Artigo
LIDERANÇA GLOBAL: CONTEXTO, CONCEITOS E DESAFIOS NA ATUAÇÃO DE EXECUTIVOS BRASILEIROS
GLOBAL LEADERSHIP: CONTEXT, CONCEPTS AND CHALLENGES IN THE PERFORMANCE OF BRAZILIAN EXECUTIVES
LIDERANÇA GLOBAL: CONTEXTO, CONCEITOS E DESAFIOS NA ATUAÇÃO DE EXECUTIVOS BRASILEIROS
Caderno de Administração, vol. 29, núm. 2, pp. 80-99, 2021
Unuversidade Estadual de Maringá
Recepção: 07 Junho 2021
Aprovação: 22 Outubro 2021
RESUMO: Na pesquisa qualitativa apresentada neste artigo, foram realizadas entrevistas com executivos brasileiros de uma multinacional da área de tecnologia da informação, que tem 109 anos de existência. Essa empresa começou a atuar no Brasil em 1920, está presente em mais de 170 países, teve faturamento global de US$73,6 bilhões em 2020 e destaca-se por sua dedicação à pesquisa, inclusive na colaboração à conquista de quatro Prêmios Nobel em Física, por membros dos seus laboratórios. O objetivo foi o de avaliar os seguintes aspectos da liderança global: o contexto em que ela acontece, a assimilação do conceito que a diferencia de uma liderança local e seus principais desafios. Os sete executivos entrevistados são todos da área de tecnologia, atuam em nível global e foram entrevistados por meio de um roteiro semiestruturado. Os resultados mostraram que, em termos de contexto, as características diversas dos países levam à necessidade de cooperação e proporciona intensas oportunidades de aprendizagem. Quanto aos conceitos, a principal diferença entre líderes locais e globais está na comunicação, pois o líder global é caracterizado por sua capacidade de se comunicar em diversos idiomas, gerenciando equipes remotas e muito diversas. Os principais desafios se revelaram na atuação multicultural e na gestão de equipes remotas, com fusos-horários diversos, o que leva a jornadas de trabalho exaustivas. A relevância da pesquisa está no aprendizado que líderes locais podem ter com os líderes globais, que sempre atuaram em equipes remotas, especialmente no momento atual do trabalho, caracterizado pelos constantes desafios do home office.
Palavras-chave: Líderes globais, Contexto da liderança global, Conceito de liderança global, Desafios da liderança global.
ABSTRACT: In the qualitative research presented in this article, interviews were conducted with Brazilian executives from a multinational of information technology area, which has been in existence for 109 years. This company began operating in Brazil in 1920, is present in more than 170 countries, had global revenues of US$ 73.6 billion in 2020 and stands out for its dedication to research, including its collaboration in winning four Nobel Prizes in Physics by members of their laboratories. The objective was to assess the following aspects of global leadership: the context in which it takes place, assimilation of the concept that differentiates it from local leadership and its main challenges. The seven executives interviewed are all from the technology area, work at a global level and were interviewed through a semi-structured script. The results showed that, in terms of context, the different characteristics of the countries lead to the need for cooperation and provide intense learning opportunities. As for concepts, the main difference between local and global leaders is in communication, as the global leader is characterized by his/her ability to communicate in different languages, managing remote and very diverse teams. The main challenges were revealed in the multicultural work and in the management of remote teams, with different time zones, which leads to exhausting working hours. The relevance of the research lies in the learning that local leaders can get from global leaders, who have always worked in remote teams, especially at the present moment of the work, characterized by the constant challenges of the home office.
Keywords: Global leaders, Global leadership context, Global leadership concept, Global leadership challenges.
1 INTRODUÇÃO
O debate sobre a liderança global apresenta crescente complexidade, principalmente por conta das recentes mudanças na própria dinâmica da globalização. Corral, Link e Gerzon (2018) afirmam que, no mundo globalizado, há um movimento de reinvenção das formas de governar, de negociar e de conceber o movimento econômico. Nesse cenário, a liderança global é a chave para um mundo interdependente.
No momento em que as organizações conduzem suas operações para fora de seus países de origem, sua capacidade de atrair e desenvolver pessoas que não apenas executem tarefas e atividades, mas que também influenciem e motivem ativamente as pessoas em nível global, é algo que pode alavancar uma importante fonte de vantagem competitiva (CALIGIURI, TARIQUE, 2009; CARPENTER, SANDERS; GREGERSEN, 2001; MENDEHALL et al., 2013). É importante ressaltar que a liderança global tem atraído um interesse crescente, tanto na teoria quanto na prática, pois, mesmo no ambiente doméstico, as empresas têm, frequentemente, se relacionado com empregados multiculturais, parceiros de negócios e outras partes interessadas (LUCKE, 2020).
Para Osland (2013), o líder global é quem lidera os esforços globais de mudança nos setores público, privado e sem fins lucrativos. Enquanto isso, Reiche e Mendenhall (2013) apresentam três categorias de lacunas de pesquisas da liderança global: (1) sobre as características de liderança global em relação à distinção de seu papel e seu comportamento; (2) sobre as habilidades da liderança global, com o fim de refinar a identificação do seu comportamento na gestão de equipes e de organizações; (3) sobre a eficiência da liderança global, no intuito de mapear situações e estilos que afetem sua eficácia.
Diante das lacunas apontadas por Reiche e Mendenhall (2013), é possível perceber a necessidade de continuidade dos estudos sobre a liderança global. Além disso, pesquisas em países específicos deverão ser realizadas levando-se em consideração a perspectiva intercultural (BRODBECK; EISENBEISS, 2014). Atendendo a essa recomendação, a pesquisa qualitativa apresentada neste artigo foi realizada em uma das maiores empresas do mundo na área de tecnologia da informação, somente com executivos brasileiros.
O objetivo central foi o de avaliar os seguintes aspectos da liderança global: o contexto em que ela acontece, a assimilação do conceito que a diferencia de uma liderança local e seus principais desafios. É relevante destacar que a empresa em que esses executivos trabalham tem 109 anos de existência e que começou a atuar no Brasil em 1920. Ela está presente em mais de 170 países, teve faturamento global de US$73,6 bilhões em 2020 e destaca-se por sua dedicação à pesquisa, inclusive na colaboração à conquista de quatro Prêmios Nobel em Física por membros dos seus laboratórios.
Como desafios associados ao tema central deste artigo, que é a liderança global, Reiche et al. (2019) propõem três futuras direções que podem contribuir e fazer avançar o corpo de pesquisas. A primeira delas envolve um esforço mais sistemático para desenvolver teorias integradas; a segunda refere-se ao tipo de pesquisa empírica, que deverá envolver projetos de pesquisa com critérios de amostragem mais claramente definidos, que permitam examinar os resultados de liderança global em maior profundidade; a terceira diz respeito ao processo específico de realização dessas pesquisas. Há também a preocupação com o fato de que a maioria das pesquisas são de dissertações e que a forte concentração desse tipo de pesquisa nos Estados Unidos limita o escopo geográfico de uma disciplina que deve se esforçar para ter um alcance global.
Como organização, este artigo é dividido em cinco sessões. Após esta introdução, o referencial teórico apresenta os conceitos que apoiam a pesquisa de campo, cuja metodologia encontra-se na sessão seguinte. Por fim, a sessão de apresentação e análise dos resultados é seguida por considerações finais, em que as contribuições da pesquisa são expostas.
2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
A liderança pode ser considerada um processo natural, que emerge da convivência entre as pessoas, mas que tem forte associação com o mundo organizacional (VELOSO; TREVISAN; SILVA, 2019). Ao reafirmar o caráter social da liderança, esses autores enfatizam o estabelecimento de relações de influência e, a partir dessa visão social, reforçam a relevância de entendê-la em seu caráter inerente à convivência humana.
No caso da liderança global, o contexto social, ampliado por múltiplas fronteiras, faz com que o líder que atua globalmente tenha que enfrentar um conjunto de desafios que requerem capacidades que incluem sua própria assimilação das diferenças entre sua atuação e a atuação de um líder local. Dessa forma, este referencial teórico está dividido em três temas: o contexto, os conceitos e os desafios da liderança global.
2.1 O CONTEXTO DE LIDERANÇA GLOBAL
Lane, Maznevski e Mendenhall (2004) apontaram que a liderança global difere da liderança local em alguns aspectos. Existem questões relacionadas com a conectividade, com o alargamento das fronteiras, com a complexidade, com desafios éticos e com a administração de tensões e de paradoxos. Além disso, é importante que o líder global reconheça diferentes padrões, lidere esforços de mudança em larga escala e realize a gestão da diversidade.
Segundo Mendenhall (2013), existem evidências para fazer uma distinção entre líderes locais e líderes globais. Para ele, a diferença está firmemente enraizada em contextos que são qualitativamente diferentes. Outros pesquisadores parecem concordar que a liderança global é significativamente diferente de liderança local, devido à importância do contexto em que ela acontece. Assim, as características do contexto global exercem maior influência para a liderança do que as características dos contextos locais (LANE et al., 2004; MENDENHALL et al., 2012; OSLAND et al., 2006). Especificamente sobre o líder global, Lane, et al. (2004) explicam que esse líder não é necessariamente um executivo de uma organização global; qualquer executivo responsável por equipes em vários locais geograficamente diferentes é um líder global.
Em pesquisa realizada por Osland, Bird e Oddou (2012), com o objetivo de identificar como os líderes globais percebem seu ambiente de trabalho, foram entrevistados 20 líderes globais de várias nacionalidades: americanos, indianos, franceses e alemães. Esse estudo encontrou quatro temas comuns sobre a percepção dos líderes sobre seu trabalho: a multiplicidade da gestão, os enormes desafios quanto às tarefas, a precariedade e a ambiguidade. Quanto à multiplicidade, os líderes globais descreveram seu trabalho como sendo complexo, com vários stakeholders, vários papéis e várias questões que surgem devido à multiplicidade de culturas, de empresas, de países e de entidades governamentais. O trabalho foi descrito como desafiador porque as tarefas que tinham de realizar não poderiam ser facilmente executadas, uma vez que eles não possuíam uma solução a priori e porque o tempo para a execução de tais tarefas era escasso. Foi citada também a precariedade, pois os resultados são imprevisíveis e potencialmente negativos e eles possuíam autoridade limitada, com alto grau de dependência e interdependência com outros parceiros. A ambiguidade refere-se ao fato de que não existem soluções usuais para um problema. Osland, et al. (2012) concluíram que o fluxo e a interdependência, verbalizados por Lane, et al. (2004), não foram citados como interferentes no ambiente de trabalho do líder global.
Os líderes globais, segundo Dutra, Dutra e Dutra (2017), devem trabalhar em organizações que estão constantemente ampliando suas fronteiras, tanto geograficamente, quanto na busca por novos mercados de atuação. Essa ampliação de fronteiras tem os seguintes objetivos: gerar mais resultados para os acionistas; reduzir o risco dos negócios; criar sinergia entre negócios; otimizar as competências organizacionais já instaladas. Para isso, os líderes que pretendem se tornar globais vêm buscando seu aprimoramento em gestão de negócios, dentro e fora do Brasil.
A ampliação de fronteiras mencionada por Dutra et al. (2017) atualiza a visão contextual de Mendenhall et al. (2012), que apontam três dimensões em contextos de liderança global: contextual, relacional e espaço-temporal. A dimensão contextual refere-se à proposta de Lane, et al. (2004), em que são consideradas a multiplicidade, a interdependência, a ambiguidade e o fluxo, gerando uma grande complexidade para o trabalho do líder global. A dimensão relacional é caracterizada pelo constante e intenso fluxo de informações trocado entre os vários e os múltiplos canais. A terceira dimensão, a do espaço-temporal, diz respeito à intensidade com a qual o líder deve se mover fisicamente através de fronteiras geográficas, culturais e nacionais, e não apenas de se comunicar entre elas por meio de tecnologias virtuais.
Lucke (2020) explica que, para compreender a liderança multicultural e a maneira pela qual as equipes multiculturais vivem, é necessário envolver-se com a cultura e com a multiplicidade cultural, uma vez que a cultura molda a maneira pela qual os membros da organização experimentam, veem e compreendem o mundo. Esse autor entende que toda interação de trabalho e a própria estrutura organizacional são afetados e constituídos por atos de interpretação. Em contextos monoculturais domésticos, essa “culturalidade” fica em um segundo plano, no entanto, o contexto multicultural exige uma melhor compreensão desta multiculturalidade. Nielson (2020) acrescenta que, não somente os líderes globais, mas também os gerentes de pequenas empresas locais, estão trabalhando em condições de trabalho de dispersão geográfica, ambiente VUCA e enfrentamento de paradoxos, especialmente durante a crise da COVID-19, ou seja, estão experimentando e exercendo a “liderança extrema”.
Frente à importância da cultura no contexto multicultural, são apresentadas duas abordagens que são utilizadas na gestão das empresas, Hofstede e projeto Globe. Hofstede (2003) trabalhou com culturas nacionais para compreender as dimensões culturais em muitos países e o seu impacto sobre as organizações. Para esse autor, cultura nacional pode ser definida como uma “programação mental”, o “software da mente”, produzido no ambiente social em que a pessoa cresce e adquire experiências. Essa mentalidade é que distingue os membros de um grupo dos de outros países. As dimensões culturais são divididas em quatro dimensões, apresentadas no Quadro 1, que foram formuladas a partir de uma pesquisa realizada com funcionários da IBM, que trabalhavam em 50 países. Mais tarde, outros dados foram coletados e foi construído o quinto fator (orientação de longo prazo versus orientação de curto prazo). A partir dessa pesquisa, foi possível agrupar os países de acordo com as suas semelhanças culturais e fornecer orientações práticas sobre como ajustar uma abordagem de liderança quando os gestores se deslocam de país para outro.
O projeto de pesquisa Globe reúne uma equipe de mais de 160 pesquisadores que têm trabalhado desde 1992. Nessa pesquisa, já foram coletados dados sobre valores, práticas culturais e atributos de liderança com mais de 17.000 gestores, em 62 sociedades. Esse projeto encontrou evidência para elaborar dez clusters: Anglo (por exemplo, Inglaterra, Estados Unidos, África do Sul Branca); Europa Latina (por exemplo, Israel, Itália, Suíça Francesa); Europa Nórdica (por exemplo, Finlândia); Europa Germânica (por exemplo, Áustria, Países Baixos); Europa Oriental (por exemplo, Hungria, Cazaquistão); América Latina (por exemplo, Brasil, México); África do Sul do deserto do Saara (por exemplo, Zâmbia, África do Sul Preta); Árabe (por exemplo, Turquia, Marrocos); Sul da Ásia (por exemplo, Índia, Malásia, Irã); Confúcio e Ásia (por exemplo, Taiwan, Japão) (HOUSE et al., 2004). As dimensões culturais do Globe são apresentadas no Quadro2.

2.2 CONCEITOS DE LÍDER GLOBAL
Segundo Corral et al. (2018), para um líder tornar-se global, é preciso começar por sua própria vida, independentemente de sua nacionalidade ou profissão. Porém, é importante considerar que, na alta complexidade do exercício da liderança global, existem outros focos de pressão que devem ser considerados, como, por exemplo, o ambiente VUCA. Esta sigla compreende os seguintes elementos: volatility (mudanças rápidas e em larga escala); uncertainty (o futuro não pode ser previsto com precisão); complexity (os desafios são complicados, pois existem poucas causas individuais ou soluções para os problemas); e ambiguity (há pouca clareza do significado e dos efeitos que são decorrentes dos eventos) (CLARKE, 2015).
Mendenhall et al. (2012) concluíram que, apesar de vários pesquisadores terem entrado na discussão da definição de líder global, ainda não existe um consenso. Mendenhall (2013) estabelece uma cronologia para o nascimento da liderança global nas seguintes décadas: em 1960, alguns pesquisadores passaram a considerar que as lideranças em outras culturas e as implicações dessas diferenças culturais nas lideranças influenciam as pessoas que trabalham em multinacionais. Na década de 1970, ocorreu o aumento das pesquisas sobre os desafios associados ao gerenciamento de subordinados de culturas diferentes. Na década de 1980 a 1990, aumentaram as pesquisas sobre as variáveis da efetividade da liderança e sobre o gerenciamento entre as culturas. As pesquisas sobre liderança global cresceram na década de 1990 com o aumento da globalização e a necessidade de desenvolver líderes globais competentes.
Desde os anos 1990, houve uma construção do ambiente VUCA, citado por Clarke (2015), o que colabora com o entendimento do estudo de Huesing e Ludema (2017), que observaram líderes globais em ação, durante cinco anos, visando descobrir o que eles realmente fazem no seu trabalho diário. Além de observar, esses autores também realizaram entrevistas informais com esses líderes e com seus colegas e obtiveram resultados que indicaram as seguintes características desse tipo de trabalho: (1) múltiplos fusos horários e distância geográfica; (2) longas horas de trabalho; (3) horários flexíveis e tempo fluido; (4) dependência da tecnologia; (5) trabalho solitário, muito em home office, porém sempre conectado a outros colegas, comunicando e coordenando pessoas em outros países; (6) muitas viagens internacionais; (7) expertise funcional com alcance global; (8) boa parte do tempo alocada para facilitar o fluxo de informações e para dar conselhos; (9) gestão da complexidade; e (10) confronto de risco.
Os resultados encontrados por Huesing e Ludema (2017) mostram a importância de associar liderança global com cultura, pois, segundo Amaral et al. (2019), para atuar em um ambiente global e complexo, é importante lembrar que os desafios dos líderes envolvem países diferentes e culturas diferentes, que exigem novas competências e habilidades. Bolden (2020) acrescenta que, frente à pandemia gerada pela COVID-19, as pessoas que serão reconhecidas como "líderes" são aquelas que possuem a capacidade de enquadrar o contexto de forma a reconhecer a natureza e a gravidade do(s) problema(s), de abordar as preocupações das pessoas e de fornecer certo grau de clareza sobre as ações / respostas que são necessárias.
2.3 DESAFIOS DA LIDERANÇA GLOBAL
Em uma visão internacional da liderança, Dutra, et. al. (2017) explicam que, a partir da década de 1990, com a abertura econômica, as organizações passaram a enfrentar um ambiente altamente competitivo, sempre comparável a padrões internacionais. Esse ambiente passou a desafiar os líderes de diversas formas, passando a requerer do líder global a agregação de valor a empresas que, por sua vez, precisaram se mostrar mais efetivas e competitivas em padrões globais. Essas reflexões nos levam a entender a magnitude dos desafios da liderança global.
Os desafios culturais, na visão de Jokinen (2005), advêm do aumento da complexidade enfrentada no trabalho pelo líder global, por conta das diferenças culturais existentes entre nações, organizações e subgrupos. Para melhor entender essa complexidade, no Quadro 3, é possível observar o trabalho de Bird e Mendenhall (2015) sobre a evolução das pesquisas da gestão intercultural para a liderança global.

Em complemento às considerações de Bird e Mendenhall (2015), a pesquisa recente de Amaral et al. (2019), realizada com líderes globais e seus liderados, de uma empresa siderúrgica do segmento de aços longos na América Latina, revelou que as influências do líder global no ambiente multicultural consistem em: abertura às diferenças; desenvolvimento dos liderados de origens distintas; viabilidade da “interculturalidade”.
A essas discussões, é importante acrescentar que a liderança é, por definição, cultural, pois as percepções, entendimentos e ações dos membros da equipe são guiados e moldados pela(s) cultura(s) em que estão inseridos. Esse aspecto é essencial para compreender a liderança global, uma vez que ela, por natureza, envolve várias culturas, que constituem a própria estrutura da vida organizacional em equipes multiculturais e que apresentam desafios, bem como oportunidades (LUCKE, 2020). Já Mäkelä et al. (2020) sugerem que os líderes globais podem fazer a diferença alavancando a capacidade de gerenciar ativamente os efeitos da globalização em sua equipe. Facilitar os relacionamentos entre os membros da equipe e com as partes externas é fundamental, não apenas para o seu bom funcionamento, mas também para interconectá-la com seus contextos mais amplos.
Após a exposição dos desafios dos líderes globais, para finalizar esta sessão, no Quadro 4, encontra-se a síntese dos temas deste referencial teórico, em que os conceitos que balizaram a pesquisa de campo são expostos.

No Quadro 4, nota-se que a atuação dos líderes globais é diversa da atuação dos líderes locais por conta de algumas particularidades que envolvem o contexto multicultural, alguns desafios particulares e as próprias características desse tipo de liderança. A essas discussões, Tanure, Evans e Pucik (2007) acrescentam que, contar com gestores com uma mentalidade global, ao invés de nacional, é um desafio especial para as empresas brasileiras que estiveram voltadas para o mercado interno durante vários anos. O importante desafio apontado por esses autores é condizente com a decisão do presente estudo de pesquisar líderes globais de nacionalidade brasileira, conforme a metodologia, descrita na próxima sessão.
3 MÉTODOS E TÉCNICAS DE PESQUISA
Nesta sessão, são expostas as principais decisões que orientaram a pesquisa de campo. O procedimento metodológico escolhido para o estudo apresentado neste artigo foi o da pesquisa qualitativa, que se mostrou adequada ao objetivo do estudo. Tal decisão metodológica associa-se à observação de Bird e Mendenhall (2015) de que a maior parte das investigações empíricas sobre liderança global adota abordagens qualitativas, usando um número pequeno de entrevistas, com informações obtidas a partir de depoimentos pessoais ou de abordagens de estudo de caso.
Embora esta pesquisa não seja caracterizada como estudo de caso, para a seleção dos executivos abordados, foi observada a orientação de Swanborn (2010), de que é importante escolher casos que sejam informativos e representativos do fenômeno estudado. Dessa forma, foram selecionados sete executivos que atuam em uma mesma empresa, que é multinacional norte-americana da área de tecnologia, atuante no Brasil, e mundialmente reconhecida por sua capacidade para desenvolver seus líderes globais.
Essa empresa é uma das maiores da área de tecnologia da informação do mundo, fornecendo soluções completas de TI, o que envolve serviços, consultoria, hardware, software e financiamento. Ela está presente em muitos países; opera no modelo de empresa globalmente integrada e emprega centenas de pessoas em todo o mundo.
Para este estudo, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, algumas pessoalmente, nos escritórios da empresa, e outras pela ferramenta Skype, com duração de aproximadamente 35 minutos. Essas entrevistas foram realizadas em 2015, ano em que, segundo estudo da Fundação Dom Cabral, havia um grande esforço de internacionalização das empresas brasileiras, com mercados externos ainda pouco explorados (SALOMÃO, 2015). A importância de explorar a percepção dos líderes globais nesse período está na mentalidade internacional que estava sendo construída pelos líderes brasileiros, cujo conhecimento pode ser muito útil em novos períodos de expansão da economia do Brasil e do próprio fenômeno da globalização. Adicionalmente, destaca-se a importância desta pesquisa no cenário atual do trabalho, no qual surgiram desafios proporcionados pela pandemia da COVID-19 que, desde o ano de 2020, exigiu que líderes locais desenvolvessem competências que até então eram quase exclusivas de líderes globais, especialmente na gestão de equipes remotas.
Para a realização das entrevistas, foi elaborado um roteiro semiestruturado, seguindo as orientações de Simons (2014). Em termos conceituais, esse roteiro seguiu as referências que constam na Quadro 5.

Uma vez que a agenda dos executivos era muito ocupada, as entrevistas foram realizadas em uma única etapa. A princípio, foram propostas perguntas diretamente associadas ao levantamento do “contexto” de atuação do líder na empresa, que consiste na primeira categoria apresentada no Quadro 5, por exemplo, “Quais são os projetos com os quais você está envolvido atualmente na empresa?”. Em seguida, uma pergunta geral para a categoria de “conceitos” e outra para a categoria de “desafios” foram colocadas com o propósito de que os participantes construíssem uma narrativa sobre sua atuação como líder global. Como exemplo dessas perguntas gerais, temos “Como você descreveria um líder global?” e “quais são os principais desafios de um líder global?”. Durante a narrativa, a pesquisadora responsável por essa parte do estudo inseriu questões adicionais, baseadas na literatura, que propiciassem o esclarecimento de lacunas do discurso.
4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE RESULTADOS
A análise dos dados coletados foi realizada por meio da análise temática, definida por Braun e Clarke (2006) como um método para identificar, analisar e reportar padrões (temas) com dados. Thomas e Harden (2008) explicam que a esse tipo de análise não é mais um método qualitativo, mas um processo que pode ser usado com a maioria, se não com todos, os métodos qualitativos. Os autores acrescentam que ela é uma técnica que tem como objetivo formalizar a identificação e o desenvolvimento de temas que se transformarão em categorias de análise.
Attride-Stirling (2001) comenta que análises temáticas e redes temáticas são igualmente aplicáveis nas análises com foco em semelhanças, diferenças e contradições, e cabe ao pesquisador identificar os temas que lhe sejam apropriados ou para seus interesses teóricos específicos e, no caso desta pesquisa, foram utilizadas as categorias apresentadas no Quadro 5.
Embora não existam regras rápidas sobre o que deve ser identificado como um tema, a definição proposta Braun e Clarke (2006) pode servir como guia: o tema captura alguma coisa importante sobre os dados relacionados à questão de pesquisa e representa certo nível de resposta padrão ou de significado dentro do conjunto de dados.
Segundo Braun e Clarke (2006), a análise temática não é um processo linear no qual, simplesmente, se move de uma fase para outra; é mais um processo caracterizado por repetições, cujo movimento volta para trás, se necessário. Esses autores sugerem seis etapas para a realização dessa análise, que foram seguidas nesta pesquisa, mas não de forma linear: familiarização com os dados, geração de códigos iniciais, procura de temas, revisão de temas, definição e nomeação de temas, elaboração do relatório.
Para realizar a fase 1, todas as entrevistas foram transcritas, conforme a orientação de Bucholtz (2000), de que a transcrição é um ato de interpretação e de representação, além de ser também um ato de poder. Segundo esse autor, na transcrição de um texto, sempre se envolve a inscrição de um contexto que, muitas vezes, só é visível durante o processo: os objetivos do transcritor, suas teorias e crenças sobre os entrevistados, o seu nível de atenção à tarefa e a familiaridade com a língua.
4.1 CARACTERIZAÇÃO DOS ENTREVISTADOS
Para preservar as identidades dos participantes, optou-se por codificar os dados coletados para as análises, como se descreve no Quadro 6, que expõe os cargos dos entrevistados.

Conforme os dados apresentados no Quadro 6, os líderes globais entrevistados são vice-presidentes, diretores e gerentes. Todos eles são brasileiros e dois deles possuem dupla nacionalidade. Os sete entrevistados possuem graduações diversificadas, incluindo matemática, geografia e história, análise de sistemas, administração de empresas, engenharia de produção, computação e eletrônica. Todos são fluentes nos idiomas português e inglês. Quatro deles têm fluência também no espanhol e um em italiano. A média do tempo de trabalho na empresa situa-se entre 15 e 25 anos.
Na fase 2, para a codificação, foi considerada a definição de código de Saldaña (2014). Para esse autor, um código, na análise de dados qualitativos, é, na maioria das vezes, uma palavra ou frase curta que, simbolicamente, atribui um sumário, capturado a partir de vários dados baseados na linguagem ou identificados visualmente. O autor acrescenta que esses dados podem consistir em transcrições de entrevistas, notas de campo de observação participante, revistas, documentos, literatura, artefatos, fotografias, vídeos, sites, correspondências, e-mail e assim por diante. Dessa forma, como um título representa e captura o conteúdo principal e a essência de um livro ou filme, o mesmo acontece com um código que representa, pela captura de conteúdo, a essência principal de um ponto de referência (SALDAÑA, 2014).
Neste trabalho, foi utilizada a abordagem de códigos descritivos, que são principalmente substantivos e que sumarizam o tema a partir de um ponto de referência dos dados. Essa abordagem de codificação é particularmente útil quando se possuem diferentes tipos de dados recolhidos por um estudo, tais como transcrições de entrevistas, notas de campo, documentos e materiais visuais (SALDAÑA, 2014).
A fase 3 consistiu no agrupamento de códigos em potenciais temas, reunindo todos os dados relevantes para cada potencial tema, neste caso representados pelas categorias de pesquisa. A fase 4 consistiu na verificação do funcionamento dos temas em relação aos estratos codificados (nível 1) e a todo o conjunto de dados (nível 2), gerando um “mapa temático” da análise.
A fase 5 consistiu na definição e na nomeação dos temas, realizando-se, assim, o aperfeiçoamento e salientando-se as especificidades de cada tema, bem como a história em geral que a análise produz, gerando claras definições e dando nomes para cada tema.
Durante todo o processo de codificação, foi importante, constantemente, serem comparados os códigos, verificando suas semelhanças e as diferenças e reajustando os agrupamentos, quando se fez necessário, em todas as fases. O processo de codificação foi realizado nas entrevistas, terminando com um nível de saturação, quando não apareciam novas ideias e interpretações, indicando que a coleta de dados estava satisfatória.
A última fase foi a seleção de estratos fortes com exemplos, relacionando-os com as perguntas do roteiro semiestruturado e com a revisão de literatura. Para realizar a análise, utilizaram-se marcadores e outras ferramentas do software especializado Nvivo, desenvolvido pela QSR International, que permitiu organizar o texto e realizar a análise final dos dados, que é apresentada nos próximos itens, divididos nas três categorias de pesquisa.
4.2 CONTEXTO DA LIDERANÇA GLOBAL
Na empresa na qual os líderes entrevistados trabalham, o Brasil suporta, ainda hoje, várias operações de outros centros mundiais, que ficam em diversos países. Alguns desses líderes são responsáveis, principalmente, por operações na América Latina, englobando: México, Brasil, Argentina, Equador, Venezuela, Chile, Peru e Colômbia. Alguns deles têm subordinados diretos na América Latina e na Índia. Outros são responsáveis por projetos que envolvem, além da América Latina, a Europa, Estados Unidos, Canada, Filipinas, China e Austrália. Como exemplo da variação contextual em que esses líderes atuam, tem-se a fala dos entrevistados A1 e A7:
Eu tenho mais de 4.000 pessoas como subordinados. Tenho clientes e sou responsável por projetos em toda a América Latina, Europa, Estados Unidos, Canadá, Filipinas, China e Austrália, e subordinados diretos no Brasil e na Índia. (Entrevistado A1).
Sou responsável por quase 9.000 pessoas na América Latina no México, Brasil, Argentina, Equador, Venezuela, Chile, Peru e Colômbia. Minha reportagem mais forte está nos Estados Unidos. (Entrevistado A7).
De forma geral, esses líderes percebem o ambiente de trabalho como desafiador, de cooperação e de intensa aprendizagem, o que possibilita o crescimento, conforme os exemplos dos entrevistados A5 e A6:
O que eu amo na empresa, que me fez passar 21 anos, é justamente essa oportunidade de reunir conhecimento que você não tem, para assumir novos desafios, para fazer um movimento, às vezes literalmente. Isso motiva você a querer trabalhar; faz você aprender. (Entrevistado A5).
Se você não conseguir resolver um problema, há sempre alguém no Rio de Janeiro, São Paulo ou fora do Brasil que irá ajudá-lo a resolver os desafios que você enfrenta. (Entrevistado A6).
O dinamismo do ambiente envolve, na visão desses líderes, volatilidade, mudanças rápidas e de grande escala e desafios complexos que, ao mesmo tempo, geram complicações pela falta de identificação de causas ou soluções para os problemas. Esse ambiente, exemplificado a seguir pela fala do entrevistado A3, é consistente com a visão de Clarke (2015) quanto ao ambiente VUCA, predominante desde os anos 1990, e também com a visão de Nielson (2020) sobre a dispersão geográfica que, após a pandemia da COVID-19, atinge não somente os líderes globais, mas também os locais.
Estar em uma empresa que muda muito... Esses programadores de liderança estão mudando muito; o mundo está se tornando tão dinâmico. (Entrevistado A3).
Os resultados sobre o contexto propiciam a associação com as reflexões de Lane, et al. (2004), Mendenhall et al. (2012) e Osland et al. (2006), no que diz respeito às diferenças entre um líder local e um líder global. Em uma visão geral, essas diferenças são suportadas, principalmente, pela diversidade de contexto e são geradas pela diversidade que se apresenta quando o líder é o responsável pela gestão de pessoas em vários países. Assim, é possível notar que a maior complexidade no trabalho do líder global se deve aos contextos diversificados de atuação simultânea, gerando a necessidade de desenvolvimento de múltiplas competências para atuação profissional.
Neste ponto, é importante lembrar que as diferenças de contexto entre os líderes globais e os locais tornaram-se menores em função da pandemia gerada pela COVID-19, algo que se reafirma na visão de Lucke (2020) de que a liderança global recebe um interesse crescente tanto na teoria quanto na prática. Então, mesmo no ambiente doméstico, as empresas têm mais frequentemente funcionários multiculturais e parceiros de negócios.
4.3 CONCEITOS DE LIDERANÇA GLOBAL
Em termos conceituais, há uma preocupação da literatura em diferenciar um líder global de um líder local (LANE, et al., 2004; MENDENHALL, et al., 2012; OSLAND et al., 2006). Quanto a isso, os entrevistados explicaram que os líderes globais devem ter a capacidade de transmitir mensagens com precisão, ouvir bem e adaptar seu estilo de comunicação e liderança às características de cada cultura. A fluência em outros idiomas é fundamental, e eles também acreditam que a dificuldade de comunicação aumenta quando a interação ocorre remotamente, usando diversos recursos tecnológicos, em diferentes fusos horários, com pessoas de culturas diferentes e com sotaques diferentes.
São exemplos da assimilação dos conceitos de liderança global as falas dos entrevistados A4 e A5:
Quando você trabalha em uma empresa global, precisa conversar muito, porque o silêncio pode ser entendido como negligência ou falta de atenção. Então você tem que usar a comunicação para realmente garantir a sua presença... você deve ter a entonação da voz certa para se posicionar. Significa procurar ferramentas de comunicação apropriadas. (Entrevistado A4).
A comunicação é essencial. Quando eu estava na China, pensei: tenho que encontrar uma maneira de lidar com essas pessoas. Eu preciso desenvolver um canal de comunicação. (Entrevistado A5).
O trabalho remoto é uma das características da liderança global e, para esses líderes, saber criar e gerenciar equipes remotas com pessoas de diferentes culturas é essencial, de forma consistente com as explicações de Lucke (2020) de que o contexto multicultural exige uma melhor compreensão da multiculturalidade. Então, é preciso reconhecer e apreciar a diversidade e ter a capacidade de estar presente por meio de conexões virtuais a distância, conforme exemplo do depoimento do Entrevistado A1:
Você tem que incluir pessoas em uma equipe global, ou seja, encorajá-las a participar das discussões. Você tem que ter cuidado por causa da tendência de ficar perto daqueles que estão perto de você. Evite usar o telefone; usar outros recursos, como videoconferência; é muito importante ver a pessoa, olhar nos olhos dela. (Entrevistado A1).
4.4 DESAFIOS DA LIDERANÇA GLOBAL
Jokinen (2005) explicou que um dos maiores desafios dos líderes globais está em sua atuação permeada por diferenças culturais. Na visão dos entrevistados, o ambiente multicultural, embora difícil e complexo, tem o potencial de estimular a criatividade e de encorajá-los a permanecer por muito tempo na empresa. O maior desafio expresso por eles foi entender e lidar com as diferenças culturais entre as equipes localizadas em diferentes regiões do mundo, uma vez que essas diferenças poderiam ter um alto impacto na forma de se comunicar e de realizar a gestão. Essas diferenças tiveram impacto também na capacidade de se conectar virtualmente.
De forma geral, os líderes globais perceberam que existem diferenças nos desafios entre os líderes locais e globais que consistem, principalmente, em saber lidar com diversas culturas, assimilar diferenças em relação a clientes, subordinados e meio-ambiente. Além de gerenciar equipes remotamente, eles precisaram aprender outros idiomas e ter melhores habilidades de comunicação. Essas diferenças tornaram os desafios do líder global mais complexos, conforme o exemplo do depoimento do Entrevistado A3:
A primeira suposição que o líder global tem é conhecer outras culturas, liderando pessoas de outras regiões do mundo. Eles têm que gerenciar pessoas, incluindo o desempenho de gerenciamento, coaching, acompanhamento e garantir que as pessoas entendam o que se espera delas; monitorar os resultados de pessoas que trabalham em uma operação que pode estar longe do escritório central, com funcionários em várias regiões. (Entrevistado A3).
Outro desafio latente é a necessidade de realizar a gestão de equipes remotas, especialmente durante a realização da avaliação de desempenho, pela diferença de critérios adotados, em função da cultura de cada país e por trabalhos em home office. É difícil também lidar com a competitividade entre as pessoas de países diferentes em uma mesma equipe, conforme o exemplo da fala do entrevistado A3:
Você não precisa estar trabalhando na empresa; muitas pessoas trabalham em home office; você mede performance de outra maneira, porque você não está vendo a pessoa todos os dias; tem que ser justo e trabalhar resultado realmente. (Entrevistado A3).
Outro grande desafio citado pelos líderes globais foi a necessidade de lidar com vários fusos horários e de se trabalhar em horários não triviais, além das constantes viagens internacionais. Esses desafios são ilustrados pelos depoimentos dos entrevistados A5 e A2:
Já tive de realizar calls somente à noite, porque estava tocando projetos do outro lado e tinha que interagir com pessoas durante o dia, para eles. Então, eu tinha que ter flexibilidade para trabalhar em horários que, não necessariamente, são horários triviais. (Entrevistado A5).
Eu viajo bastante. Na quinta-feira, feira, estou indo para as Filipinas; depois, vou para os Estados Unidos; esse é o meu dia a dia. As viagens, às vezes, têm que ficar 45 horas em trânsito. Por exemplo, hoje, eu tenho que planejar bem, porque tenho que dar suporte a minha esposa. Quando eu era solteiro, essas ações eram muito mais simples. Então, quando você tem família, é diferente. (Entrevistado A2).
Quanto ao desafio das viagens internacionais, é importante lembrar que, durante a pandemia gerada pela COVID-19, desde 2020, essa necessidade mencionada pelos entrevistados de transitar fisicamente entre países foi relativizada e minimizada. Porém, observar os resultados desta pesquisa é algo relevante, uma vez que o mundo ainda desconhece a maneira como a retomada das viagens internacionais acontecerá para os líderes globais.
4.5 ANÁLISE GERAL DOS RESULTADOS
As categorias criadas para esta pesquisa mostraram-se altamente complementares entre si nos depoimentos dos entrevistados, que apresentaram, no geral, assimilação similar e não dicotômica da liderança global. Esses resultados apresentaram relação com a percepção dos participantes da pesquisa realizada por Osland et al. (2012), principalmente na questão da complexidade gerada pela multiplicidade de culturas na atuação desses líderes. No entanto, enormes desafios sobre as tarefas, precariedade do trabalho e ambiguidade, identificados na pesquisa desses autores, não foram identificados nos resultados apresentados neste artigo.
Por outro lado, é importante pontuar que os desafios verbalizados pelos líderes globais foram identificados também na pesquisa realizada por Huesing e Ludema (2017), que tinha o objetivo de descobrir o que os líderes globais realmente fazem no seu trabalho diário. Esses desafios, coerentes entre esta pesquisa e a desses autores são: lidar com diversos fusos horários; trabalhar em horários não triviais; ter constantes viagens internacionais; trabalhar em home office; usar intensivamente a tecnologia; enfrentar longas horas de trabalho; adotar horários flexíveis, com tempo de trabalho não delimitado.
Em um esforço de síntese, os resultados gerais da pesquisa estão na Quadro 7 e finalizam esta sessão do artigo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a pesquisa apresentada neste artigo, buscou-se contribuir com o entendimento da atuação dos líderes globais quanto ao contexto, conceitos e desafios que envolvem a liderança em países diversos. A necessidade de atuar em contextos multiculturais, altamente diversificados, é evidente nos resultados como forma de diferenciar o líder global do líder local e, ao mesmo tempo, consiste em um dos maiores desafios da atuação desses líderes.
As entrevistas, realizadas no final do ano de 2015 com líderes globais têm a relevância de serem apresentadas neste artigo em um momento em que o mundo VUCA (CLARKE, 2015) se intensificou. Ressalta-se também que, durante a pandemia provocada pela COVID-19, certos temas que permeavam somente a liderança global passaram a fazer parte também da agenda dos líderes locais.
Em termos de relevância, o estudo segue a orientação de Brodbeck e Eisenbeiss (2014) de observar a perspectiva intercultural, porém, considerando um determinado país. Portanto, examinar percepções dos líderes brasileiros responsáveis por operações de negócios em ambientes externos à sua realidade local tem seu valor, principalmente, na abordagem do contexto que envolve a empresa estudada, que atua na América Latina e incluiu México, Argentina, Equador, Venezuela, Chile, Peru e Colômbia, EUA, Canadá, Filipinas, China e Austrália.
Para as empresas, em épocas de internacionalização de atividades e em possíveis mudanças de atuação por conta da formação de blocos econômicos, quando líderes globais devem ser capacitados, os resultados obtidos nesta pesquisa podem servir de base para treinamentos e para a criação de condições para uma atuação mais madura e consciente desses profissionais. Pontua-se também que essa pesquisa é rica de aprendizado para os líderes locais quanto à experiência repassada pelos líderes globais, no que tange ao gerenciamento de equipes remotas e trabalho em home office, especialmente após a pandemia ocasionada pela COVID-19.
O estudo de liderança global é um fenômeno relativamente recente e complexo, como mostrou Mendenhall (2013) e requer novas pesquisas. Essa necessidade mostra a possibilidade de contribuição dos resultados para novos pesquisadores que desejem aprofundar seus estudos nos fenômenos apresentados neste artigo. Quanto às pessoas, a principal contribuição está no auxílio a líderes que desejam atuar em cenários globais.
Como limitação, há o fato de que os entrevistados trabalhavam em uma única empresa norte-americana, o que pode levar a uma visão relativamente homogênea da realidade de atuação na liderança global. Para continuidade da pesquisa, recomenda-se verificar o mesmo fenômeno em outras empresas, inclusive em multinacionais brasileiras atuantes em outros países. Por fim, é importante também entender a atuação desses profissionais em situações de crises econômicas globais, com escassez de recursos para a mobilidade física e aprofundar os estudos quanto aos padrões de mobilidade estabelecidos após a pandemia da COVID-19.
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