Resenha
Spoturno, M. L. (Org.). (2022). Subjetividad, discurso y traducción: la construcción del ethos en la escritura y la traducción. Ediciones Universidad de Valladolid.
Spoturno, M. L. (Org.). (2022). Subjetividad, discurso y traducción: la construcción del ethos en la escritura y la traducción. Ediciones Universidad de Valladolid.
Cadernos de Tradução, vol. 44, no. 1, e95205, 2024
Universidade Federal de Santa Catarina
Spoturno M. L.. Subjetividad, discurso y traducción: la construcción del ethos en la escritura y la traducción. 2022. Ediciones Universidad de Valladolid |
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Received: 22 June 2024
Revised document received: 13 December 2024
Accepted: 11 November 2024
Published: December 2024
Em Subjetividad, discurso y traducción: la construcción del ethos en la escritura y la traducción (Spoturno, 2022), composto por nove capítulos, um prólogo e uma introdução, mulheres de diferentes contextos geopolíticos, espalhadas por variados continentes, escrevendo em múltiplos gêneros textuais e atravessadas pelas mais específicas e plurais variáveis identitárias são tomadas não como objetos, mas como sujeitos de estudo pelas pesquisadoras e pelo pesquisador que assinam os textos. Assim, com trabalhos que analisam de Olga Grjasnowa, na Alemanha, passando por Nicole Brossard, no Canadá, pela nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, pela cubano-estadunidense Achy Objeas, pelas múltiplas autoras de This Bridge Called My Back y de Esta puente, mi espalda e chegando à Argentina, com María Elena Walsh, Alicia Kozameh e Gabriela Cabezón Cámara, este livro ancora-se em diferentes produções discursivo-literárias a partir de uma ampliada concepção de tradução enquanto prática subjetiva.
No prólogo, María Carmen África Vidal Claramonte nos oferece um belo texto em que propõe a tradução como o resultado de encontros, sempre complexos, eventualmente harmônicos, eventualmente conflitantes; uma atividade inerentemente ambivalente, sempre plural. Nessa breve reflexão, a autora destaca a importância do “necessário e polêmico” conceito que representa o fio condutor do livro, ethos – sobretudo a partir da formulação de María Laura Spoturno –, e enfatiza a sua contribuição para o campo da tradução, que, embora já tenha, por fim, se distanciado de perspectivas limitadas a buscas por equivalências semânticas, pode certamente se beneficiar de estudos que, como os apresentados nesse livro, demonstram que “a tradução é um texto vivo, um território desterritorializado e palimpsêstico, nunca completo” (Spoturno, 2022, p. 19, minha tradução ).
Na introdução, María Laura Spoturno, organizadora da obra e uma de suas autoras, conduz-nos pelo conceito de ethos, ponto de encontro entre todos os artigos do livro. Trata-se, como mostra, de um conceito antigo, que remete à Grécia antiga e às reflexões de Aristóteles. No contexto da retórica clássica, como aponta a autora, “[...] a noção de ethos é definida como a imagem de si que o orador plasma no discurso” (Spoturno, 2022, p. 21) e, no século XX, seria retomada por diferentes perspectivas teóricas que, em variados campos do conhecimento, adquiriria diferentes formas. De Max Weber a Pierre Bordieu, passando pelas elaborações da análise do discurso de Oswald Ducrot, é a reflexão de Ruth Amossy que, como vemos ao longo dos capítulos, exercerá a principal influência nos estudos apresentados no livro. Amossy (1999) distingue o ethos discursivo – isto é, a imagem do locutor de uma enunciação que deriva da forma como este apresenta tal enunciação, das escolhas que faz e apresenta no gênero discursivo em que enuncia e da maneira como reelabora o conhecimento que o público tem de sua existência – do ethos prévio – um resultado da concepção que o alocutário tem em relação ao locutor antes de acessar a enunciação deste. Segundo o trabalho reflexivo de Amossy (1999), em relação ao ethos também são possíveis operações, como o que chama de “retrabalho do ethos prévio”, e variações, como ethos individuais e coletivos.
O conceito de ethos chegaria aos Estudos da Tradução sob a influência dessas reflexões e com o trabalho de diversos nomes que, sobretudo no século XX, vêm se dedicando à questão da subjetividade e da autoria na prática e na reflexão tradutórias. Nesse contexto, o trabalho de María Laura Spoturno, especialmente no âmbito do projeto de pesquisa “Escrituras de minorias, ethos y (auto) traducción”, que coordena no Instituto de Investigaciones en Humanidades y Ciencias Sociales da Universidad Nacional de La Plata, tem-se tornado uma importante referência. A autora propõe em 2017 a categoria ethos do tradutor, “[...] a imagem discursiva que se associa à figura tradutória, a entidade textual a cargo da enunciação do discurso traduzido” (Spoturno, 2017, p. 24, minha tradução1), que será amplamente utilizada ao longo de Subjetividad, discurso y traducción. Esse ethos resulta da interação entre dois níveis – o discursivo e o pré-discursivo – a partir da qual é possível identificar tanto a posição enunciativa associada à figura de quem traduz no texto traduzido quanto o status que essa figura ocupa em um determinado campo cultural. Assim, Spoturno introduz os artigos que compõem o livro por ela organizado e que buscam contribuir para o campo da tradução, e mais especificamente para a tradução de discursos literários, a partir da análise de práticas tradutórias e autotradutórias com foco na construção do ethos.
De fato, a contribuição do livro é ampla e, com base em diferentes abordagens, as reflexões presentes no livro indicam múltiplos caminhos para a análise do ethos no campo da tradução.
No primeiro artigo, Soledad Pereyra discute o trabalho da escritora contemporânea Olga Grjasnowa, cuja obra literária inclui sua perspectiva pessoal e subjetiva sobre a migração e a busca por refúgio na Alemanha, um fenômeno resultado de crises humanitárias antigas e, paradoxalmente, ainda bastante atuais. Em sua análise, Pereyra, com o apoio de paratextos, da história pessoal, de manifestações públicas e de textos não ficcionais escritos por Grjasnowa, busca observar a construção de um ethos coletivo na obra literária desta escritora – emigrada do Azerbaijão na década de 1990 com sua família – e representativo da experiência do refugiado. De acordo com seu estudo, Grjasnowa de fato parece elaborar um ethos coletivo – segundo os termos de Amossy (2010) –, já que, em seu discurso, amplia a imagem de si para incluir um grupo e, com isso, apresenta ao interlocutor uma imagem desse grupo. Nesse artigo, no entanto, Pereyra apenas menciona brevemente a tradução para o inglês do romance de Grjasnowa, não se aprofunda nesse estudo e se limita a tecer hipóteses para a tradução do título.
Na segunda colaboração apresentada no livro, Ana María Gentile traz à cena uma das escritoras mais proeminentes do feminismo ocidental da segunda metade do século XX e uma das grandes inspirações da Tradutologia feminista: Nicole Brossard. Nesse estudo, Gentile se debruça sobre a tradução de um livro de poemas para o espanhol em que se destaca a escrita feminista e a prática de desconstrução e subversão da linguagem de Brossard. Nessa reflexão, observa como a organização da edição bilingue (francês/espanhol) dos poemas de Brossard coloca em jogo uma relação complementar, e não substitutiva: o texto traduzido complementa o de partida, com o qual interage. Reconhecendo as pegadas intervencionistas na linguagem deixadas por Brossard, a tradutora Mónica Mansour adota procedimentos que, dentro das possibilidades de intervenção que a língua espanhola oferece, permitem-lhe estruturar textos que dialogam com o discurso poético da canadense.
Em seguida, Andrea Laura Lombardo se debruça sobre a tradução para o espanhol de uma das autoras mais celebradas do século XX, a nigeriana Chimamanda N. Adichie. Para isso, concentra-se na perspectiva feminista e transnacional de seus escritos, em especial a obra This Thing Around Your Neck – um livro de contos atravessado por um plurilinguismo que põe em contato diversas subjetividades e por uma interlíngua que destaca variáveis sociopolíticas e culturais e situa os personagens no contexto discursivo. Lombardo observa, no entanto, o apagamento de muitas dessas marcas na tradução para o espanhol, que homogeneíza as enunciações e não recria a variedade e a subjetividade linguístico-cultural identificada no texto de partida. Conclui, assim, que a reconfiguração das marcas de heterogeneidade linguística e as subjetividades femininas e transnacionais que conformam o texto de Adichie e expressam seu ethos autoral ocorre apenas parcialmente, já que em muitos casos a tradução para o espanhol apaga as marcas diferenciais e resulta em um texto homogêneo.
Na continuação do livro, Gabriel Matelo e María Laura Spoturno analisam a adaptação ao espanhol de um dos marcos do feminismo do século XX, a obra coletiva This Bridge Called My Back, antologia organizada por Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa com textos escritos por autoras de diferentes variáveis identitárias reunidas pela identidade política “women of color”. Segundo Matelo e Spoturno, This Bridge projeta um ethos interseccional coletivo, e a adaptação desse livro para o espanhol – Esta puente, mi espalda – propõe um trabalho que usufrui do potencial transformador das práticas tradutórias. O livro em espanhol é uma reelaboração da antologia e não inclui apenas os textos da versão original, mas adiciona outros, propõe ajustes e faz alterações significativas considerando o público leitor ao qual se dirige – as tradutoras-adaptadoras marcam sua posição ético-política de diversas formas no texto traduzido. Além disso, Matelo e Spoturno veem a interseccionalidade como o princípio fundador da obra em inglês e também de sua adaptação ao espanhol, em que o ethos coletivo não é definido como uma soma dos ethos autorais das distintas vozes que enunciam nesses textos, mas como resultado da intersecção que se observa na experiência dessas mulheres.
No quinto artigo, Sabrina Solange Ferrero discorre sobre questões de autoria, (auto)tradução e ethos tomando como sujeito de seu estudo a escritora de origem cubana e nacionalizada estadunidense Achy Obejas. Além de escritora, editora e jornalista, Obejas é tradutora, e não apenas de obras suas e de outras autorias, mas também na dupla direção: do inglês ao espanhol e vice-versa. Em sua análise, que realiza com o apoio da perspectiva teórica sobre ethos elaborada por Spoturno, Ferrero observa que, no caso da autotradução de Obejas, o ethos não é exatamente autotradutor, mas resultado de um processo de reconfiguração do ethos autoral. Observa também que, como autotradutora, Obejas tende a simplificar seus textos para o novo público de chegada, tanto em espanhol quanto em inglês, mas que, especificamente quando se autotraduz para este último idioma, produz um estilo mais literário do que o observado no texto em espanhol. Enquanto tradutora, o ethos que Ferrero identifica em Obejas é um ethos de tradutor mediador, que se vê mais vinculado a um papel de agente de aproximação cultural.
Melissa Stocco, no sexto artigo que integra o livro, analisa duas subjetividades literárias e políticas fundamentais na Abya Yala/América Latina: a de María Isabel Lara Millapán e a de Liliana Ancalo, escritoras e vozes engajadas na representação do povo e da língua mapuche, o mapudungun. Ambas, como muitos autores indígenas, recorrem com frequência à autotradução como “[...] operação linguístico-cultural e ferramenta poético-política central para a elaboração de suas obras bilingues” (Spoturno, 2022, p. 128, minha tradução2). Neste artigo, Stocco apresenta essas duas subjetividades conectadas por uma origem comum, oprimida e, ao mesmo tempo, reivindicada a partir de sua expressão linguístico-literária. No entanto, em Millapán vê a construção do ethos autoral vinculado a sua ancestralidade e em diálogo com as especificidades culturais do povo mapuche; sua prática poética e autotradutória é dialógica e se relaciona com outras possibilidades de existência, que incluem seres não humanos e entidades espirituais. Já em Ancalao o ethos autoral é retrabalhado em seu processo de subversão do papel da língua espanhola em sua constituição subjetiva e de aproximação ao mundo do mapudungun; a autotradução em seu caso, como destaca Stocco, cumpre um papel fundamental nesse processo de afirmação de sua autoridade enunciativa como sujeito mapuche.
No sétimo artigo apresentado, Mariela Romero mobiliza a autora argentina María Elena Walsh em sua prática de tradução de textos literários para as infâncias. Como a autora demonstra, Walsh foi uma prolífica tradutora de livros desse gênero, ainda que nem sempre tenha sido devidamente reconhecida como tal. Romero, para identificar o ethos global associado a María Elena Walsh, articula o conceito de retrabalho do ethos prévio, segundo a proposta de Spoturno (2019), a partir do qual o locutor reconstitui ou altera a imagem que o interlocutor tenha em relação a este orador. Romero observa, nesse caminho, mutações no status artístico de Walsh, o que a conduz a um ethos global, segundo a autora, inovador e ativo, que incluiria, também, suas importantes manifestações políticas e que se posicionaria mais exatamente no espaço amplo de uma atuação artística do que exclusivamente como autora ou tradutora.
No oitavo capítulo, Gabriela Luisa Yañez, destacando a importância de práticas de tradução feministas transnacionais, apresenta sua análise da tradução para o inglês da narrativa testemunhal Pasos bajo el agua, da escritora argentina Alicia Kozameh, com foco na construção de seu ethos. Kozameh foi presa em 1975 por agentes da ditadura civil-militar que vitimou a Argentina e, em Pasos, introduz não apenas esse violento evento histórico em uma perspectiva literária, mas o mescla com sua própria experiência. A partir disso, Yañez busca identificar o ethos coletivo que resulta tanto da obra de partida quanto de sua tradução apoiando-se na hipótese de que ambas configuram esse ethos “[...] como um mecanismo discursivo de denúncia e, eventualmente, subversão das inequidades de gênero” (Spoturno, 2022, p. 167, minha tradução3). Nesse sentido, Yañez observa a projeção de um ethos grupal, já que a obra de Kozameh dá voz a distintas mulheres e experiências com a prisão e a violência do regime ditatorial; assim, contribui para a desarticulação de uma subjetividade feminina única e estável, articulando criticamente construções estereotípicas. Mais que apenas um ethos coletivo, Yañez aponta em sua reflexão a constituição de uma multiplicidade de ethos coletivos. A tradução da obra recria não apenas a rede léxico-discursiva do texto de partida, mas também, segundo Yañez, o ethos autoral e consegue situar a narrativa em seu contexto geográfico, político e social.
Por fim, encerrando o volume, Magdalena Chiaravalli e María Laura Escobar Aguiar apresentam em seu artigo uma análise do conceito de ethos a partir de um recente romance latino-americano que chamou a atenção da crítica internacional: Las aventuras de la China Iron, da argentina Gabriela Cabezón Cámara. Nesse texto, as autoras identificam no romance um ethos autoral que denominam queer em função das múltiplas ambiguidades que o constituem e que atravessam não só a narrativa, mas também a sintaxe e as escolhas lexicais propostas por Cabezón Cámara. Subvertendo a clássica história de Martín Fierro, personagem central da constituição cultural da nação argentina, a escritora, dando protagonismo a China, esposa de Fierro segundo a história clássica, reescreve o contexto, as relações sociais e sexuais, instaurando uma oposição e um conflito com o “esperado”, com o padrão, o que, para Chiaravalli e Spoturno, configura seu caráter queer. Assim, com o apoio de recentes reflexões que aproximam os estudos da tradução da reflexão queer, afirmam a importância de traduzir textos queer de um modo não centrado na proposição de equivalências semânticas, mas que, pelo contrário, abra espaços e ofereça caminhos para diferentes leituras e interpretações, respeitando e reconstruindo as ambiguidades do texto. Em sua análise da tradução para o inglês de Las aventuras de la China Iron, no entanto, observam uma redução dessa multiplicidade de possibilidades, tão presentes e significativas no texto de partida, assim como uma atenuação de sua força disruptiva e até mesmo o apagamento de ambiguidades. Concluem, nesse sentido, com a constatação de que o ethos queer do texto em espanhol não é projetado da mesma forma e com a mesma intensidade na tradução.
Com uma ampla variedade de discussões, perspectivas, obras, discursos e sujeitas analisadas, Subjetividad, discurso y traducción: la construcción del ethos en la escritura y la traducción permite a ampliação dos horizontes tradutórios, apresentando ao público pesquisas que não apenas se debruçam sobre textos e questões específicas, mas oferecem novos caminhos para trabalhos no campo. A tradução, nesse livro, é celebrada como atividade criativa, subjetiva e autoral, e o conceito de ethos, como as autoras e o autor do livro demonstram, tem o potencial de promover diálogos e reflexões com as mais variadas produções tradutórias.
Cabe destacar que nem todas as posições e análises propostas no livro são elogiosas ou coniventes com as traduções discutidas: pelo contrário, observamos posições críticas sobretudo em relação ao apagamento das subjetividades e marcas diferenciais dos discursos literários que analisam. São, nesse sentido, textos com um evidente posicionamento ético sobre a tradução e que a valorizam e defendem por seu potencial de transformação e ampliação interpretativa.
Referências
Amossy, R. (1999). Images de soi dan le discours. La construction de l’ethos. Delachaux et Niestlé.
Amossy, R. (2010). La présentation de soi. Ethos et identité verbale. PUF.
Spoturno, M. L. (2017). The presence and image of the translator in narrative discourse: towards a definition of the translator’s ethos. Moderna Spräk, 1, p. 173–196.
Spoturno, M. L. (2019). El retrabajo del ethos en el discurso autotraducido. El caso de Rosario Ferré. Hermeneus, Revista de Traducción e Interpretación, 21, p. 323–354.
Spoturno, M. L. (Org.). (2022). Subjetividad, discurso y traducción: la construcción del ethos en la escritura y la traducción. Ediciones Universidad de Valladolid.
Notes
Author notes
marina.waquil@ufrgs.com
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