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PROCESSOS DE SOCIALIZAÇÃO NA FORMAÇÃO DE PORTFÓLIOS FINANCEIROS DE INVESTIDORES DE VAREJO
SOCIALIZATION PROCESSES ON THE FORMATION OF FINANCIAL PORTFOLIOS OF RETAIL INVESTORS
Caderno de Administração, vol. 31, núm. 2, pp. 7-27, 2023
Unuversidade Estadual de Maringá

Artigo


Recepção: 12 Agosto 2022

Aprovação: 24 Outubro 2023

DOI: https://doi.org/10.4025/cadadm.v31i2.66223

RESUMO: Esta pesquisa parte de duas premissas. A primeira é que investidores de varejo estabelecem uma relação de consumo com instituições financeiras ao adquirirem produtos de renda fixa e/ou variável. A segunda premissa é que os processos de socialização desses investidores-consumidores influenciam e são construídos nas decisões sobre a aquisição de produtos de investimento. O objetivo deste artigo foi identificar elementos das trajetórias dos sujeitos - utilizando conceitos da sociologia de Bourdieu - e associá-los à alocação do recurso financeiro. Para alcançar a proposta, foram realizadas entrevistas com investidores individuais e aplicada, posteriormente, a Análise de Conteúdo. As entrevistas, além de revelarem a influência dos pais na gestão do dinheiro, apontaram que os investidores com preferência para a renda variável compartilham experiências no mercado financeiro em suas relações interpessoais e se concentram no acúmulo de capital informacional sobre finanças; já os entrevistados com preferência para a renda fixa não possuem interesse na dinâmica do mercado e se apoiam em questões extraeconômicas na escolha dos produtos financeiros.

Palavras-chave: Investidor-consumidor, bourdieu, sociologia do consumo, finanças.

ABSTRACT: This research is based on two premises. The first is that retail investors establish a consumer relationship with financial institutions when they purchase fixed and/or variable income products. The second premise is that the socialization processes of these investor-consumers influence and construct decisions about the purchase of investment products. The objective of this article was to identify elements of the subjects' trajectories - using concepts from Bourdieu's sociology - and associate them with the use of financial resources. To achieve this, interviews were conducted with individual investors, followed by content analysis. In addition to revealing the influence of parents on money management, the interviews indicated that investors with a preference for variable income share financial market experiences in interpersonal relationships and focus on accumulating financial information capital; respondents with a preference for fixed income are not interested in market dynamics and rely on extra-economic issues when choosing financial products.

Keywords: Investor-consumer, bourdieu, sociology of consumption, finance.

INTRODUÇÃO

A literatura acadêmica sobre as decisões financeiras dos investidores de varejo é extensa e múltipla. Essa diversidade é encontrada, sobretudo, nos enquadramentos teóricos, que ora se aproximam da objetividade das finanças tradicionais, ora se debruçam sobre a racionalidade limitada estudada na economia comportamental (Thaler; Sunstein, 2019).

Este artigo tem abordagem mais alinhada à lógica da racionalidade limitada, alicerçada nos estudos do consumidor que orbitam a área do Marketing. Essa lente teórica considera que os investidores de varejo possuem relação de consumo com as instituições financeiras quando escolhem as empresas e os produtos de investimento mais adequados às expectativas de gestão das finanças pessoais, como proposto por McQuarrie e Statman (2016). Por essa razão, autores como Hachul (2018) usam, inclusive, a expressão “investidores-consumidores”.

Mas, de que forma essas decisões de consumo são tomadas? A resposta a esse questionamento parte da premissa, também adotada por Aldridge (1998) e Bonaldi (2018), de que as trajetórias sociais dos investidores-consumidores interferem no processo decisório sobre qual(is) produto(s) de investimento adquirir. Concordando com Veblen (1988), assume-se que o espectro simbólico do consumo e seu papel de distinção e pertencimento sociais relacionam-se à área econômica. Dessa forma, o objetivo deste trabalho foi identificar processos de socialização, conectá-los à percepção dos investidores sobre as finanças pessoais, e compreender como essas perspectivas influenciam nas decisões sobre a aquisição de produtos de investimentos. Para viabilizar a pesquisa, foram apreendidos fragmentos do percurso social dos participantes, com base nos conceitos de campo, habitus e capitais do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1975). Estratégia semelhante foi usada em obras que dialogam com as Finanças e a Sociologia (Aldridge, 1998), assim como em artigos que interligam o Marketing aos constructos sociológicos desenvolvidos por Bourdieu (Castilhos, 2007).

O debate teórico introduzido acima será aprofundado na próxima seção deste artigo. No capítulo seguinte, sobre a metodologia, será detalhado o processo de triagem dos participantes, o modelo usado para guiar as entrevistas em profundidade e o esquema usado para operacionalizar a Análise de Conteúdo (Bardin, 2004) e organizar a narrativa dos resultados encontrados. Na seção subsequente, portanto, os resultados serão apresentados e discutidos com base na proposta de Roling e Vieira (2014) e nos elementos de socialização listados por Bourdieu (1975). A última seção é composta pela conclusão do estudo e suas contribuições, além de suas limitações, lacunas e sugestões para outros pesquisadores que desejem articular a sociologia do consumo ao mercado financeiro.

Este trabalho amplia a literatura acadêmica sobre a tomada de decisão dos investidores individuais e o enquadramento dessa escolha em um âmbito de relação de consumo com instituições financeiras. Ademais, o artigo avança na discussão de raiz sociológica sobre o mercado financeiro enquanto uma construção humana. As questões levantadas e discutidas nesta obra podem contribuir na formatação de produtos financeiros mais aderentes à expectativa dos investidores de pequeno porte, que muitas vezes não se interessam apenas pela rentabilidade ou custos de transação, como defendido pela corrente utilitarista das finanças (Guedes et al., 2019).

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

INVESTIDORES-CONSUMIDORES

De acordo com McQuarrie e Statman (2016), os investimentos são serviços oferecidos pelas instituições financeiras, que fazem a gestão do dinheiro aplicado e cobram por isso. Os investidores são, assim, consumidores desses serviços, formatados como produtos.

Em trabalho publicado no Journal of Consumer Research, Zhou e Pham (2004) defendem que as aquisições de produtos de investimento refletem, separadamente, as expectativas dos investidores-consumidores. Inspirados na Teoria do Foco Regulatório de Higgins (1998), Zhou e Pham (2004) argumentam que há alguns produtos associados a uma conduta de prevenção (ou seja, com maior importância em não perder dinheiro) e outros ligados à conduta de promoção (ou seja, com maior importância na rentabilidade). Dessa maneira, a composição de ativos em um portfólio não necessariamente segue a linha da redução do risco, como na proposta de Markowitz (1952), mas sim uma estratégia de separação de valores com objetivos de prevenção e/ou a promoção do valor investido, de acordo com os produtos financeiros adquiridos (Zhou; Pham, 2004). Os portfólios conservadores têm maior número de ativos de prevenção, os portfólios moderados equilibram as duas classes de produtos e os portfólios arrojados têm um valor maior alocado em investimentos para promoção.

Trazendo esse raciocínio para o mercado financeiro brasileiro, a prevenção é atrelada a alternativas de renda fixa, que geram rendimentos fixos, com rentabilidade previamente determinada (pré-fixada) ou calculada após o resgate ou vencimento do investimento (pós-fixada). Em geral, o potencial de rendimento proporcionado por tais aplicações é menor que os rendimentos de aplicações variáveis, porém os riscos de perda também são menores. A caderneta de poupança, produto mais popular entre os brasileiros (Gouveia, 2019), é um exemplo de alternativa de renda fixa. É um produto com rentabilidade mensal e limitada, com liquidez - ou seja, pode ser, fácil e rapidamente, transformado em dinheiro livre para uso.

A promoção tem maior ligação com a renda variável, ativos que não possuem uma taxa com índice de previsibilidade por um período maior, podendo ter alterações consideráveis de valor ao longo de um dia. Esses produtos, no geral, possuem maior possibilidade de rentabilidade - e também perdas - em comparação com a renda fixa, já que há uma relação direta entre risco e retorno (Breakley; Myers; Allen, 2013).

No mercado brasileiro, de acordo com a instrução 539 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), divulgada em novembro de 2013, os produtos de renda fixa e/ou variável oferecidos ao consumidor de investimentos financeiros devem ser adequados ao seu perfil, objetivos e situação financeira (CVM, 2019). Esta aderência entre o perfil do cliente e os produtos adquiridos por ele é chamada de suitability (Ferreira, 2019). Para apreensão desse perfil, as instituições financeiras devem solicitar que os clientes respondam o questionário de Análise do Perfil do Investidor (API). Segundo orientação da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA), os questionários devem conter perguntas sobre a situação financeira, objetivos e conhecimento do investidor (ANBIMA, 2020).

Além da regulação da CVM e da ANBIMA, a relação de consumo entre investidores e instituições também é amparada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Na área do Direito, Martins e Ferreira (2015) argumentam a favor da aplicabilidade do CDC quando o investidor for não-qualificado. Investidores desse tipo não possuem exigência mínima geral e não se autodeclararam como qualificados (CVM, 2019). Os investidores não-qualificados são considerados “investidores de varejo” (Bressan; Moreira, 2020). São participantes de menor porte e estão no grupo daqueles que aplicam patrimônio próprio, ou seja, pequenos investidores individuais que não fazem a gestão de recursos de terceiros, e que são, conforme Bonaldi (2018), agentes econômicos resultantes de processos sociais de construção material e simbólica.

SOCIALIZAÇÃO E CONSUMO

O aspecto meramente transacional do consumo é superado com as perspectivas da sociologia e antropologia incorporadas ao Marketing. Nas pesquisas que escolheram esse percurso, o consumo é visto por seu espectro simbólico, como um fenômeno que media e concretiza as relações sociais, modelando as identidades dos consumidores nos mais variados contextos da vida cotidiana (Casotti; Suarez, 2016).

A teoria sociológica de Bourdieu (1975) foi importada para enrobustecer a compreensão sobre o consumo e seu caráter de prática social, ao interrelacionar os conceitos de habitus, capital e campo. De acordo com Castilhos (2007), esses termos foram apropriados em pesquisas de Marketing principalmente para construir um entendimento dos processos de consumo ao longo da hierarquia social.

O habitus é compreendido como dispositivo de reprodução e definição de estruturas mentais - como resultado de estruturas sociais - articuladas com as histórias individuais e coletivas (Wacquant, 2007). Esse elemento organizador, relacionado com o modo de pensar e princípios interiorizados pelo sujeito (Zioli; Garcia; Pépece, 2020), expande-se para a prática social do consumo de forma difusa com disposições naturalizadas. Essas disposições assentam-se na trajetória de socialização do indivíduo, primordialmente no seio familiar e na escola (Silva; Dias; Silva, 2015). Enquanto um direcionador de práticas, o habitus orienta a estratégia dos agentes no campo, definido como um espaço abstrato delimitado a partir de estruturas invisíveis relacionais (Castilhos, 2007). Bourdieu (2014, p. 149) esclarece que “há, de um lado, uma gênese social dos esquemas de percepção, pensamento e ação que são constitutivos do que chamo de habitus e, de outro, das estruturas sociais, em particular do que chamo de campos”.

O campo é um local de conflito entre os agentes que o constituem, originado nas diferentes posições tomadas e desejo de manutenção ou mobilidade dentro do espaço. O posicionamento é atrelado ao acúmulo ou escassez do capital simbólico (vinculado ao reconhecimento e prestígio dentro do campo), e conecta-se com os capitais econômico, cultural e social, que podem ser explicados da seguinte forma:

(...) o capital econômico refere-se aos fatores de produção (terra, fábrica, trabalho) e de recursos econômicos (renda, patrimônio e bens materiais). Por sua vez, capital cultural é formado por um conjunto de qualificações intelectuais, como títulos e talentos. O capital social é formado pela rede de relações de interconhecimento e conhecimento mútuo, como círculo de amigos e colegas de faculdade (Silva; Dias; Silva, 2015, p. 13).

Os agentes ponderam a relevância desses capitais para compor o capital simbólico e classificar os participantes do campo. É preciso entender que o capital que tem valor num campo, pode não representar nada em outro (Roling; Vieira, 2014). A legitimação dessa escala de importância é baseada não só no habitus, mas também em estruturas internas do campo, como a doxa, o nomos e o illusio. A doxa representa o acordo tácito entre os agentes, aquilo que se mostra consensualmente óbvio (Bourdieu, 2014) e posto dentro do campo. O nomos significa o conjunto de regras implícitas e explícitas que disciplinam a atuação dos agentes (Roling; Vieira, 2014). E a illusio é o que torna o jogo atraente e interessante para os jogadores (Bourdieu, 1975).

Os conceitos de Bourdieu destacados nesta argumentação teórica foram categorizados para a condução das entrevistas e posterior análise, seguindo o caminho dos trabalhos de Roling e Vieira (2014) e Silva, Dias e Silva (2015). Esses procedimentos metodológicos serão detalhados na próxima seção.

METODOLOGIA

Os procedimentos empregados nesta pesquisa buscaram responder à pergunta: como a socialização influi nas decisões de investimentos dos investidores de varejo? Uma vez que há, neste artigo, uma abordagem do Marketing, optou-se pela utilização de ferramentas metodológicas já validadas em outros estudos sobre o consumo. Foram aplicados métodos qualitativos, sem a intenção de construir resultados generalizáveis, como forma adequada de melhor compreender a intersecção do contexto e dos pontos de vista específicos dos sujeitos, e, a partir das experiências dos participantes, avaliar os resultados no escopo de uma “realidade socialmente construída” (Bogdan; Biklen, 1994, p.54).

No primeiro momento, foram distribuídos, por e-mail, questionários API para investidores indicados por conveniência ou por outros participantes, no processo de snowball (Goodman, 1961). Os questionários serviram para: a) fazer uma leitura prévia do perfil dos respondentes (idade, gênero, ganho familiar mensal, ocupação, valor aplicado) e da experiência deles no mercado financeiro; b) filtrar investidores que não fossem qualificados (e, portanto, fossem classificados como investidores de varejo); e, c) segmentar os respondentes por portfólios. Sobre essa segmentação, foi utilizada uma adaptação da proposta de Mauss e Delatorre (2012) e definiu-se que os portfólios conservadores teriam todo o recurso em produtos de renda fixa, os moderados teriam de 20% a 50% em renda variável e os arrojados teriam a maior parte (acima de 50%) em produtos de renda variável. Vinte e três pessoas responderam os questionários, porém seis delas se declararam como qualificadas, reduzindo para dezessete o número de participantes. A identificação dos respondentes foi feita pela letra E, seguida da primeira letra do perfil do portfólio (conservador, moderado ou arrojado) e número sequencial, para garantir o sigilo dos participantes. Dessa maneira, foram reunidos oito sujeitos com portfólios conservadores, cinco com portfólios moderados e quatro com portfólios considerados arrojados.

Para apreensão dos aspectos de socialização dos sujeitos, foram realizadas entrevistas em profundidade, com roteiro semiestruturado, com base na percepção dos entrevistados. O suporte para condução das entrevistas e posterior investigação seguiu proposta de Silva, Dias e Silva (2015) para aplicação dos conceitos de Bourdieu (1975), como ilustrado no quadro a seguir:


Quadro 1
Instruções para apreensão da trajetória social.
Fonte: Adaptado de Silva, Dias e Silva (2015).

Como pode ser verificado no quadro acima, há limitações evidentes na apreensão do percurso social dos sujeitos. As experiências, por exemplo, foram restringidas àquelas diretamente conectadas ao mercado financeiro. Ademais, o habitus foi limitado às disposições explicitadas durante as entrevistas, com maior direcionamento para o habitus com caráter de aprendizado originado na socialização do indivíduo ocorrido, primeiramente, na família e escola (Silva; Dias; Silva, 2015), componente do habitus primário (Manzan; Muzzeti, 2013).

Após as transcrições das entrevistas, foi realizada Análise de Conteúdo (Bardin, 2004), baseada na proposta de Roling e Vieira (2014) para estruturar pesquisas que articulam os conceitos de Bourdieu aos estudos em Marketing. As dimensões teóricas da sociologia geraram as coordenadas de codificação para reunir regularidades e padrões encontrados nas “unidades de registro”: ideias, constructos, frases e termos associados aos temas (Bardin, 2004; Bogdan; Biklen, 1994). O esquema na Figura 1 detalha as instruções para codificação, categorização e posterior organização da narrativa no artigo:


Figura 1
Esquema para análise e apresentação dos resultados.
Fonte: Roling e Vieira (2014, p. 69).

O esforço para análise e apresentação dos resultados foi direcionado para definir, identificar e discutir o campo e os papéis dos agentes, o habitus (baseado nas disposições na prática do consumo, com alguma ênfase no habitus primário) e o capital simbólico (e a articulação com os capitais econômico, cultural e social).

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Neste item, os resultados serão analisados de forma categorizada (por tópico), com base em cada um dos elementos da teoria de Bourdieu elencados no modelo proposto por Roling e Vieira (2014) ilustrado na Figura 1. Serão usados fragmentos das entrevistas como forma de exemplificar as argumentações apresentadas, segmentados de acordo com o portfólio financeiro dos entrevistados.

CAMPO

Roling e Vieira (2014) alertam que há campos muito extensos, o que pode forçar uma restrição para operacionalizar o estudo empírico. O trabalho de Aldridge (1998) na Inglaterra, por exemplo, aplica os conceitos de Bourdieu ao consumo no mercado financeiro, mas delimita o campo das finanças pessoais, o que inclui o consumo de crédito e seguros de vida. Na nossa pesquisa, porém, há o recorte específico para investidores de varejo, o que resulta na delimitação do campo de consumo de produtos de investimento.

As entrevistas apontaram que o conhecimento sobre o mercado é inerente ao processo de investir, compondo a doxa (realidade posta) do campo do consumo de produtos financeiros de investimento. Dessa maneira, compartilha-se a ideia de que a aquisição de produtos mais sofisticados está associada ao maior acúmulo de informações financeiras. Essa tese foi sustentada no trabalho de Fernandes (2019), que complementa que a educação financeira no país está próxima da abordagem clássica na economia (e mais distante da economia comportamental) e contribui com “a criação de um habitus ligado à economia neoliberal” (Fernandes, 2019, p. 36).

O illusio tem vínculo com o recurso financeiro individual: a promoção desse valor investido é que faz o jogo valer a pena. Ou seja, até no caso em que o investidor-consumidor tenha maior predileção por prevenção, ele deve ter alguma expectativa de promoção (Zhou; Pham, 2004), mesmo que seja de mera correção para suplantar a redução do poder de compra por pressão inflacionária no país (Sansi Roca, 2007). Essa lógica justifica a alocação do dinheiro em produtos no mercado financeiro - e não no bolso, num cofre ou embaixo do colchão.

O nomos, ou as regras do campo, é caracterizado não só pelas leis econômicas que regem o mercado, mas também pela formatação dos produtos oferecidos pelas instituições financeiras. Estão incluídas aí: a relação direta de risco e retorno dos ativos, (Markowitz, 1952); a taxa básica de juros e sua influência na renda fixa no Brasil; a volatilidade da renda variável resultante da relação entre oferta e demanda e amplificada em momentos de incerteza, como no surto do novo coronavírus (Cardoso, 2020); e as características de liquidez e performance dos produtos de investimento.

HABITUS

O entendimento de que o campo conceituado por Bourdieu é uma estrutura permeável (Aldridge, 1998) leva à compreensão que as disposições encontradas em outros campos se integram à relação de consumo no mercado financeiro e contribuem para formatar um habitus de natureza múltipla. O próprio ato de consumir produtos de investimento representa a participação dos sujeitos em uma dinâmica do capitalismo global e financeirizado (Bonaldi, 2008) adotada no Brasil. O “fator país” tem ainda um aspecto estruturante entre os entrevistados, pelo histórico nacional e seus elementos econômicos. Sansi Roca (2007) lança mão da antropologia para compreender como políticas monetárias e controle da hiperinflação sedimentaram-se na cultura brasileira. Neiburg (2007) argumenta como índices, indexadores e planos econômicos moldaram a visão de mundo no Brasil.

Contudo, o processo de análise foi canalizado para identificar a influência do habitus primário, a partir das práticas financeiras no seio familiar e na escola, e das percepções dos sujeitos ao decidirem quais tipos de produtos de investimento vão adquirir.

HABITUS PRIMÁRIO - FAMÍLIA

Apesar de se situarem hoje na classe média brasileira, os sujeitos EC2, EC6 e EM1 afirmaram que tiveram infâncias pobres e apreenderam dos pais um comportamento conservador nas finanças, imposto pela pouca disponibilidade de dinheiro. Os três investem a maior parte do patrimônio em produtos de renda fixa.

A influência na formatação de representações observadas no seio familiar, contudo, não se restringe às suas replicações. É possível que o agente reestruture a sua percepção, com base em interações cotidianas, se concluir que os costumes, valores e práticas demonstrados pelos pais, por exemplo, não são os mais adequados (Manzan; Muzzeti, 2013). O Quadro 2 agrupa alguns relatos de convergência e divergência com a conduta financeira observada pelos sujeitos no núcleo familiar:


Quadro 2
Percepção sobre a relação dos pais com a questão financeira.
Fonte: elaboração própria.

As atitudes inversas daquelas atribuídas aos pais ajudam a refutar a ideia do habitus como uma entidade determinística, apresentando-se como um constructo dinâmico (Bourdieu, 1975). Aberto a adaptações, o habitus pode ser reestruturado e atualizado de forma estratégica para se conformar ao campo (Trigo, 1998). No caso das citações em divergência no Quadro 2, as maneiras de encarar a gestão financeira se baseiam na reserva e aplicação do dinheiro (ao contrário do comportamento dos genitores).

HABITUS PRIMÁRIO - ESCOLA

Assim como a família, a escola também constitui o habitus primário (Manzan; Muzzeti, 2013). Entre os sujeitos, apenas EC3 afirmou que teve algum tipo de educação financeira no ensino médio. A entrevistada disse ainda que esses ensinamentos foram reforçados e ampliados na faculdade:

Tive educação financeira. Lembro que na época da matéria de matemática, especificamente, a professora sempre falava em relação à poupança e em relação a determinados tipos de investimento. Tinha também um projeto que era interdisciplinar, que a gente tinha que reunir um valor, né, determinado em sala... Eu ficava como líder, como uma pessoa que tinha essa proatividade de pegar o dinheiro e captar e transformar em outras coisas, sabe? (EC3)

Fernandes (2019) aponta que a educação financeira aparece formalizada no documento da Base Nacional Comum Curricular dos ensinos fundamental e médio no Brasil em 2017 - mas de forma não-obrigatória. No currículo obrigatório, questões pertinentes às finanças (como cálculo de juros compostos) são vinculados à disciplina da matemática, e esse tipo de instrução é muito mais ligado ao controle de gastos do que à investimentos (Fernandes, 2019). Para suprir a ausência da educação financeira, a maioria dos sujeitos complementa o conhecimento sobre produtos de investimentos a partir do conteúdo disponível na Internet. Segundo EA3, essa busca por conhecimento é justificada porque:

O conhecimento é mínimo, porque durante a infância ou durante o ensino médio a gente não teve essa educação financeira, nem por parte dos pais, nem no ambiente do colégio (...) A gente não foi educado financeiramente, então recebe o salário e sai gastando tudo adoidado. Então, antigamente, eu não tinha controle e gestão nenhuma em minhas finanças. (EA3)

A alteração na gestão financeira apontada por EA3 foi possível por causa do maior acúmulo de conhecimento financeiro fora da escola, impactando o capital informacional. Esse tema será aprofundado na seção sobre capitais neste artigo.

DISPOSIÇÕES E PRÁTICAS ORIENTADAS

Os sujeitos relataram que os produtos de investimento adquiridos possuem relação direta com a percepção sobre o dinheiro - tanto na dimensão simbólica, quanto na dimensão utilitária do meio de pagamento. Dessa forma, constructos extraeconômicos, como bem-estar, segurança, liberdade e família, associam-se ao dinheiro e sua alocação no mercado financeiro.

Aldridge (1998) identificou que os ingleses reservavam dinheiro em produtos financeiros como forma de contratar serviços privados em casos de emergência que seriam, a priori, fornecidos pelo Estado. Em uma lógica individualista do consumismo e do privatismo na organização da sociedade (Baldock; Ungerson, 1997), o bem-estar passa a ser financiado pelo próprio cidadão e não mais disponibilizado pelo governo (Aldridge, 1998). As entrevistas evidenciaram que os sujeitos possuem essa mesma percepção em relação ao Estado brasileiro.

Um dos principais orientadores citados pelos entrevistados para o consumo de produtos de investimento é a busca por segurança, alinhado com o que já havia sido apontado por Keynes (1964). Essa segurança é compreendida como um antídoto contra a incerteza (o que leva a uma “reserva de emergência”) para que o cidadão possa honrar com gastos imprevistos na promoção do bem-estar independentemente do Estado, como mostram os exemplos no quadro a seguir:


Quadro 3
Ponderações e disposições quando vai aplicar o dinheiro
Fonte: elaboração própria.

O receio de hospitalização (e ter que pagar por cuidados médicos) surgiu como uma das principais alegações para se ter o dinheiro guardado em produtos fornecidos por instituições financeiras. Há, portanto, uma priorização de formação de reserva financeira para a contratação de serviços privados de saúde, embora o Estado brasileiro adote o Sistema Único de Saúde, com atendimento universal e gratuito (Almeida Filho, 2013). A falta de confiança nesse sistema, contudo, está explicitada nos fragmentos das entrevistas de EC8 “você fica muito preocupado que você tenha dinheiro para você pagar suas contas, pagar plano de saúde (...) a segurança é muito ruim, a educação é muito ruim, mas a saúde... É uma questão de dignidade!” e EM2 “Pra você ter uma ideia, minha mãe, a glicemia dela subiu de uma hora para outra e eu tava dirigindo o carro, ela começou a ficar tonta. Eu não vou levar ela nunca para o Estado. Levei pro hospital particular”.

Assim como a atenção à saúde, à previdência social faz parte da Constituição Federal de 1988. Ambas são instrumentos de seguridade social a serem fornecidos pelo Estado e contemplados no Art. 194: “compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (Brasil, 1988). No entanto, os relatos de EM3, EA1 e EA4 revelaram que há desconfiança e incerteza sobre o futuro da previdência pública brasileira.

A incerteza e o temor constante de uma situação de emergência não são exclusivos da dimensão individual dos sujeitos. Os relatos de EC2, EM1, EM2, EM4, EA3 e EA4 trazem a família como um elemento a ser considerado quando o dinheiro é alocado em produtos de investimento. Falicov (2001) concluiu em seu estudo que há um forte componente cultural nesse tipo de perspectiva, uma vez que os latinos possuem uma visão coletivista da questão financeira, ligada à família, enquanto os anglo-americanos são mais individualistas. O trabalho de Leite (2011) no Brasil afirma que o consumo de produtos de investimento “legitima a expansão das finanças através de estratégias simbólicas que valorizam a família e ganha ressonância na sociedade” (Leite, 2011, p. 170). A autora parte do pressuposto que a família é um constructo que compõe o habitus nacional e, dessa forma, transborda sua influência para o mercado financeiro brasileiro.

No entanto, alguns relatos abordaram questões mais técnicas na decisão sobre investimentos, em consonância com a lógica racional do enquadramento clássico da área de finanças (Thaler; Sunstein, 2019). Os sujeitos EA1, EA3 e EA4 (todos, portanto, de portfólio arrojado) citaram que tomam suas decisões com base em distribuição de dividendos, formação de reserva de oportunidade e hedge - transação que tem como objetivo proteger o investidor de prejuízos na oscilação do mercado (Garcia; Didier, 2003). Como será visto na próxima seção, esses investidores-consumidores, com portfólios mais arrojados, possuem formas peculiares de interação com os capitais.

CAPITAIS

Capital Econômico

O capital econômico representa, primordialmente, um bilhete de acesso ao campo de consumo de produtos de investimento. O sujeito EC6 associa a disponibilidade de recursos financeiros à classe social a qual pertence e, concomitantemente, à possibilidade de investir o dinheiro excedente, como destacado abaixo:

Eu acho que [todo mundo] deveria ter [investimentos]. Mas nem todo mundo pode ter, porque você tem que ter dinheiro na mão. Eu acho importante a caderneta de poupança, porque na necessidade maior, sem você recorrer a terceiros, você tem onde pegar o dinheiro. (...) Agora, infelizmente, aqui no nosso país, os salários são baixos e a classe que fica mais abaixo é bem pior. O ganho é pouco, às vezes são cheios de filhos... Tem isso também. (EC6)

O dinheiro é considerado o ingresso para participar do jogo. Sua influência no campo foi interpretada pelos sujeitos mais por seu caráter qualitativo do que quantitativo, e o seu somatório teve pouca importância na classificação entre os investidores de varejo. Os formulários API revelaram que os sujeitos investem entre 5 mil e 20 mil reais, sem associação direta com o tipo de portfólio montado. O lado numérico do capital econômico e o seu ganho é mais relevante como um indicador de performance, ou seja, para saber se o produto dá um retorno favorável. O capital econômico também se conecta à dimensão hedonista, pois é a libido do campo (Bourdieu, 1975).

Por outro lado, a perda do capital econômico causada pela desvalorização de ativos não é unanimemente encarada como um fenômeno negativo. O Quadro 4 reúne as diferentes percepções sobre esse tema:


Quadro 4
Relatos sobre a percepção de perdas financeiras.
Fonte: elaboração própria.

Os sujeitos com orientação mais conservadora declararam possuir uma relação quase afetiva com o dinheiro. Investidores-consumidores mais arrojados citaram um comportamento mais objetivo em relação ao recurso aplicado. Nesse caso, a redução involuntária do capital econômico não só não rebaixa a posição do agente no campo, como também tem uma relação inversa: impacta positivamente na formação e reconhecimento do capital simbólico daqueles que voluntariamente se lançaram em mares revoltos.

O retorno sobre o capital econômico investido tem também um caráter hedonista, como identificado por Loewenstein e outros autores (2012). Porém, enquanto sujeitos com portfólio conservador se satisfazem com a ampliação do saldo alocado, investidores mais arrojados se regozijam com o jogo em si: a operacionalização e a participação na dinâmica do mercado.

Capital Social

A solidarização do consumo representa um aspecto ligado ao capital social e sua função de tornar o ato de consumir como acoplado na organização da sociedade. Ao mesmo tempo em que funciona como um instrumento de fortalecimento de redes e inserção em grupos e subculturas, o consumo promove a ostentação, exibição pública e evocação da posse de bens perante os outros atores sociais (McCracken, 2003).

O trabalho de Aldridge (1998) aponta que o consumo de produtos financeiros ocorre de forma privada. Segundo o sociólogo, “as pessoas relutam em discutir finanças pessoais fora do círculo familiar, exceto com consultores financeiros - gerentes de banco, advogados, contadores - cuja posição profissional oferece garantia de confidencialidade” (Ibid., p.8, tradução nossa). Essa lógica é compartilhada por uma parte dos entrevistados desta pesquisa, mas não por todos, como pode ser verificado no Quadro 5:


Quadro 5
Interações com outras pessoas sobre finanças.
Fonte: elaboração própria.

As citações mostram que, para alguns sujeitos, o consumo de produtos de investimento é um assunto comentado de maneira restrita, dentro do ambiente da família ou com especialistas, em linha com a argumentação de Aldridge (1998). Porém, investidores-consumidores com portfólios moderados (EM3) e arrojados (EA1, EA3 e EA4) disseram interagir com outros aplicadores, dividindo experiências e conversando sobre o mercado e decisões de consumo financeiro em redes sociais. Para esses sujeitos, há uma busca por capital social articulado com o capital cultural (ou informacional).

A vinculação entre os dois capitais pode ser verificada, por exemplo, no uso de palavras específicas do mercado financeiro durante a comunicação interpessoal. Termos como “swing-trade” (EA3), “day-trade”, “hedge”, “alavancagem” (EA4), “blue-chips”, “small-caps” (EA1), “circuit brake” e “buy-and-hold” (EA2), foram citados nos relatos dos detentores de portfólios arrojados. A linguagem, enquanto mecanismo do capital social, serve para marcar posições no campo através de sua aceitabilidade, modo e lugar de fala (Bourdieu, 2014). O vocabulário técnico distingue hierarquicamente os detentores de conhecimento e leigos (Ibid) e o domínio dos termos financeiros representa, de certa forma, uma ferramenta de prestígio social (Labate, 2008).

Capital Cultural (ou Informacional)

O capital cultural aplicado no campo em foco é reinterpretado como capital informacional, ou seja, “o conjunto de conhecimentos e informações acerca do mercado financeiro, somado à capacidade intelectual de processá-lo e apreendê-lo de modo razoavelmente adequado” (BONALDI, 2008, p. 70). O ensino sobre a área de finanças é percebido como deficiente na escola pelos sujeitos e, em muitos casos, no que é passado em ambiente familiar, como já visto na seção sobre habitus. Essa lacuna é, de certa maneira, compensada pelas formas de circulação de conteúdo financeiro no Brasil, enumeradas por Pasti e Silva (2013): boletins, análises de mercado, análises técnicas, classificações, índices, informações de empresas, portais especializados e notícias econômicas e políticas. Boa parte dos entrevistados busca essas fontes como forma de ampliar o capital informacional sobre o assunto, como mostra o quadro abaixo:


Quadro 6
Maneiras de se informar sobre o mercado financeiro.
Fonte: elaboração própria.

O quadro 6 aponta que os sujeitos com portfólios moderados e arrojados se colocaram como mais ativos no processo de acumulação de capital cultural. É o caso de trecho em destaque abaixo da entrevista de EA3:

Antigamente eu ficava vendo vídeos aleatórios no YouTube, de música e outras coisas. Quando você começa a estudar sobre finanças, você fica sedento por esse conhecimento. E aí eu já tô pensando em fazer disso a minha segunda profissão. Quem sabe até a primeira? (EA3)

Entrevistados com portfólios conservadores mostraram-se mais passivos e menos dispostos a ampliar o conhecimento sobre finanças, como EC7: “como não me interessa [saber sobre o mercado financeiro], eu acabo não recebendo [informações] e não presto muita atenção”.

Capital Simbólico

Nos relatos analisados, o capital econômico tem importância mais por tornar a dinâmica do consumo possível do que por seu somatório ou processo de acumulação. O capital social reside principalmente nos entrevistados com portfólios menos conservadores, ao compartilharem suas estratégias financeiras; e o capital cultural (ou informacional) apresenta-se como algo a ser acumulado, também com maior peso entre aqueles que consomem produtos mais arrojados. A síntese dos três forma o capital simbólico.

O capital simbólico precisa ser validado pelos agentes do campo do consumo de produtos financeiros. Afinal, é preciso a legitimação para que ele cumpra seu papel de promover o prestígio e o reconhecimento no espaço social (Silva; Dias; Silva, 2015). Segundo Roling e Vieira (2014), Bourdieu considerava o campo um jogo (ludus), e o capital simbólico era responsável por movimentar as peças no tabuleiro.

O processo de classificação dentro do campo baseia-se no capital simbólico - que considera a relação entre os outros capitais - e na maneira como os ocupantes do espaço social percebem esse capital simbólico, dando maior ou menor importância aos outros capitais que os constituem. Uma vez que foram identificados e discutidos os componentes do campo delimitado nesta pesquisa, faz-se necessário apreender e debater como os agentes interpretam suas decisões e as dos outros no jogo. Essas percepções são responsáveis por legitimar o prestígio advindo do capital simbólico e o próprio campo em si. O quadro 7 reúne alguns relatos dos sujeitos em relação ao consumo de produtos de renda fixa e renda variável:


Quadro 7
Percepção sobre as decisões de investir na renda fixa ou renda variável.
Fonte: elaboração própria.

Os relatos agrupados no Quadro 7 revelam que, de forma mais acentuada, os sujeitos consideram o capital cultural como relevante na distinção entre consumidores de produtos de renda fixa e renda variável. Os detentores de portfólios conservadores atribuíram suas decisões de investimento ao menor arcabouço informacional, como EC7 “acho que tem que ter um estudo né? Porque não é uma coisa tão simples quanto um CDB que você coloca lá e acabou. Eu não arrisco não, deixa lá quieto” e EC4 “se tratando de dinheiro, a gente não pode facilitar né? Então, antes de entrar em renda variável, tem que estudar, tem que entrar no mercado já conhecendo os riscos (...) hoje, com certeza, eu não estou na Bolsa de valores por causa disso”. Alguns desses investidores com portfólios conservadores vincularam uma melhor gestão do dinheiro à mudança de atitude no futuro (com a busca de maior promoção do valor investido), como EC2 “talvez eu consiga, fazendo direito, fazer meu dinheiro render muito mais do que eu faço agora. Eu aplico de uma forma não inteligente. Mas eu vou melhorar! Você vai ver na próxima vez que você me entrevistar!” e EC4 “eu acho que, no momento, eu não faria esse investimento, mas eu acho que lá no futuro, com uma bagagem que eu possa ter maior, eu posso até fazer”.

Na outra ponta, investidores-consumidores de portfólios arrojados concordaram com a maior carga depositada sobre o capital cultural como um aspecto diferenciador dos agentes. Entre os próprios investidores de renda variável, há maior prestígio para aplicadores com maior conhecimento técnico e experiência no mercado financeiro, atributos explicitados na associação do capital cultural com o capital social. Na visão de EA4, o saldo expressivo em produtos de renda fixa no Brasil é reflexo de menor acúmulo de bagagem informacional no país:

(...) o povo saberia, por exemplo, que não vale a pena deixar dinheiro no FGTS, a gente não teria milhões em poupança como tem hoje, teria muito mais aplicações em renda variável (apesar de estar crescendo). Acho que menos de 2% investem em renda variável. Dois por cento dos brasileiros. Se tivesse educação financeira de verdade, seriam 50%, como tem os americanos ou os países europeus. (EA4)

Entre os sujeitos com portfólios moderados e arrojados, a caderneta de poupança é o produto mais citado como exemplo negativo de decisão de investimento. Termos como “ultraconservador” (EM3), “conhecimento generalista” (EM4), “inerte” (EA1) foram relacionados à indivíduos que aplicam a maior parte do recurso financeiro na poupança, como um reflexo de menor acúmulo de capital simbólico. Os sujeitos EA2, EA1 e EA3 contaram que aplicavam antigamente na caderneta de poupança, mas mudaram seus portfólios depois que acumularam o capital informacional (ampliando, assim, o capital simbólico). De forma semelhante, o sujeito EM3 investia apenas em poupança, caderneta dada de presente pelos pais, mas, após estudar sobre o mercado, modificou sua maneira de consumir produtos financeiros, mesclando com alternativas mais arrojadas. O relato do sujeito EC5, porém, foi diferente: embora possua algum conhecimento na área de finanças, mantém o portfólio conservador e atribui isso ao comportamento de prevenção apreendido com o pai.

As experiências dos investidores-consumidores contadas pelos próprios entrevistados revelaram as diferentes nuances na tomada de decisão sobre qual tipo de produto adquirir. Como será reforçada na conclusão deste artigo, a escolha de diferentes portfólios associa-se tanto às relações sociais mais específicas (como o núcleo familiar e o círculo de amizades) quanto às questões mais abrangentes - como a interpretação dos entrevistados sobre o papel do governo.

CONCLUSÃO

Esta pesquisa investigou como investidores de varejo percebem, legitimam e materializam elementos de socialização no campo do consumo de investimentos financeiros. A forma como os sujeitos participam da dinâmica é originada em questões sociais implícitas que resultam na tomada de decisões para aquisição de produtos diferentes, evidenciada na formação de portfólios de ativos conservadores, moderados e arrojados.

O primeiro passo para que seja possível a entrada no campo é a compreensão sobre a importância de reservar o capital econômico. Nesse aspecto, o comportamento financeiro dos pais foi reproduzido ou refutado, mostrando-se influente nos dois casos. A família mostrou-se importante também no momento da decisão de alocação de dinheiro no mercado financeiro, e sua dimensão simbólica é conectada, segundo Leite (2011), a um habitus nacional. A preocupação com os familiares constitui uma impressão entre os sujeitos de que uma emergência, principalmente na área de saúde, pode ser resolvida com a utilização de recursos financeiros, implicando em maior independência dos serviços estatais. Essa lógica, considerada como neoliberal por Aldridge (1998) na Inglaterra, apareceu nos relatos muito mais vinculada a uma percepção negativa dos serviços públicos brasileiros do que a uma agenda ideológica. Investidores-consumidores com disposições atreladas a ponderações extraeconômicas (como família, emergência e saúde) mostraram-se, em sua maioria, adeptos ao consumo de produtos de investimento conservadores e com liquidez.

Já os investidores com portfólios mais arrojados apresentaram um raciocínio objetivo, em uma reprodução da objetividade idealizada pelo ramo tradicional das finanças (Thaler; Sunstein, 2019). Esses sujeitos contaram que buscam maior especialização e possuem interesse na operacionalização em si no mercado financeiro e intimidade com seu nomos, tal qual os participantes hardcore do campo, segundo definição de Zioli, Garcia e Pépece (2020). Esses sujeitos convergiram com o princípio hedônico da expectativa de promoção do capital econômico previsto na Teoria do Foco Regulatório (Zhou; Pham, 2004), sendo que o dinheiro é apenas constituinte da premiação do campo. Essa recompensa simbólica vem também do prestígio relacionado ao maior acúmulo de capital cultural (ou informacional) por investidores de renda variável em relação aos participantes mais conservadores, configurando-se, para os detentores de portfólios arrojados, como a illusio do espaço. A maior carga do capital cultural no capital simbólico se justifica por seu alinhamento à doxa do campo (Fernandes, 2019) e representa um dispositivo de prestígio e reconhecimento concretizado no consumo de produtos mais arriscados e sofisticados. Esses ativos contrapõem-se à caderneta de poupança, percebida como um produto de menor exigência de conhecimento e menor retorno do capital econômico.

Uma das limitações deste artigo é a captura do processo de socialização, realizada de forma específica e fragmentada, o que deixou de lado, sem dúvida, caminhos mais longos e profundos na trajetória social dos sujeitos. Além disso, a apreensão foi feita sob a perspectiva dos próprios entrevistados. A adoção de uma estratégia metodológica quali-quanti talvez fosse mais adequada para identificar e reduzir as contradições e vieses dos relatos dos participantes.

Entre as contribuições, espera-se que este estudo possa ampliar a discussão teórica do consumo de investidores de varejo no mercado financeiro, com uma proposta alternativa e complementar às finanças tradicionais e à economia comportamental. Também é sugerido que os resultados encontrados no artigo possam ser ampliados e testados com um número maior de participantes e/ou em outros contextos, para estimular a comparabilidade das decisões dos investidores. Uma outra proposta é pesquisar se os aplicadores em ativos de maior risco (como ações ou criptomoedas) configuram-se como uma subcultura de consumo, formando um campo específico. A intenção é abrir novas e panorâmicas janelas de pesquisa.

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