Artigo
OS PREFÁCIOS DAS MIL E UMA NOITES
THE PREFACES TO THE ONE THOUSAND AND ONE NIGHTS
OS PREFÁCIOS DAS MIL E UMA NOITES
Cadernos de Tradução, vol. 42, núm. 1, e80212, 2022
Universidade Federal de Santa Catarina
Recepção: 08 Abril 2022
Aprovação: 31 Outubro 2022
Publicado: 01 Novembro 2022
Resumo: Partindo de uma concepção responsiva da linguagem e de seus enunciados, nossa pesquisa examina alguns dos prefácios escritos por tradutores europeus das Mil e uma noites para descobrir, por meio deles, não só as distintas relações entre a Europa e o Oriente ao longo do tempo, mas principalmente a formação de uma tradição combativa de traduções daquela obra, na qual os diferentes tradutores buscam contestar e suplantar os anteriores – ao mesmo tempo em que traduzem para alguém, também traduzem contra alguém. Tomamos como base dois ensaios de Jorge Luis Borges (“Las mil y una noches” e “Los traductores de Las mil y una noches”), aos quais se adicionam as considerações de Edward Said sobre o Orientalismo e os prefácios de Mamede M. Jarouche, Antoine Galland, Edward W. Lane e Sir Richard F. Burton para suas traduções das Mil e uma noites.
Palavras-chave: Mil e uma noites, Orientalismo, Jorge Luis Borges.
Abstract: Starting from a responsive comprehension of language and its enunciations, our research examines a few prefaces written by European translators of the One Thousand and One Nights, discovering through them not just the historically distinct relations between Europe and Orient, but most importantly the formation of a combative tradition of translations, in which different translators try to contest and supersede their precursors – at the same time they translate for someone, they are also translating against someone. Our reasoning for this study comes from two essays by Jorge Luis Borges (“Las mil y una noches” e “Los traductores de Las mil y una noches”), to which we add Edward Said’s thoughts about Orientalism and the prefaces written by Mamede M. Jarouche, Antoine Galland, Edward W. Lane and Sir Richard F. Burton for their translations of the One Thousand and One Nights.
Keywords: One Thousand and One Nights, Orientalism, Jorge Luis Borges.
Noventa e nove anos separam dois momentos que poderíamos identificar como originadores parciais da ficção literária moderna no Ocidente. O primeiro momento, em 1605, trata-se da publicação do volume I de El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, de Miguel de Cervantes (2015). A obra espanhola, precursora do romance em prosa moderno e realista, foi responsável por alçar o gênero à categoria de “grande literatura”, trazendo consigo uma nova imagem humana: a do indivíduo terreno, conduzido por suas paixões e obsessões individuais, sem qualquer reflexo nos mundos transcendentais ou missão divina que lhe servisse de amparo; trouxe, mais ainda, uma nova imagem de mundo, transformado em um divertido jogo que pode ser iluminado pela loucura, e em que uma sociedade extraordinariamente variada expressa seus múltiplos modos de vida por meio de linguagens que se confrontam, se esclarecem e se traduzem mutuamente. De fato, o capítulo IX de Dom Quixote é especialmente conhecido por colocar o problema da tradução como uma questão que ultrapassa a barreira linguística e diz respeito a conflitos étnicos e culturais: o narrador que se vê obrigado a continuar a história de Dom Quixote a partir do texto traduzido de um historiador árabe revela como o processo de tradução pode envolver preconceitos arraigados, desconfianças e questionamentos em relação à cultura do outro e às suas formas de expressão. Aquela passagem, embora breve, revela como a tradução de um único texto tinha como pano de fundo os séculos de guerra entre europeus e árabes, dos quais a narrativa não poderia se desvencilhar – e, em todos os capítulos posteriores, as desconfianças em relação à fidedignidade da tradução estão calcadas simultaneamente em questões linguísticas e culturais.
O segundo momento também traz um contato entre Ocidente e Oriente por meio da tradução, e diz respeito à publicação, em 1704, do volume I de Les mille et une nuits (originalmente publicado como Les mille et une nuit. Contes arabes), a tradução francesa de Antoine Galland para a coletânea de narrativas árabes. Se Dom Quixote foi o marco da literatura realista e sério-cômica, além de uma representação dos novos modos de vida e pensamento que se encontravam em ascensão na Europa após o fim do feudalismo, as Mil e uma noites corresponderam a uma nova vertente do maravilhoso e do romântico, e a uma representação do estrangeiro e distante, suprindo a carência de um novo exotismo que correspondesse adequadamente às já renovadas expressões locais. A distância temporal em relação às comunidades cultural e linguisticamente fechadas do feudalismo, tal como aponta Bakhtin (2019) em O romance como gênero literário, e às cruzadas medievais alimentou um novo interesse na direção do Oriente, dos árabes e do islã1: a representação de estilo grotesco encontrada na Divina comédia, de Dante Alighieri2, e a pejorativa e conflituosa encontrada no Dom Quixote, de Cervantes3, abrem espaço para o mágico e o amoroso, especialmente o sensual – pois um dos elementos próprios do exotismo seria justamente uma suspensão aceitável, porque estrangeira, da moral cristã. A importância que tais elementos ocuparam na imaginação literária europeia não deve ser subestimada, de modo que a afirmação de Jorge Luis Borges, para quem o romantismo começara com a leitura das Mil e uma noites, não precisa ser vista como uma extrapolação:
Galland, pues, publica el primer volumen en 1704. Se produce una suerte de escándalo, pero al mismo tiempo de encanto para la razonable Francia de Luis XIV. Cuando se habla del movimiento romántico se piensa en fechas muy posteriores. Podríamos decir que el movimiento romántico empieza en aquel instante en que alguien, en Normandía o en París, lee Las mil y una noches. Está saliendo del mundo legislado por Boileau, está entrando en el mundo de la libertad romántica
Borges identifica o romantismo à superação das poéticas normativas do século XVII e às querelas literárias que lhes deram origem (notavelmente a questão em torno de Le Cid, de Corneille), baseadas em reinterpretações de Aristóteles e da tradição grega clássica, e que tinham como centro o decoro e questões ligadas à verossimilhança – conceito cuja interpretação moveu a crítica artística não só de Boileau, mas também de Scudéry, Richeleu, Chapelain e, de modo geral, de toda a Academia Francesa daquele período (sobre isso, cf. a discussão de Jean-Jacques Roubine (2003) em Introdução às grandes teorias do teatro). A criação de uma nova consciência de Oriente resultou em uma revisão do decoro literário, da idealização da arte grega como princípio universal a ser almejado e, mais ainda, das poéticas baseadas em concepções estritas de verossimilhança, abrindo espaço para o movimento romântico.
Assim, desconsiderando parcialmente a distância de quase um século entre o romance de Cervantes e a tradução de Galland, as duas obras são complementares em seus potenciais reformuladores da tradição literária, permitindo-nos entender tanto a visão da nova Europa para si mesma quanto para o mundo exterior, considerado estrangeiro e exótico, sensual e mágico, espaço construído em oposição ao realismo terreno pós-medieval, à moral religiosa cristã e ao decoro literário classicista – como escreveu Edward Said em seu conhecido estudo sobre o Orientalismo, “a cultura europeia ganhou força e identidade ao se contrastar com o Oriente, visto como uma espécie de eu substituto e até subterrâneo” (Said, 2007, p. 30). Podemos adicionar a isso, ainda, o modo como a materialidade das Mil e uma noites foi apagada em suas primeiras traduções e críticas, criando a imagem de algo construído por uma sábia, anônima e infinita tradição oral que as punha em contraposição à própria ascensão do livro como objeto dentro da cultura europeia e do consequente aspecto escriptocêntrico que a literatura assumiu no Ocidente (Bakhtin, 2019). Era um feito admirável que tal continuidade espontânea da criação oral, montada supostamente através de gerações, pudesse gerar uma obra tão encantadora e disputar espaço canônico com a literatura legislada do século anterior, e isso possivelmente pode ser apontado como o marco precursor de concepções românticas como a de Volksgeist e do interesse pelo imaginário e pela linguagem da cultura popular, elementos que se refletiram, por exemplo, na produção de Jacob e Wilhelm Grimm já no início do século XIX.
Foi isso o que moveu a imaginação dos primeiros orientalistas, e ainda no século XX era comum que mesmo escritores de profunda erudição, como Borges, atribuíssem a esse conjunto misterioso de confabulatores nocturni, narradores orais e populares que compartilhavam histórias à noite, as origens das Mil e uma noites: “Son obra de miles de autores y ninguno pensó que estaba edificando un libro ilustre, uno de los libros más ilustres de todas las literaturas, más apreciados en el Occidente que en el Oriente, según me dicen” (Borges, 1997, p. 90)5. Recentemente, Mamede Mustafa Jarouche, no prefácio crítico de sua tradução das Mil e uma noites (que se inicia fazendo justamente uma referência àquela mesma conferência de Borges), esclareceu melhor a questão, apresentando uma hipótese formulada a partir das observações do pesquisador arabista Muhsin Mahdi6:
O que deve ficar claro, desde já, é que o Livro das mil e uma noites não é literatura “oral”, ao menos não na medida em que oralidade é vulgarmente pensada como atributo de espontaneidade ou alegre caos impensado, mas em todo caso profundo porque proveniente de uma seiva popular etc. etc. Trata-se de um trabalho letrado cujo percurso foi da elaboração escrita à apropriação pela esfera da oralidade, e não o contrário. Ou seja: não são lendas ou fábulas orais que alguém um dia resolveu compilar, mas sim histórias elaboradas por alguém, por escrito, a partir de fontes diversas (das quais por acaso poderiam ser orais, embora não exista nenhuma evidência disso) que foram sofrendo, de maneira crescente, a apropriação dos narradores de rua, os quais encontraram nelas um excelente material de trabalho
Ou seja: sem descartar a influência de comunidades orais, que se apropriaram das narrativas e as foram adaptando às suas performances, que por sua vez devem ter influído novamente sobre as várias reescritas do livro, Jarouche enfatiza a sua profunda ligação com os gêneros escritos e com a erudição letrada árabe, inclusive rechaçando o tópico da comunicação da experiência, que Walter Benjamin (1994) tão intimamente ligou ao narrador oral, e operando uma mistura de gêneros que não só modifica o funcionamento das fábulas e narrativas noturnas a que o livro faz referência e as desloca na hierarquia dos gêneros, mas também subverte gêneros escritos e elevados, como a narrativa histórica, a de libertação depois da dificuldade e a história-exemplar, que são subordinadas à fábula e despojadas de valor moralizante7.
Mas a questão é que, para além da complexa origem material dos manuscritos das Mil e uma noites, a sua divulgação no Ocidente foi moldada pelo nascente Orientalismo e suas pré-concepções em relação ao mundo árabe – e este tipo de “conhecimento do Oriente”, como escreveu Said (2007, p. 73), “porque gerado pela força, cria num certo sentido o Oriente, o oriental e seu mundo”. A história da formação dessa consciência de Oriente pelo Ocidente não seguiu um caminho direto, e seu desenvolvimento pode ser experimentado através das próprias traduções das Mil e uma noites: pois, além de estabelecerem um diálogo entre a Europa e as culturas orientais, as várias traduções também oferecem respostas umas às outras, de modo que os grandes tradutores posteriores a Galland (Lane, Burton, Mardrus, Littman, Cansinos Assens, Jarouche e outros) tiveram que lidar não só com os manuscritos que traduziriam e com o público alvo, mas também com os problemas trazidos pelas próprias traduções anteriores. Mais do que uma história do Oriente, as mudanças percebidas entre as várias traduções contam a história de como essa consciência ocidental se transformou por meio de um processo dialógico, em que os orientalistas e tradutores posteriores buscaram contestar, revisar ou reafirmar as concepções anteriores. O que significa que o Capitão Sir Richard Burton, por exemplo, não traduziu o livro em um vácuo: sua tradução nasceu de uma insatisfação em relação ao decoro literário de Galland e o pudor puritano de Lane, de modo que muitas de suas escolhas devem ser vistas não só como uma aderência aos manuscritos originais (afinal, oferecia sua tradução como plain and literal), mas principalmente como uma tentativa consciente de se distanciar e contradizer ou corrigir aqueles outros tradutores; ao mesmo tempo, também não escapou a Burton o fato de que seu público, os assinantes do Burton Club, era formado por senhores eruditos de West End cujos interesses certamente seriam muito diferentes do que se imaginava serem os dos públicos antigos das noites: os estrangeirismos e hibridismos linguísticos na tradução e as várias notas que se multiplicam enciclopedicamente e comparam motivos das narrativas às literaturas clássicas (como a identificação de momentos das jornadas de Sinbad à Odisseia), ou descrevem anedoticamente descobertas do próprio Burton em território árabe, satisfazendo a curiosidade de seu público pelas aventuras de um orientalista, certamente criam impressões que estão de todo ausentes nos manuscritos árabes. “Plain and literal translation” significa, nesse caso, menos uma fidelidade incólume aos manuscritos e mais uma provocação às censuras de Galland e, principalmente, Lane, sem descartar os gostos literários de um público da alta sociedade inglesa de fins do século XIX.
Também sobre isso escreveu Borges um importante comentário, publicado em 1936 na obra Historia de la eternidad. No ensaio “Los traductores de Las mil y una noches”, Borges explorou as várias traduções a partir de seus conflitos; sobre Burton, ele escreve:
Uno de los secretos fines de su trabajo era la aniquilación de otro caballero (también de barba tenebrosa de moro, también curtido) que estaba compilando en Inglaterra un vasto diccionario y que murió mucho antes de ser aniquilado por Burton. Ése era Eduardo Lane, el orientalista, autor de una versión harto escrupulosa de Las mil y una noches, que había suplantado a otra de Galland. Lane tradujo contra Galland, Burton tradujo contra Lane; para entender a Burton hay que entender esa dinastía enemiga
A inventiva leitura que Borges propõe dessa longa linhagem de tradutores sugere que subjaz às Mil e uma noites um extenso embate entre eruditos orientalistas, o qual se expressa em termos combativos – trata-se de aniquilar ou suplantar os adversários, de traduzir contra alguém, de uma dinastia inimiga. O apreço que Borges demonstra por algumas das traduções reside em sua forte resposta dentro dessa tradição, como identifica em Burton e Mardrus; por outro lado, sua decepção com a tradução de Littman (que é, sobretudo, muito correta) advém do modo como esta desperdiça a chance de oferecer uma resposta literária alemã, a mesma Alemanha de Kafka e Goethe, aos outros tradutores.
Se só um exame detalhado e um cotejamento das várias traduções nos permitiria identificar perfeitamente as diferentes posturas de cada tradutor em relação ao Oriente, à sua própria cultura e idioma e aos outros tradutores, em compensação podemos encontrar tudo isso de forma condensada por meio dos prefácios, momento esclarecedor em que as pré-concepções e objetivos iniciais que motivaram cada tradução costumam ser expostos muito claramente. Nesse sentido, é exemplar o primeiro prefácio de todos: aquele escrito por Antoine Galland para a primeira edição de sua tradução. Composto de alguns poucos parágrafos, ele apresenta muitos dos elementos que se tornaram constantes nas interpretações e traduções posteriores, entre eles o de uma autoria difusa, que aqui é atribuída ao próprio excesso de imaginação encontrado no livro: “On ignore le nom de l’auteur d’un si grand ouvrage ; mais vraisemblablement il n’est pas tout d’une main : car, comment pourra-t-on croire qu’un seul homme ait eu l’imagination assez fertile pour suffire à tant de fictions ?” (Galland, 1846, p. 1)9. Note-se que não há ainda ligação com a oralidade destacada, posteriormente, por Lane e Burton; há, no entanto, perplexidade diante da grande variedade de narrativas ter a aparência de um conjunto planejado: “En effet, qu’y a-t-il de plus ingénieux que d’avoir fait un corps d’une quantité prodigieuse de contes dont la variété est surprenante, et l’enchainement si admirable, qu’ils semblent avoir été faits pour composer l’ample recueil dont ceux-ci ont été tirés ?” (Galland, 1846, p. 1)10.
Nesse contato inicial, o interesse sobre as noites está em seu caráter agradável e divertido, e este deve se assentar sobre três aspectos atribuídos a elas: a beleza, a maravilha e a expressão de costumes e modos orientais. Embora os dois primeiros não sejam caracterizados, sugere-se uma superioridade das nações árabes e de seu idioma em relação a eles. Sobre a beleza, escreve Galland (1846, p. 1) que “il ne faut que les lire pour demeurer d’accord qu’en ce genre on n’a rien vu de si beau jusqu’à présent dans un aucune langue”11; já a maravilha se agrega aos adjetivos de agradável, divertida e surpreendente, e também seria superior nos árabes:
Si les contes de cette espèce sont agréables et divertissants par le merveilleux qui y règne d’ordinaire, ceux ci doivent l’emporter en cela sur tous ceux qui ont paru, puisqu’ils sont remplis d’événements qui surprennent et attachent l’esprit, et qui font voir combien les Arabes surpassent les autres nations en cette sorte de composition
No que diz respeito aos costumes e modos, dos quais são enfatizadas as cerimônias religiosas, “tant païenne que mahométane” (Galland, 1846, p. 2), Galland considera que as noites trazem duas vantagens: a de serem superiores aos relatos de viajantes, e a de que “Tous les Orientaux, Persans, Tartares et Indiens, s’y font distinguer, et paraissent tels qu’ils sont, depuis les souverains jusqu’aux personnes de la plus basse condition” (Galland, 1846, p. 2)13. A escolha da expressão religião maometana não é incidental: seu uso provém da Bibliothèque orientale de Barthélemy d’Herbelot, publicada postumamente, poucos anos antes, em 1697, e com um prefácio do próprio Galland. Aquela obra enciclopédica descreve Maomé, em seu verbete, com termos pejorativos como “famoso impostor” e “Fundador de uma heresia que chamamos de [...] maometana” (apudSaid, 2007, p. 106); como explica Said (2007, p. 106), “‘Maometana’ é a designação europeia relevante (e insultuosa); ‘islã’, que é por acaso o nome muçulmano correto, é relegado a outro verbete. A ‘heresia [...] que chamamos de maometana’ é ‘compreendida’ como a imitação de uma imitação cristã da verdadeira religião”.
A ideia de que os orientais de diferentes condições sociais aparecem como são, ao contrário de sua presença em registros ocidentais, é dada como uma das preocupações centrais da tradução: “On a pris soin de conserver leurs caractères, et de ne pas s’éloigner de leurs expressions et de leurs sentiments, et l’on ne s’est écarté du texte que quand la bienséance n’a pas permis de s’y attacher” (Galland, 1846, p. 2)14. Observe-se, no entanto, que há um conflito entre conservar as expressões e sentimentos, por um lado, e corresponder ao decoro linguístico-literário francês, por outro: além de ter se afastado do texto quando o decoro (bienséance) não permitiu segui-lo, Galland condiciona ainda sua tradução a uma pressuposta delicadeza linguística e cultural do povo francês: “Le traducteur se flatte que les personnes qui entendent l’arabe [...] conviendront qu’il a fait voir les Arabes aux Français avec toute la circonspection que demandait la délicatesse de notre langue et de notre temps” (Galland, 1846, p. 2)15. Isso nos leva ao problema central que Borges apontou na tradução de Galland:
Las reservas de Galland son mundanas; las inspira el decoro, no la moral. Copio unas líneas de la tercer página de sus Noches: Il alla droit à l’appartement de cette princesse, qui, ne s’attendant pas à le revoir, avait reçu dans son lit un des derniers officiers de sa maison. Burton concreta a ese nebuloso officier: “un negro cocinero, rancio de grasa de cocina y de hollín”. Ambos, diversamente, deforman: el original es menos ceremonioso que Galland y menos grasiento que Burton. (Efectos del decoro: en la mesurada prosa de aquél, la circunstancia recevoir dans son lit resulta brutal.)
O segundo prefácio importante é aquele encontrado na primeira edição da tradução de Edward William Lane para o inglês, em 1839. Muito mais extenso que o anterior, ele já admite desde o segundo parágrafo que a nova tradução “implies an unfavourable opinion on the version which has so long amused us” (Lane, 1839, p. vii)17, procedendo a uma crítica da versão de Galland – da qual derivava e somente de onde vinham, segundo Lane, os defeitos principais da única versão inglesa anterior, de Jonathan Scott. Forma-se, assim, a tradição combativa a que Borges aludia: Lane concorda com os arabistas que afirmam que a versão de Galland pode ter melhorado o original (certamente pela sua ênfase nos aspectos de beleza e maravilha e por satisfazer o senso de exotismo europeu), mas nisso o teria pervertido demasiadamente.
Tal perversão se originaria em duas questões: a insuficiente familiaridade de Galland com os costumes e modos orientais e o próprio estilo de sua versão. Por um lado, vimos que Galland afirmava que as noites distinguiam claramente os persas, tártaros e indianos, e se vangloriava de que sua tradução conservava o seu caráter, de modo que o leitor os veria agir e os ouviria falar sem precisar “procurar esses povos em seu país” (“sans avoir essuyé la fatigue d’aller chercher ces peuples dans leur pays”) (Galland, 1846, p. 2); Lane, por outro lado, aponta que há uma precisão minuciosa no original em distinguir os países árabes, principalmente o Egito, de todas as outras nações, do Ocidente e do Oriente, de modo que as Mil e uma noites descrevem costumes, roupas e arquiteturas árabes mesmo em cenas na Pérsia, Turquia, Índia ou China:
Deceived by the vague nature of Galland’s version, travellers in Persia, Turkey, and India, have often fancied that the Arabian Tales describe the particular manners of the natives of those countries; but no one who has read them in the original language, having an intimate acquaintance with the Arabs, can be of this opinion: it is in Arabian countries, and especially in Egypt, that we see the people, the dresses, and the buildings, which it describes in almost every case, even when the scene is laid in Persia, in India, or in China
Ou seja: para Lane, a distinção estilística utilizada por Galland para expressar os habitantes daqueles diferentes países “tais como são” em suas falas e sentimentos seria um artifício, enquanto o original expressava, na verdade, uma unidade maior da cultura árabe em relação às outras.
O outro elemento importante que Lane introduz em seu texto diz respeito às qualificações do tradutor. Se a comparação entre original e tradução era suficiente, segundo Galland, para demonstrar a qualidade de sua versão, Lane inaugura a necessidade (repetida pelos seus sucessores, principalmente Burton) de que o tradutor seja também um aventureiro, de que seu conhecimento linguístico e cultural seja justificado por uma convivência entre os árabes. Se Galland teria pervertido a obra porque “His acquaintance with Arab manners and customs was insufficient to preserve him always from errors of the grossest description” (Lane, 1839, p. viii)19, Lane poderia utilizar como prova de sua erudição o tempo vivido no Cairo, “the city in which Arabian manners now exist in the most refined state” (Lane, 1839, p. ix):
Convinced of the truth of this assertion, I consider myself possessed of the chief qualifications for the proper accomplishment of my present undertaking, from my having lived several years in Cairo, associating almost exclusively with Arabs, speaking their language, conforming to their general habits with the most scrupulous exactitude, and received into their society on terms of perfect equality
A tradução será recebida pelos europeus, mas antes o próprio tradutor deve ter sido recebido pelos árabes como um igual. Isso não significa, no entanto, que sua consciência durante a peregrinação tenha deixado de ser europeia: Said (2007, p. 221) nota que “Ser um europeu no Oriente sempre implica ser uma consciência separada de seu ambiente e desigual em relação a esse meio”, e a razão para estar no Oriente normalmente é explicada por um conjunto pequeno de categorias de intenções; no caso de Lane, a categoria seria a do “escritor que pretende usar sua residência para a tarefa específica de fornecer material científico ao Orientalismo profissional, aquele que considera a residência uma forma de observação científica” (Said, 2007, p. 221). Se isso resultou em sua obra central, Manners and Customs of the Modern Egyptians, também é algo que se reflete em seu tratamento das Mil e uma noites: os elogios de Galland são substituídos por uma investigação histórico-filológica acerca das possíveis origens da obra, acompanhada de comentários sobre a cultura dos recitadores e copistas árabes, explicações sobre produção de livros no Egito, questões estilísticas e de gêneros literários, contestações de hipóteses orientalistas etc. Mais do que um livro de maravilha e beleza, Lane o considera como um objeto de pesquisa que ilustra sentimentos e modos árabes para os europeus, daí sua dedicação em definir mais precisamente o período dos costumes descritos pelas narrativas (Lane, 1839, p. xv), supostamente derivadas de algum original que poderia ser situado historicamente.
Como sua preocupação não é literária, omite narrativas que considera desinteressantes ou moralmente questionáveis, ou as modifica, mas com o cuidado de “to render them so as to be perfectly agreeable with Arab manners and customs” (Lane, 1839, p. xvii)21; de fato, explicita que sua intenção original era omitir todos os poemas, que só permaneceram porque senão seria diminuído o valor do livro “as illustrating Arab manners and feelings” (Lane, 1839, p. xviii)22. Se Galland viu a necessidade de, pelo decoro, corrigir as qualidades literárias do livro, Lane se descobriu confrontado com seu próprio pudor britânico: os costumes árabes, centro de sua investigação, são ao mesmo tempo objetos de curiosidade e de reprovação. Isso explica aquele traço que Borges apontou em sua tradução: em relação às “torpezas” ocasionais, Lane “las rebusca y las persigue como un inquisidor. Su probidad no pacta con el silencio [...]” (Borges, 2005, p. 113)23. Omite e suprime, mas não se esquece de comentar, em copiosas notas, as razões da supressão: um episódio que era repreensível, uma explicação repugnante, uma linha grosseira etc. “De ahí que su versión eruditísima de las Noches sea una mera enciclopedia de la evasión”, conclui Borges (2005, p. 113)24.
O que nos leva, finalmente, a Burton. Edward Said comenta a relação entre Burton e a erudição europeia nos mesmos termos combativos que havíamos apontado anteriormente:
Como viajante, Burton foi um verdadeiro aventureiro; como erudito, podia enfrentar qualquer orientalista acadêmico da Europa; como caráter, tinha plena consciência da necessidade do combate entre ele próprio e os professores uniformizados que controlavam a Europa e o conhecimento europeu com um anonimato tão preciso e tanta firmeza científica. Tudo o que Burton escreveu atesta essa combatividade, raramente com um desprezo mais franco pelos seus oponentes do que no prefácio à sua tradução das Mil e uma noites. Ele parece ter experimentado um tipo especial de prazer infantil em demonstrar que conhecia mais que qualquer erudito profissional, que havia assimilado mais detalhes, que podia tratar o material com mais inteligência, tato e frescor
Tudo isso se manifesta imediatamente em seu prefácio: como Lane, justifica-se apresentando suas qualificações, mas, ao contrário daquele, abandona o caráter de observador científico e investe na qualidade de aventureiro em terras exóticas: apresenta-se como exilado em “the luxuriant and deadly deserts of Western Africa” e em “the dull and dreary half clearings of South America” (Burton, 2016)25, ou como peregrino em Medina e Meca, enquanto discorre sobre encantos e talismãs; os epítetos que usa para se referir à Arábia evocam a maravilha, confundindo intencionalmente a região real e a ficcional: “diaphanous skies”, “air glorious as aether”, “the after glow transfiguring and transforming, as by magic, the homely and rugged features of the scene into a fairy land lit with a light which never shines on other soils or seas” (Burton, 2016)26 etc.
Seu desdém pelas traduções anteriores é claro. “Our century of translations, popular and vernacular, from (Professor Antoine) Galland’s delightful abbreviation and adaptation (A.D. 1704), in no wise represent the eastern original”, diz Burton; também dedica, logo depois, um parágrafo inteiro a Lane, “That amiable and devoted Arabist” (Burton, 2016)27. A expressão é sarcástica: Lane é caracterizado como o bom moço cuja moral impedia de traduzir qualquer conteúdo questionável, e sua versão foi feita para a mesinha da sala: Burton critica suas omissões de qualquer conteúdo que se aproximasse do licencioso, as alterações formais, incluindo a divisão de capítulos e conversão de versos em prosa, o latim anglicizado e erros infantis que teriam desfigurado o original. Acima de tudo, Lane seria, ao mesmo tempo, “too Oriental and not Oriental enough” (Burton, 2016)28.
A proposta de Burton é apresentar as noites tais como realmente são, e escrever “as the Arab would have written in English” (Burton, 2016); reivindica sua superioridade sobre Galland e Lane “by preserving intact, not only the spirit, but even the mécanique, the manner and the matter” (Burton, 2016)29. Ou seja: retoma de Galland a maravilha, a beleza, o exótico e o aventuresco (o que as noites ofereciam de novidade para a linguagem e a literatura); de Lane, os costumes, modos e sentimentos precisos, historicizados; adiciona a estes uma nova preocupação com a expressão formal: não pretende converter o árabe à delicadeza do francês, nem omiti-lo pelo critério moral britânico. Claro que, como discutimos antes, isso não torna sua tradução “plain and literal”, tal como queria, e de todo modo é afetado pela necessidade de suplantar aqueles outros tradutores, oferecendo um Oriente que parece mais maravilhoso e menos regido pelo decoro literário que o de Galland, e simultaneamente mais explícito em suas práticas culturais e mais licencioso que o de Lane, reforçando na tradução o Oriente da fantasia sexual do século XIX. Sobre isto, escreve Said:
O que eles frequentemente procuravam era um tipo diferente de sexualidade, talvez mais libertina e menos assolada pela culpa; porém, mesmo essa busca, se repetida por um número suficiente de pessoas, podia tornar-se (e tornou-se) tão regulada e uniforme quanto a própria erudição
Há muito que se dizer ainda sobre esses três prefácios e muitos outros; afinal, mesmo em uma tradução recente, como a de Jarouche, ainda encontramos reflexos do combate contra os precursores – ao falar sobre o manuscrito mais antigo do ramo sírio, atualmente preservado na Biblioteca de Paris, o tradutor brasileiro lembra que este “Pertenceu a Jean-Antoine Galland, primeiro tradutor – e na opinião de alguns o pior – do Livro das mil e uma noites” (Jarouche, 2006, p. 28). Mas encerramos nossa discussão, saídos dela com uma consideração central: aqueles quase dois séculos de traduções, de Galland a Burton, transformaram as Mil e uma noites não só em uma visão (na verdade, várias visões) do Oriente, mas também em um erudito campo de batalha orientalista, formando uma curiosa tradição que, continuada até a contemporaneidade, lança uma mágica luz sobre a tarefa de traduzir outros mundos – que podem ser, afinal, reflexos subterrâneos de nossa própria identidade cultural, sexual e literária.
Referências
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Bakhtin, Mikhail. “O romance como gênero literário”. In: Bakhtin, Mikhail. Teoria do romance III: o romance como gênero literário. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2019. p. 65-111.
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Benjamin, Walter. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. Obras escolhidas. v. 1, p. 197-221.
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Notas
Autor notes
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