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LEVANTAR A ÂNCORA, IÇAR AS VELAS: UMA INCURSÃO PELOS MEANDROS TEÓRICOS DA LITERATURA COMPARADA, DESDE OS MODELOS HEGEMÔNICOS AO COMPARATISMO SOLIDÁRIO
LEVANTAR A ÂNCORA, IÇAR AS VELAS: UMA INCURSÃO PELOS MEANDROS TEÓRICOS DA LITERATURA COMPARADA, DESDE OS MODELOS HEGEMÔNICOS AO COMPARATISMO SOLIDÁRIO
Muiraquitã, vol. 11, no. 1, pp. 106-120, 2023
Universidade Federal do Acre

Received: 12 January 2023
Accepted: 29 June 2023
Resumo: Desde o seu nascimento, no século XIX, até hoje, a Literatura Comparada (LC) oferece diferentes rotas para aqueles que se aventuram a navegar pelas suas orientações teórico-metodológicas. Devido à pluralidade de vozes que direcionam o percurso, propomos uma viagem simbólica pelos meandros teóricos da área, com o objetivo de percorrer perspectivas tradicionais e perpassar por atualizações quanto ao objeto e ao método dos estudos comparados, até chegar ao comparatismo solidário, desenvolvido por Benjamin Abdala Junior (2003, 2012, 2014). A fim de fazermos esse percurso, contamos com a contribuição de Pierre Brunel e outros (2012), no que diz respeito às discussões da LC ainda enquanto disciplina acadêmica europeia, com os textos fundadores da área, de Henry Remak (1994) e René Wellek (1994), e com a produção crítica de Tania Franco Carvalhal (1991, 1992), Sandra Nitrini (2015) e Eurídice Figueiredo (2013).
Palavras-chave: Literatura comparada, Orientações teórico-metodológicas, Comparatismo solidário.
Abstract: Since its beginning in the 19th century until today, Comparative Literature (CL) has offered different routes for those who venture to navigate its theoretical-methodological orientations. Due to the plurality of voices that direct the path, we propose a symbolic journey through the theoretical intricacies of the area, with the objective of problematizing the traditional perspectives, and going through the constant updates regarding the object and method of comparative studies, until arriving at the solidary comparatism developed by Benjamin Abdala Junior (2003), (2012), (2014). In order to achieve this goal, we rely on the contribution of Pierre Brunel and others (2012), with regard to discussions of (LC) still as European academic subject, with the founding texts of the area by Henry Remak (1994) and René Wellek (1994), and with the critical production of Tania Franco Carvalhal (1991), (1992), Sandra Nitrini (2015) and Eurídice Figueiredo (2013).
Keywords: Comparative literature, Theoretical-methodological guidelines, Solidary comparatism.
PARA INICIO DE VIAGEM
A Literatura Comparada (LC) oferece diferentes caminhos para aqueles que se aventuram a navegar pelas suas orientações teórico-metodológicas. Neste texto, apresentaremos algumas reflexões sobre esse campo de estudos, permeando, de forma específica, as concepções advindas dos textos fundadores de Pierre Brunel e outros (2012), Henry Remak (1994) e René Wellek (1994), que versam sobre as controvérsias que marcaram o surgimento e evolução da LC, para então chegarmos em outro ponto de destaque, uma vertente contemporânea desenvolvida por Benjamin Abdala Junior (2003, 2012, 2014), o comparatismo solidário.
Nosso objetivo é demonstrar algumas das vozes que compõem o ramo de estudo em questão, discorrendo sobre o advento da LC enquanto disciplina universitária, no século XIX, arraigada à uma inclinação historicista, positivista, nacionalista e eurocêntrica, a denominada “escola francesa”. Adotamos também a perspectiva norte-americana – que rompe com os padrões franceses ao propor leituras supranacionais relacionadas à aspectos mais gerais das literaturas – comprometida com a análise do texto literário e influenciada pela crítica e teoria literária. Por fim, explanamos sobre como o avanço teórico e as críticas externadas sobre determinados modelos ocasionaram o aparecimento de novas propensões e pesquisas na área da LC, a exemplo do comparatismo solidário, teoria contemporânea contrária ao individualismo, à competitividade e ao cosmopolitismo, que estabelece correspondência com outras esferas das humanidades, firmando-se como uma resposta política e cultural contrária às tendências hegemônicas, principalmente a LC de linha francesa.
Para percorrermos esta incursão, fazemos uso da imagem poética de uma viagem, de modo que a leitura, entre as vertentes teóricas da LC escolhidas para este estudo, seja imaginada como uma navegação, em que o comparatista muitas vezes se sente um estrangeiro ao passear pelo território textual de uma ou mais literaturas fora do seu espaço geográfico e imaginário social. Assim, para colocar em relação não somente o literário, o artístico, mas também o cultural, o social e o político, o comparatista terá de usar o leme e decidir por quais rumos irá navegar em direção às narrativas literárias que ele deseja analisar.
DOS ESTUDOS SOBRE “FONTES” E “INFLUÊNCIAS” À SUPRANACIONALIDADE
Podemos afirmar que são variados e representativos os trabalhos na área da LC, com diferentes interpelações. Desse modo, é importante destacar que a comparação não é um recurso exclusivo dos estudos comparados, pois o ato de comparar já era um método amplamente utilizado pelas ciências da natureza, antes mesmo dos primeiros trabalhos comparatistas no âmbito da linguagem. Por isso, e a partir das vertentes teóricas mais contemporâneas, podemos entender a comparação como:
[...] um recurso para colocar em relação, uma forma de ver mais objetivamente pelo contraste, pelo confronto de elementos não necessariamente similares e, por vezes mesmo, díspares. Além disso, fica igualmente claro que comparar não é justapor ou sobrepor, mas é, sobretudo, investigar, indagar, formular questões que nos digam não somente sobre os elementos em jogo (o literário, o artístico) mas sobre o que os ampara (o cultural, por extensão, o social). (CARVALHAL, 1991, p. 11).
Agora, é preciso voltarmos ao tempo anterior a essa compreensão, pois o ato de comparar, no seio do nascimento da LC, em pleno século XIX, como disciplina universitária, estava imbuído de um forte cosmopolitismo europeu. Nesse contexto, comparar era inferiorizar, de modo a estabelecer relações que mostrassem assimetrias entre a produção literária e cultural europeia – tida como “superior” – e as literaturas produzidas fora desse apanágio.
É nesse momento também que se consolida o conceito de nação, de modo que as comparações literárias eram feitas para afirmar a influência e a soberania das literaturas e culturas europeias em face das culturas e literaturas dos países colonizados. Sendo assim, a palavra-chave desse período é o estudo de fontes e de influências. (CARVALHAL, 1992). Nesses moldes, e a título de exemplo, a metodologia utilizada pelos primeiros comparatistas baseava-se em investigar a influência da literatura francesa nos escritos de um autor fora do “cânone” europeu. Desse modo,
os comparativistas clássicos tinham uma ideia fixa: identificar a semelhança ou identidade entre as obras aproximadas. Daí a formação dos longos paralelismos, já referidos e criticados. Mas havia nesse procedimento uma outra intenção: estabelecida a analogia, instalava-se o débito. E a relação se convertia num saldo de créditos e débitos. É possível ainda descobrir, subjacente a esses procedimentos e a essas conclusões, outra intenção mais oculta: a demarcação da dependência cultural. Reconhecida a semelhança, contraída a dívida, chegava-se, com naturalidade, a uma conclusão: a dominação cultural de um país (de uma cultura) sobre o outro (ou outra). Na prática mais convencional, isso deixava transparecer uma ideologia colonizadora, que fortalecia os sentidos nacionais. Vista assim, a literatura comparada tinha uma falsa feição de internacionalismo e de espírito de abertura e aceitação. Investigar uma influência, cavoucar as fontes, significava descobrir que determinada cultura era superior a outra, portanto, dominante. (CARVALHAL, 1992, p. 75-76).
Essa tendência foi denominada de “escola francesa”, termo que marca o caráter doutrinário dessa vertente teórica, focada em comparar autores e obras numa perspectiva historicista, de tal modo que o estudo da literatura fosse subsidiado pela história literária. Por outro lado, a “escola norte-americana” formou-se comprometida com a análise do texto literário e influenciada por teorias literárias, como o new criticism, movimento iniciado nos Estados Unidos, na década de 1930. (CARVALHAL, 1992). Além dessa diferença entre os estudos comparados franceses e norte-americanos, há também o fato de que os primeiros acreditavam estar no âmbito da LC a comparação somente entre literaturas de nações distintas, ao passo que os norte-americanos estudaram comparativamente autores e obras de uma mesma literatura nacional. (NITRINI, 2015).
É importante ressaltar que o termo “escola” já foi amplamente criticado por estudos mais recentes, devido ao seu caráter doutrinário e porque ele acaba por marcar uma cisão radical entre a proposta francesa e a norte-americana, por isso sempre o utilizamos com o recurso gráfico das aspas. Mas o termo “escola”, embora problematizado, é utilizado aqui para se referir aos estudos clássicos, empreendidos pelos primeiros comparatistas. (CARVALHAL, 1992).
No final do século XIX, os estudos comparados franceses apresentaram “[...] um modelo internacional, vinculado à história, e tendo como pano de fundo o conceito de ‘nacionalidade’”. Os norte-americanos, por sua vez, “passam a propor um modelo supranacional, ligado às questões mais gerais das literaturas, à crítica e à teoria literária”. (NITRINI, 2015, p. 31). Essas diferentes vertentes estão presentes nos primeiros manuais brasileiros que discutem a LC, em especial a proposta francesa, de maneira que os estudos desenvolvidos no Brasil absorvem “[...]integralmente seus mestres franceses, cuja receita era pesquisar influências, buscar identidades, semelhanças ou diferenças, restringindo o alcance da literatura comparada ao terreno das aproximações binárias e à constituição de ‘famílias literárias’”. Nessa perspectiva, o perfil do comparatista é de um “super-homem da erudição o qual detém não só o conhecimento amplo de várias línguas como o das respectivas literaturas”. (CARVALHAL 1992, p. 20).
Nesse momento, já podemos afirmar que a LC se tornou, ao longo do tempo, um campo amplo e fecundo, capaz de apontar diferentes e, por vezes, divergentes perspectivas teórico-metodológicas, como podemos perceber até aqui. Sendo assim, acreditamos que ela tem potencial para fornecer ao comparatista contemporâneo os instrumentos necessários para atravessar fronteiras físicas e simbólicas, a fim de conectar literaturas, culturas e experiências distintas que convivem na “totalidade-mundo”. (GLISSANT, [1928] 2005, p. 42).
Desse modo, o comparatista contemporâneo é um curioso, alguém que não se contenta em conhecer e estudar somente a sua própria cultura, mas busca as inter-relações que há entre as cenas, as personagens, os espaços narrados, bem como a historicidade e as questões políticas que os textos literários representam e ressoam em diferentes tempos e espaços geográficos. Sendo assim, ele também deve ter em mente que, quando se trata de colocar em relação diferentes literaturas, estéticas e culturas, “os percursos são entrecortados, descontínuos. Não constituem uma linha histórica contínua, evolutiva e positivista como era comum encontrar em manuais didáticos”. (ABDALA JUNIOR, 2003, p. 35).
LITERATURAS “FONTE” E “RESULTADO”: A CRÍTICA AOS MODELOS HEGEMÔNICOS
É importante ressaltar que o século XIX, período em que a LC se tornou uma disciplina acadêmica na Europa, é marcado pelos ideais positivistas e pelo cientificismo, como menciona Abdala Junior (2003). Portanto, os primeiros estudiosos da área buscavam incessantemente definir o objeto e o método da LC. Por causa disso, em pouco tempo, avolumaram-se diversos manuais a fim de conceituar e delimitar o campo de atuação comparatista, de tal modo que hoje dispomos de “um concerto de vozes discordantes” (BRUNEL e outros, 2012, p. XXI). Nesses estudos plurais, encontramos:
Paralelamente a um denso bloco de trabalhos que examinam a migração de temas, motivos e mitos nas diversas literaturas, ou buscam referências de fontes e sinais de influências, encontramos outros que comparam obras pertencentes a um mesmo sistema literário ou investigam processos de estruturação das obras. A diversidade desses estudos acentua a complexidade da questão. Além disso, a dificuldade de chegarmos a um consenso sobre a natureza da literatura comparada, seus objetivos e métodos, cresce com a leitura de manuais sobre o assunto, pois neles encontramos grande divergência de noções e de orientações metodológicas. Muitos fogem a essas questões. Outras dão conta das tendências tradicionalmente exploradas sem problematizá-las. Alguns tendem a uma conceituação generalizadora. E há ainda os que preferem restringir a determinados aspectos o alcance dos estudos literários comparados. Como se vê, não é fácil caminhar nessa “babel”. (CARVALHAL, 1992, p. 5-6).
Assim, enquanto eco dos ideais da época, essas primeiras vozes, provenientes das concepções europeias, estavam interessadas em responder à seguinte pergunta: “O que é Literatura Comparada?”. Se, por um lado, essa pergunta revela uma certa mentalidade científica que trazia em seu bojo um ideal evolucionista – largamente estudado nas ciências naturais e que também fez parte dos anseios dos primeiros estudiosos da área -; por outro lado, as respostas para essa pergunta espraiam-se em diversas correntes teóricas e metodológicas, contendo nelas diferentes orientações, fruto de constantes formulações e reformulações, embora, até hoje, não se tenha “o entendimento quanto a uma definição simples e definitiva” (BRUNEL e outros, 2012, p. XVII) do que de fato seja a “Literatura Comparada”.
Portanto, como apontamos enquanto objetivo deste artigo, operamos justamente no campo das múltiplas definições, pois, mais do que estabelecer um conceito universal, nos interessa discutir a epistemologia que embasou a prática de leitura e análise comparada realizada no decorrer do tempo. Isso porque nos instiga muito menos dizer o que ela é, mas muito mais compreender como esse arcabouço teórico-metodológico de que dispomos é manuseado pelo comparatista ao analisar determinadas obras literárias e, sobretudo, como essa análise reflete relações de poder e visões de mundo pautadas por assimetrias, resultado da herança colonial. (ABDALA JUNIOR, 2012).
Sobre isso, é importante lembrar que fazer a análise comparada fora dos parâmetros assimétricos é um grande desafio frente à nossa própria formação cultural, muitas vezes tracejada por um imaginário marcado pela lógica binária e pelo estabelecimento de relações desiguais. Isso porque a própria palavra “comparar” pode gerar, intuitivamente, processos mentais pautados por juízos de valor, em que se buscava, por exemplo, no seio das vertentes tradicionais da LC, afirmar a influência da literatura europeia, tida como “cânone” sobre as literaturas produzidas em outros países, de tal modo que essa prática acabava por revelar fortes inclinações para o estabelecimento de fluxos culturais hegemônicos, pautados pela lógica de dominação colonizadora. (ABDALA JUNIOR, 2012).
Como nenhuma produção é a-histórica, estava imbuído nessa atitude um forte sentimento de nacionalismo, já que as literaturas eram comparadas para afirmar a superioridade não só literária, mas também cultural, estética e linguística de países europeus.
Esse modo de investigação literária recebeu severas críticas no avançar dos estudos da LC por diferentes razões. Gostaríamos de enfatizar a crítica ao objeto e à metodologia dos comparatistas franceses, isto é, a epistemologia que embasava a comparação literária tradicional. No que se refere ao objeto, a orientação francesa delimitou o estudo comparado entre literaturas para além das fronteiras nacionais, admitindo que a LC se restringia ao estudo literário, de modo que o estudo da literatura para além das suas próprias fronteiras, tal como a sua relação com a música, o cinema, a pintura, o teatro, a política, a filosofia etc., não era pauta de discussão e análise dos comparatistas franceses, embora seja certo que “os franceses com certeza se interessam por tópicos tais como as artes comparativas, mas não pensam neles como estando na jurisdição da literatura comparada”. (REMAK, 1994, p. 178).
Compreendemos que essa atitude de abertura da comparação literária acima das fronteiras do nacional estava a serviço da estratégia de afirmá-las, isto é, a comparação literária, por cima dos muros, confirmava a importância e a permanência em seus limites. Comparar, nesse sentido, era afirmar a superioridade da literatura, cultura e língua francesas em face das literaturas, culturas e línguas “outras”, situadas à margem.
Já a postura de fechamento quanto à comparação literária além do literário é mais uma diferença entre a proposta francesa e a americana. Nesses termos, o conceito de Literatura Comparada e a sua metodologia dependerão da perspectiva, isto é, do objetivo da comparação literária e da própria prática, ou seja, se iremos comparar para afirmar uma superioridade ou se iremos comparar para observar e aprender com o outro, sem estabelecer uma literatura “fonte” e uma literatura “resultado”, pois é preciso lembrar que “o nome da nossa disciplina é ‘literatura comparada’, e não ‘literatura influente’”. (REMAK, 1994, p. 176).
Desse modo, de encontro à proposta de análise verticalizada, que estabelece uma relação “de cima para baixo”, é possível nos aventurar a uma análise que seja capaz de pôr em relação literaturas antes situadas nas margens do “cânone” europeu ou comparadas como pretexto para afirmá-lo. Assim, o conceito de influência mostra-se problemático para a prática atual comparatista, haja vista que nele “subjaz a ideia de uma relação de subalternidade das literaturas dos países colonizados em relação às dos países colonizadores”. (FIGUEIREDO, 2013, p. 37).
Na prática da análise literária, devemos nos perguntar: o que a voz dessa personagem tem para nos ensinar? Quais são os conflitos e as problemáticas sociais que unem esses personagens e que surgem na cena literária em períodos distintos? O que podemos aprender a partir dessa relação dialógica entre a escrita dos autores? Podemos também perscrutar o que Carvalhal (1992) orienta: o que há de próprio e de alheio entre as literaturas? Ou, conforme Abdala Junior (2003, 2012), o que há de comum e de diferente entre as narrativas? Além disso, gostaríamos de acrescentar para sairmos das dicotomias ora apresentadas: quais são as diferenças entre as semelhanças? Quais semelhanças ainda nos diferenciam?
Agora podemos voltar ao significado de comparação abordado no início deste texto, pois, conforme Carvalhal (1992), comparar é, entre outros valores semânticos, investigar, indagar, formular questões. Assim, por meio dessas perguntas simples, também já podemos compreender a dimensão do comparatismo solidário como uma oportunidade de perceber que “a convivência com o diverso leva ao diálogo com o outro ‘eu’” e, assim, poder enfim se ver “na diversidade do outro”. (ABDALA JUNIOR, 2003, p. 55-56). Dessa forma, a interação dá-se de maneira recíproca, numa rede de aprendizagem mútua só possível por uma relação sujeito-sujeito, não mais sujeito/objeto. (ABDALA JUNIOR 2012).
O COMPARATISMO FRANCÊS E NORTE-AMERICANO
Como já vimos, definir e situar o campo de atuação comparatista não é uma tarefa simples, justamente pela multiplicidade de vozes que ora tentam pôr limites à comparação literária, ora não conseguem muito bem delimitá-la, mostrando o quanto as metodologias e os objetos da LC são escorregadios. (NITRINI, 2015). Devido a isso, é preciso admitir a brevidade das definições e encarar, de forma positiva, a dinamicidade dos estudos comparados desde o século XIX até agora. Sobretudo, é preciso que o comparatista esteja ciente de por qual vertente ou ramificação teórica ele navega quando coloca em relação diferentes literaturas.
Levando em consideração essas questões, gostaríamos de dialogar com um conceito, mesmo que ele seja provisório, a fim de mostrar como as definições revelam a perspectiva na qual se enxerga o objeto e a fim de evidenciar que a escolha por uma ou outra vertente não é neutra. Assim, na coletânea de textos fundadores da LC, encontramos:
A literatura comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país específico e o estudo das relações entre, por um lado, a literatura, e, por outro, diferentes áreas do conhecimento e da crença, tais como as artes (por exemplo, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música), a filosofia, a história, as ciências sociais, a religião etc. Em suma, é a comparação de uma literatura com outra ou outras e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana. (REMAK, 1994, p. 18).
A partir desse conceito, o autor mostra como a definição do que é “Literatura Comparada” proposta por ele geraria diferentes níveis de aceitação pelos comparatistas franceses e americanos. Para nós, o que Remak (1994) faz é problematizar o olhar, isto é, mostrar como uma simples definição é aceita ou rejeitada a partir do ponto de vista e da ênfase do comparatista, revelando multiplicidades de perspectivas.
Nesse sentido, a primeira parte da definição seria aceita pelos comparatistas franceses, para os quais a LC estuda as literaturas para além das fronteiras nacionais, estabelecendo relações que ultrapassam os limites das fronteiras geográficas de determinado país. Por outro lado, os americanos defendiam que também está no escopo da LC o estudo das literaturas no interior de um mesmo país. Além disso, a forma como se faz a comparação é diferente: a “escola francesa” estava interessada em encontrar, nos textos literários, sinais da sua “influente” literatura; já os americanos criticam a centralidade das literaturas europeias e são os primeiros a deslocar as noções de centro e periferia nos estudos comparados, pois, para eles, um texto pode ser comparável, mesmo que não se comprove influências. (REMAK, 1994).
Por sua vez, a segunda parte da definição, a de que estaria no âmbito da LC o estudo além das fronteiras do literário, mostrando as inter-relações do texto literário com outras formas de expressão humana, não abrangeria a proposta da comparação literária francesa. Sendo assim, esse é um ponto de mais uma diferenciação entre os comparatistas franceses e americanos, haja vista que o objeto de estudo da “escola francesa” é mais limitado, enquanto os americanos propõem uma ampliação dele. Essas diferenças, percebidas ao longo da história dos estudos em LC, nos mostra a dificuldade em se chegar a uma resposta unívoca do que de fato ela é, pois o seu campo de atuação, bem como “seus conteúdos e objetivos mudam constantemente, de acordo com o espaço e o tempo”. (NITRINI, 2015, p. 19).
A partir de 1950, o caráter móvel dos estudos comparados fica ainda mais evidente, tendo em vista que esse foi o momento no qual o americano René Wellek faz um pronunciamento no Congresso Internacional de Literatura Comparada, realizado em Chapel Hill, e denuncia o que ele denominou de “a crise dos estudos comparados”, ocasionada por
uma marcação artificial de seu objeto de estudo e de sua metodologia, um conceito mecanicista de fontes e influências, uma motivação ligada ao nacionalismo cultural, por mais generosa que seja – estes me parecem os sintomas da longa crise da literatura comparada. (WELLEK, 1994, p. 115).
Ao elaborar a sua crítica, o autor não deixa de demarcar as raízes positivistas que atribuíram à LC “o lado estéril do factualismo, do cientificismo e do relativismo histórico do século XIX”. (WELLEK, 1994, p. 108). Além disso, ele não deixa de assinalar a importância do estudo do texto literário, sendo esse o real objeto da disciplina e não o que ele chama de “comércio exterior”, no qual se estabeleceu uma relação de créditos e débitos, claramente pautada numa política de poder cultural que levou a disciplina a um estudo voltado ao “estranho sistema de contabilidade cultural, a um desejo de se acumularem créditos para o seu próprio país, provando o maior número de influências possível sobre outras nações”. (WELLEK, 1994, p. 114). Desse modo, os comparatistas franceses, no jogo de fontes e influências, não chegavam à análise das obras, sendo essa a principal crítica do autor.
Por conseguinte, o que René Wellek (1994) denunciou como sendo a crise da LC foi, na verdade, um marco para os estudos literários comparados, pois, a partir deste momento, surgiram diferentes propostas de atualização para os estudos e pesquisas na área, entre elas, o comparatismo solidário, perspectiva teórica criada e desenvolvida por Abdala Junior (2003, 2012, 2014), cuja proposta se distancia muito das perspectivas tradicionais e que adentramos com mais afinco a partir de agora.
RELAÇÕES SOLIDÁRIAS A PARTIR DO COMUNITARISMO CULTURAL
“Nenhuma literatura (ou cultura) aprende apenas a partir de sua própria experiência”. Benjamin Abdala Junior.
De antemão, é preciso dizer que o comparatismo solidário, entre outras vertentes contemporâneas da LC[1], se configura como uma resposta político-cultural aos fluxos teóricos hegemônicos anteriormente mencionados, principalmente à LC de linha francesa. Desse modo, ele está pautado pela supranacionalidade e busca estabelecer relações entre a literatura, a cultura e a política de diferentes lugares, para observarmos o que temos de próprio e em comum. Portanto, essa perspectiva teórica caminha na direção contrária ao individualismo, à competitividade e ao cosmopolitismo, tão comuns na vida social capitalista, de tal maneira que “o comunitarismo afirma-se, na atualidade, envolvendo pluralidade nas articulações políticas, pautadas sempre pela supranacionalidade”, efetivando-se enquanto uma perspectiva atual e eficaz para os estudos contemporâneos da LC. (ABDALA JUNIOR, 2012, p. 11).
Sobre o método comparatista do passado, o teórico reflete sobre a importância de o analisarmos sob uma perspectiva crítica, para compreender as inclinações desses estudos e empreender outro panorama, comprometido com os novos desafios no âmbito dos estudos comparados e em diálogo com as tendências democráticas, pois:
Foi decorrência histórica, no Brasil, nos estudos de literatura comparada, a afirmação de um comparatismo que veio de nosso processo de colonização e também dos fluxos culturais hegemônicos. Verificar essas bases tem sido uma forma de nos situar diante dos fluxos inclinados à colonização de nosso imaginário, que chegam até nós. Trata-se de um comparatismo importante e necessário para o nosso autoconhecimento, através de um viés crítico. Nas atitudes de atores culturais do passado, podem ser configuradas linhas que são imprescindíveis para a melhor compreensão de nossa atualidade sociocultural. Entretanto, a restrição a esse comparatismo não nos parece suficiente, em termos político-culturais. Temos proposto uma outra forma de comparatismo, para figurar ao lado do primeiro. Um comparatismo prospectivo, pautado por relações comunitárias, um comparatismo da solidariedade, da cooperação. Comparar diante de problemáticas que nos envolvem a todos para nos conhecer naquilo que temos de próprio e em comum. Enlaces comparatistas, tendentes a relações de reciprocidade, não numa relação sujeito/objeto, mas sujeito/sujeito em aproximações e fricções, tendo em conta desafios que se colocam em termos de atualidade sociocultural. (ABDALA JUNIOR, 2012, p. 14).
Diante dos avanços na compreensão dos estudos comparados da atualidade, gostaríamos de ressaltar o entendimento quanto às palavras-conceito literatura e texto. Primeiro há de se considerar que não abordamos os conceitos como prisões históricas, isto é, eles não se limitam a uma definição, embora cheguemos a escolher uma ou outra em face de tantas. Feita a ressalva, ainda precisamos dizer que tais conceitos são aqui abordados a partir do lócus dos estudos comparados contemporâneos, no qual estabelecem um intenso diálogo com teorias da literatura, bem como com os estudos culturais.
Sendo assim, se, nos métodos tradicionais, a literatura está a serviço da historiografia literária e há uma falsa abertura no diálogo entre os textos, os autores, as personagens e os espaços ficcionalmente narrados, chegamos, a partir de uma compreensão mais atual, à reflexão de que “a literatura é uma área do conhecimento em correspondência com outras do campo das humanidades. Esse conhecimento permite caracterizar redes de articulação muitas vezes ainda não visíveis e que permite estabelecer correspondências”. (ABDALA JUNIOR, 2012, p. 10). Dessa maneira, “a literatura é situada, nessa perspectiva dos estudos comparados, como um campo do conhecimento híbrido, afim das áreas de Humanidades, em que se descortinam o que nos falta e os sonhos prospectivos da vida social”. (ABDALA JUNIOR, 2012, p. 14).
No que concerne ao entendimento sobre texto, Carvalhal (1992) cita os estudos de Mikhail Bakhtin (1981) para afirmar a importância da compreensão dialógica do discurso literário empreendida pelo autor, sendo essa crucial para conceber o texto não mais como “fechados em si mesmos”, mas como encontro de “vozes” e “jogo de confrontações”, formando uma espécie de “mosaico”, entendido, assim, como uma “construção caleidoscópica e polifônica”. (CARVALHAL, 1992, p. 48).
Nesse limiar, cabe aqui relembrar que um texto, embora ainda não se tenha estabelecido uma comparação com outro, estabelece diálogo com outras textualidades, percebidas na sua superfície, por meio de referências diretas ou de forma implícita no não dito. Destarte, é evidente a sua natureza polifônica, visto que há nele o encontro de muitas “vozes”. Mas, quando colocado em relação com outro texto, essas características se acentuam, de modo que as “vozes de cá” ressoam “ecos de lá”. O comparatista, por sua vez, não pode esquecer que as aproximações entre eles são, no dizer de Abdala Junior (2012), por meio de fricções. Portanto,
[...] o “diálogo” entre os textos não é um processo tranquilo nem pacífico, pois, sendo os textos um espaço onde se inserem dialeticamente estruturas textuais e extratextuais, eles são um local de conflito, que cabe aos estudos comparados investigar numa perspectiva sistemática de leitura intertextual. (CARVALHAL, 1992, p. 53).
Frente a essas novas abordagens no que concerne à própria concepção de literatura, texto e, por conseguinte, análise textual, impulsionada pela articulação entre a LC e as teorias literárias, os estudiosos da área começaram a refletir sobre os conceitos de intertextualidade e interdisciplinaridade, estabelecendo outras categorias de análise e dando ênfase ao estudo do texto, bem como às relações estabelecidas entre a “literatura e as artes, literatura e psicologia, literatura e folclore, literatura e história” (CARVALHAL, 1992, p. 73) e demais áreas, de modo a alargar os horizontes e as possibilidades de análise textual comparada. Mesmo assim, não podemos perder de vista que:
Pensar a Literatura Comparada em nossos dias é tarefa bastante complexa, que traz à tona, de imediato, uma série de problemas de ordem distinta: desde a indagação sobre os próprios conceitos de Comparatismo até o estabelecimento de relações capazes de pôr em xeque o etnocentrismo que caracterizou a disciplina em sua fase inicial e que sempre esteve presente em seu discurso teórico-crítico. (COUTINHO, 2014, p. 17).
Na contramão disso, o comparatismo solidário, no dizer de Abdala Junior (2003, 2012), se articula em torno da utopia libertária, ao estabelecer um enlace comunitário entre as culturas representadas nas literaturas analisadas. Na prática, o autor nos ensina que primeiro o comparatista há de investigar o seu lócus enunciativo, isto é, o lugar de onde ele acessa o mundo e quais horizontes deseja abrir no diálogo com o diverso. Para isso, é preciso então renovar as atitudes no âmbito da LC, em sentido prospectivo, de tal modo que, ao analisar obras artístico-literárias, numa perspectiva comparada, o comparatista precisa estar disposto a estabelecer relações de reciprocidade, em busca do que temos em comum e de diferente para, somente assim, fazermos o comparatismo da cooperação e da solidariedade.
No que diz respeito aos aspectos metodológicos, é preciso que se entenda que a utopia libertária é concreta, é o princípio de juventude, ou seja, ela se aplica em projetos nos quais empreendemos quando colocamos em diálogo diferentes literaturas e, nesse sentido, podemos vê-la na práxis do comparatista. A utopia libertária também está para a dimensão do sonho, isto é, o sonho diurno, aquele que se planeja e se vivencia acordado, diferente do sonho noturno, que se sonha dormindo, sem perspectivas para o futuro. Para chegar a essas reflexões, Abdala Junior (2003, 2012) estabelece um diálogo direto com Ernst Bloch, por meio da sua obra O princípio esperança (1976). Sendo assim, embora Abdala Junior (2003, 2012) não esteja diretamente dialogando com o comparatista, mas sim com o escritor de forma genérica, podemos, de maneira análoga, interpretar que o comparatista deve acreditar
na possibilidade de sua utopia, que não é abstrata. Não se configura num modelo ideal sem projeto. É um processo que, uma vez instaurado, mesmo se não for atingido (por certo, pode-se dizer a priori que não o será em sua plenitude), traz mudanças só possíveis pela ação do sonho de uma realidade futura, que não deixa de fulgurar no presente. (ABDALA JUNIOR, 2003, p. 24).
Tendo em vista que as visões desenvolvidas por Abdala Junior (2003, 2012), muitas vezes são perpassadas por alto teor metafórico, convém apresentar alguns exemplos da teoria aplicada à análise literária, a partir do viés comparatista solidário. Vamos imaginar que a utopia libertária de um escritor ou escritora é analisar os efeitos da colonização nos corpos das personagens femininas em determinadas obras e os desdobramentos disso. Dessa maneira, estabelece-se a relação ao investigar as semelhanças e as diferenças nessa aproximação, logo a utopia torna-se concreta, pois ela é entendida como “energia ou potencialidade subjetiva” (ABDALA JUNIOR, 2003, p. 18) e encontra um campo fecundo para tornar-se a realidade de quem a imaginou. Nesse contexto, adentramos na dimensão do “sonho diurno orientado para o futuro, ao contrário do sonho noturno, que mantém relação privilegiada com o passado”. (ABDALA JUNIOR, 2003, p. 23). Assim, o que era apenas um desejo, uma vontade, torna-se um projeto, já que o comparatista acreditou no
[...] caráter positivo da utopia, sua força criadora e “subversiva”, na medida em que antecipa e anuncia uma vontade futura da reconstrução da sociedade segundo idéias de igualdade, dignidade humana, fraternidade e liberdade. [...] que permite a transformação de nossa imaginação utópica numa realidade humana em forma de amanhã. (SILVA, 2004, p. 204-205).
Continuemos a imaginar que as narrativas literárias dessa pesquisa são literaturas escritas em língua oficial portuguesa: uma brasileira e outra moçambicana, por exemplo. Quanto ao aspecto metodológico, essas obras deverão ser analisadas em sua historicidade, de tal maneira que trabalharemos, inevitavelmente, com a interdisciplinaridade – os estudos de gênero, a história e a literatura. Também faremos um estudo intertextual, pois o tema investigado está presente em ambas as obras literárias analisadas, portanto, elas conversam entre si. É nessa relação dialógica que se manifestam as semelhanças, as contradições, os conflitos e as problemáticas sociais, por meio do diálogo entre as narrativas e o que elas representam histórica e politicamente. Assim:
Quando analisarmos uma forma literária, nós procuraremos vê-la, neste livro, em sua historicidade. Não nos parâmetros historicistas identificados com perspectivas mecanicistas originárias do positivismo, que se limita ao registro de uma linha ascensional, onde o passado justifica o presente. Nem nos parâmetros a-históricos do eterno retorno cíclico, sem aberturas capazes de ultrapassar as circunscrições do círculo. Procuraremos situá-la num entrecruzamento problemático entre o cíclico e o linear, onde se disputam impulsos contraditórios e complexos processos históricos. Dessa maneira, o aparente retorno implica a reconfiguração da forma, que não deixa assim, também ela, de se abrir, reciclando-se na atração de futuro. Não se trata, pois, de visualizar, na volta da estrutura, o modelo cíclico ou a sucessividade retilinear da representação do tempo, mas de situá-la na dinâmica do movimento dialético da espiral, que retoma, interfere e projeta essa forma. (ABDALA JUNIOR, 2003, p. 13).
É no movimento dialético da espiral que o teórico propõe uma atualização da estrutura do mito de Ícaro – personagem mitológica que, ao ser aprisionado em um labirinto, juntamente com o seu pai, o engenheiro Dédalo, sonha com a possibilidade do voo e da libertação. É a partir do confinamento histórico e social que Dédalo engenha asas confeccionadas com cera e penas de pássaros que caíam no labirinto. Ansioso com a possibilidade do voo, Ícaro não escuta os conselhos do seu pai – não voar muito perto do mar, pois corria o risco de se afogar, e nem muito perto do sol, pois as asas poderiam derreter. A personagem, então, se aproxima demais dos raios solares, o que inevitavelmente provoca a sua queda e morte.
A partir da atualização desse mito, o autor propõe, em linguagem metafórica, uma interessante reflexão sobre os labirintos e as amarras teóricas que podem nos aprisionar, levando-nos a percorrer sempre pelas rotas já conhecidas, pois o labirinto simboliza “uma prisão histórica e psicológica”. A utopia libertária de Ícaro e Dédalo é sonhada e vivenciada na confecção das asas de cera, tendo em vista que o seu pai “traduziu sua imaginação em projeto, construindo um artefato que afinal os libertou do labirinto”.(ABDALA JUNIOR, 2003, p. 15).
Ao retomarmos o exemplo anterior, a partir de um viés solidário, poderíamos chegar à conclusão de que as estratégias de opressão contra as personagens femininas não se dão sem as fugas, sem a interpelação e sem a insujeição dessas mulheres contra o modelo patriarcal. Desse modo, caberia ao comparatista investigar como essas personagens, situadas em tempos e geografias distintas, fazem ouvir as suas vozes em meio ao silenciamento. Para tal abordagem, será inevitavelmente necessário dialogar intertextualmente e intradiscursivamente, de tal maneira que o comparatista irá elaborar um terceiro texto, em que as vozes das personagens irão se encontrar e dialogar entre si.
Assim, na dinâmica da vida social, os voos simbólicos entre as literaturas e as culturas nelas representadas não precisam ter o fim trágico da efabulação clássica, embora possa haver, de forma análoga, segundo o autor, um movimento de ascensão e queda, queda e ascensão – próprio de quem se aventura a enlaçar narrativas literárias. Por meio do mito de Ícaro, o teórico reflete sobre “possíveis perspectivas para o estudo comparado das literaturas de língua portuguesa”. Isso porque o anseio por liberdade das personagens mitológicas tem muito a ver com o desejo humano de romper as barreiras físicas e simbólicas que nos impõe a imobilidade. Nesse sentido, “Ícaro é símbolo do desejo humano de voar” (ABDALA JUNIOR, 2003, p. 14-15) e, portanto, compreendemos que essa imagem também pode figurar como metáfora para quem busca novas rotas para a análise literária comparada.
Na contemporaneidade, as pessoas estão cada vez mais isoladas em seus aparatos tecnológicos e, nesse sentido, o comparatismo solidário figura como uma forma de sairmos do isolacionismo, rompendo com a individualidade, buscando resolver os próprios interesses. Isso porque, quando colocamos em relação às culturas, os espaços ficcionalmente narrados, a historicidade representada nas obras, o que ela carrega de valores simbólicos etc., aprendemos muito nessa interação, pois:
Reconhecer a experiência alheia, a experiência do outro, a capacidade de reconhecer que essa experiência gera sentido para si, é desafio e suporte para as barreiras construídas no mundo moderno que isolaram indivíduos uns dos outros, mas à qual se resiste, na medida em que se busca a construção de outras cadeias de solidariedade não apenas entre gerações, porém entre comunidades distantes espacial e temporalmente, muitas vezes. (LUGARINHO, 2014, p. 308).
Como é possível perceber, a comparação literária solidária deve ser entendida para além de uma ramificação teórica da LC, representando, pois, uma forma filosófica de compreender o mundo e suas relações. Vivemos numa sociedade hierarquizada, dividida pelos rótulos de classe social, cor da pele, gênero e orientação sexual. Segregamos o outro numa relação sujeito/objeto e, ao invés de construirmos as pontes para haver conexão, reforçamos os muros. Portanto, o comparatismo solidário é uma lente teórica capaz de apontar essas questões, reconhecendo-as e propondo uma outra maneira de ver o mundo – por meio das redes de cooperação, de aprendizagem recíproca e de uma relação solidária.
Somente assim, podemos fazer a viagem simbólica de sairmos de dentro de nós e irmos ao encontro da experiência com o outro, que também faz parte de mim, numa relação de simbiose, pois, segundo Abdala Junior (2012), toda hegemonia é porosa. Portanto, não há um eu único e exclusivo, o que há são diferentes tecituras que o formam. A partir desses apontamentos, podemos recuperar a imagem que Abdala Junior (2003) propõe na orelha do seu livro, a partir de uma paráfrase do texto de Antônio Machado, “não há caminho, mas se faz caminho ao andar”. (ABDALA JUNIOR, 2003, [orelha do livro]).
De maneira análoga, acreditamos que a comparação literária se dá por meio do movimento, da utopia libertária que te desprende da imobilidade e faz crer no seu projeto como uma realidade – semelhante à efabulação clássica de Ícaro –, portanto, o caminho é construído na caminhada, por meio das orientações teórico-metodológicas numa perspectiva comparada. Em vista disso, ele é construído de forma consciente, isto é, faz-se necessário que o comparatista esteja ciente de quais lentes ele irá utilizar, ou seja, quais teóricos irão guiar o seu leme na viagem que promove o encontro entre duas ou mais literaturas. A partir de então, é só mergulhar no desconhecido, que se torna conhecido por meio das aproximações solidárias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao propormos uma incursão pelos meandros teóricos da LC, fizemos uso da imagem poética de uma viagem, por e entre as veredas da área. Do ponto de vista metodológico, o comparatismo solidário é potente para promover o encontro e a abertura por meio de aproximações e fricções entre as literaturas e suas culturas. A partir dele, é possível também se ver na diversidade do outro, ao sair dos “lugares” conhecidos e, oportunamente, construir as rotas necessárias para acessar novas experiências.
É justamente por reconhecermos que o caudal teórico da LC é extenso que buscamos, por meio deste texto, apontar suas principais tendências a fim de percorrer os seus alcances e limites, bem como discutir e problematizar a epistemologia que embasou a prática comparatista tradicional.
Por meio desse movimento, foi possível compreender que a escolha teórico-metodológica deve ser feita de forma consciente, pois ela funcionará como leme a direcionar a viagem pelas literaturas, estéticas e culturas colocadas em relação. Sendo assim, ao apontar que determinada pesquisa está ancorada na LC, é necessário situar por quais vertentes teóricas estaremos a navegar, para então mergulharmos nas literaturas-mundos colocadas em relação.
REFERÊNCIAS
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Notas