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SABEDORIAS DO SANTO DAIME: A FILOSOFIA NOS HINOS DE MESTRE IRINEU E PADRINHO SEBASTIÃO

Jan Clefferson Costa de Freitas
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brazil

SABEDORIAS DO SANTO DAIME: A FILOSOFIA NOS HINOS DE MESTRE IRINEU E PADRINHO SEBASTIÃO

Muiraquitã, vol. 11, no. 1, pp. 52-76, 2023

Universidade Federal do Acre

Muiraquitã: Revista de Letras e Humanidades is licensed under CC BY-NC-ND 4.0

Received: 27 May 2023

Accepted: 18 July 2023

Resumo: Analisar e descrever, a partir de uma revisão da literatura especializada, bem como através da experiência direta com o campo de pesquisa em evidência, as ideias filosóficas presentes nos hinários oficiais do Santo Daime, em especial, O Cruzeiro de Raimundo Irineu Serra e O Justiceiro de Sebastião Mota de Melo. Apresentar a perspectiva teórica dos enteógenos como plantas professoras, isto é, inteligências da natureza que são capazes de transmitir conhecimento verdadeiro e justificado para aqueles que souberem apreciar. Acenar para algumas das inumeráveis conexões estabelecidas entre o universo da religião daimista e os horizontes fundamentais da filosofia. Identificar os elementos contidos nos hinos daimistas que atestam ser a experimentação enteogênica uma metodologia de aprendizagem dos conceitos do pensamento universal, presentes nos hinários do Mestre Irineu e do Padrinho Sebastião. A justificativa para validar o presente artigo tem por lastro a imprescindibilidade de reconhecer o ideário filosófico como uma chave interpretativa dos hinos do Santo Daime, uma abordagem de importância determinante que muito pouco foi explorada no panorama dos estudos concernentes à doutrina da Rainha da Floresta, mas que se torna promissora no sentido de abrir espaços epistemológicos dentro desta esfera de conhecimentos, recém-descoberta pelos filósofos contemporâneos. A título de conclusão, os princípios filosóficos identificados nos hinários têm como propósito evidenciar, em que medida, os seus autores vieram a se tornar as referências primordiais de uma importante tradição sapiencial estabelecida a partir do aprendizado com as plantas professoras.

Palavras-chave: Filosofia, Descolonização, Plantas Professoras, Hinos, Santo Daime.

Abstract: To analyse and describe, from a review of the specialised literature, as well as through direct experience with the field of research to be highlighted, the philosophical ideas present in the official hymnals of Santo Daime, in particular, O Cruzeiro by Raimundo Irineu Serra and O Justiceiro by Sebastião Mota de Melo. To present the theoretical perspective of entheogens as plant teachers, that is, intelligences of nature that are capable of transmitting true and justified knowledge to those who know how to appreciate it. To wave to some of the innumerable connections established between the universe of the daimist religion and the fundamental horizons of philosophy. To identify the elements contained in the daimist hymns that attest that entheogenic experimentation is a methodology for learning the concepts of universal thought, present in the hymnals of Master Irineu and Godfather Sebastião. The justification for validating the present article is based on the indispensability of recognising the philosophical ideary as an interpretative key to the Santo Daime hymns, an approach of decisive importance that has been little explored in the panorama of studies concerning the doctrine of the Queen of the Forest, but which is promising in the sense of opening epistemological spaces within this sphere of knowledge, recently discovered by contemporary philosophers. By way of conclusion, the philosophical principles identified in the hymnals are intended to show, to what extent, their authors became the primordial references of an important sapiential tradition established through learning from the plant teachers.

Keywords: Philosophy, Decolonization, Plant Teachers, Hymns, Santo Daime.

Podemos compreender os enteógenos como substâncias químicas produzidas pela natureza que despertam a consciência da divindade interior. O conceito em destaque foi criado para desassociar o uso sacramental dos psicoativos das suas utilizações sensacionalistas, trazidas ao público pelos movimentos relacionados à cultura pop dos anos de 1960 e 1970, ou seja: “É utilizado aqui no espírito da sua concepção para distinguir a natureza religiosa dessas substâncias e as experiências por elas evocadas dos seus efeitos em outros contextos, para os quais existem outros termos, como psicodélico ou alucinógeno” (FORTE, 2012, p. 17).[1] As expressões anteriores ao termo enteógeno, como alucinógeno, psicotomimético ou mesmo psicodélico, utilizadas pela ciência para definir a referida categoria de agentes farmacológicos, estavam desgastadas e carregadas de conotações negativas, propiciadas pela mentalidade proibicionista que inculcou na psicofisiologia do tecido social uma fobia violenta à contracultura: “Esse problema se tornou ainda mais complicado durante as décadas de 1970, 80 e 90 devido a uma “guerra contra as drogas” levada a cabo para erradicar o “abuso” ilícito, recreativo e não-medicinal das drogas” (FORTE, 2012, p. 17-18).[2] Em outras palavras, a guerra às drogas e por conseguinte às pessoas que as utilizam deturpou ao longo de muitos anos o caráter religioso e terapêutico dos compostos supramencionados, uma distorção que condenou as práticas tradicionais de muitos povos ao redor do mundo tanto à delinquência quanto ao anticientificismo. Em contrapartida: “Os enteógenos têm ocupado uma posição proeminente nas práticas místicas de algumas das maiores civilizações do mundo. Eles têm sido amplamente utilizados nas sociedades xamânicas, e o seu uso continua atual no mundo inteiro” (FORTE, 2012, p. 18).[3] Nesse sentido, diante da necessidade de uma terminologia apropriada para descrever os componentes químicos capazes de proporcionar estados extraordinários de percepção e que ao mesmo tempo pudesse fazer justiça epistemológica às tradições originárias, no ano de 1979, os renomados estudiosos Robert Gordon Wasson [1898-1986], Blaise Daniel Staples [1948-2005], Carl Anton Paul Ruck, Jeremy Bigwood e Jonathan Ott chegaram juntos à definição que hoje vigora. Disseram eles:

A nossa designação é fácil de pronunciar. Podemos falar de enteógenos ou, como um adjetivo, de plantas ou substâncias enteogênicas. Em sentido restrito, apenas as drogas que produzem visões e que se pode demonstrar terem aparecido em ritos religiosos ou xamânicos seriam chamadas enteógenas; mas em sentido mais amplo, o termo também poderia ser aplicado a outras drogas, tanto naturais como artificiais, que induzem alterações de consciência semelhantes às que foram documentadas em relação à ingestão ritual dos enteógenos tradicionais (RUCK; BIGWOOD; STAPLES et al, 2013, p. 202).[4]

Por serem possuidores não apenas da capacidade de gerar um movimento divino no interior das pessoas, mas também de despertar a consciência de cada uma delas para o autoaperfeiçoamento, os enteógenos também são conceitualmente definidos como plantas professoras. Nas palavras do autor responsável pelo estabelecimento da definição de planta que foi supramencionada: “Sob certas condições, algumas plantas ou “vegetais” possuidores de sábios espíritos, teriam a faculdade de ensinar às pessoas que os procuram. A ayahuasca [...] seria uma dessas plantas mestras, porta de entrada que permitiria um conhecimento cada vez maior do mundo natural” (LUNA, 2002, p. 181). O catálogo de plantas que apresentam propriedades enteogênicas tem uma ampla dimensão e não seria pertinente para o propósito deste artigo mencionar todas as nomenclaturas. Alguns dos principais enteógenos que desde milênios até hoje têm o seu uso documentado pelos pesquisadores da botânica divina são os cogumelos Amanita muscaria e Psylocibe cubensis, os cactos Lophophora williamsii, Echinopsis pachanoi e Echinopsis peruviana, as ervas Salvia divinorum e Cannabis sativa, bem como a bebida Jurema (preparada a partir da árvore brasileira-nordestina Mimosa tenuiflora) e o chá da Ayahuasca (feito a partir da combinação do cipó Banisteriopsis caapi com as folhas do arbusto Psychotria viridis, ambos com natividade da floresta amazônica) (RÄTSCH, 2005). Expresso em outros termos, as espécies constituintes da flora enteogênica possibilitam uma ampliação e aprofundamento dos conhecimentos obtidos a partir da investigação das realidades pertencentes tanto ao microcosmo quanto ao macrocosmo: “Através do uso e conhecimento adequados, nós também – como os nossos antepassados – podemos aprender a reconhecer mais uma vez a sagrada essência dos inebriantes e utilizá-los para ter experiências profundas da sacralidade da natureza” (RÄTSCH, 2005, p. 12).[5] Por um lado, em um sentido amplo, o enteógeno que interessa ao desenvolvimento deste trabalho se consagrou no meio acadêmico com o nome de Ayahuasca, uma bebida conhecida pelos povos amazônicos de muitas outras formas, como, por exemplo, yagé entre os Siona, caapi entre os Baniwa, kamarampi entre os Ashaninka, camalãpi entre os Manchineri, nixi pae entre os Huni Kuin, uni entre os Yawanawá, cipó entre os seringueiros do Alto do Juruá e daime entre os membros do Santo Daime: a grande variedade de nomes populares para a Ayahuasca evidencia a sua importância dentro da cultura, religiosidade, ciência e pensamento das civilizações originárias da floresta tropical. Por outro lado, em um sentido estrito, o escopo do presente artigo se concentra na experimentação da Ayahuasca no contexto da religião daimista, com especial ênfase no conteúdo literário e filosófico dos hinários, poesias expressas em forma de música, inspiradas pelos estados ampliados de percepção provenientes da consagração do sacramento enteogênico, que constituem o arcabouço doutrinário do Santo Daime.[6]

O Daime pode ser reconhecido, sem a menor sombra de dúvidam, como a primeira das religiões ayahuasqueiras brasileiras: fundada nos anos 1930 por Raimundo Irineu Serra [1892-1971], maranhense, afrodescendente e personalidade histórica do Brasil. A pluralidade da religiosa daimista reúne elementos de fé provenientes das tradições indígenas, africanas, místicas, esotéricas, Orientais e Ocidentais (FERNADES, 1986; ALVERGA, 1995; MOREIRA; MACRAE, 2011; MORTIMER, 2018b). Contam os autores Edward Macrae e Paulo Moreira no livro Eu Venho de Longe, que entre os anos de 1914 e 1916, o Mestre Irineu, como viria a ser reconhecido, recebeu uma revelação divina através do uso ritual da Ayahuasca.[7] Na visão extática obtida a partir de um processo ritualístico com a bebida sagrada, a Rainha da Floresta, uma personificação arquetípica da Deusa Universal, apresentou a missão planetária do Mestre: levar aos povos do mundo inteiro uma doutrina de ensinamentos e uma série de rituais para a criação de uma nova religião com o sacramento da Ayahuasca (FERNANDES, 1986; ALVERGA, 1995; MOREIRA; MACRAE, 2011; MORTIMER, 2018b). Para cumprir com a santa tarefa, o Mestre Irineu junto aos seus companheiros, a saber, os agricultores Germano Guilherme [1902-1964], Antônio Gomes [1885-1946], João Pereira [1902-1954] e Maria Marques [1917-1949], em 1935, iniciam as atividades oficiais do Daime como hoje são conhecidas, na cidade de Rio Branco, estado do Acre. Com efeito, vale ressaltar que as práticas religiosas do Daime preexistentes ao ano de 1935 eram feitas sem os hinos e o bailado: o ano em questão marca o início de uma nova organização dos trabalhos do Mestre Irineu, ou seja, a inserção de um novo método de ensino e aprendizado na escola da Rainha da Floresta. A inclusão da poesia, da música e da dança nas cerimônias daimistas é o ponto de partida do presente estudo, cujo foco principal já mencionado está contido nos hinários. Como bem observado pelo Padrinho do autor deste artigo:

No mais, a doutrina que existe em torno do Daime se nutre da beleza e da felicidade, num grau que é impossível descrever, mas que se depreende do fato dos rituais serem festas de música e dança. Música (hinos) e dança (bailado) que produzem em seus participantes um conhecimento até então inimaginado. Bailando na corrente de homens e mulheres, compreendi um dia que o maracá é um objeto muito mais importante para o conhecimento do que um computador de última geração. Essa experiência dos rituais do Daime, quando aprendemos a manejar com a nossa Luz, tem seu ponto máximo nas mirações. As visões extáticas que sentimos nesses momentos, impõem aos seus beneficiários uma rigorosa ética de transformação. Tanto nos valores como na conduta prática (ALVERGA, 1995, p. 304).

A autotransformação radical após a consagração do Daime é um elemento presente em praticamente todos os depoimentos dos integrantes da Irmandade. Os anos passam e com eles a evolução da doutrina advém: um progresso orientado com lastreio nas visões e ensinamentos proporcionados pelas plantas professoras.[8] No início da década de 1950 vem a ser construída a nova sede da prática religiosa do Daime, o Alto Santo. Nos anos de 1960, novas atualizações são incluídas na ritualística da igreja de Mestre Irineu, como, por exemplo, o trabalho de mesa, feito para sanar patologias e desconfortos de natureza grave (MOREIRA; MACRAE, 2011). No ano de 1965 aparece um outro grande personagem, uma figura amazonense que marcaria época na religião daimista: Sebastião Mota de Melo [1920-1990]. A história evidencia que o Padrinho Sebastião, como passou a ser conhecido, depois de muita benfeitoria e sacrifício pela humanidade, se encontrava muito doente e foi buscar o Mestre Irineu para ser curado. Desde que passou a integrar os trabalhos do Daime, o Padrinho recebeu a cura que merecia e se tornou um dos mais respeitáveis discípulos do Mestre Irineu (FERNANDES, 1986; ALVERGA, 1998; MORTIMER, 2018a). Após a passagem do Mestre para o plano espiritual, em 1971, a expressividade do Padrinho Sebastião era tamanha que o seu reconhecimento enquanto líder religioso ultrapassava as fronteiras do estado acreano. Assim, nos anos subsequentes à viagem do Mestre Irineu para o mundo quintessencial, o Padrinho Sebastião passou a ser considerado o expansor do Daime, que deixou de estar circunscrito nas dimensões geográficas do Acre e ganhou novos espaços de atuação no Brasil e no mundo (FERNANDES, 1986; ALVERGA, 1998; MORTIMER, 2018a). Em 1974, o Padrinho Sebastião e cerca de 130 seguidores se transferiram do Alto Santo para a Colônia 5000 e deram início a novos trabalhos com a bebida de poderes inacreditáveis. A partir de então, o Padrinho, entes queridos e demais pessoas que com eles se encontravam, decidiram nomear o recém-formado movimento religioso de Santo Daime (FERNANDES, 1986; ALVERGA, 1998; MORTIMER, 2018a). Da segunda metade dos anos de 1970 até hoje, a Irmandade religiosa cresceu de forma vertiginosa; deu esperança e sentido para a vida de pessoas que se achavam desenganadas; desenvolveu novas maneiras de trabalhar com o sacramento; ganhou adeptos por sobre todos os continentes, e, desse modo, novas igrejas foram abertas em diversos países, cada qual com sua própria autonomia organizacional e identidade espiritual: todas porém com os seus votos de fidelidade aos princípios ético-morais deixados por Mestre Irineu e Padrinho Sebastião, assim como sob a forte orientação das inteligências divinas que, segundo os devotos da religião, estão presentes nas plantas constituintes da santa bebida.

Para dar sequência ao tema central deste artigo, as referências norteadoras da presente investigação serão os seguintes hinários daimistas: O Cruzeiro, de Mestre Irineu; e O Justiceiro, de Padrinho Sebastião. Como a própria palavra diz, um hinário pode ser considerado uma compilação de hinos; estes, por sua vez, não são compostos, mas recebidos ao tomar o sacramento por aqueles e aquelas com uma maior sensibilidade: “Eles são autênticos guias de viagem. Estão dispostos, naturalmente, numa sequência que, quando vista em seu conjunto, corresponde à mínima necessidade do trabalho, em todos os seus detalhes” (ALVERGA, 1995, p. 87). Os hinos podem ser considerados como o corpo doutrinário da religião daimista. Através do hinário são repassadas as instruções da inteligência divina contida no Daime, para o benefício e desenvolvimento espiritual de todos os correligionários da Irmandade. Muito mais do que isso: “além de suprir essas necessidades do culto, enquanto um todo, ele também tem o dom de resolver no nosso íntimo, como um toque de fada, as mais complexas questões que estejam ocorrendo” (ALVERGA, 1995, p. 87). Os hinos em geral são canalizados a partir das mirações, visões divinas que se manifestam em decorrência dos efeitos do sacramento enteogênico, na maior parte das vezes durante o silêncio das concentrações e nos intervalos ou ao final de um trabalho bailado. A questão a ser feita então é: em que medida se pode pensar os componentes fito-farmacológicos da Ayahuasca, ressignificada como Daime, desde a perspectiva teórica das plantas professoras? Eis uma resposta consistente:

Essas plantas são consideradas muitas vezes habitadas por um espírito, por uma mãe, são seres inteligentes, com personalidade própria, com os quais podemos nos relacionar e aprender. Esses seres são descritos pelos Machiguenga como “assombrosos”, por isto estas substâncias também são classificadas como “plantas assombrosas”. Nesse sentido, outro termo adequado é aquele proposto por Luiz Eduardo Luna, plantas maestras, isto é, plantas professoras – cuja origem está associada mais estritamente ao vegetalismo peruano mestizo (GOULART; LABATE; CARNEIRO, 2005, p. 34).

A citação acima evidencia no que consiste uma planta professora: são aquelas que, detentoras de uma inteligência e personalidade próprias, conduzem a alma humana em direção da evolução, através da experiência de aprendizado.[9] Assim, para que sejam consideradas professorais, as plantas sagradas necessitam transmitir importantes lições, apresentar conhecimentos verdadeiros e justificados para todos aqueles e aquelas que souberem apreciá-las: “Há, nesse sentido, um rendimento filosófico-educativo nos enteógenos, pois que ensejam uma reflexão sobre o homem em sua relação com a natureza e a sociedade, permitindo-lhe, ainda, o aprendizado de saberes e o desenvolvimento de habilidades” (ALBUQUERQUE, 2012, p. 356). Nessa perspectiva, os hinos figuram os ensinamentos deliberados pela luz do próprio Daime, necessários à educação do espírito.

Dentre os mais expressivos donos de hinário, como será transparecido neste trabalho, se destacam o Mestre Irineu bem como o seu maior discípulo, o Padrinho Sebastião. Os hinários de cada um deles são verdadeiras joias do conhecimento, escritas em poesia lírica e abrilhantadas através da música: obras primas sincronizadas com ideias universais da sabedoria, constituídas por pessoas que existiram com humildade e simplicidade, formadas não no âmago dos espaços históricos de autoridade onde muitas vezes prevalece o elitismo intelectual, mas na escola da Rainha da Floresta. Em vista disso: “A singularidade dos processos de aprendizagem mediados pela ayahuasca ou daime reside no fato de que os saberes não são transmitidos pelos humanos [...], mas pelas plantas ou substâncias de que são portadoras” (ALBUQUERQUE, 2012, p. 362-363). Para além dos modos hegemônicos de se pensar a experiência de aprendizado como um processo repassado de ser humano para ser humano, os principais valores ensinados pela força do Daime às respectivas lideranças religiosas foram a Harmonia, o Amor, a Verdade e a Justiça, concepções identificadas nos documentos oficiais que legitimam a constitucionalidade da mencionada religião ayahuasqueira, bem como pautados nos próprios hinários. Assim: “Quem responde pelo trono do Mestre se apresenta no hinário. Quem souber decifrar o enigma e cantar com maestria sua condição de eleito, receberá a coroa” (MORTIMER, 2018b, p. 77). Mais ainda, e não menos importante, as plantas professoras presentes na composição do Daime ensinaram para eles, isto é, o Mestre e o Padrinho, em uma linguagem muito simples e profunda, as principais ideias que norteiam o vasto horizonte da filosofia, como, por exemplo: Deus, Tempo, Natureza, Beleza, Bondade, Amor, Sabedoria, Alegria, Vida e assim por diante, sem que estes necessitassem das formalidades institucionais da educação acadêmica. Para provar a validade e veracidade da hipótese aqui levantada, de que as divinas inteligências da natureza, ou as plantas professoras, também podem servir ao mundo e à cultura como facilitadoras da evolução consciencial, os hinários do fundador e do expansor da doutrina daimista serão analisados e descritos em alinhamento com os conceitos do pensamento universal.[10]

Mestre Irineu: o Soberano do Santuário da Sapiência

O Cruzeiro [1971], hinário de Raimundo Irineu Serra, tem uma riqueza de valor incomensurável. Os elementos filosóficos dos seus hinos são de uma vasta profundidade e vão desde o panteísmo[11] ao transcendentalismo,[12] do monismo[13] ao perenialismo.[14] Como se faz evidente na passagem subsequente, derivada do hino Eu quero Ser: “Eu quero ser filho de Vós/Sigo sempre na verdade/O amor eterno/Eu devo consagrar/A lua e as estrelas/A terra e o mar/O sol lá nas alturas/Com sua luz de cristal” (SERRA, 2013, ♫15). O amor pela verdade está gravado no coração de todos os filósofos da tradição, na mesma proporção em que o bem consiste na suprema virtude a ser praticada pelos pensadores inclinados à ética e à excelência (PLATÃO, 2001; ARISTÓTELES, 2021). O exercício da bondade como regra de conduta pode ser evidenciado no hino O Amor Eternamente: “O amor eternamente/Eu desejo publicar/Para ser um filho seu/Fazer bem, não fazer mal/Estou na terra, estou na terra/Estou na terra, eu devo amar/Para ser um filho seu/Fazer bem, não fazer mal” (SERRA, 2013, ♫19). Amar a natureza, bem como as suas respectivas manifestações, desde o pensamento antigo, sempre foi uma ideação presente nas obras dos autores clássicos, como Platão e Aristóteles. Não é a toa que a própria filosofia, na aurora da sua existência, veio à luz do mundo a partir da necessidade de compreender os fenômenos naturais (JAEGER, 2008; VERNANT, 2010). Esta forte inclinação panteísta, de ver a Deus no mundo natural, está presente no hino Sol, Lua, Estrela: “Sol, Lua, Estrela/A Terra, o Vento e o Mar/É a Luz do Firmamento/É só quem eu devo amar/É só quem eu devo amar/Trago sempre na lembrança/É Deus que está no céu/Aonde está minha esperança” (SERRA, 2013, ♫29). Em uma linguagem filosófica, as lembranças trazidas à tona nas mirações que decorrem do Daime são reminiscências, memórias da alma que, como acreditavam Orfeu [século XII a. C.] e Pitágoras [570-495 a. C], a cada uma das suas encarnações particulares cumprem o papel de fazê-la prosseguir no seu processo evolutivo, na sua jornada em direção do conhecimento (PORFIRIO, 2002). Nessa perspectiva, as ideias filosóficas contidas nos hinários, uma vez que não correspondam de todo à realidade existencial dos seus autores, que muitas vezes foram pessoas de uma vida bastante simples, podem muito bem corresponder à reminiscência, à memória das suas almas que o Daime tem o poder de recuperar.

E por falar em reminiscência, este conceito originário do pensamento clássico, a experiência com o Daime também demonstra outra concepção relevante da filosofia: a dialética ascendente.[15] Esta última consiste no movimento de sair da ignorância em direção do conhecimento, das ilusões para o encontro da verdade, como se pode verificar no hino Papai Samuel: “Pisei no primeiro degrau/Para seguir com firmeza/Dentro do meu coração/O primor, tanta beleza/Convidei os meus irmãos/Para seguir com alegria/Todos me responderam/Que ficavam e lá não iam” (SERRA, 2013, ♫31). O recorte em destaque evidencia uma brilhante descrição do mito platônico da caverna, que explica o funcionamento da mentalidade dos indivíduos aprisionados por uma falsa percepção da realidade, bem como pormenoriza a batalha heroica empreendida pelo filósofo, o homérico esforço do amante da sabedoria para tirar os seus semelhantes da escuridão profunda (PLATÃO, 2001). A recompensa para aqueles que estão determinados a buscar uma saída da prisão mental consiste no encontro com a luz que representa a visão dos sábios, descrita pelo Mestre no seu hino Santa Estrela:

Vou chamar a Santa estrela/Para vós vir me guiar/Iluminar meu pensamento/O oceano e beira-mar/A profundeza que vós tendes/Consenti-me eu entrar/ Para eu ver tanta beleza/Para mim acreditar/O Divino Pai Eterno/Senhor de todo primor/Dai a luz ao vosso filho/Aquele que procurou/A Rainha minha Mãe/Que me mandou eu cantar/E ensinar os meus irmãos/Aqueles que procurar (SERRA, 2013, ♫25).

O que seria uma estrela se não um símbolo da esperança, da fé, da autorrealização, da crença no divino, da própria humanidade? O pensamento iluminado pela verdade se liberta das trevas da ignorância e mergulha nas águas profundas do conhecimento, nos oceanos ilimitados do Espírito Eterno (FICINO, 1980; BINGEN, 2022). Na linha do Daime, a natureza conduz a alma em direção do universo, através da imanência se atinge a transcendência, uma chave de acesso à riqueza da Graça Divina, o paraíso celeste alcançado por vias terrestres, conforme expresso no hino Eu Canto nas Alturas: “A minha mãe que me ensinou/A minha mãe que me mandou/Eu sou filho de vós/Eu devo ter amor/Com amor tudo é verdade/Com amor tudo é certeza/Eu vivo neste mundo/Sou o dono da riqueza” (SERRA, 2013, ♫40). As glórias e riquezas cantadas pelo Mestre nos seus hinos são os valores atemporais de uma ordem essencial, que na concepção de pensadores como Melisso de Samos [470-430 a. C.] e Parmênides de Eléia [530-460 a. C], não podem ser desvirtuados pelo dinheiro, não são os bens mundanos nem o status social. Aqueles que estão presos à ilusão não percebem a riqueza verdadeira, se apegam à matéria de maneira reativa e com isso não conseguem transcender para enxergar o resplendor da Divindade (SHANKARACHARYA, 1999; BINGEN, 2022). Apenas quem se desprende da materialidade pode aprender com a divina espiritualidade, como consta no hino Princesa Soloína: “Segui minha jornada/Adiante eu encontrei/Um poder divino/ Aí onde eu fiquei/Aí onde eu fiquei/E pude compreender/Quem seguir neste caminho/ Todos têm que aprender” (SERRA, 2013, ♫63). Para estarem juntos do Poder Supremo, os viajantes da consciência necessitam manter a pureza no seu pensamento e no fundo de seus corações: um processo que se realiza na dissolução do ódio, do orgulho, da vaidade, da inveja, da arrogância, da prepotência, da falsidade, da mentira, do julgamento, da auto-importância e dos demais atributos do ego (SHANKARACHARYA, 1999; DASS, 2011). Assim, tomar o sacramento para fins de auto-engrandecimento constitui uma perda de tempo, como sugere o hino Olhei para o Firmamento: “Todo dia eu canto e peço/ Para limpar meu coração/Para eu seguir neste caminho/E deixar a ilusão/Eu sempre digo aos meus irmãos/Que tratem o tempo mais sério/Que o tempo não engana/E não tem dó desta matéria” (SERRA, 2013, ♫67). Sem o desejo pela purificação da alma, o Daime se esvai do aparelho, situação que tipifica um desperdício da santa bebida, mas que também pode servir à correção dos vícios e desvios de caráter. Como recomenda a sabedoria do Mestre Irineu, o aperfeiçoamento dos pensamentos, sentimentos, emoções e comportamentos deve ser um imperativo para aqueles que constituem a Irmandade. Sem uma forte atitude de autocorreção, característica de todas as doutrinas filosóficas, dos sistemas de conhecimento que fomentam o exercício das virtudes, não pode haver progresso no processo evolutivo do espírito.

Uma das grandes finalidades da filosofia, conforme prescrito pelos pensadores originários, tais como Empédocles de Agrigento [490-430 a. C] e Demócrito de Abdera [460370 a. C.], consiste em conduzir o ser humano em direção à felicidade. Levar uma vida feliz vem a ser, assim, um dos objetivos primordiais que a Divina Sabedoria nos desafia a realizar (AUDI, 1999; BUNNIN; YU, 2009). A realização desse propósito fundamental tem como base a perseverança, expressa na doutrina daimista pela virtude de se manter firme – seja em pensamento, palavra ou ação –, como apontado pelo Mestre no hino Firmeza: “Firmeza, firmeza/Firmeza no pensamento/A quem eu peço firmeza/É ao nosso Deus Onipotente/A quem eu peço firmeza/Para ser feliz eternamente” (SERRA, 2013, ♫70). Sem que possa constituir uma sólida base, mantida estável pela força da vontade e o poder da Divindade, o estudante não tem como se firmar para interagir com as inteligências da natureza. Fortalecer o próprio querer constitui o fundamento necessário ao trabalho com o Daime, uma das melhores formas de não perder tempo com as armadilhas da ilusão, que ao invés de dignificar as qualidades do ser humano, fazem com que este não encontre a autorrealização (SHANKARACHARYA, 1999; DASS, 2011). Para aqueles que não possuem a intenção de aprender sobre si mesmos, o arrependimento está reservado, como descrito no hino Chamo o Tempo: “Depois que o Tempo chega/Ninguém quis aprender/Depois que refletir/É que vai se arrepender/Firmeza no pensamento/ Para seguir no caminho/Embora que não aprenda muito/Aprenda sempre um bocadinho” (SERRA, 2013, ♫71). Movimento ininterrupto de imagens através de um eterno horizonte, a temporalidade concebida na doutrina deve ser aproveitada da melhor forma possível, para aqueles que aqui vivem não partirem arrependidos, mas desfrutem diariamente do bem-viver, ao ter como espelho todos os seres iluminados que caminharam por este planeta, até o regresso de cada um à eternidade (ALVERGA, 1995; MORTIMER, 2018b). Na mesma medida em que filósofos como Lucius Sêneca [4 a. C.-65 d. C.] e Marcus Aurelius [121-180] definiam o amor à sabedoria como um tipo de consolação frente à finitude existencial, o hinário do Mestre Irineu sugere o conhecimento transmitido pelo Daime como um instrumento de otimização da vida e tranquilização da alma. Os ciclos de mortes e renascimentos estão expressos em hinos como por exemplo, Só Eu Cantei na Barra: “A morte é muito simples/Assim eu vou te dizer/Eu comparo a morte/É igualmente ao nascer/Depois que desencarna/Firmeza no coração/Se Deus te der licença/ Volta a outra encarnação” (SERRA, 2013, ♫74). O corpo doutrinário da religião daimista incentiva o máximo aproveitamento da existência, visto que, o desperdício da oportunidade de ser no mundo conduz a consciência ao retrocesso do seu desenvolvimento. Além disso, outra ideia filosófica de grande relevância que se pode verificar no hino acima citado é a metempsicose, ou a transmigração das almas: originária do orfismo,[16] continuada no pitagorismo,[17] e desenvolvida pelo platonismo.[18] Segundo a perspectiva órfico-pitagórico-platônica, o espírito humano, antes de alcançar a transcendência, ou a completa liberação da roda do tempo que gira em volta da natalidade e da mortalidade, com a permissão divina, passa por diversos envoltórios biológicos.

A incessante procura pela verdade pode ser considerada uma missão essencial para os filósofos legítimos. No que concerne aos donos de hinário, como no caso do Mestre Irineu, não poderia ser diferente. A sabedoria professada pelo Mestre e compartilhada com toda a Irmandade não está no mundo externo, mas se encontra domiciliada no coração de cada ser humano, sendo esta apresentada na miração, por meio da luz e da força do Daime (ALVERGA, 1995; ALBUQUERQUE, 2012). A veracidade desta afirmação pode ser constatada no hino do Mestre Irineu intitulado Chamo e Sei: “Chamo e sei, eu chamo e sei/Chamo e sei aonde está/Chamo e sei, eu chamo e sei/Eu chamo e sei e vou mostrar/A verdade é minha vida/A minha Mãe é quem me dá/Para eu conhecer esta verdade/Para saber aonde está” (SERRA, 2013, ♫77). A valorização da vida como fonte da experiência de obtenção do conhecimento consiste em um princípio norteador não apenas da ética e da moral, mas também da epistemologia e da fenomenologia.[19] Amar o que se pode conceber por verdadeiro significa filosofar ou ter amor pelo saber. Tomar o sacramento enteogênico do Daime, nesse sentido, além de ser um ato de fé, também vai implicar em uma autêntica atitude filosófica, conforme expresso no hino O Divino Pai Eterno: “O Divino Pai Eterno/Foi quem me mandou viver/Que eu avisasse aos meus irmãos/O que vai acontecer/Firmeza no pensamento/Para seguir neste amor/ Aqui dentro da verdade/Ela mostra o seu valor” (SERRA, 2013, ♫83). Aqueles e aquelas que não apenas consagram o Daime, mas que procuram aplicar na realidade existencial os ensinamentos transmitidos nas mirações, podem ser considerados, nas palavras do Mestre Irineu, como filhos e filhas da verdade. E o que é a filosofia se não esse amor filial pelo saber universal? O ideal do conhecimento como uma meta para a existência pode ser identificado no hino Sou Filho desta Verdade: “O saber de todo mundo/É um saber universal/Aqui tem muita ciência/Que é preciso se estudar/Estudo fino, estudo fino/Que é preciso conhecer/Para ser bom professor/Apresentar o seu saber” (SERRA, 2013, ♫102). A ciência aqui pode ser pensada como a qualidade de estar ciente, além de, é claro, representar uma síntese de todos os conhecimentos possíveis no plano sensível, inteligível e transcendental. Mais ainda, uma vez que o aprendizado com o Daime não corresponde apenas à teoria, as provas materiais da educação espiritual se apresentam na esfera prática com base em demonstrações. Por essa razão, quem procura lapidar o diamante interior através do exercício das virtudes, encontra no Daime uma pedra de toque.

Assim versa o hino Sigo nesta Verdade:

Sigo nesta verdade/Nunca pensei em voltar/Sigo neste caminho/Para um dia eu alcançar/Eu como filho de vós/Se um dia eu merecer/Quero que vós me conceda/Para eu ter o mesmo poder/A minha mãe é quem me diz/Que tudo eu tenho que vencer/Sigo neste caminho/Nada eu tenho a temer/Eu canto e torno a cantar/Para seguir o meu destino/Recebendo a Santa Luz/Da Santíssima Mãe Divina/Quando eu cheguei nesta Casa/Estrondo de palmas me deram/ Meu Chefe me recebeu/O dono de todo Império (SERRA, 2013, ♫113).

O hino acima expressa de forma direta a concepção que os filósofos têm da sua busca pela verdade. Um caminho sem retrocessos a ser seguido com firmeza de intenção, inspirado pelo propósito maior de encontrar com a sabedoria. O produto da soma de todas as escolhas feitas pelo viajante na sua jornada existencial é o seu destino, que não deve ser temido, mas sim ser amado, pois este consiste na união mística entre a sua alma e a Divina Providência (FICINO, 1980; SHANKARACHARYA, 1999). A partir do momento que o estudante alcança um ângulo de visão mais elevado sobre os fenômenos da existência, para ser um professor exemplar conforme prevê a doutrina daimista, este último deve ter amor ao conhecimento e beneficiar o mundo inteiro com os seus aprendizados. Assim nos recomenda o Mestre Irineu no seu hino chamado Esta Força: “Esta Força, este Poder/Eu devo amar no meu coração/Trabalhar no mundo terra/A benefício dos meus irmãos/Estou aqui neste lugar/Foi minha Mãe que me mandou/ Estamos dentro desta casa/Onde afirmamos a fé e o amor” (SERRA, 2013, ♫121). Uma importante reflexão filosófica trazida pelo hino precedente consiste na topologia do ser: a concepção metafísica de que a essência dos componentes do conjunto universal está presente em algum lugar, seja este além, por trás, por baixo, por dentro ou acima de todas as coisas (CRAIG, 2005; BLACKBURN, 2008). Outra relevante perspectiva que reforça a hipótese desenvolvida neste trabalho, isto é, a psicopedagogia das plantas professoras, pode ser verificada no hino Aqui Estou Dizendo: “Aqui estou dizendo/Aqui estou cantando/Eu digo para todos/E os hinos estão ensinando/Aqueles que compreenderem/ Os que quiser seguir comigo/Tendo fé e tendo amor/Não deve encarar perigo” (SERRA, 2013, ♫125). Está patente que os saberes apresentados nas mirações, muito distante de serem meras alucinações decorrentes do uso de uma substância psicoativa, além de constituírem uma fonte de conhecimento, justificam a si mesmos de forma real, objetiva e concreta através dos hinários (ALVERGA, 1995, ALBUQUERQUE, 2012). De modo assertivo se pode afirmar que o Mestre Irineu aprendeu a filosofia com as divinas inteligências da natureza, que por sua vez despertaram nele a consciência e a conversação com a divindade do seu coração. O processo de autoconhecimento está descrito pelo Mestre no seu hino intitulado Flor das Águas: “A morada do meu Pai/É no coração do mundo/ Aonde existe todo amor/E tem um segredo profundo/Este segredo profundo/Está em toda humanidade/Se todos se conhecerem/Aqui dentro da verdade” (SERRA, 2013, ♫126). Mais uma vez está evidente que os hinos do Daime representam uma tradição sapiencial, pois, como versava a antiga epígrafe do Templo de Apolo em Delfos, através do conhecimento de si mesmo, também se pode conhecer o universo e os seres divinos. A vontade verdadeira de se autoconhecer está presente na interioridade de todos aqueles com disposição para a meditação filosófica (JAEGER, 2008; VERNANT, 2010). A vida e a obra do Mestre Irineu constituem exemplos de que, mesmo as pessoas reconhecidas como mais humildes, às vezes podem ser muito mais sapientes do que aquelas consideradas pós-graduadas.[20] Em poucas palavras, o hinário do Mestre – cuja primeira palavra é Deus e a última é pensamento – evidencia com transparência uma leitura abrangente do livro da vida, um fino estudo que se desdobra sobre as dimensões de um verdadeiro misticismo filosofante.

Padrinho Sebastião: o Mensageiro da Divina Sabedoria

O Justiceiro [1978], hinário de Sebastião Mota de Melo, pode ser considerado como um tesouro do conhecimento. As ideias filosóficas dos seus hinos são de uma elevada compreensão, referendadas pelas memórias da sua alma, que ora trazem elementos do idealismo[21] e do naturalismo,[22] bem como do existencialismo[23] e do essencialismo.[24] Assim atesta o seu hino que tem por título Eu Subi meu Pensamento: “Eu subi meu pensamento/Dentro de um grande jardim/Levantei a minha voz/Oh! Minha mãe, rogai por mim/Eu limpei a mentalidade/Vi uma roda girando/Dentro desta grande luz/Meu pai está me olhando” (MELO, 2013, ♫16). A simbologia da roda representa o movimento incessante da vida, as revoluções dos corpos celestes através das constelações fixas, o verbo criador da natureza, o vir a ser ou o devir no pensamento dos filósofos antigos, como Anaximandro de Mileto [610-546 a. C] e Heráclito de Éfeso [535-475 a. C]. O jardim, por sua vez, representa a florescência, o despertar da consciência, que, como uma rosa, expande as suas pétalas em raios, para todas as direções apresentadas pelos ventos (METZNER, 1988; CIRLOT, 1991). O elemento da beleza que transcende as aparências, essencial para a disciplina da estética filosófica, pode ser reconhecido em hinos como, por exemplo, Vamos meus Irmãos: “Eu agradeço a meu Mestre/Porque tem o que me ensinar/Me mostra tanta beleza/Que neste mundo não há/Eu agradeço a meu Mestre/E ao meu Papai também/De eu ver tanta riqueza/Primor é só aonde tem” (MELO, 2013, ♫24). No hino predito, outra vez se evidencia que os enteógenos podem ser interpretados como plantas professoras de um alto gabarito, posto que, o Santo Daime ensinou para o Padrinho Sebastião a ver belezas e primores não apenas da esfera natural, mas também nos horizontes metafísicos (ALVERGA, 1995; ALBUQUERQUE, 2009). Do mundo transcendental que muitas vezes só pode ser visto de olhos fechados vieram os conhecimentos que o Padrinho compartilhou com toda a Irmandade, como se pode constatar ao ver o hino por ele nomeado de Meu Mestre a Vós Eu Peço: “Meu Mestre eu vos pedi/Agora vou dizer/Que o vosso brilho no astral/Nem todos podem ver/O vosso brilho no astral/E o vosso amor divino/É quem nos dá a Santa Luz/E me traz estes ensinos” (MELO, 2013, ♫33). O plano astral, na perspectiva dos teosofistas,[25] corresponde à uma dimensão que ultrapassa a realidade física, uma esfera onde se condensam os sentimentos e as emoções, acessível apenas por meio da alma (BLAVATSKY, 1890; LEADBEATER, 1998). Em outras palavras, trata-se por analogia do mundo das formas puras da metafísica platônica, que se expressa no campo sensível através das figuras da geometria sagrada, dos fractais que muitas vezes aparecem nas mirações decorrentes do Daime (SHANON, 2003; LIBEN, 2008). Na religiosidade daimista, o ideal se transforma em real a partir da ação, de atitudes cujo ponto de partida vem a ser a amorosidade, o reconhecimento da validade dos ensinamentos deliberados pelas divinas inteligências constituintes do sacramento. Tal como expressa o hino A Febre do Amor: “A roda está girando/E o tempo vai se passando/É o tempo da apuração/Mas ninguém não está ligando/A roda do amor/Meu Mestre é quem está mandando/Os que forem lhe escutando/Nesta casa vem chegando” (MELO, 2013, ♫49). A hermenêutica ou a arte de saber interpretar, sugerida pelo Padrinho no seu hino precedente, possibilita uma compreensão mais profunda das mensagens repassadas pela força da santa bebida, nos hinos e nas mirações, aos irmãos e irmãs da doutrina. Para fins elucidativos, os hermeneutas podem ser considerados como aqueles que procuram desvendar os mistérios contidos no Verbo Divino (SCHLEIERMACHER, 1998; GADAMER, 2006): a respeito do qual, antes que possam dizer qualquer coisa, estes devem analisar com profundidade os significados enigmáticos, muitas vezes herméticos, das Sagradas Escrituras. Desse ângulo de visão, não restam dúvidas de que o método hermenêutico, simplificado sob a fórmula de falar menos e escutar mais, está presente no conjunto de saberes apresentados pelos hinários do Santo Daime.

Uma das coisas que mais chamam a atenção das pessoas no Santo Daime são as provas materiais da realidade espiritual, ou, em uma linguagem mais filosófica, as evidências sensíveis da realidade meta-sensível. Não é incomum que muitas vezes a bebida sagrada mostre as coisas que irão acontecer, da mesma forma que torna evidente a verdade presente na vida de cada pessoa. Acerca disso versa o Padrinho, no seu hino intitulado Todo Mundo Dorme: “A verdade é pura/E comigo está/Muitos estão vendo/Não querem acreditar/Aqui eu digo/Eu vou provar/Para conhecer/E saber respeitar” (MELO, 2013, ♫68). Para, no entanto, despertar este conhecimento de si, o autoexame da consciência vem a ser o primeiro passo. Não faz sentido querer ganhar o universo inteiro e deixar de conhecer a própria alma. Sem uma análise profunda de onde viemos e de quem nós somos, não é possível ter a noção do que nós queremos, nem muito menos de para onde vamos (FICINO, 1980; BINGEN, 2022). Dessa maneira, analisar com profundidade os diversos estados conscienciais que se manifestam na força do Santo Daime reabre as portas da percepção para a criação de uma nova concepção fenomenológica. O Padrinho recomenda no seu hino Examine a Consciência: “Examine a consciência/Examine direitinho/Sou Pai e não sou filho/Mas eu não faço assim/Chamo de um a um/A todos eu mostro o caminho/Fazendo como eu mando/Tudo fica bem facinho” (MELO, 2013, ♫71). A fenomenologia pode ser compreendida como a área da filosofia que se dedica ao estudo dos estados conscienciais: nessa perspectiva, o Santo Daime constitui um vasto campo fenomenológico, um horizonte a partir do qual a compreensão dos processos de êxtase, de transe e das mirações se torna mais fácil (SHANNON, 2003; LIBEN, 2008). Além disso, o hino anterior também sugere que as plantas professoras facilitam a jornada do estudante, desde que este cumpra as suas instruções sem alteração e continue matriculado na escola da Rainha da Floresta. Um aspecto filosófico importante da doutrina daimista, evidenciado no hinário do Padrinho, consiste no fato de que o sacramento pode ser considerado enquanto chave de acesso ao conhecimento, tal como expresso no hino Eu Apresento a minha Verdade:

Eu apresento a minha verdade/Conforme eu recebi/A meu Pai e minha Mãe/ Toda vida obedeci/Eu não faço sujeira/Para não me envergonhar/Perante os meus irmãos/A todos eles eu vou provar/É preciso tomar Daime/Para vir conhecer/Se meu Mestre é verdadeiro/Meu irmão ou se é você/Muitos querem ser grandes/Aqui dentro do poder/Mas perante esta verdade/Meus irmãos vão esmorecer/Esta verdade é pura/Que meu Mestre me entregou/Para eu ensinar/ Ter prazer e ter amor/Eu peço a meus irmãos/Para todos se calar/Cuidar da sua obrigação/Para não vir se envergonhar (MELO, 2013, ♫74).

Apresentar a verdade quer dizer trazer para a realidade sensível o que foi compreendido pelo estudante na dimensão meta-sensível através das mirações, ou seja, aplicar todos os ensinamentos transmitidos pelo sacramento por meio dos hinos no mundo da vida cotidiana. O compromisso assumido pelos correligionários da Irmandade consiste em zelar pelos conhecimentos apresentados nos hinários através de atitudes exemplares (ALVERGA, 1995; MORTIMER, 2018a): o que significa não alterar o sentido das instruções para fins de engrandecimento, não querer ser melhor que ninguém e cumprir com os próprios deveres, isto é, demonstrar a partir da ação a bondade incitada no seu coração; do contrário, a vergonha vai dar a prova da sua própria reprovação. Uma vez que se possa ter as verdadeiras provas da Sabedoria Divina, estas podem vir a ser compartilhadas com aqueles que procuram, como se pode verificar no hino A Verdade está Comigo: “A verdade está comigo/Quem quiser pode duvidar/Que o meu Mestre me entregou/Para eu disciplinar/Esta verdade é pura/Quem quiser pode duvidar/Eu sou filho do Rei/E minha Mãe é a Rainha” (MELO, 2013, ♫77). A disciplina mencionada pelo Padrinho Sebastião consiste em fazer da teoria aprendida com os hinos uma atividade existencial: o que na concepção existencialista implica em ter responsabilidade pelas próprias decisões e consequências do exercício da livre vontade. Desse ângulo de visão torna-se possível a percepção de que o corpo doutrinário do Santo Daime se constitui de ensinamentos teóricos e práticos: estes últimos ao serem aprendidos e aplicados em alinhamento com os princípios da doutrina têm como resultado a descoberta do sentido da existência individual e o bem-estar da humanidade (ALVERGA, 1995; ALBUQUERQUE, 2021). De forma muito transparente, se pode ver através dos hinos um conjunto de fundamentos que constituem uma ética do exercício religioso. Um forte senso de cumprir com o dever está presente em hinos como, por exemplo, Meu Filho Eu te Amo: “Meu filho eu sou um homem/Que outro homem não vê/Meu filho eu te mando/Vai cumprir o teu dever/Meu filho eu sou teu Pai/Que foi com quem tu falou/Recebe a tua luz/Para ter o teu valor (MELO, 2013, ♫79). O indivíduo que procura fazer o bem ainda mais quando não há pessoas vendo, sem dúvidas vem a ser reconhecido como aquele de melhor caráter em relação aos que só querem parecer bons enquanto estão a serem vistos. Por isso, devem os irmãos e as irmãs agirem bem independente dos olhares, visto que, uma vez que Deus conhece as intenções de cada pessoa, não adianta disfarçar o interesse pessoal com a maquiagem da boa intenção (DASS, 2011; BINGEN, 2022). A suprema benevolência do Espírito Eterno, que deve ser como um espelho para nós, não exige do ser humano o reconhecimento. Entretanto, se em um gesto de liberdade nós escolhemos reconhecer, nos tornaremos mais semelhantes à Divindade e poderemos manifestar um pequeno lampejo da sua bondade na Terra. Feito isto, mesmo que não hajam câmeras voltadas para nós e uma salva de palmas ao fim do trabalho, ainda assim podemos ser recompensados com a Luz do Resplendor.

Dentre as reminiscências trazidas à luz pelo hinário do Padrinho Sebastião, uma daquelas que mais se destacam consiste na visão de Deus como a natureza e da natureza como Deus (ROCCA, 2008; ESPINOSA, 2018). Essa perspectiva se faz presente na tradição a partir da reflexão desenvolvida pelos filósofos panteístas, como por exemplo, Benedictus Espinosa [1632-1677] e John Toland [1670-1722]. No panteísmo se entende que a Divindade manifesta a sua força criativa na esfera natural, seja no brilho dos corpos celestes ou mesmo na vida dos seres terrestres (TOLAND, 1751; DANIEL, 1983): o Espírito Eterno evidencia a sua existência em todas as coisas que foram criadas. Assim descreve o hino do Padrinho, intitulado No Sol, na Lua, na Terra e no Mar:

No Sol, na Lua/Na Terra e no Mar/Procurei esta verdade/E eu sei aonde está/ No Sol, na Lua/Na Terra e no Mar/Esta verdade é pura/Estou aqui para apresentar/No Sol, na Lua/Na Terra e no Mar/Quem quiser que procure/E veja o Mestre aonde está/No Sol, na Lua/Na Terra e no Mar/Desceu nesta verdade/ Deus do Céu para ensinar/No Sol, na Lua/Na Terra e no Mar/Eu chamo as Estrelas/E todas vêm me acompanhar (MELO, 2013, ♫91).

O hino supramencionado evidencia os elementos característicos de uma filosofia da natureza: este último pode ser visto como uma prece panteísta de adoração ao firmamento e ao fundamento, que são representações divinas, em forma de poesia. O Padrinho Sebastião identifica, nas forças cósmicas e naturais, a presença de uma verdade divinal (ALBUQUERQUE, 2009; MORTIMER, 2018a). Ao levar em consideração que no panteísmo, Deus manifesta a sua presença em todos os seres com existência na realidade natural, se pode ressaltar que na doutrina daimista, a Divindade está em nós ao mesmo tempo que também no sacramento enteogênico. O Santo Daime evidencia o que existe de verdadeiro em cada pessoa. Assim está no hino Esta Casa é da Verdade: “Esta casa é da verdade/E a verdade aqui está/Quem não tiver verdade/Vai se retirar/Quem vos quer eu não convido/Todos podem acreditar/Esta verdade é pura/Deus do Céu veio ensinar” (MELO, 2013, ♫98). Aqueles que não procuram se conhecer, os que não gostam de ver a si mesmos por dentro, que preferem a comodidade da ilusão em detrimento do seu autoaperfeiçoamento, estes não permanecem matriculados por muito tempo na escola da Rainha da Floresta. Em contrapartida, aqueles que de todo o coração buscam o autoconhecimento, os que não têm medo de mergulhar nas dimensões desconhecidas do próprio ser, que procuram se transformar do interior para o exterior em pessoas melhores através dos ensinamentos apresentados pelas plantas professoras, estes podem ser considerados os futuros graduados na matéria de aprender com perfeição e se tornarem zeladores dos saberes do Santo Daime. O ideal de manter viva a tradição sem distorções está nos versos do hino Assim Eu quero Ser: “Assim eu quero ser/Assim eu quero estar/Assim eu me apresento/Para a minha história contar/A verdade não se nega/A verdade não se esconde/Que a verdade é Deus/E Deus é o verdadeiro homem” (MELO, 2013, ♫127). Um recorte filosófico do hino precendente consiste no desvelamento ontológico. Os pensadores metafísicos, em todos os períodos da história do pensamento, acreditaram que as aparências enganavam, que as nossas percepções sensoriais não poderiam construir uma compreensão segura da verdade (CRAIG, 2005; BLACKBURN, 2008). Por essa razão, muitos tentaram encontrar na dimensão do intelecto um conhecimento seguro a respeito da natureza do Ser Supremo, mas logo se depararam com os limites da racionalidade para descrever a grandeza divina. Para suprir a necessidade de responder a questão da origem, da essência e da finalidade, apareceu na metafísica o elemento transcendental (SHANKARACHARYA, 1999; DASS, 2011). Nas filosofias transcendentalistas, através da autorrealização, que só acontece na ultrapassagem dos sentidos físicos e na superação da mente concreta, é que se pode unificar a alma humana com a consciência cósmica. Na união mística, experiência de integração entre humanidade e divindade, os véus da aparência que encobrem o sentido da verdade essencial se descortinam e, conforme expresso pelo Padrinho Sebastião, o verdadeiro ser humano, aquele que mais próximo de Deus está, se apresenta para o mundo como imagem e semelhança do Eterno.

Um dos principais elementos da filosofia presente nos hinos do Santo Daime consiste na beleza. A disciplina do pensamento que estuda o belo e as suas respectivas manifestações se chama estética. As visões extáticas apresentam para os estudantes padrões de arte que se encontram na natureza, estruturados a partir da proporção áurea, como, por exemplo, partículas, moléculas, células, flores e estrelas (SHANNON, 2003; LIBEN, 2008). O Padrinho Sebastião, com base em uma vida laboriosa e devocional orientada pelo sacramento, traz para todos uma reflexão acerca do embelezamento no hino Bendita é: “Bendita é/A estrela que nos guia/É tão bonito/O amanhecer do dia/É tão bendita/E é gloriosa/É tão bonito/O esplendor daquela rosa/Bendita é/A estrela que nos guia/É tão bonito/O amanhecer do dia” (MELO, 2013, ♫138). Por mais belas e exuberantes que possam ser as mirações, o objetivo maior do trabalho na doutrina não vem a ser a contemplação. Aqueles e aquelas que procuram a escola da Rainha da Floresta na intenção de se deslumbrar, não estão a se distinguir dos que utilizam as substâncias psicoativas somente pela busca do prazer (ALVERGA, 1995; MORTIMER, 2018a). Os princípios de conduta da religião daimista incentivam não apenas ver belezas e primores, uma coisa muito fácil de fazer, mas estes buscam incentivar os irmãos e as irmãs a terem sempre uma intenção correta de se integrarem às partes superiores do seu próprio ser, o que implica no movimento de sair dos círculos viciosos para entrar em definitivo nos círculos virtuosos. O princípio do auto-aperfeiçoamento vem a ser apresentado pelo Padrinho Sebastião no seu hino intitulado Falar que está com Deus: “Quem disser que tem verdade/Se componha em seu lugar/Espere a chamada divina/Para ir se apresentar/Falar que está com Deus/É muito fácil de dizer/Mas cumprir seu mandamento/É aí que eu quer ver” (MELO, 2013, ♫140). As verdades apresentadas pela luz do Santo Daime correspondem à compreensão e ao diálogo com a centelha divina que habita no interior de cada ser humano, bem como à recepção e à emissão de tudo aquilo que for bom, alegre e próspero. Como se faz perceptível, a procura pela verdade continua a se manter presente através do hinário em análise, uma busca singular que tipifica a inclinação primordial de todos os filósofos (JAEGER, 2008; VERNANT, 2010). O amor aqui vem a ser a força motriz que direciona a Irmandade no sentido do conhecimento, de um saber que encontra em Deus o seu símbolo máximo. Com efeito, diz o Padrinho no seu hino chamado Símbolo da Verdade: “O símbolo da Verdade/É preciso consagrar/Receber com firmeza/O que nosso Pai nos dá/O símbolo da Verdade/Que meu Pai me entregou/O símbolo da Verdade/Sempre consagra o amor” (MELO, 2013, p. ♫142). Ser amoroso e verdadeiro consigo mesmo, tanto quanto para com o diferente e o semelhante, significa assumir uma atitude filosofante, uma postura de alteridade em relação ao Ser Supremo, de maneira que as palavras, os pensamentos e as ações de cada um tenham por base a expansão da consciência: atividade transpessoal fundamentada na correspondência entre o micro e o macrocosmo (SHANKARACHARYA, 1999; DASS, 2011). Quanto mais o pensamento se eleva em direção das coisas eternas, tanto mais se reconhece o resplendor da criação que ilumina sem exceção a todos os seres, e, por consequência, se partilha de uma maior similaridade com o Arquiteto Universal. Tal qual está expresso pelo Padrinho Sebastião no seu hino intitulado Eu não sou Deus: “Eu não sou Deus/Mas tenho uma esperança/ Eu não sou Deus/Mas sou sua semelhança/Deus é fogo/Deus é água, Deus é tudo/Eu convido meus irmãos/Para começar nossos estudos” (MELO, 2013, ♫152). Como se pode perceber, o hino precitado descreve a similitude entre a divindade e a humanidade, uma relação de proximidade intensificada pela força da bebida sagrada, da mesma forma que evidencia o incentivo da doutrina à produção de conhecimentos verdadeiros e justificados a partir da experiência religiosa com o Santo Daime (ALVERGA, 1995; ALBUQUERQUE, 2009): o que pode resultar na abertura de novas portas epistemológicas com a certeza da originalidade no quesito de ideias e autoria. Muito mais do que isso, e crucial na fundamentação da proposta central do presente artigo, com base em todas as referências que foram citadas, seria razoável afirmar que o aprendizado filosófico apresentado no hinário do Padrinho Sebastião foi obtido e desenvolvido a partir de uma conexão direta com a divina sabedoria das plantas professoras (MORTIMER, 2018a; ALBUQUERQUE, 2021). A legitimidade do amor ao saber no coração do Padrinho não apenas foi reconhecida por todos aqueles que com ele conviveram, mas também pode vir a ser identificada como um pedido feito a Deus no seu hino chamado Meu Pai é a Chave da Harmonia: “Meu Pai, eu quero o teu amor/Meu Pai, eu quero o teu saber/Não há nada encoberto/Que não seja descoberto/Basta eu querer” (MELO, 2013, ♫155). Aqui se tem um claro exemplo que nos remete à meditação sobre a metafísica, à tentativa milenar dos pensadores de desvelar o que existe de encoberto pelos fenômenos; o mistério ontológico máximo que para muitos ainda está inacessível, para aqueles que consagram o Santo Daime há muito tempo foi desvelado: o sentido e a verdade do ser, sempre igual a si mesmo na soma de todas as suas partes (AUDI, 1999; BUNNIN; YU, 2009). A vida e a obra do Padrinho Sebastião constituem exemplos de que, mesmo aqueles considerados como os mais simples, às vezes podem ser muito mais sábios do que aqueles reconhecidos como autoridades.[26] Em poucas palavras, o hinário do Padrinho evidencia com distinção uma leitura muito elevada do livro da natureza, um fino estudo que se desdobra sobre os horizontes de uma autêntica mística filosofal.

Considerações Finais: a Filosofia nos Hinos do Santo Daime

A doutrina religiosa do Santo Daime, desde os seus anos iniciais, pelo seu caráter multidisciplinar e universalista, sempre chamou a atenção de estudiosos, dentre os quais se destacaram os antropólogos, etnobotânicos, sociólogos, jornalistas, teólogos, psicólogos, médicos, farmacêuticos, químicos, biomédicos, neurocientistas, historiadores, advogados e educadores. Todos estes, de lá até aqui, escreveram inúmeros livros, realizaram incontáveis conferências e publicaram uma imensa quantidade de artigos em periódicos especializados, o que não deixa de ser relevante para o reconhecimento intelectual e social da Irmandade (LABATE; ARAUJO, 2002; KHAMANN; ALBUQUERQUE; SILVEIRA,2018). Entretanto, em quase um centenário de existência da religião daimista, salta aos olhos a escassez de publicações sobre o Santo Daime de autoria dos filósofos, cujos pareceres são essenciais não apenas ao desenvolvimento de todas as áreas do conhecimento, mas também ao enriquecimento do patrimônio cultural de toda a civilização. [27] a filosofica pode ser considerada a Grande Mãe de todas as ciências constituídas pela humanidade; assim sendo, a Alma Mater de todos os saberes, não poderia permanecer distanciada do círculo de debates concernentes ao universo do Santo Daime.

Desta feita, devido à sua tonalidade contra-hegemônica, o presente artigo pode ser apreciado ou depreciado dentro dos círculos acadêmicos. Apreciado por aqueles que, nas suas mais profundas inquietações filosóficas, sempre tiveram as suas vozes silenciadas quando quiseram expressar reflexões sobre o assunto. Depreciado por aqueles que, em suas zonas de conforto autoritário, sempre foram considerados incontestáveis sobre a matéria da filosofia e não puderam compreender o conteúdo apresentado no trabalho: “Que o Universo inteiro se comunique com o interior de nosso corpo e nossa mente, inclusive com contiguidade, é uma compreensão difícil apenas para os materialistas inveterados” (ALVERGA, 1995, p. 66). Aqueles e aquelas que consideram a importância da matéria, mas não excluem a indispensabilidade do espírito na sua busca por entendimento, ao mesmo tempo que observam na luz do Daime esse diálogo entre a autoconsciência e a supraconsciência, a estes e a estas se destina a reflexão desenvolvida nesta tessitura. Que a partir da compreensão aqui trazida, possa o silêncio das vozes contidas reverberar na acústica dos mundos e inverter a perspectiva daqueles que confundem uma ossificada autoridade intelectual com a própria natureza humana:

Os ecos desse “silêncio”, que ouvimos, de forma melodiosa, se expandir desde os confins do Universo até nossa percepção ativada pelo Daime, é que se constituem no tempo, autêntica memória de Deus. Dependendo de nossa capacidade de trabalhar com o Daime, teremos aí um arquivo imemorial de todos os astros e galáxias, seu nascimento e morte, os resíduos de suas vibrações até nós. Diante disso, a história desse nosso planeta e das forças que nos guiam é, relativamente, pouca coisa. Mas é o começo de nossa inserção e do nosso mergulho até o Uno. Nessa outra dimensão, revelada pelo Daime, não existe linearidade, presente, passado e futuro. O movimento constante de Heráclito e a eterna permanência de Parmênides são polos complementares (ALVERGA, 1995, p. 69).

O fato de Mestre Irineu e Padrinho Sebastião não terem sido diplomados por uma universidade, não significa que eles não tenham sido detentores de uma sólida cultura, como foram Platão e Aristóteles. Em proporção inversa, a sabedoria professada nos hinários de ambos, pelo seu caráter enciclopédico e filosófico, no mínimo deveria lhes render uma homenagem póstuma com a concessão do título de Doutor Honoris Causa. O saber apresentado pelo Mestre e o Padrinho suscita outra vez as questões: “E o que é educação? Apenas o treinamento transmitido em algumas instituições oficiais como escolas ou universidades? As pessoas comuns são ignorantes ou simplesmente têm uma educação diferente, uma cultura diferente das elites?” (BURKE, 1992, p. 21). Nessa perspectiva, o propósito do autor está distante de nadar contra a corrente dos respeitáveis pesquisadores, de todas as áreas do conhecimento, que apresentam mentes abertas; pelo contrário, a provocação e crítica só valem para aqueles que se acham com a marca da exclusividade: é dirigida aos conservadores e reacionários do pensamento, aos que são contrários às inovações epistemológicas – estas últimas resultantes de uma abordagem descolonizadora e etno-filosofante. Destarte, trazer à luz a problemática destacada tem como meta não apenas a inclusão, mas também o impulsionamento da filosofia em um espaço que desde sempre também foi seu, a saber, o centro livre, eclético, fluente e universal da Rainha da Floresta.

Como ficou evidenciado nas linhas e entrelinhas precedentes, foram diversos os elementos originários da filosofia identificados nos hinários do Mestre Irineu e do Padrinho Sebastião. Desde a perspectiva das reminiscências relacionada a uma psicopedagogia das plantas professoras, os movimentos filosóficos apresentados entre os hinos recebidos pelo Mestre e o Padrinho, a partir dos recortes examinados e discutidos na presente tessitura, foram o orfismo, o monismo, o mobilismo, o pitagorismo, o platonismo, o essencialismo, o perenialismo, o panteísmo, o idealismo, o pluralismo, o transcendentalismo, o naturalismo, o existencialismo e a teosofia (AUDI, 1999; CRAIG, 2005; BLACKBURN, 2008; BUNNIN; YU, 2009). As disciplinas filosóficas demonstradas a partir dos hinos do Mestre Irineu e do Padrinho Sebastião foram a metafísica, a ontologia, a estética, a fenomenologia, a hermenêutica, a epistemologia, a ética, a topologia e a dialética: uma verdadeira pluralidade ontológica cujos detalhes podem ser analisados e descritos tanto no sentido estrito quanto no sentido amplo, seja de um modo monográfico, quer de uma forma panorâmica (ECO, 1977; LATOUR, 2013; STENGERS, 2022). Dito de outra maneira, os dados em evidência não excluem a possibilidade de outras relações serem estabelecidas a posteriori, seja a partir do hinário do Mestre, quer através do hinário do Padrinho, ou mesmo com base nos demais hinários da Irmandade. Destarte, as evidências elencadas neste trabalho abrem o espaço para os filósofos mergulharem nas sabedorias do Santo Daime, no universo de conhecimentos que está presente dentro dos hinos, a fim de possibilitar não apenas uma nova interpretação da filosofia, mas também uma ampliação da visão que se tem da doutrina daimista: diligências que poderiam muito bem constituir outros novos trabalhos, objetivo que o autor intenciona realizar no futuro próximo.

Para cumprir com esta etapa conclusiva, também ficou transparecido que a sabedoria de Mestre Irineu e Padrinho Sebastião – ambos de origem humilde, trabalhadores braçais ao longo de quase toda uma vida, que devido à importância das suas respectivas missões planetárias, não frequentaram os espaços acadêmicos formais – foi constituída no aprendizado com as plantas professoras através das mirações, das visões extáticas que resgataram a memória das suas almas, reminiscências do que estes um dia foram, transformadas no presente em hinos, instruções de um alto nível repassadas em linguagem poético-musical, para atender a compreensão e impulsionar o auto-aperfeiçoamento tanto dos estudantes quanto dos professores da Irmandade (ALVERGA, 1995; LUNA, 2002; ALBUQUERQUE, 2011). Diante das reflexões alavancadas pelos conteúdos do presente trabalho, ainda resta uma pergunta a ser feita: Mestre Irineu e Padrinho Sebastião eram órficos, monistas, mobilistas, pitagóricos, platônicos, essencialistas, perenialistas, panteístas, idealistas, pluralistas, transcendentalistas, naturalistas, existencialistas ou teosofistas? E a resposta pode ser muito mais simples do que a questão: eles eram daimistas. Em última análise, as sabedorias do Santo Daime podem ser compreendidas como aquelas presenteadas à humanidade pelo sacramento enteogênico, ou seja, pelas divinas inteligências da natureza que transcendem os binômios corpo-mente, espaço-tempo, causa-efeito, forma-conteúdo, intrafísico-extrafísico, significado-significante, subjetividade-objetividade, microcosmo-macrocosmo, dentre outros, e que há milênios são capazes de despertar o conhecimento da divindade com domicílio no ser humano: para que haja a evolução da consciência e a continuidade da vida na Terra.

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Notas

[1] It is used here in the spirit of its conception to distinguish the religious nature of these substances and the experiences they evoke from their effects in other contexts, for which there are other terms, psychedelic or hallucinogen (FORTE, 2012, p. 17).
[2] This problem was further complicated during the 1970s, ’80s, and ’90s by a “war on drugs” waged to eradicate the illicit, recreational, non-medical “abuse” of drugs (FORTE, 2012, p. 17-18).
[3] Entheogens have figured prominently in the mystical practices of some of the world’s greatest civilizations. They have been widely employed in shamanic societies, and their use continues today throughout the world (FORTE, 2012, p. 18).
[4] Nuestra designación es fácil de pronunciar. Podemos hablar de enteógenos o, como adjetivo, de plantas o de sustancias enteogénicas. En un sentido estricto, sólo aquellas drogas que producen visiones y de las cuales pueda mostrarse que han figurado en ritos religiosos o chamánicos serían llamadas enteógenos; pero en un sentido más amplio, el término podría también ser aplicado a otras drogas, lo mesmo naturales que artificiales, que inducen alteraciones de la conciencia similares a las que se han documentado a respecto a la ingestión ritual de los enteógenos tradicionales (RUCK; BIGWOOD; STAPLES et al, 2008, p. 202).
[5] Through proper use and proper knowledge, we too—like our ancestors—may learn to once again recognize the sacred nature of inebriants and utilize these to have profound experiences of the sacredness of nature (RÄTSCH, 2005, p. 12).
[6] Um interessante artigo intitulado O que é o Santo Daime – da Consciência de nossa Dupla Simbiose, publicado no ano de 2010 pelo professor universitário Marcelo Bolshaw Gomes, evidencia a polissemia da palavra Daime. No estudo apresentado por Marcelo Bolshaw (2010), o Daime pode ser uma “religião”, uma “doutrina”, uma “bebida”, um “ser divino” e um “sacramento”. Dessa maneira, a presença da expressão (Santo) Daime nas presentes linhas, pode uma hora se referir à religião, outra hora à doutrina, à bebida, ao ser divino e ao sacramento: o significado atribuído ao termo vai depender do contexto de uso nas linhas seguintes.
[7] As fontes consultadas por Moreira e Macrae (2011) não apresentam consenso quanto ao ano de recepção das visões e revelações que constituíram os fundamentos da doutrina daimista por Mestre Irineu. Algumas das referências centrais da biografia do Mestre – que eram seus parentes, amigos pessoais e pessoas próximas – depuseram que o ano da iniciação era 1914, outras atestaram que era 1915 e outras afirmaram que era 1916. Assim: “O episódio de iniciação de Irineu, incluindo a dieta e as sessões com o caboclo Pizango, deve ter se passado entre 1914 e 1916” (MOREIRA; MACRAE, 2011, p. 103). Pela falta de informações exatas sobre o ano da sagrada revelação, bem como pela presença de disparidades entre os depoimentos dos parentes, amigos e conhecidos de Mestre Irineu, optou-se pela inclusão do período referencial estimado pelos autores da obra Eu Venho de Longe.
[8] No livro intitulado Epistemologias e Saberes da Ayahuasca, a educadora Maria Betânia Barbosa Albuquerque desenvolve a perspectiva das plantas professoras com ênfase no contexto dos rituais ayahuasqueiros. Na perspectiva da autora, a Ayahuasca vem a ser considerada como agente determinante na produção de conhecimentos, sejam estes os mais diversos, entre aqueles e aquelas que fazem uso ritual do sacramento enteogênico. Dito de forma suscinta: como sugere Betânia Albuquerque (2011), na obra supracitada, a floresta pode ser uma escola onde os professores são as plantas enteogênicas.
[9] Uma coisa que chama a atenção na citação em análise é como os enteógenos são definidos pelos povos Machiguenga. Os Machiguenga vivem nos Andes peruanos e classificam os respectivos elementos da natureza que despertam a consciência da divindade interior como plantas assombrosas (GOULART; LABATE; CARNEIRO, 2005). A forma Machiguenga de definir as entidades constituintes do reino vegetal tem um caráter muito singular: de algum modo, esta remete à antiga noção de que o assombro, a perplexidade, o espanto ou a admiração são os impulsos que iniciam a filosofia (ARISTÓTELES, 2002). Em outras palavras, não estaria a incorrer em erro quem viesse a considerar os enteógenos como plantas filosóficas.
[10] Por pensamento universal entende-se aqui a busca filosófica de princípios, leis, conceitos e verdades que sejam aplicáveis a todos os seres humanos, ou seja, uma transcendência das particularidades que possibilita a concepção de ideias extensíveis às mais variadas situações (AUDI, 1999; CRAIG, 2008; BLACKBURN, 2008; BUNNIN; YU, 2009). Além disso, a expressão também abrange uma compreensão holística das coisas, isto é, o reconhecimento da interrelação entre todos os seres, povos, culturas e perspectivas (SMUTS, 1936; WILBER, 1997). Dessa maneira, as formas ideais apresentadas por Platão [428/427-348/347 a. C.] em A República, as essências universais compreendidas por Aristóteles [384-322 a. C.] em Metafísica, o imperativo categórico formulado por Immanuel Kant [1724-1804] em Metafísica dos Costumes, o espírito absoluto concebido por Friedrich Hegel [1770-1831] em A Fenomenologia do Espírito, são exemplos de ideias que sugerem a pertinência de uma possível universalidade para o pensar.
[11] Conforme consta na Routledge Encyclopedia of Philosophy, editada por Edward Craig (2005), o panteísmo pode ser identificado como uma concepção religiosa e filosófica que sustenta a ideia da presença de Deus em tudo. Na perspectiva panteísta, a Divindade, a natureza e o universo são uma mesma realidade, de modo a não existir uma separação entre estes, mas sim a unidade.
[12] Segundo os dados apresentados no The Blackwell Dictionary of Western Philosophy, editado por Nicholas Bunnin e Jiyuan Yu (2009), o transcendentalismo pode ser compreendido como um movimento filosófico e literário que teve início em meados do século XIX. A visão de mundo transcendentalista estabelecia a intuição, a relação com a natureza e o desenvolvimento da espiritualidade como meios de obter um conhecimento mais profundo do universo.
[13] Em concordância com o expresso no The Oxford Dictionary of Philosophy, editado por Simon Blackburn (2008), o monismo pode ser considerado a perspectiva filosófica segundo a qual todas as coisas que existem são derivadas de uma mesma essência. Na concepção monista, a constituição de toda realidade tem por princípio básico uma única substância fundamental.
[14] Como previsto no The Cambridge Dictionary of Philosophy, editado por Robert Audi (1999), o perenialismo pode ser reconhecido como uma abordagem filosófica que compreende a existência de uma verdade em comum dentro de todas as religiões e sistemas de pensamento do mundo.

Na abordagem perenialista, a sabedoria divina vem a ser atemporal e está presente em todas as tradições religiosas e filosofias autênticas.

[15] A dialética ascendente pode ser compreendida como uma abordagem da filosofia que enfatiza o movimento de subida ou de progressão das ideias particulares para as gerais por meio da identificação e resolução das contradições estabelecidas pela justaposição de diferentes perspectivas (AUDI, 1999; CRAIG, 2005). O conceito supracitado tem início com o pensamento desenvolvido por Platão em O Banquete e encontra a sua apoteose em A Fenomenologia do Espírito de Hegel: para ambos, a produção de conhecimentos vem a ser compreendida como um processo dinâmico, no qual as controvérsias identificadas entre os conceitos são resolvidas através da sintetização de ideias (BLACKBURN, 2008; BUNNIN; YU, 2009). Assim, na medida em que o movimento de contrapor teses e antíteses se repete, com base no contínuo questionamento das aparências e na busca genuína pela verdade, a dialética ascendente se realiza e novas sínteses aparecem, uma atividade que possibilita a formação de novos conceitos, bem como a constituição de sabedorias verdadeiras e justificadas.
[16] O orfismo pode ser compreendido como uma tradição religiosa e filosófica que teve origem no século VI a. C. na Grécia Antiga (PORFIRIO, 2002). O movimento era atribuído ao lendário Orfeu [século XII a. C.], considerado pelos gregos como um mestre da música, da poesia e da sabedoria (WASSON; HOFMANN; RUCK, 2013). O sacramento da religiosidade órfica era uma bebida psicoativa chamada Kykeon, um composto enigmático cuja matéria prima constituiu a base para a síntese da substância psicodélica conhecida como LSD, descoberta pelo químico suíço Albert Hofmann [1906-2008] em 1943.
[17] O pitagorismo pode ser considerado uma escola filosófica e religiosa fundada no século VI a. C. pelo matemático grego Pitágoras [570-495 a. C.], responsável por importantes contribuições não apenas nas áreas da matemática, mas também nos campos da música e da filosofia (PORFIRIO, 2002): um legado duradouro que se estende do mundo antigo ao contemporâneo (BLACKBURN, 2008). A escola pitagórica foi muito expressiva na época do seu florescimento; entretanto, o conhecimento que se tem da mesma na contemporaneidade é parcial, lastreado pelos relatos e referências de pensadores posteriores, como por exemplo, Platão e Porfírio [234-304/309].
[18] O platonismo pode ser reconhecido como uma corrente da filosofia fundamentada no ideário de Platão, um dos pensadores mais influentes de todos os tempos (AUDI, 1999). O pensamento de Platão, que envolve uma vasta gama de conceitos, pertence a uma esfera atemporal do conhecimento (CRAIG, 2005): uma vez que as suas ideias contribuíram com os mais diversos campos do entendimento humano, estas até hoje continuam a ser uma importante referência para os filósofos, cientistas, artistas, místicos e amantes do saber de todo o mundo.
[19] A fenomenologia pode ser identificada como a área da filosofia que se concentra em analisar e descrever os estados conscienciais e as experiências humanas (BLACKBURN, 2008). Os estudos fenomenológicos propriamente ditos começam a partir da modernidade com a filosofia de Friedrich Hegel e alcançam o horizonte da contemporaneidade por meio das obras de Edmund Husserl [1859-1938], com especial destaque para o livro intitulado Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica (BUNNIN; YU, 2009). Em poucas palavras, a abordagem fenomenológica proposta por Husserl (2012) busca compreender, para além dos preconceitos epistemológicos e das pressuposições metafísicas, mas de maneira rigorosa e com base em evidências, os modos através dos quais as coisas se apresentam para o ser humano na experiência consciente.
[20] Cabe mencionar aqui o artigo da professora universitária Maria Betânia Barbosa Albuquerque, intitulado Saberes da Ayahuasca e Processos Educativos na Religião do Santo Daime. Segundo Betânia Albuquerque (2012), a origem do saber apresentado por Mestre Irineu, adquirido de uma maneira não-convencional, era proveniente da inteligência divina contida no Daime. Diz a autora a respeito da sabedoria do Mestre: “embora reconhecido como “mestre ensinador” a fonte dos seus conhecimentos provém do daime, configurando-se, este fato, como elemento diferenciador desta educação, que é a presença de um professor-vegetal” (ALBUQUERQUE, 2012, p. 355). Dito com outros termos, um conhecimento verdadeiro e justificado não se restringe ao que se produz nas universidades; mas se amplia a tudo aquilo que a vida e a natureza podem ensinar: o que não deixa de incluir o aprendizado adquirido a partir da ingestão de uma bebida com propriedades enteogênicas, como por exemplo, o Daime.
[21] O idealismo pode ser compreendido como uma perspectiva filosófica que prioriza o mundo metafísico em relação ao mundo físico (AUDI, 1999). Do ângulo de visão idealista, os elementos materiais são manifestações do imaterial, ou seja, tanto a autoconsciência quanto a supraconsciência são os princípios estruturadores da realidade.
[22] O naturalismo pode ser considerado como uma abordagem da filosofia fundamentada no princípio de que os fenômenos do mundo podem ser compreendidos com base nas leis universais e naturais (CRAIG, 2005). Na perspectiva naturalista, o conhecimento vem a ser adquirido a partir da experiência direta do ser humano com a natureza e o universo.
[23] O existencialismo pode ser reconhecido como um movimento filosófico que se concentra em analisar a experiência de ser humano (BLACKWOOD, 2008). A visão de mundo existencialista busca dar ênfase à liberdade e à responsabilidade pelas próprias decisões, bem como à constituição da autenticidade e à busca pelo sentido da própria vida.
[24] O essencialismo pode ser descrito como uma corrente filosófica que postula a existência de qualidades essenciais para definir a natureza de um conceito, objeto ou ser (BUNNIN; YU, 2009). Do ponto de vista essencialista, todos os seres, entes e ideias são possuidores de atributos únicos e imutáveis que os tornam aquilo que são.
[25] A teosofia pode vir a ser definida como uma corrente filosófica e mística, constituída no século XIX por Helena Blavatsky [1831-1891], Henry Olcott [1832-1907] e William Judge [1851-1896]. O pensamento teosófico busca sintetizar os conhecimentos filosóficos, religiosos e científicos para fins de realizar uma abordagem holística dos mistérios do universo (BLAVATSKY, 1890). Para atingir esta finalidade, os teosofistas reúnem no seu arcabouço de ensinamentos as concepções esotéricas do vedantismo, do budismo, do cristianismo, do judaísmo, do sufismo, do neoplatonismo, dentre outras tradições do misticismo, sendo uma sociedade de estudos ocultistas muito influente até hoje.
[26] No artigo intitulado Filosofia, Educação e Religião: Conexões a partir do Santo Daime, Betânia Albuquerque (2007) sugere que os saberes não dependem dos espaços de autoridade epistemológica para serem constituídos. No caso do Padrinho Sebastião, a sua educação filosófica também se deu através das plantas professoras. Nas palavras da autora: “ao me referir à sabedoria de um seringueiro como filosofia e à filosofia da educação que conforma a pedagogia daimista, quis instaurar uma provocação ao campo filosófico-educacional, extremamente preso ao pensamento dos clássicos filósofos da cultura ocidental” (ALBUQUERQUE, 2007, p. 12). Expresso de outra maneira, os processos de aprendizado não estão condicionados às convenções estabelecidas pelas classes dominantes, que se limitam ao espaço da academia para produzir os seus conhecimentos, sem reconhecer a existência das sabedorias que existem para além dos muros da universidade.
[27] No entanto, para a felicidade geral dos pensadores psicodélicos, bem como dos demais estudiosos do Santo Daime, existem estudos que evidenciam a imprescindibilidade de se pensar a doutrina daimista a partir de uma abordagem lastreada nas áreas da filosofia. Assim atestam os livros Padrinho Sebastião: Máximas de um Filósofo da Floresta e Sabenças do Padrinho, ambos de autoria da educadora Maria Betânia Barbosa Albuquerque.
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