RESUMO: A pandemia COVID-19 desafiou a administração pública a ações rápidas. O presente artigo trata de uma delas: a dispensa de licitação prevista na lei 13.979/2020. O dispositivo foi importante para dar agilidade às compras públicas, mas também foi porta de entrada para fraudes. Nesse contexto, pergunta-se: Ferramentas de gestão por processos podem auxiliar na identificação de gargalos no processo de contratação direta por emergência? Quais prejuízos poderiam ser evitados? O objetivo deste trabalho é comparar a dispensa de licitação em razão de emergência regulamentada no artigo 24, IV, da Lei 8.666/1993 (BRASIL, 1993), a prevista na Lei 13.979/2020 (BRASIL, 2020) e as alterações trazidas pela Lei 14.133/2021 (BRASIL, 2021) e permitir melhor visualização do processo e dos riscos envolvidos em cada etapa da dispensa de licitação em razão da COVID-19. Como cenário para análise, foi selecionada a compra de respiradores no Rio de Janeiro. Trata-se de um estudo de caso com caráter descritivo-exploratório e de natureza qualitativa. Além de identificar gargalos e propor um mapa de riscos, o trabalho discute a relação entre eficiência e accountability. Os resultados apontam que a exigência de apresentação do relatório de riscos somente após a finalização do processo gerou um gargalo nesta lei transitória que pode ter colaborado para um grande número de fraudes.
Palavras-chave: COVID-19, Dispensa de licitação, Gestão por Processos, Gestão de Riscos, Fraude.
ABSTRACT: COVID-19 pandemic has challenged public administration to take prompt actions. This paper is one of them, the COVID-19 exemption of the bid process regulated under Law 13,979/2020. This was a law designed to give quickness to public purchases until December 2020, but during its period of validity it was also used as a gateway for fraud. In this context, it is questionable: Could business processes management (BPM) tools have been used to identify bottlenecks in this process? Which damages could have been avoided? The paper aims at comparing the legal framework about exemption of bidding in Brazil besides enabling a better viewing of the process and of the risks involved at each of its stages, making use of BPM and risk management (RM) tools. As a background for analysis, it was opted for the respirator’s purchase in Rio de Janeiro. This is an exploratory, descriptive case study, with a qualitative approach. In addition to identifying bottlenecks and proposing a risk map, the paper discusses the relationship between efficiency and accountability. The results indicate that the requirement of presenting a risk report only after the process had been completed set up a bottleneck in this transitory Law which may have cooperated to a great number of fraudes.
Keywords: Bid Process Exemption, Business Processes Management, COVID-19, Fraud, Risk management.
Artigo
MAPEAMENTO DE PROCESSO E ANÁLISE DE RISCOS DE FRAUDE NA DISPENSA DE LICITAÇÃO EM RAZÃO DA COVID-19
PROCESS MAPPING AND FRAUD RISK ANALYSIS IN THE BRAZILIAN SPECIFIC LAW FOR PUBLIC PURCHASES TO DEAL WITH THE COVID-19
Recepção: 19 Outubro 2020
Aprovação: 19 Agosto 2021
A pandemia COVID-19 foi declarada pela Organização Mundial de Saúde em 11 de março de 2020 e tem sido uma constante a afirmação de que ela afetou todas as estruturas organizacionais, colocando desafios aos gestores públicos para os quais pesquisadores têm se dedicado a dar suporte.
No campo jurídico, Justen Filho (2020) lembra que a pandemia evidenciou a necessidade de um direito administrativo de emergência, afastando, suspendendo ou extinguindo o direito administrativo, até então vigente, já que a situação emergencial exige providências imediatas, sendo uma delas o afastamento da obrigação de realização de licitações públicas para aquisições e contratações relacionadas, direta ou indiretamente, ao enfrentamento da COVID-19.
Nesse contexto, foi criada a Lei 13.979/2020, uma lei decorrente de Direito Provisório, com vigência de 06/02/2020 a 31/12/2020, que trouxe inovações como a dispensa de licitação para contratações que visassem o enfrentamento da pandemia, uma exceção ao dever de licitar que difere do dispositivo de dispensa em razão de situações de emergência já previsto na Lei 8.666/1993 e também da atual Lei 14.133/2021, novo marco regulatório das contratações públicas no Brasil (JUSTEN FILHO, 2020; FERNANDES, 2020).
De acordo com Castroviejo (2020), a finalidade principal dessa nova hipótese de dispensa de licitação foi garantir a rapidez necessária para comprar suprimentos e equipamentos e contratar serviços destinados ao enfrentamento da pandemia, privilegiando a simplicidade dos atos, praticados sem maiores detalhamentos, por meio da flexibilização ou do afastamento de exigências normalmente estabelecidas em procedimentos licitatórios e contratos administrativos.
Contudo, a rapidez não pode sacrificar importantes princípios de administração pública, como a isonomia, a supremacia do interesse público e a eficiência. Ribeiro et al. (2020) lembram que, para garantir a aplicação desses princípios, tem sido recomendado aos gestores públicos o uso de instrumentos de governança pelos quais as contratações públicas são dirigidas e monitoradas.
De acordo com Lynn e Malinowska (2018), a governança pública é constituída por um conjunto de ferramentas utilizadas por gestores públicos, que visam dar maior eficiência e legitimidade democrática às decisões de políticas públicas.
A gestão por processos traz importantes metodologias para a governança pública, pois auxilia os gestores na assunção de responsabilidades no desempenho dos processos de uma organização, indo ao encontro do princípio da eficiência, porque inclui melhor visualização do sistema como um todo, o que permite propor melhorias, aumentar a satisfação do consumidor (neste caso do cidadão) e melhorar a compreensão sobre as atividades da organização (IRITANI et al., 2015; FERNANDES; ABREU, 2014).
O objetivo deste artigo é, além de comparar a dispensa de licitação em razão de emergência regulamentada no artigo 24, IV, da Lei 8.666/1993 (BRASIL, 1993), a prevista na Lei 13.979/2020 (BRASIL, 2020) e as alterações trazidas pela Lei 14.133/2021 (BRASIL, 2021) permitir melhor visualização do processo e dos riscos envolvidos em cada etapa da dispensa de licitação em razão da COVID-19, identificando os gargalos que podem ter servido como facilitadores das fraudes.
Para tanto, são utilizadas ferramentas de gestão por processos para identificação de gargalos que podem facilitar fraudes. Com base nesse contexto, o problema de pesquisa que motivou o presente artigo está consubstanciado nas seguintes perguntas: as ferramentas de gestão por processos identificam gargalos no processo de contratação direta por emergência, regulamentado pelo artigo 4o da Lei 13.979/2020? Quais são os gargalos e prejuízos que poderiam ser evitados pelo uso dessas ferramentas?
Nesse sentido, este artigo pode contribuir tanto com o campo jurídico quanto com as pesquisas em gestão pública, pois vai além da comparação entre a dispensa de licitação em razão de emergência regulamentada no artigo 24, IV, da Lei 8.666/1993 (BRASIL, 1993) e a prevista na Lei 13.979/2020 (BRASIL, 2020), trazendo ainda a comparação com o artigo 75, VIII, da Lei 14.133/2021 (BRASIL, 2021) que substituirá, em dois anos, a Lei 8.666/93. O objetivo geral deste trabalho é permitir melhor visualização do processo e dos riscos envolvidos em cada etapa da dispensa de licitação em razão da COVID-19 usando, para tanto, ferramentas de gestão por processos para identificação de gargalos que podem facilitar fraudes.
Como pano de fundo da análise foi selecionado o caso de compra de respiradores pela Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, que está sendo investigado pela polícia civil e pelo Ministério Público na operação chamada “Mercadores do Caos”, por ter se tornado um caso muito recorrente na mídia no período e despertado interesse dos cidadãos, já que a própria mídia utiliza informações de instrumentos de accountability como dados abertos em sites de compras governamentais para fiscalizar possíveis casos de corrupção (CAMPOS, 2020; MURAMATSU, 2020).
Outro motivo para a escolha do caso conhecido como “Mercadores do Caos” é a intensa relação entre as notícias jornalísticas e o controle da administração pública pelo cidadão em práticas de accountability, como aponta Pinho (2021), estando os jornalistas entre os principais usuários de sites de dados abertos do governo.
Os objetivos específicos do trabalho são: a) mapear por meio de Event Process Chain (EPC) o ‘como é’ (as is) do processo de compras de acordo com as etapas designadas pela Lei 13.979/2020 para a dispensa de licitação em razão da COVID-19, desde a primeira ação que dispara o processo de compras até a publicação do ato de dispensa; b) com base no caso analisado, elaborar um mapa de risco procurando identificar eventuais gargalos no processo.
Para tanto, o artigo está organizado em 5 seções. A seção 2 traz o referencial teórico sobre: a) licitação como regra e dispensa por emergência como exceção no Direito brasileiro, com enfoque nas emergências evidenciadas pela pandemia; b) comparação entre a dispensa de licitação por emergência prevista na Lei 8.666/1993 e a prevista na Lei 13.979/2020, com comentários sobre a licitação por emergência prevista na Lei 14.133/2021; c) governança pública, gestão por processos e ferramentas para facilitar a compreensão de gestores em relação a gargalos que possam impedir ou atrapalhar que um processo atinja sua finalidade principal, com enfoque em mapa de risco. A seção 3 trata da metodologia, com especial atenção para a descrição do caso estudado. A seção 4 traz os resultados da pesquisa como o mapa EPC de uma dispensa de licitação em razão da COVID-19, bem como o mapa de risco dos possíveis gargalos. A seção 5 finaliza o artigo com as discussões sobre os resultados do trabalho e as considerações finais, com apontamentos para estudos futuros.
Para compreensão do fenômeno estudado, é essencial referenciar os principais teóricos dos aspectos jurídicos envolvidos na temática das contratações emergenciais, que culminaram em institutos relacionados a um “direito provisório”. Também se faz necessário revisitar conceitos essenciais para compreender como a gestão por processos, meio de identificar gargalos em processos e prevenir riscos, pode configurar importantes ferramentas de governança pública para dar eficiência, transparência e segurança aos gestores em processos decisórios rápidos que a pandemia tem desafiado, razão pela qual o presente artigo traz a revisão teórica a seguir.
Mello (2009) traz um conceito amplo de licitação ao referir que o termo licitação engloba o procedimento administrativo por meio do qual órgãos governamentais pretendem alienar, contratar, adquirir, locar, construir ou prestar serviços, com outorga de concessões, permissões de obras, serviço ou uso exclusivo de bens públicos, conforme condições pré-estabelecidas, convocando interessados na apresentação de propostas com o objetivo de selecionar aquelas mais convenientes e oportunas para a administração pública.
Conforme Justen Filho (2010), a Lei 8.666/1993 normatiza um procedimento no âmbito da administração pública para que haja a convocação de empresas e organizações interessadas em apresentar propostas com objetivo de oferecer bens e serviços. A Lei 8.666/1993 (Brasil, 1993) tem como principal fonte a Constituição Federal (BRASIL, 1988) e como foco principal garantir e observar o princípio constitucional da isonomia (assegurar oportunidade igual para todos os interessados e possibilitar o comparecimento ao certame das mais variadas propostas com um número expressivo de concorrentes), tendo como resultado a escolha da proposta mais vantajosa para a administração pública, seguindo o princípio da eficiência.
Fernandes (2019; 2021) destaca que, desde a publicação da Lei 8.666/1993 (BRASIL, 1993), vários dispositivos legais vêm sendo criados especialmente para garantir maior celeridade aos processos de compras públicas, citando: a) Lei 10.520/2000 (BRASIL, 2000), que instituiu o pregão presencial; b) Decreto n° 5450/2005 que criou o pregão eletrônico; c) Lei 12.462/2011 (BRASIL, 2011) que criou uma modalidade de licitação denominada Regime Diferenciado de Contratações; d) Decreto n° 10.024/2019 que substituiu o Decreto n° 5450/2005 e que tem por um dos objetivos a maior agilidade no processo de compras e maior transparência; d) Lei 14.133/2021 (BRASIL, 2021), que revoga, de forma imediata, os artigos de 89 a 108 da Lei 8.666/93 (BRASIL, 1993) e, após 01/04/2023, substituirá integralmente as Leis 8.666/93, 10.520/2002 e Lei 12.462/2011 (BRASIL, 1993, 2002 e 2011).
Justen Filho (2021) destaca que entre as principais novidades trazidas pela nova lei de licitações (Lei 14.133/2021) está a governança pública, expressamente prevista no parágrafo único do artigo 11, abaixo transcrito:
Parágrafo único. A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações (BRASIL, 2021).
Observa-se que é enfatizada a natureza preventiva das ações que devem guiar as decisões administrativas, diminuindo a necessidade de ações repressivas. De acordo com Ribeiro et al. (2020), esta mudança de foco do controle repressivo para o preventivo já vinha sendo observada nas ações dos Tribunais de Contas e foram ainda mais evidenciadas nas ações que esses tribunais tomaram no enfrentamento dos efeitos da pandemia do Coronavírus, expedindo notas técnicas e orientações para os gestores como, por exemplo, nas decisões sobre dispensas de licitação para compras emergenciais no enfrentamento da pandemia.
Além das regras previstas nas leis supramencionadas, é importante lembrar que a administração pública é regida também por princípios, que são alicerces do conjunto de normas às quais está vinculada e cuja finalidade principal é organizar toda a estrutura da administração com segurança jurídica aos cidadãos (DI PIETRO, 1999; MEIRELLES, 2000; MELLO, 2009).
Os princípios são fundamentais para a dinamicidade do Direito, uma vez que a velocidade dos fatos e as transformações sociais são sempre mais dinâmicas do que as leis (que costumam captar o momento histórico em que foram publicadas). Eles não deixam que o ordenamento jurídico seja petrificado, especialmente os chamados princípios implícitos, entre os quais se destacam: supremacia do interesse público; razoabilidade; motivação; segurança jurídica. Já os chamados princípios explícitos estão previstos no artigo 37 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e são: legalidade (a Administração só pode fazer o que a lei permite), impessoalidade (tratamento sem discriminações), moralidade (ética e honestidade), publicidade (todos têm direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou coletivo, ressalvadas as hipóteses legais de sigilo) e eficiência (conseguir atingir resultados satisfatórios e positivos para a sociedade) (DI PIETRO, 2014; MEIRELLES, 2000).
Como mencionado, as licitações estão diretamente relacionadas aos princípios da isonomia e da eficiência. Silva (2008) lembra que, principalmente a partir do Decreto 5.378 de 23 de fevereiro de 2005 que instituiu o Programa Nacional de Gestão Pública e Desburocratização (GESPÚBLICA), o princípio da eficiência passou a ser o condutor da coisa pública. Niebuhr (2012, p. 74) define que “a eficiência em licitações públicas gira em torno de três aspectos fundamentais: preços, qualidade e celeridade”. Nessa esteira de raciocínio, a Lei 13.144/2021 (BRASIL, 2021) previu expressamente que a Administração Pública tem o dever de promover a eficiência, eficácia e efetividade das contratações públicas.
Como destacado anteriormente, há uma busca por tornar os procedimentos para contratações públicas cada vez mais ágeis. Ocorre que, muitas vezes, a contratação precisa ser feita de forma urgente sob pena de tornar-se inócua, ou seja, se não for realizada rapidamente, ao invés de favorecer, poderá vir a contrariar o interesse público, não sendo possível seguir toda a tramitação prevista em uma modalidade de licitação, mesmo que seja o pregão eletrônico. Por isso foi criado o instituto da contratação direta (DI PIETRO, 2014).
Para Justen Filho (2020), a pandemia da COVID-19 deixou evidente no direito administrativo a dificuldade para trazer soluções jurídicas compatíveis com problemas que não existiam no passado, evidenciando deficiências do direito administrativo até então vigente. No campo das contratações públicas, além das regras criadas com o propósito específico de regulamentar as compras e contratações relativas ao enfrentamento do coronavírus (Lei 13.979/2020), os princípios são de fundamental importância, pois a crise não autoriza contratações informais ou inobservância de regras e princípios.
A seguir são tratadas as diferenças entre o artigo 24, IV, da Lei 8.666/1993, artigo 75, VIII, da Lei 14.133/2021 (BRASIL, 2021) e o artigo 4º da Lei 13.979/2020 (BRASIL, 2020), ou seja, a dispensa por emergência em situações gerais e a nova emergência em razão da COVID-19.
Justen Filho (2020) destaca que a dispensa em razão do enfrentamento da COVID-19 é temporária (enquanto durar a pandemia) e traz a condição de que deve haver um “vínculo de pertinência”, ou seja, somente se aplica esse dispositivo se houver uma correlação entre a contratação e o atendimento, ainda que indireto, das necessidades relativas à pandemia, não servindo para outras necessidades. Ela não prescinde de providências anteriores que a compatibilize com os princípios que regem a administração pública, em especial, os motivos que fundamentam cada escolha realizada.
Bittencourt (2020) lembra que a Lei 13.979/2020 (BRASIL, 2020) não afasta o regime de contratação da Lei 8.666/1993 (BRASIL, 1993), mas traz condições de exceção em razão do momento excepcional da pandemia, sendo aplicável a todos os entes federativos, ressaltando, ainda, que os casos omissos da referida lei são supridos pela Lei 8.666/1993 e Lei 13.303/2016 (BRASIL, 1993, 2016), por exemplo, a aplicação de sanções.
O quadro 1 a seguir compara a dispensa de licitação por emergência prevista no inciso IV do artigo 24 da Lei 8.666/93, inciso VIII do artigo 75 da Lei 14.133/2021 e a dispensa específica para o enfrentamento da COVID-19 prevista no artigo 4o da Lei 13.979/2020 (BRASIL, 1993, 2020e 2021).

O primeiro ponto a considerar em relação ao quadro 1 é que a Lei 13.979/2020 (BRASIL, 2020) é uma regra que faz parte do que o jurista Fernandes (2020, p. 23) chama de direito provisório, ou seja, “[...] o Direito que emerge de uma situação excepcional, normas de vigência restrita que alteram substancialmente o direito público”.
Medeiros (2021) lembra que o Direito é concebido para vigorar em tempos de normalidade e que institutos jurídicos como o “estado de defesa” e o “estado de sítio” foram previstos na Constituição Federal de 1988 como regulamentação de situações de anormalidade e que ainda, para regulamentar casos de anormalidade há a possibilidade de edição de normas de vigência temporária, como foi o caso da Lei que regulamentou a dispensa de licitação em decorrência da COVID-19. Estas normas possuem ultratividade, o que significa que as situações ocorridas durante a sua vigência são julgadas em conformidade com a situação excepcional do momento em que ocorreram, ou, em outras palavras, normas de direito provisório devem ser interpretadas de acordo com o direito provisório.
Segundo Pércio, Oliveira e Torres (2020), a Lei nº 13.979/2020 (BRASIL, 2020) simplificou o procedimento de contratação por dispensa de licitação nos seguintes pontos: a) dispensa da elaboração de estudos preliminares quando se tratar de bens e serviços comuns (art. 4º-C); b) o gerenciamento de risco não é exigido na fase da contratação, mas apenas na execução do contrato (art. 4º-D); c) aceitação de projeto básico simplificado; d) possibilidade de, excepcionalmente, o gestor dispensar, mediante justificativa, a estimativa de preço exigida; e) dispensa da apresentação dos documentos relativos à habilitação, excepcionalmente e mediante justificativa, nas situações em que houver restrição de fornecedores ou prestadores de serviço, ressalvadas as habilitações relativas à regularidade com a Seguridade Social e o cumprimento do disposto no art. 7º, inciso XXXIII, da Constituição Federal art. 4º-F (BRASIL, 1988) sobre trabalho de menores.
Tanto as dispensas de licitação previstas na legislação comum (não temporária- Lei 8.666/93 e mais recente Lei 14.133/2021), para os casos de emergência quanto a prevista na Lei 13.979/2020 estão pautados no princípio da eficiência e buscam dar maior celeridade aos casos de emergência de contratação que não podem aguardar o tempo médio de uma licitação, mesmo na modalidade mais simplificada (pregão eletrônico).
Entretanto, mesmo em uma situação de direito provisório, o princípio da eficiência não pode sacrificar outros fundamentais à administração pública, como é o caso da supremacia do interesse público, de forma que os riscos de fraudes nesses processos de dispensa de licitação devem ser estudados e as ferramentas de gestão por processos podem ser úteis a esse estudo.
Em especial porque elas podem ser usadas pelos gestores do que foi chamado por Coelho et al. (2020) de “casa de máquinas da administração pública no enfrentamento à COVID”, ou seja, pelos servidores públicos que operacionalizam os instrumentos do direito administrativo provisório decorrente da pandemia, os que exercem as funções administrativas instruindo os processos, fazendo as requisições de compras, realizando a pesquisa de mercado e autorizando as dispensas de licitação, aplicando o direito aos casos concretos que surgem na rotina administrativa de órgãos públicos.
De acordo com Pereira et al. (2015), pode-se afirmar que processos são uma sequência lógica de atividades ordenadas e interligadas, que transformam uma ou mais entradas em algo de mais valor, ou seja, saídas voltadas para um ou mais clientes internos ou externos ao processo.
Vale lembrar que, de acordo com Pereira e Ckagnazaroff (2021), a nova governança pública não pode ver o “cliente” ou cidadão como tendo um papel passivo de receptor dos serviços públicos, pois, se, por um lado, o pilar da eficiência dos serviços é uma de suas bases, por outro, a participação do cidadão e os instrumentos de accountability formam pilares igualmente importantes para os serviços públicos.
Turati (2007) traz um exemplo muito pertinente para a compreensão do que são os processos no âmbito administrativo, como é o caso estudado no presente artigo. O autor compara a área administrativa com o chão de fábrica e refere que, neste, o que sofrem transformação em cada estação de trabalho são as peças, enquanto na área administrativa são as informações e documentos.
Dessa forma, este trabalho, ao propor analisar a dispensa de licitação em razão da COVID-19 sob o âmbito da gestão por processos, há que se considerar o conjunto de procedimentos para a realização do objetivo (aquisição do bem ou contratação do serviço de forma rápida e eficiente) na forma de entradas e saídas, de maneira que a cada etapa da sequência de atividades haja agregação de valor. A gestão por processos e a gestão de riscos são adequadas ao princípio da eficiência, porque servem para: identificação de processos que agregam valor ao cliente; análise contínua do desempenho desses processos e a proposta de ajustes e melhorias quando pertinentes (PEREIRA et al., 2015; IRITANI et al., 2015; TCU, 2018).
Pereira et al. (2015, p. 101) definem metodologia de gestão por processos como “[...] um conjunto de etapas para aplicação de conceitos e melhores práticas para gestão por processos”. Os autores propõem uma metodologia de gestão por processos, cujas etapas são representadas na figura 1 a seguir.
Nota-se que o processo busca revisão e melhoria contínua, pois o ciclo recomeça após o gerenciamento.
Ribeiro et al. (2020) destacam a importância dos Tribunais de Contas para a governança pública tanto no sentido de facilitar a fiscalização das ações dos gestores públicos pela sociedade civil quanto de orientar os gestores públicos em uma iniciativa preventiva em um caráter mais qualitativo e não somente punitivo.
O Tribunal de Contas da União deixa clara a atuação em consonância com a governança pública e com ferramentas de gestão de processos ao fazer constar em seus manuais que os controles devem ser implementados por meio de um ciclo de revisão e melhoria contínua (TCU, 2018).
A gestão por processos se utiliza de uma série de ferramentas para analisar processos, dentre as quais se destaca a 5W1H, especialmente para conhecer o processo. O nome é derivado de perguntas em inglês, a saber: What? (O que?) Who? (Quem?) Where? (Onde?) When? (Quando?) Why? (Por que?) How? (como?), pois essas perguntas ajudam a conhecer o que acontece com o processo (PEREIRA et al., 2015; MOURA et al., 2019).
Ture (2020) ressalta que nos casos de licitações é interessante a aplicação da ferramenta 5W2H que deriva da 5W1H, mas traz o segundo “H”, o How Much (quanto custa).
No presente trabalho, a primeira etapa trata-se do conhecimento do problema, para compreensão da dispensa de licitação em razão da COVID-19. Para isso foi utilizada a ferramenta 5W2H.
O foco principal do trabalho está na segunda etapa da figura 1, a modelagem as is também baseada nos procedimentos previstos na Lei 13.979/2020 (BRASIL, 2020). Segundo Pereira et al. (2015), essa etapa se refere ao levantamento e registro da situação atual dos processos, por meio do conhecimento dos fluxos, sendo que das várias formas de representação de processos, destaca-se para este caso a Event-Driven Process Chain (EPC). Segundo Hammer (2013), por meio do desenho de um processo é possível, além de especificar as atividades, conectá-las em uma sequência lógica permitindo o entendimento detalhado do processo.
Uma contribuição adicional à modelagem as is, realizada no artigo, é a elaboração do mapa de risco concomitantemente à modelagem. O Tribunal de Contas da União (TCU) também se valeu de ferramentas de gestão por processos para elaborar o Manual de Riscos e Controles nas Aquisições (RCA) (TCU, 2018).
Os riscos são inerentes a todas as atividades econômicas e podem ser evitados por meio de mecanismos de garantias e controle interno. Segundo o Comitee of Sponsoring Organizations (COSO, 2017), riscos são eventos negativos que atentam contra os objetivos da organização. Assim, riscos inerentes são aqueles que influenciam negativamente a atividade, surgem devido à realização da atividade e podem ser evitados por meio de controles internos e do gerenciamento destes riscos (CARDOSO; CRUZ; ALVES, 2020; COSO, 2017).
Segundo TCU (2018), risco é a possibilidade de que um evento afete o alcance de objetivos, e gestão de riscos são as atividades coordenadas para dirigir e controlar a organização no que se refere a riscos e oportunidades, sendo um elemento essencial para a boa governança corporativa, justamente porque contribui para reduzir as incertezas que cercam o alcance de resultados.
De acordo com TCU (2018), para realizar a gestão de riscos em qualquer processo deve-se seguir etapas: a) estabelecimento do contexto; b) identificação dos riscos; c) análise dos riscos; d) avaliação dos riscos; e) tratamento dos riscos; f) comunicação e consulta com partes interessadas; g) monitoramento; h) melhoria contínua.
No presente artigo, foram realizadas as etapas “a”, “b” e “c”, porque se pauta na primeira etapa do processo de melhoria contínua em gestão por processos, conhecida como as is, cujo objetivo maior é conhecer o processo. As etapas “d”, “e”, “f” e “g” fazem parte da segunda etapa conhecida como to be, cujo objetivo é propor soluções e melhorias e mudanças em procedimentos e, por fim, a etapa “f” representaria um recomeço do ciclo de análise, o que não cabe neste artigo, dada sua limitação de extensão, mas pode ser realizada em trabalhos futuros. (PEREIRA et al., 2015; HAMMER, 2013)
Segundo Cardoso, Cruz e Alves (2020), a Instrução Normativa nº. 5/2017 do Ministério de Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (MP) trouxe uma compreensão do Gerenciamento de Riscos de atividades relacionadas a licitações e contratos. Apesar de ser aplicável somente para contratação de serviços de execução indireta, define que o Gerenciamento de Riscos é um processo que tem como primeira atividade a identificação dos principais riscos que possam comprometer a efetividade do Planejamento da Contratação (fase interna da licitação), da Seleção do Fornecedor (fase externa da licitação) e da Gestão Contratual (execução contratual) e se materializa no denominado Mapa de Riscos, que deve ser juntado ao processo administrativo de contratação de serviços. O mapa de riscos permite o monitoramento e avaliação dos riscos, e deverá ser atualizado junto ao processo pelo menos ao final dos estudos preliminares e termo de referência ou projeto básico e após a seleção de fornecedor, bem como após eventos relevantes (CARDOSO; CRUZ; ALVES, 2020).
A nova lei de licitações (Lei 14.133/2021) estabelece a obrigatoriedade de apresentação de Mapa de Risco (análise de risco) prévia para os casos de dispensa de licitação.
Já a Lei 13.979/2020 (BRASIL, 2020), de caráter temporário e cuja vigência expirou em 31/12/2020, em seu artigo 4-D determinava que o gerenciamento do mapa de riscos deveria ocorrer após a fase de seleção do fornecedor, passando os riscos inerentes à contratação para a fase de execução e fiscalização do contrato (CARDOSO, CRUZ; ALVES, 2020).
Apesar de a Lei 13.979/2020 (BRASIL, 2020) modificar a gestão de riscos para um momento posterior à contratação, neste artigo será feito um mapa de risco no momento anterior, ou seja, serão mapeados os riscos de cada entrada e saída do processo.
Em relação aos aspectos metodológicos, o presente artigo tem intuito descritivo-exploratório (OLIVEIRA, 2011), porque busca expor as características do fenômeno da dispensa de licitação em razão da COVID-19, à luz de teorias de gestão por processos e de gestão de riscos, ao mesmo tempo em que procura compreendê-lo por tratar-se de fenômeno recente.
Para tanto, foi realizada revisão bibliográfica na área jurídica para explorar aspectos da dispensa de licitação como exceção à regra de licitar e os princípios jurídicos envolvidos, bem como uma comparação entre essa nova dispensa temporária de licitação como fruto de um direito provisório, aquela dispensa por emergência que já existia na Lei 8.666/93 (BRASIL, 1993) e a dispensa por emergência prevista na novíssima Lei de Licitações, Lei 14.133/2021 (BRASIL, 2021). Também foi realizada revisão sobre relação entre governança pública, gestão por processos e gestão de riscos, voltadas para o contexto explorado no artigo.
A natureza da pesquisa tratada neste artigo é qualitativa (CHUEKE; LIMA, 2012) porque está muito mais interessada no processo do que no produto, consistente em uma busca sistemática interpretativa para compreensão do fenômeno a partir do significado que os gestores do caso estudado o conferiram, por meio de coleta de dados documentais primários e secundários.
Para Yin (2001), o estudo de caso deve levar em consideração: a) o tipo de questão, b) o controle que o pesquisador possui sobre o evento, c) foco no fenômeno.
No presente artigo, o tipo de questão relaciona-se com estratégias de levantamento do fenômeno analisado que não exigem controle dos pesquisadores sobre o evento e focaliza acontecimentos contemporâneos, razão pela qual, com fundamento em Yin (2001), pode ser classificado como um estudo de caso único.
As fontes de dados são documentais, consistindo em análises de leis, julgados de Tribunal de Contas da União, documentos encontrados no site compras governamentais do Rio de Janeiro, documentos encontrados em sites de compras do estado de Minas Gerais, além de fontes secundárias como notícias de jornais, blogs e revistas sobre a operação “Mercadores do Caos”.
A escolha do caso selecionado como pano de fundo para análise se deu em razão de ter sido recorrente na mídia e atraído a atenção de pesquisadores da área de gestão pública no Brasil, como se vê em Muramatsu et al. (2020), que citam a operação “Mercadores do Caos” como emblemática da identificação de erros contratuais e fraudes a licitações durante o período da pandemia e também Prando e Godoi (2020), que também justificaram a escolha de estudar o mesmo caso do presente artigo sob outra perspectiva, qual seja, de identificar o papel da pressão da mídia na definição do que se registra ou não na publicidade de atos administrativos, mostrando que a gestão da informação na pandemia é produto de constantes negociações e disputas entre múltiplos atores institucionais e da sociedade civil.
Os passos realizados foram:
No dia 7 de maio de 2020, o Ministério Público do Rio de Janeiro e a Polícia Civil do mesmo Estado deram início à investigação que chamaram de “Mercadores do Caos” com o objetivo de investigar suspeitas de fraudes no processo de compras de respiradores pulmonares para tratar casos mais graves de COVID-19. No dia 13 de maio de 2020, foi preso um controlador da empresa ARC Fontoura como suspeito de obter vantagens em uma compra emergencial fundada no artigo 4o da Lei 13.979/2020 (CAMPOS, 2020).
De acordo com informações constantes do site Compras Governamentais do Rio de Janeiro (RIO DE JANEIRO, 2020), foi feita uma dispensa de licitação fundada no artigo 4º da Lei 13.979/2020 no valor total de R$67.920.000,00 para 400 ventiladores pulmonares5, a um custo unitário estimado da seguinte maneira:
empresa “A”: R$169.800,00;
empresa “B” :R$177.930,00;
empresa “C”: R$183.100,00.
Para se ter uma base de comparação de preços, foi feita uma busca por compras em outros estados com a mesma descrição. Os dados de uma compra de Minas Gerais obtidos pelo site de Compras Governamentais MG (MINAS GERAIS, 2020) foram:
empresa “A”- R$68.950,00;
empresa “B”- R$66.000,00;
empresa “C”- R$64.430,00.
empresa “D”- R$133.760,00;
empresa “E”- R$159.500,00;
empresa “F”- R$160.000,00;
empresa “G”- R$80.694,00;
empresa “H” - R$70.000,00.
Um diferencial na comparação do Estado de MG com o Estado do RJ, no período de março a abril de 2020, foi que o mapa de preços de MG incluiu o prazo de entrega a que cada empresa se compromete, sendo o valor mais alto de R$160.0000,00 de entrega imediata, tendo sido escolhida a empresa que ofertou R$70.000,00 com entrega em 60 dias, para 500 ventiladores. Como tratado na seção 4 deste trabalho, na Lei 13.979/2020, ao contrário das demais formas de contratação direta, o Relatório de Risco (RIR) é feito após a seleção do fornecedor, já durante a fase de execução do contrato.
No caso em análise, esse RIR apontou risco alto de sobrepreço e pagamento antecipado.
De acordo com Muramatsu et al. (2020), a operação “Mercadores do Caos” prendeu dois subsecretários executivos de saúde do governador do Rio de Janeiro e o superintendente de orçamento e finanças envolvidos em crimes de corrupção na compra de respiradores para enfrentamento da COVID e que não foram entregues e, de acordo com a Controladoria Geral do Rio de Janeiro, 99,47% dos contratos emergenciais da Secretaria de Saúde contêm irregularidades.
Com base no referencial teórico trazido na seção 2, a primeira etapa recomendada pela metodologia de gestão por processos é o conhecimento do contexto, sendo que, no presente caso, foi escolhida a ferramenta 5W2H, com base em Pereira et al. (2015), Moura et al. (2019) e Ture (2020). O quadro 2 ilustra a aplicação dessa ferramenta.

Para Moreira et al. (2019), a modelagem de processos é a segunda fase do ciclo da metodologia de gestão por processos, sendo que a modelagem da situação atual ou as is permite visualizar melhor o processo e, a partir desta análise, gerar ideias de melhorias.
A Figura 2 traz o mapa do processo da dispensa de licitação para enfrentamento da COVID-19 fundada no artigo 4º da Lei 13.979 de 2020, a mesma utilizada pelos gestores da Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Este mapeamento foi realizado com o software ARPO (KLUG SOLUTIONS, 2019) utilizando a notação EPC.

O processo da dispensa de licitação para enfrentamento da COVID-19 (Figura 2) inicia na área demandante. Na maioria das entidades públicas, o departamento de compras recebe as necessidades e prepara os documentos a serem enviados à autoridade competente. Portanto, a primeira via é onde o “Pedido de Solicitação” é preparado. É encaminhado para a segunda via na qual a autoridade competente analisa a necessidade da demanda. Havendo necessidade de demanda, o processo segue novamente para a primeira via ou para o departamento de compras ou departamento específico (unidade requisitante) para a elaboração do Termo de Referência. Quando a autoridade recebe o Termo de Referência, este é encaminhado ao departamento jurídico (terceira via) para análise, para que, em termos legais, seja emitido parecer sobre a adequação às regras e princípios de licitação.
Logo após receber o parecer do setor jurídico, o órgão competente encaminha o processo ao Departamento de Orçamento e Finanças (quarta via) para consulta da disponibilidade orçamentária. Se for positivo, o processo volta para a Autoridade Competente (segunda via). A autoridade aprova as isenções e encaminha o processo para a quinta via onde uma autoridade Superior confirma o ato e encaminha para o setor editorial (última via), que é responsável pela publicação da dispensa de licitação.
TCU (2018) traz um modelo simplificado de mapa de risco que foi utilizado de forma adaptada pelos autores deste artigo, com aplicação para a gestão dos riscos em cada entrada e saída do processo mapeado na Figura 2. O quadro 3 apresenta a análise de riscos do processo.


O presente trabalho foi pautado pelas seguintes indagações: as ferramentas de gestão por processos podem auxiliar na identificação de gargalos no processo de contratação direta por emergência, regulamentado pelo artigo 4o da Lei 13.979/2020 (BRASIL, 2020)? Quais são os riscos que podem ser evitados?
O objetivo deste trabalho foi comparar a dispensa de licitação em razão de emergência regulamentada no artigo 24, IV, da Lei 8.666/1993 (BRASIL, 1993), a prevista na Lei 13.979/2020 (BRASIL, 2020) e as alterações trazidas pela Lei 14.133/2021 (BRASIL, 2021) e permitir melhor visualização do processo e dos riscos envolvidos em cada etapa da dispensa de licitação, em razão da COVID-19.
Para tanto, o trabalho teve como foco as etapas 1 e 2 da metodologia de gestão por processos apresentada na figura 1. Para o conhecimento do contexto do problema (etapa 1), utilizou-se a ferramenta 5W2H (quadro 2), pois permite conhecer o que acontece no processo (PEREIRA et al., 2015; MOURA et al., 2019) e como ressalta Ture (2020), mais indicada nos casos de licitações. Como ponto de partida para a modelagem e análise do processo (etapa 2), foi realizado o mapeamento do processo de dispensa de licitação para enfrentamento à Covid-19 apresentado na Figura 2, que possibilitou em primeiro lugar a explicitação das ações (atividades) descritas nos procedimentos da Lei 13.979/2020, como bem aborda Hammer (2013), fornecendo uma visão clara das conexões entre as atividades e os respectivos atores envolvidos no processo. A partir do conhecimento do contexto e do mapeamento da Figura 2, e seguindo as etapas “a” e “b” recomendadas por TCU (2018) na gestão de riscos, foi possível identificar os riscos relacionados às ações de cada ator do processo de dispensa de licitação em razão da COVID-19, como detalhado no quadro 3.
Os riscos apontam pontos de vulnerabilidade na dispensa de licitação em razão da COVID-19 (Lei 13.979/2020) e como análise dos riscos destacam-se os seguintes pontos:
a presunção da emergência no caso da Lei 13.979/2020. A reflexão a ser feita é que, embora o gestor não tenha que comprovar a emergência, ele tem que comprovar a relação entre o que está sendo comprado/contratado e o enfrentamento da pandemia, pautado pelos mesmos princípios, ou seja, a supremacia do interesse público, a razoabilidade e proporcionalidade, a isonomia, a eficiência e a publicidade, além da legalidade e da moralidade. Além disso, a quantidade deve ser justificada por critérios técnicos. No caso analisado, o TCERJ (2020) encontrou um superfaturamento de quantidade de ventiladores, pois a SESRJ não considerou os kits que viriam do governo federal e foi constatada superestimativa de quantidade;
a dispensa da elaboração de estudos preliminares quando se tratar de bens e serviços comuns e aceitação de um projeto básico simplificado. Conforme TCU (2018), os estudos preliminares têm o objetivo de assegurar a viabilidade técnica da contratação e devem compor o Termo de Referência (TR). Para o caso dos ventiladores pulmonares, houve a necessidade desses estudos com participação de área técnica. Pela auditoria realizada pelo TCE (2020), a empresa contratada entregou ventiladores pulmonares inaptos para atender pacientes internados com COVID-19 e em desacordo com o TR e a SES/RJ recebeu esses produtos em desacordo com as especificações e com as quantidades e autorizou o pagamento. Um possível gargalo nesse processo é um falso entendimento dos gestores no sentido de que a urgência pode mitigar a necessidade aprofundada de estudos técnicos e a falta de controle com vistas a assegurar que aqueles que tenham elaborado as especificações participem do recebimento dos bens por eles especificados, para assegurar que os requisitos tenham sido cumpridos;
O gerenciamento de risco não é exigido na fase da contratação; somente na execução do contrato. Como o gerenciamento de riscos nesse caso é feito a posteriori , embora tenha sido identificado sobrepreço e pagamentos indevidos, o fato de ser depois de concluído o processo pode ser um gargalo, porque dificulta a recuperação dos valores já pagos para as empresas. No caso analisado, o dano ao erário foi no montante de R$8.502.305,64. (TCERJ, 2020);
A possibilidade de, excepcionalmente, o gestor dispensar, mediante justificativa, a estimativa de preço exigida pelo § 1º, inciso VI, do art. 4-E da Lei nº 13.979 de 2020 e também de contratar preço acima do estimado. A presença destes dispositivos pode levar à falsa ideia de que a urgência na composição de um preço seja mais importante do que o cuidado para estimá-lo. O gestor não pode se esquecer do princípio da economicidade. No caso analisado, o TCERJ apurou que foram consultadas três empresas e que estas tinham ligações entre si, evidenciando orçamentos combinados. Foi constatado sobrepreço em cerca de 200% em relação a contratações semelhantes realizadas em outros Estados (TCERJ, 2020);
A dispensa da apresentação dos documentos relativos à habilitação, excepcionalmente e mediante justificativa, nas situações em que houver restrição de fornecedores ou prestadores de serviço, ressalvadas as habilitações relativas à regularidade com a Seguridade Social e o cumprimento do disposto no art. 7º, inciso XXXIII, art. 4º-F sobre trabalho de menores da Constituição (BRASIL, 1988). Este dispositivo também pode ser considerado um gargalo porque pode levar o gestor à falsa ideia de que não tem que verificar a qualificação econômico-financeira da empresa, bem como outras que mitiguem o risco de descumprimento do contrato, tal como ocorreu no caso analisado neste artigo, que resultou em inexecução do contrato (TCERJ, 2020).
A possibilidade de pagamento antecipado mediante justificativa. Este também pode ser um gargalo se o gestor não se cercar de muita cautela sobre a exequibilidade por parte da empresa, antes de autorizar o pagamento.
Assim, este artigo aponta gargalos nos processos de dispensa de licitação fundados na Lei 13.979/2020 (BRASIL, 2020) que somente poderiam ser evitados se os gestores fizessem uma adequada gestão de riscos. Embora a lei somente obrigasse a realização do Relatório de Riscos no momento posterior à contratação, seria fundamental que os gestores controlassem esses riscos em concomitância com cada entrada e saída do processo de dispensa de licitação. Além disso, as ferramentas de gestão por processos e de gestão de riscos podem ser grandes aliadas na capacitação de gestores e de todos os servidores envolvidos com processos de dispensa de licitação.
Embora a Lei 13.979/2020 (BRASIL, 2020) tenha perdido sua vigência em 31/12/2020, apesar de a pandemia persistir até a presente data, as identificações de gargalos apontadas neste artigo continuam relevantes tanto do ponto de vista acadêmico como do ponto de vista da gestão pública. Academicamente porque registram aspectos importantes de um dispositivo de direito provisório que gerou efeitos que ultrapassam o período em que ele foi aplicado. No campo da gestão pública traz reflexões sobre a relação entre governança pública, gestão por processos e gestão de riscos, seja no campo de aplicação profissional como ferramenta de gestão para os servidores que participam de cada etapa do processo de dispensa de licitação, por destacar aspectos de gestão de riscos igualmente aplicáveis ao caso de dispensa de licitação por emergência previsto no artigo 75, VIII, da Lei 14.133/2021 (BRASIL, 2021), auxiliando na produção de mapas de risco que são requisitos de todas as dispensas de licitação regulamentadas nesta nova lei.
As principais limitações deste trabalho são a impossibilidade de análise de mais casos em que tenha havido fraudes e de comparar com casos de sucesso, o que demandaria maior tempo de dedicação e de explorar outros aspectos abordados apenas an passant, que podem ser abordados em estudos futuros.
Para trabalhos futuros sugere-se o estudo de outros casos em que a lei 13.979/2020 (BRASIL, 2021) tenha sido usada na área de compras para enfrentamento da COVID-19 e uma comparação do percentual de casos com fraudes em relação a casos sem fraudes. Uma hipótese é que a lei não tenha tido sua vigência prorrogada, apesar de a pandemia persistir e se acentuar após 31/12/2020, porque, apesar da eficiência na celeridade do processo, ela não se mostrou eficaz, uma vez que pela imprensa foram noticiados vários casos de fraudes, hipótese que merece um estudo mais aprofundado com dados quantitativos. Há ainda a possibilidade de estudar a relação entre a mídia e o interesse por cidadãos na busca de dados abertos em sites de transparência do governo como uma forma de accountability, bem como a possibilidade de estudar os riscos que podem ser evitados, se institutos de direito provisório tiverem sua aplicação acompanhada por uma gestão de riscos apropriada e condizente com princípios da nova governança pública, todos temas incipientes e que merecem dedicação de mais pesquisas.
À empresa Klug Solutions (klugsolutions.com) por disponibilizar o uso do software ARPO para fins acadêmicos.




