a alma mostrava desprezo pelo corpo, com a genealogia nietzschiana, é o corpo que revela a miséria da alma. Esse movimento demonstra que fomos nós - seres humanos - que atribuímos valores nas coisas e definimos sentidos. E o sentido, diz Deleuze (2018), é uma noção complexa, pois “há sempre uma pluralidade de sentidos, uma constelação, um complexo de sucessões, mas também de coexistências, que faz da interpretação uma arte.” (DELEUZE, 2018, p. 12). Os valores, nesta perspectiva, têm tantos sentidos quantas forem as forças capazes de se apoderar deles.
Contudo, ao desconstruir o caráter transcendental dos princípios morais, a genealogia nietzschiana não pretende invalidar esses princípios, pretende tão somente expor as condições históricas de criação dos valores vigentes para situá-los como invenção, como artefato humano. Sendo a moral histórica, portanto, contingente e acidental, abre-se a possibilidade de recriação dos valores. Por isso, uma crítica dos valores morais é sempre possível, “o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão.” (NIETZSCHE, 1998, p. 12). Cabe, então, perguntar: Qual é a força desses valores? Qual é a força dessa moral? Sobre o que a moral age? O que acontece com as pessoas que estão sobre seu domínio? Que forças a moral favorece e que forças ela reprime?
Essas questões, no entanto, ainda figuram timidamente no espaço escolar, mesmo que mais de um século tenha se passado desde o momento da crítica da moral elaborada por Nietzsche. Talvez isso ocorra porque universalismos e essencialismos – como a ideia de um sujeito único, de uma finalidade última da educação –, ainda circulem na escola e tenha implicações nos processos de subjetivação de professores e alunos, dificultando a compreensão de que não é “possível ascender a uma definição precisa de um procedimento pedagógico ideal – uma vez que ele implicaria um modelo de ser humano ideal que se pudesse admitir como meta a ser realizada.” (CARDOSO, 2020, p. 155).
Larrosa (2004), neste sentido, destaca que “não há um caminho traçado de antemão, que só teria que seguir sem desviar-se para chegar a ser o que se é. O itinerário até o sujeito está por inventar, de uma forma sempre singular, e não pode evitar nem a incerteza nem os rodeios.” (LARROSA, 2004, p. 75). Representa, pois, um dos grandes desafios do contexto escolar.
MORALIDADES E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES NO CONTEXTO ESCOLAR
De fato, a sociedade e, de modo especial, as instituições educacionais, pouco cogitam a possibilidade de questionar o valor dos valores morais da forma como se propôs Nietzsche. A escola, os professores, em muitos casos, têm considerado esses valores inquestionáveis, eternizando a visão de que a moral e os valores que ela estabelece sempre existiram, portanto, são naturais e absolutos. Isso ocorre, em certa medida, porque os valores na educação, conforme Corazza e Tadeu (2003), ainda tendem para a absolutização. Isso significa que eles são extraídos “de algum tipo de ente, local ou princípio absoluto, incondicional, único, incontestável: deus, pátria, um texto sagrado, uma revelação, a família.” (CORAZZA; TADEU, 2003, p. 53). Por isso, o absoluto não admite condições, exceções ou emendas.
Segundo os autores, os valores também tendem à naturalização. Nesse caso, os valores que inspiram os processos educativos e identificam-se com a natureza humana e “o apelo à natureza fecha antecipadamente a possibilidade de qualquer questionamento” (CORAZZA; TADEU, 2003, p. 53) são ‘evidentes’, não há possibilidade de alteração. Os valores são, assim, concebidos como universais, valem para todas as pessoas, para todas as épocas e para todos os locais.
Desta perspectiva, os valores que norteiam a educação podem ser pensados em termos de culto e se colocam como “entidades absolutas que, pairando num céu inteligível, norteiam as avaliações realizadas no plano mundano [...], constituem um reino subsistente por si próprio, sendo, ao mesmo tempo, absolutos e imutáveis.” (AZEREDO, 2008, p. 15). A educação, por isso, se empenha na seleção, na transmissão e no culto de valores já existentes. A vontade de poder que move esse tipo de moralidade tem como pretensão homogeneizar e fixar as identidades, criando um ambiente escolar de “convivência harmônica”.
É a moralização das condutas em ação no contexto escolar, através do estabelecimento de valores, costumes e regras de comportamento, que definem o que cada um é ou deve ser. A vigilância, o exame, a normalização e o poder disciplinar que se desenvolve ao longo da modernidade e adentra o espaço escolar já tratava de administrar a moralidade das condutas “promovendo valores, estabelecendo deveres, reprimindo os desvios, assegurando conformidade máxima as regras e direcionando o mais intensamente possível a configuração de cada indivíduo.” (RATTO, 2007, p. 219). Muitas dessas regras se naturalizam na escola à medida em que se corporificam nos sujeitos. Da mesma forma, ensinadas nas instituições, elas se colocam como necessárias na formação moral dos alunos e alunas e passam a configurar “como parte dos modos corretos e incorretos, adequados e inadequados, de ser e estar na escola, não sendo com frequência experimentada como ensinamentos morais, mas, sim, como parte da ‘realidade óbvia’ e inerente ao dia-a-dia escolar.” (RATTO, 2007, p. 221, grifo da autora).
Gallo (2014) destaca que na educação da modernidade o “comum” é o ponto de partida, é o que já está dado. As subjetividades “são produzidas segundo os contornos do comum, [...] o comum pensado nesse registro, vê as diferenças como aparências, como insignificâncias.” (GALLO, 2014, p. 31). Ele ressalta que a escola e os professores ainda hoje sofrem os efeitos do projeto moderno de educação e, em função disso, insiste na importância de problematizar a forma como o “comum” foi entendido na modernidade. Segundo Gallo (2014), o “comum” só faz sentido quando traz consigo as multiplicidades e as singularidades, isto é, só existe o comum porque há também diferenças. E porque somos diferentes “podemos produzir projetos comuns, podemos produzir comunidades, viver juntos, não negando aquilo que somos, mas afirmando nossas diferenças.” (GALLO, 2014, p. 32).
Contudo, na escola onde desenvolvemos a pesquisa, ainda predomina o sentido moderno de “comum”, da convivência comum, da convivência harmônica, com seus dispositivos de poder e de normalização. Por isso, muitas vezes, é a produção de consensos, de homogeneidades e de uniformizações que esse espaço proporciona. Estes discursos, ao atravessarem o currículo escolar, promovem processos de subjetivação em conformidade com o discurso identitário da modernidade. E os professores, afetados por esses discursos, não questionam suficientemente o currículo escolar e os valores morais, mas, ao contrário, os perpetuam como edificantes e dignos de figurar no currículo.
Por isso o professor Paulo, referindo-se ao contexto escolar, diz que a presença de alunos e alunas de periferia que chegam à escola pelo sistema de matrícula digital disponibilizado pela Secretaria do Estado de Educação (SED), acabam “destruindo, embaralhando a cara da escola”. Diz o professor:
Outra coisa que ferrou com o nosso sistema foi a matrícula digital. Antigamente, as escolas controlavam a matrícula do aluno [...]. Aqui na escola, por ser uma escola diferenciada, eles tinham o costume de entrevistar os pais. Os pais não vinham aqui simplesmente para cuidar de papel, assinar, pronto, acabou. A gente nem sabe quem é. Não, então, entrevistava os pais; aqui a escola trabalha desse jeito assim. Hoje não, não existe controle nenhum, vem criança o tempo todo para cá. [...] Então, a nossa realidade, isso aqui é uma escola muito tradicional, muito forte, os alunos que estudaram aqui, os filhos vieram estudar, os netos, os bisnetos vinham estudar aqui. Quando entrou a central de matrículas, eles expiraram daqui porque aquela realidade feia de escola pública de periferia veio para dentro da escola, que não tinha essa realidade, e aí estragou (professor Paulo).
Percebemos que o professor Paulo apela à tradição da escola – “isso aqui é uma escola muito tradicional” – para justificar que muitos desses alunos e alunas que chegam por meio da matrícula digital destoam do que era tradição na escola. O fato de alunos e alunas de periferia frequentarem uma escola do centro rompe com as rotinas do local de trabalho, bem como com as relações de poder ali estabelecidas e por isso incomodam. Isso mostra, segundo Vieira, Hypólito e Duarte (2009), como os dispositivos de controle “efetivam-se por meio de relações sociais internas à escola marcadas por discursos de apelo à tradição” (VIEIRA; HYPÓLITO; DUARTE, 2009, p. 228).
O professor Paulo também destaca que o comportamento dos alunos e alunas de periferia que estudam na escola – ou, todos os comportamentos e atitudes que não estão de acordo com os princípios morais hegemônicos - são “vulgares, agressivos, sem educação, sem bagagem cultural”. Conceber a diferença como um desvio identitário que necessita de correção e normalização, como aparece na fala do referido professor, representa uma visão biologicista de sociedade e de seus problemas. A solução para os problemas sociais e históricos, nessa perspectiva, é sempre pensada a partir de um determinismo biológico. No século XIX, período em que passa a constituir-se uma perspectiva biologicista2 de sociedade, indivíduos que se envolviam com crimes, prostituição e alcoolismo ou que desenvolviam formas de comportamento que divergissem da maioria eram considerados doentes, problemáticos, diferentes dos demais. A solução para esses problemas/comportamentos passava pela classificação de cada forma de anormalidade, ou seja, cada um era enquadrado em seu desvio. Progressivamente, com a consolidação das ciências médicas, com seu poder de normalização e correção, toda forma de comportamento que não se adequava à norma das ciências médico-sociais passou a ser vista como anomalia, doença, desvio.
Varela e Alvarez-Uria (1992) destacam que a partir do início do século XX higienistas, filantropos e educadores colocam em prática todo um sistema de regras para domesticar os filhos dos operários – podemos dizer também, neste caso, alunos e alunas da periferia – “cujos efeitos vão depender não apenas das condições de existência de tais crianças e, em conseqüência, do significado que para eles têm, senão também de como os agentes diretos da integração social, e entre eles os professores, percebem suas condições de vida” (VARELA; ALVAREZ-URIA, 1992, p.14). Lembrando que, enquanto a família burguesa moderna era auxiliada no controle e normalização dos filhos pelas ciências médicas, psiquiátricas, pedagógicas, ao proletariado cabiam a polícia, os orfanatos, as instituições corretivas.
Capturada pela ideia moderna de uma identidade normal a professora Verônica recorre ao discurso religioso para referir-se ao comportamento de um aluno. Nas palavras da professora:
Pelo meu ver, esse menino, é que ele é filho de pais separados, convive com a mãe e com a irmã, então, ele tem todos os trejeitos da mãe, igualzinho, ele fala igual à mãe dele, mas não que ele seja homossexual, gosta de homem, queira namorar com homem.
[...] ele é evangélico, ele conhece a palavra, sabe que pela bíblia Deus é contra a homossexualidade, que Deus criou o homem para ser homem e a mulher para ser mulher. Ele tem essa base espiritual bem formada e que nós trabalhamos aqui também (professora Veronica)
Ainda se referindo a esse aluno, a professora Verônica diz: “andar rebolando não é comportamento de menino e sim de menina”. Ela reforça que “[...] existem diferenças e essas diferenças são trabalhadas nas acolhidas que nós temos e na área de Ensino Religioso”. Continua afirmando que na escola acontecem as “acolhidas onde esses valores são sempre falados, [...] para que não haja essas diferenças”.
Sabemos que o cristianismo é um metarrelato de grande densidade histórica e tem produzido formas específicas de ser sujeito ao longo da história. Fraga (2000) menciona em sua obra, Corpo, Identidade e Bom-mocismo: cotidiano de uma adolescência bem-comportada, a construção dos conceitos de “bom” (Deus) e “mau” (Demônio) na moralidade cristã e como essas noções estão associadas à construção social do corpo. Para Fraga (2000), na moralidade cristã, a relação entre o “bom” (Deus) e o “mau” (Demônio) estava diretamente associada às oposições alma/corpo. Desse modo, para que uma alma pudesse alcançar o reino dos céus, “era preciso inscrever nas práticas corporais uma lei divina que estabelecesse um modelo de agir regulado em sua mínima funcionalidade. Era preciso transformar o corpo impuro em imagem e semelhança de Deus, somente possível a partir de um controle quase absoluto.” (FRAGA, 2000, p. 105). Através dos conceitos “bom” e “mau”, diz Fraga (2000), foi se construindo o sujeito do cristianismo, que tem na negação do próprio corpo, em nome de um rígido regime moral, uma de suas principais características.
O fato de a escola estar enredada no discurso cristão da universalidade dos valores – o que está estritamente relacionado com a hegemonia desse tipo de moralidade na sociedade – faz com que os professores, em vários momentos, assumam a posição de sujeitos conforme o metarrelato do cristianismo. Sob tais circunstâncias, a palavra “valores” parece representar a responsabilidade e o empenho dos professores em difundir esses princípios dentro da escola de forma a estabelecer momentos específicos de formação moral – como é o caso das “acolhidas”, mencionadas pela professora Verônica, que tem o objetivo de minimizar as diferenças e estabelecer relações “harmônicas” entre os alunos e alunas. Também é o posicionamento do professor Pedro quando diz: “[...] eu acho que aqui existe uma questão que eles primam, que é a questão de alguns valores que eu acho que eles ainda têm e trazem com eles, e a escola, pelo trabalho que a gente faz e consegue desenvolver aqui dentro.” O professor José também assume a posição de sujeito conforme o metarrelato do cristianismo quando ressalta a satisfação em trabalhar em uma escola que “adota os princípios morais católicos, que é fundamentada nos esquemas católicos”. Por isso, o desejo de alguns professores de controlar o corpo e a sexualidades de alunos e alunas.
Quando um modelo de moralidade e, por extensão, os valores que ela estabelece se colocam como hegemônicos no ambiente escolar, o espaço para a diferença fica restrito, e o empenho da escola e dos professores consiste, em certa medida, em adequar os sujeitos aos pressupostos morais estabelecidos. Dizemos isso porque, segundo a professora Verônica, inclusive projetos que a escola desenvolve, tomam como referência a Campanha da Fraternidade, grande mote da religião cristã. Nas palavras da professora: “aí, tem dias em que eles vão para a capela, que têm uma palavra, cantam, normalmente no começo do ano, quando é lançada a Campanha da Fraternidade, [...] nós fazemos os projetos em cima do tema da Campanha da Fraternidade”. E os professores, afetados por esses discursos, tendem a subalternizar, silenciar, colocar à margem aqueles alunos e alunas que possuem moralidades, comportamentos e valores que se distanciam de uma moral que se coloca como natural e universal.
Para Nietzsche (2001), esse modelo de moralidade é signo de declínio e não de plenitude da vida. Em Crepúsculo dos Ídolos, referindo-se ao Sermão da Montanha que se encontra no Novo Testamento, ele afirma: “ali se diz, por exemplo, referindo-se à sexualidade: se teu olho direito é para ti uma ocasião de pecar arranca-o.” (NIETZSCHE, 2001, p. 28). Neste caso, Nietzsche (2001) quer mostrar como a moral vigente em sua época nunca pergunta “como se espiritualiza, embeleza e diviniza um desejo? Ao contrário, em todas as épocas, o peso da disciplina foi posto a serviço de extermínio (da sensualidade, do orgulho, do desejo de dominar, de possuir e de vingar-se).” (NIETZSCHE, 2001, p. 28). Para esse autor, atacar a paixão, os afetos, os desejos, na sua raiz, como pretende a moral de sua época, é o mesmo que atacar a raiz da vida.
Também para Deleuze (2018), esse modelo de moralidade busca negar a vida, reduzi-la a suas forças reativas. Na perspectiva deleuziana a vida acontece sobre um plano de imanência e precisa ser avaliada nela mesma, pelos movimentos que ela traça e pelas intensidades que ela cria: “Um modo de existência é bom ou mau, nobre ou vulgar, cheio ou vazio, independente do Bem ou do Mal, e de todo o valor transcendente. Não há nunca outro critério senão o teor da existência, a intensificação da vida.” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 98). Afinal, com Nietzsche (2001), compreendemos que o sujeito não é consequência de uma intenção própria, de uma vontade, de um fim: “com ele não se fazem ensaios para obter-se um ideal de humanidade; um ideal de felicidade ou um ideal de moralidade; é absurdo desviar seu ser para um fim qualquer” (NIETZSCHE, 2001, p. 42). Nessa perspectiva, somos nós mesmos quem inventamos a ideia do fim, porém, na realidade, o fim não existe.
Assim, toda a tentativa de minimizar as diferenças para estabelecer uma “convivência harmônica” entre os alunos e alunas - o que tem ocorrido na escola onde desenvolvemos a pesquisa - é uma vontade de captura de “todas as configurações possíveis da relação entre nós e eles, ou entre um e o outro, o mesmo e o diferente” (SKLIAR, 2011, p. 31). A convivência é afirmada na condição de que a diferença fique no silêncio, na invisibilidade e que se mantenha a uma distância prudente da mesmidade. Palavras como tolerância, aceitação ou reconhecimento do outro aparecem, neste contexto, “porque ali não existe relação, mas um excesso de distância ou indiferença.” (SKLIAR, 2011, p. 31). Não é por acaso que o professor Paulo, ao referir-se as diferenças presentes no contexto escolar, constata que “aquela realidade das outras escolas começa a invadir a nossa realidade, a gente não está acostumado com esse tipo de coisa aqui”; o professor Pedro percebe que a diferença na escola é, muitas vezes, minimizada, reprimida, excluída, e afirma que é “o próprio ambiente, os outros colegas, que fazem com que termine um pouco isso, tipo assim, ou ele (aluno/a de periferia) dança conforme a música, ou não vai se adaptar”; e o professor José constata que há, neste contexto escolar uma necessidade de rechaçar os indígenas, como ele afirma: “os indígenas aqui, eles são bem rechaçados, existem escolas específicas ao lado das aldeias, aqui não tem indígena”.
As configurações de forças e relações de poder presentes na escola, envolvendo os professores, dificultam o desenvolvimento de processos de criação de ideias e valores considerando os múltiplos contextos e os múltiplos sujeitos. Talvez por isso, a escola e os professores ainda se agarrem a ideais preestabelecidos que servem de fundamento a uma moral de unificação e totalização. Afinal, a ideia de que educar significa humanizar – característica das pedagogias humanistas modernas – ainda circula no contexto escolar e atua através de dispositivos de controle e de normalização, colocando como tarefa prioritária disciplinar os alunos e alunas em uma perspectiva fortemente moral e comportamental, “dado que se trata de ensiná-los, desde cedo a controlar seus impulsos e afetos, tendo por base um conjunto de valores, hábitos ou atitudes a serem internalizados na forma de deveres invariáveis ou de obrigação universal.” (RATTO, 2007, p. 219).
Por isso, Larrosa (2007) afirma a dimensão fundamentalmente moral da escola:
La escuela, nuestra escola, es um aparato fundamentalmente moral. [...] Los rituales y lãs práticas escolares tienen que ver com el saber, sin duda, com el conocimiento, con ensenãr y aprender, pero tienen que ver, sobre todo, com moralizar, com definir normas y desviaciones, imperativos y transgresiones. Por eso la escuela diferencia entre listos y tontos, entre niños que aprenden y niños que no aprenden, entre niños com êxito y niños fracasados, pero diferencia sobre todo entre buenos y malos alumnos, entre los que se adaptan y los que no a sus normas explícitas e implícitas de comportamiento. (LARROSA, 2007, p. 14).
A partir disso, ressaltamos a importância de tematizar a naturalização de propostas curriculares, de práticas escolares, de moralidades e valores, de universalismos e obviedades, presentes no contexto escolar. Ressaltamos, ainda, a importância de fazer um conjunto de questões – ou mais – um conjunto de incômodas questões, como as apresentadas por Corazza e Tadeu (2003):
Por que o currículo deve incorporar esses valores e não outros? Por que o currículo deve estar organizado para desenvolver esse tipo de subjetividade e não outro? Quais as condições de emergência de tantos dos valores “edificantes” que compõem o ideário das teorias pedagógicas e curriculares? Quais as forças, as relações de poder, que estabeleceram determinados critérios morais como sendo dignos de figurar num currículo, enquanto outros foram excluídos? (CORAZZA; TADEU, 2003, p. 54, grifo dos autores).
É pertinente perguntar pelo valor dos valores da educação. É pertinente perguntar pelo impulso, pelo desejo, pela vontade de saber e pela vontade de poder que movem a educação. Também é pertinente perguntar pelos sujeitos que são valorizados e pelos que são subalternizados em nome desses valores, assim como, pelas formas de ser e de significar o mundo que foram excluídas, negadas ou simplesmente desvalorizadas. Se colocarmos essas questões na educação, estaremos perguntando pelo valor dos valores da educação e abrindo espaço, como sugere Nietzsche, para a criação de valores e não meramente seu culto e perpetuação. Estaremos, também, abrindo espaço para uma multiplicidade de moralidades, de condutas, de sujeitos, de identidades e diferenças. Estaremos descobrindo “que por baixo da superfície da instituição escolar há outro mundo, há outros mundos, muitos mundos” (GALLO, 2014, p. 28). Então, existe sempre a possibilidade de um comum, no espaço escolar, que é multiplicidade, de um comum que se recusa a toda forma de totalização.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Mostramos como os valores morais presente na escola onde desenvolvemos a pesquisa implicam nos processos de subjetivação dos alunos e alunas. Neste caso, são valores instituídos pelo metarrelato do cristianismo, que norteiam a conduta humana por mais de dois mil anos e, segundo Nietzsche (1998), desprezam o corpo, a vida, a terra.
A hegemonia da moralidade no contexto escolar tem produzido um conjunto de saberes/poderes através dos quais determinadas condutas, regras, comportamentos são impostas aos sujeitos escolares, regulando seus modos de ser, de agir e de compreender o mundo. O intuito deste tipo de formação consiste em minimizar as diferenças, evitar qualquer forma de conflito, inclusive conflitos morais, para construir um ambiente em que todos possam conviver em “harmonia”, reforçando a produção de consensos, de homogeneidades e uniformizações e, deste modo, dificultado o espaço da diferença e seu poder de diferir.
Contudo, sabemos com Skliar (2011), que o controle sobre o outro nunca se dá de forma tranquila e absoluta, pois não há convivência sem contrariedade - a convivência implica “perturbação, intranquilidade, conflito, turbulência, diferença, afeição e alteridade” (SKLIAR, 2011, p. 31). Por isso, na escola onde desenvolvemos a pesquisa também há espaço para criação de valores - concepção indicada por Nietzsche. Embora nosso intuito, neste artigo, não foi analisar as práticas de resistência de professores e alunos a esse tipo de moralidade, queremos destacar que, em vários momentos, alunos e alunas assumem comportamentos de acordo com outros valores e, da mesma forma, professores e professoras questionam a hegemonia da moral cristã na escola.
Os movimentos de resistência têm a força de desestabilizar os valores instituídos mostrando que eles têm uma história e, portanto, nada possuem de essencial. Com isso, os alunos e alunas e professores e professoras, de algum modo, encontraram meios de desestabilizar os mecanismos instituídos que os impediam de questionar esses valores; de algum modo, indagaram o fato de que tais valores, de fato, contribuem para favorecer a vida ou para obstruí-la. Então, nesta escola, estão abertas as possibilidades de criação de valores e não meramente seu culto e perpetuação.
REFERÊNCIAS
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Notas